Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
17505/20.0T8LSB-A.L1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: MARIA DA GRAÇA TRIGO
Descritores: RAPTO INTERNACIONAL DE MENORES
CONVENÇÃO DE HAIA
REGULAMENTO (CE) 2201/2003
COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
TRIBUNAIS PORTUGUESES
RESPONSABILIDADES PARENTAIS
GUARDA DE MENOR
RESIDÊNCIA HABITUAL
RECUSA
LEI APLICÁVEL
CONSENTIMENTO
PROGENITOR
INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA
Data do Acordão: 02/02/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA
Sumário :
I. De acordo com a jurisprudência do TJUE, em conformidade com a definição de «deslocação ou retenção ilícitas de uma criança» (art. 2.º, n.º 11, do Regulamento (CE) n.º 2201/2003, de 27/11, e art. 3.º da Convenção de Haia de 1980), a legalidade de uma deslocação ou retenção é apreciada em função dos direitos de guarda atribuídos nos termos do direito do Estado‑Membro da residência habitual da criança antes da sua deslocação ou retenção.


II. No caso dos autos, de acordo com o direito espanhol, que corresponde ao direito do Estado-membro no qual a criança tinha a sua residência habitual antes da sua deslocação, a transferência da residência do menor dependia do consentimento expresso ou tácito dos seus dois progenitores, salvo se houvesse decisão judicial que autorizasse a progenitora a deslocar o menor. 


III. Concluindo-se que a deslocação do menor para Portugal foi uma deslocação ilícita, é aplicável o disposto no art. 10.º do Regulamento n.º 2201/2003, de acordo com o qual os tribunais do Estado-Membro, onde a criança residia habitualmente imediatamente antes da deslocação ilícita, continuam a ser competentes até a criança passar a ter a sua residência habitual noutro Estado-Membro, desde que, simultaneamente, se verifique alguma das condições previstas na al. a) ou na al. b) do mesmo artigo.


IV. Assim, segundo a interpretação dos arts. 8.º e 10.º do Regulamento n.º 2201/2003 realizada pelo TJUE, e ainda que se entendesse, por aplicação da regra geral constante do artigo 8.º, n.º 1, que o menor tinha adquirido uma nova residência habitual em Portugal, os tribunais portugueses apenas poderiam declarar-se internacionalmente competentes se uma das condições alternativas enunciadas neste art. 10.º, alíneas a) ou b) estivesse igualmente preenchida, o que não sucede no caso dos autos.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



I – Relatório

1. No âmbito de um processo especial para regulação do exercício das responsabilidades parentais relativas ao menor AA, nascido a .../.../2020, proposto pela progenitora BB, de nacionalidade brasileira, contra CC, de nacionalidade espanhola, foi proferido pela 1.ª instância, em .../02/2022, despacho no qual foi afirmado que, «por internacionalmente competente para conhecer dos termos da ação, designa-se, para conferência de pais, o próximo dia 30/03/2022, pelas 09h00.».

Inconformado com a decisão da afirmação da competência internacional do tribunal português para a acção, o progenitor interpôs recurso de apelação que, por acórdão de 15/09/2022, foi julgado improcedente pelo Tribunal da Relação de Lisboa, que manteve a decisão da 1.ª instância.


2. Novamente inconformado com tal decisão, o progenitor interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, pedindo a atribuição de efeito suspensivo.

O recurso foi admitido por despacho do relator do tribunal a quo, que, porém, determinou a atribuição de efeito meramente devolutivo.


3. Os autos foram apresentados neste Supremo Tribunal em 05/12/2022.


4. Formulou o Recorrente as seguintes conclusões recursórias:

«I. A título introdutório, importa concluir pela admissibilidade do presente recurso, pese embora as limitações processualmente estabelecidas em matéria de Revista, considerando que tal limitação não se coloca nos casos em que o recurso é sempre admissível, cfr. art. 671.º, n.º 3 CPC, sendo este sempre admissível nas hipóteses em que o mesmo tenha como fundamento a violação das regras de competência internacional aplicáveis, cfr. art. 629.º, n.º 2, al. a) do CPC, o que aqui sucede.

II. O presente recurso versa sobre a douta decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa, alicerçando a sua razão de ciência no manifesto erro de aplicação do direito aos factos, concretamente da Convenção Haia sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças e do Regulamento (CE) n.º 2201/2003, de 27 de novembro, e que conduziram à errónea conclusão de competência internacional dos Tribunais Portugueses.

III. Nestes termos impõe-se a revogação da decisão prolatada e a sua substituição por decisão que proceda a uma correta aplicação dos ditames legais aplicáveis, sendo o fundamento da presente Revista a errada aplicação da lei de processo, cfr. art. 674.º, n.º 1, al. b) do CPC, o que se invoca para todos os efeitos legais.

Vejamos:

IV. Na decisão proferida, na parte objeto de recurso, decidiu o Tribunal a quo que ao tempo da instauração da presente ação, em 31/08/2020, a residência do menor se fixava em Portugal, por apelo ao critério do seu superior interesse, motivo pelo qual seriam competentes os Tribunais Portugueses, o que, todavia, se afigura erróneo.

V. Para ajuizar da adequação do decidido, importa tomar em consideração os factos conhecidos nestes autos e os únicos levados ao conhecimento do Tribunal da Relação de Lisboa e por este sopesados na sua decisão:

1 - Em .../02/2020 nasce o menor AA, em ... Córdoba, sendo o menor de nacionalidade Espanhola, filho de CC, de nacionalidade Espanhola, e BB, então de nacionalidade Brasileira.

2 - Entre .../02/2020 e .../08/2020 (durante cerca de 6 meses) o menor e os seus Progenitores residiram habitualmente em Espanha.

3 - Em .../08/2020 a Progenitora subtraiu e reteve ilicitamente o Menor, tendo viajado com o mesmo para Portugal, sem a autorização e consentimento do Progenitor.

4 - Em 31/08/2020 (6 dias após a deslocação ilícita) a Progenitora dá início à presente ação.

5 - Em outubro de 2020 é intentada ação especial para entrega judicial da criança, o que deu origem ao processo n.º 6810/20.5T8ALM, que correu termos no Tribunal ....

6 - Em 07/01/2021 foi proferida sentença no âmbito do referido processo, tendo aí sido demonstrado que ao tempo da deslocação para Portugal, em .../08/2020, o menor residia habitualmente em Espanha com ambos os progenitores, tendo sido trazido ilicitamente para Portugal, sem autorização ou consentimento do Progenitor, tendo sido determinado o regresso do menor ao Estado da sua residência habitual, Espanha, o que sucedeu imediatamente e onde o menor se encontra até ao presente.

7 - A referida decisão foi confirmada pela Relação.

8 - Em 08/09/2021, na sequência do Recurso de Revista apresentado pela Progenitora, é proferido acórdão por parte do Digníssimo Supremo Tribunal de Justiça, do qual resulta o seguinte:

«No caso dos autos, não vemos razão para negar a conclusão relativa à deslocação ilícita. Decisiva é a constatação do local onde a criança nasceu e onde se encontrava, quando de lá foi retirada pela mãe, que se ausentou para Portugal, sem conhecimento ou autorização do pai.

(…)

Condições existem porém nas quais o regresso imediato da criança em situação de deslocação ilícita pode conduzir a uma situação de recusa do regresso da criança – são elas as circunstâncias aludidas nos artºs 12.º, 13.º e 20.º da Convenção de Haia.

(…)

Para uma criança com 16 meses de idade (à data do acórdão) ou 11 meses (à data da sentença), que privou permanentemente com a mãe, que assim se constituiu como figura afetiva de referência para a criança, a separação física operada pelo regresso a Espanha (que foi executada após a prolação da sentença) só pode considerar-se uma violência, susceptível de afectar o equilíbrio psíquico dessa criança, constituindo uma situação intolerável».

9 - Assim, interpretando o decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça, na sua decisão de 08/09/2021, da mesma não resulta que o menor não residisse até à data da decisão em Espanha, mas sim que, apesar de o menor residir habitualmente àquela data (08/09/2021) em Espanha, qualificando-se a sua deslocação para Portugal como ilícita ou indevida, não ordenou o regresso do menor para Espanha por aplicação da exceção enunciada no art. 13.º, al. b) da Convenção e Haia sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças – conclusão que se extirpa do texto da decisão prolatada e sem se tecer nesta sede considerações quanto ao mérito ou adequação quanto ao decidido,

10 - Por conseguinte, o decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça, no âmbito do processo n.º 6810/20.5T8ALM, não nega a residência habitual do menor em Espanha, simplesmente considera que, em prol do seu superior interesse, não deveria ser ordenado o seu regresso para Espanha, sendo que tal decisão tem, naturaliter, efeitos ex tunc.

VI. Por conseguinte, a considerar-se que a Residência Habitual do Menor é em Portugal – o que nem se concede considerada a factualidade atual, mas em relação à qual não é objeto de apreciação nesta sede - tal apenas ocorrerá, maxime, a partir do momento em que o Supremo Tribunal de Justiça determina que o seu regresso a Espanha não era devido, isto é, em 08/09/2021, sendo que até então encontrava-se o menor fática e legitimamente a residir em Espanha, junto do seu Progenitor, ao abrigo das anteriores decisões proferidas no âmbito do processo 6810/20.5T8ALM.

VII. Com efeito, não se concede razão ao decidido pelo Tribunal a quo ao concluir que a Residência Habitual do Menor ao tempo da propositura da presente ação (31/08/2020) era em Portugal por referência a uma interpretação do critério do superior interesse do Menor.

VIII. Neste ponto, dispõe o art. 8.º, n.º 1 do Regulamento (CE) n.º 2201/2013 que os Tribunais de um Estado-Membro são competentes em matéria de Responsabilidade Parental relativa a uma criança que resida habitualmente nesse Estado-Membro à data em que seja instaurada a ação em Tribunal, considerando-se como tal “a data da apresentação ao Tribunal do ato introdutório da instância ou ato equivalente”, cfr. art. 16.º, n.º 1, al. a) Regulamento (CE) n.º 2201/2003.

IX. Por seu turno, dispõe o artigo 10.º do Regulamento (CE) n.º 2201/2003 que “em caso de deslocação ou retenção ilícitas de uma criança os Tribunais do Estado-Membro onde a criança residia habitualmente imediatamente antes da deslocação ou retenção ilícitas, continuam a ser competentes até a criança passar a ter a sua residência habitual noutro Estado Membro”, devendo, ademais, verificar-se cumulativamente alguma das hipóteses das diversas alíneas do referido artigo 10.º.

X. In casu, sem prejuízo [de] nem sequer se verificar nenhuma das alíneas do artigo 10.º do Regulamento (CE) n.º 2201/2013, que permitiria a alteração da Residência Habitual do Menor, a entender-se que menor AA passou a ter residência em Portugal – o que, considerada a factualidade em causa atualmente nem sequer se concede, mas apenas se equaciona por mero dever de patrocínio - tal apenas veio a correr em 08/09/2021, na sequência do decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça, no âmbito do processo 6810/20.5T8ALM, o qual decidiu que, apesar da residência habitual do menor até então ser em Espanha e da sua reconhecida deslocação ilícita, o seu superior interesse ditavam que não fosse ordenado o seu regresso a Espanha.

XI. Conclusão que se extirpa do facto de a deslocação do menor de Espanha para Portugal, em .../08/2020 ter sido qualificada como ilícita e, nesses termos, imprestável para a alteração da residência do menor e, consequentemente para a alteração do Tribunal competente, cfr. art. 10.º in fine do Regulamento, sendo que apenas com a decisão do Supremo Tribunal de Justiça, de 08/09/2021, é que se poderia equacionar que existiria fundamento para a alteração da residência habitual do menor – isto já no limite das hipóteses académicas porquanto o menor nunca sequer deixou de residir faticamente em Espanha até ao presente – posto que até então o menor residia legitimamente em Espanha com o Progenitor ao abrigo das anteriores decisões judiciais proferidas pelos Tribunais Portugueses.

XII. O Tribunal a quo, apesar de identificar corretamente a necessidade de aplicação de tais normativos (art. 8.º, n.º 1 e art. 10.º do Regulamento (CE) n.º 2201/2013, de 27 de novembro), faz dos mesmos uma errada aplicação prática, fazendo tábua rasa de toda a factualidade acima explanada, antes entendendo que a Residência Habitual do Menor se alterou com a mera deslocação da sua progenitora.

XIII. Com isto violou o Tribunal a quo o disposto no art. 8.º, n.º 1 e 10.º do Regulamento (CE) n.º 2201/2013, porquanto não tomou em consideração o critério de Residência Habitual e a reconhecida deslocação ilícita (a qual não faria alterar a sua residência habitual, pelo menos até à decisão proferida pelo Supremo Tribunal de Justiça) nem, ainda, que ao tempo da propositura da presente ação (31/08/2020), por força das decisões judiciais proferidas no âmbito do processo n.º 6810/20.5T8ALM, o Estado da Residência Habitual era o Estado Espanhol.

A acrescer aos fundamentos acima explanados, diga-se, ainda, que

XIV. da matéria que constava dos autos nunca poderia o Tribunal a quo determinar a residência do menor ao tempo da propositura da ação por apelo ao seu “superior interesse” (pese embora se reconheça o mérito e a importância deste critério em tais casos).

XV. Primo, não dispunha o Tribunal da informação necessária que lhe permitisse valorar em relação a qual dos Estados o Menor apresentava maior proximidade, e consequentemente em que sentido se dirigia o seu superior interesse, o que sucede porquanto tal matéria não foi abordada no âmbito do processo, nem as partes se pronunciaram ou produziram qualquer prova nesse sentido, tendo tal conclusão sido inopinadamente extraída pelo Tribunal da Relação.

XVI. Secundo, dispunha já o Tribunal a quo da decisão do Supremo Tribunal de Justiça, proferida no âmbito do processo n.º 6810/20.5T8ALM, onde é fixada a data a partir da qual foi revogada a ordem para regresso do menor a Espanha, encontrando-se esta decisão cristalizada na Ordem Jurídica Portuguesa, devendo o Tribunal da Relação de Lisboa obediência ao aí determinado.

Ad cautelam, sem prejuízo do antedito,

XVII. ainda que se entendesse que o Tribunal a quo não estava vinculado pelo ocorrido no âmbito do processo n.º 6810/20.5T8ALM (nos termos do qual o menor foi entregue ao Progenitor para que residisse com o mesmo em Espanha, o que sucedeu até 08/09/2021) e que poderia aferir qual dos Estados se considerava como a Residência Habitual do Menor, a conclusão a extrair nunca redundaria na escolha pelo Estado Português, ainda que considerada a data da propositura da ação.

XVIII. Na integração jurisprudencial do conceito de “Residência Habitual” decidiu o Tribunal de Justiça (... Secção), na sua decisão de 22 de Dezembro de 2010 que, não remetendo o regulamento expressamente para o direito interno dos Estados-Membros, a determinação do conceito deverá ser feita à luz das disposições e do objetivo do dito regulamento, nomeadamente do constante do seu considerando décimo segundo, daí ressaltando que “as regras de competência nele fixadas são definidas em função do superior interesse da criança, em particular do critério da proximidade”.

XIX. Por seu turno, nas palavras de António José Fialho (Competência Internacional Dos Tribunais Portugueses Em Matéria De Responsabilidade Parental, Julgar 37, Janeiro Abril 2019, pag. 16-21) “ O conceito de residência habitual da criança deve ser objeto de uma interpretação autónoma (…) a determinar com base num conjunto de circunstâncias de facto relevantes em cada caso concreto (teste de conexão) (…) As circunstâncias de facto relevantes em cada caso concreto que a doutrina e a jurisprudência têm utilizado para determinar a residência habitual são as seguintes:

a) Presença da criança sem caráter temporário ou ocasional, revelando uma certa integração num ambiente social e familiar;

b) Presença física da criança num determinado Estado (embora essa mera presença não seja suficiente);

c) Duração, regularidade, condições e razões da permanência num Estado e da mudança da família para esse Estado;

d) Nacionalidade da criança, local e condições de escolaridade, conhecimentos linguísticos, bem como laços familiares e sociais nesse Estado;

e) Aquisição ou locação de uma habitação ou pedido de atribuição de uma habitação social;

f) Idade da criança, ou seja, os fatores a tomar em consideração no caso de uma criança em idade escolar são diferentes daqueles a que se deve atender tratando-se de uma criança que terminou os seus estudos ou ainda daqueles que dizem respeito a uma criança em idade lactente;

g) Sendo a criança de tenra idade, origens geográficas ou familiares da pessoa ou pessoas de referência com as quais a criança vive, a guardam efetivamente e dela cuidam;

h) Estando a criança em idade lactante, razões da mudança da mãe para outro Estado, seus conhecimentos linguísticos e suas origens geográficas e familiares; (…)

XX. Importa, assim, operar uma integração jurídica dos critérios supra aos factos do conhecimento do Tribunal da Relação de Lisboa para aferir de qual o Estado com maior proximidade do menor. Vejamos:

1 - O Menor nasceu em .../.../2020, em ... Córdoba, Espanha;

2 - O menor é cidadão de nacionalidade Espanhola;

3 - O menor vivia em Espanha, na casa do seu Progenitor, juntamente com a sua família paterna, designadamente o seu pai e três irmãos;

4 - O menor desde a data do nascimento e até que foi subtraído ilicitamente pela progenitora vivia em casa do Progenitor, aqui Recorrente, habitação com todas as condições;

5 - A família paterna no menor reside em Espanha;

6 - O Menor tinha vinculação afetiva e referência parental não apenas a Progenitora, mas igualmente o seu Progenitor;

7 - O menor não nunca foi amamentado pela Progenitora;

8 - Desde o nascimento e até .../08/2020, e, portanto, durante os 6 primeiros meses de vida o menor viveu em Espanha (até que daí foi subtraído ilicitamente);

9 - O menor foi subtraído e retido ilicitamente, tendo viajado com a sua Progenitora de Espanha para Portugal em .../08/2020;

10 - Ao tempo da propositura da presente ação (31/08/2021) o menor encontrava-se em Portugal há apenas 6 dias.

11 - Ao tempo da propositura da presente ação o menor não tinha quaisquer familiares em Portugal (com exceção da progenitora que o subtraiu ilicitamente);

12 - Ao tempo da propositura da presente ação progenitora não era sequer cidadã de nacionalidade portuguesa.

XXI. Face ao exposto, a Residência Habitual do Menor ao tempo da propositura da ação reconduz-se a Espanha, sendo o lugar de maior proximidade em relação ao qual se inclinava o seu superior interesse, desde logo porque a sua estadia nesse país não apresentava carater transitório, temporário ou ocasional (contrariamente a Portugal), sendo aí onde se sediava a família, com carater duradouro e regular, sendo o menor de nacionalidade Espanhola, e bem assim aí se constituam os seus laços familiares -os quais não se reconduzem unicamente à figura maternal como pretende fazer crer o Tribunal a quo.

XXII. Por outro lado, para determinar a residência habitual de um lactante nos casos em que a progenitora muda de residência para outro Estado deverá ser tido em consideração as “razões da mudança da mãe para outro Estado, seus conhecimentos linguísticos e as suas origens geográficas e familiares”, sendo certo que a Progenitora se mudou para Portugal unicamente com o propósito de inviabilizar o contacto do Progenitor com o Menor, não sendo em Portugal que emergem as origens geográficas e familiares da mãe, nem a mesma mantinha quaisquer relações familiares neste pais.

XXIII. Por outro lado, o lapso de tempo entre a viagem do menor para Portugal (.../08/2020) e o início da presente ação (31/08/2020) não se afigura suficiente para que se possa afirmar a mudança de residência habitual, importando, para este efeito, tomar em consideração a duração da estadia àquele tempo, bem como outras circunstâncias que permitem indiciar que um determinado lugar passou a ser a residência habitual da criança e de um dos cuidadores e são elas: (i) obtenção, alteração ou procura de emprego, (ii) procura ou frequência de estabelecimento de ensino para a criança, (iii) a obtenção ou busca de uma habitação, (iv) as origens geográficas,(v)existência de laços familiares num determinado lugar, (vi) a nacionalidade e (vii) os conhecimentos linguísticos.

XXIV. Decorridos seis dias após a propositura da ação a estadia do menor afigurava-se ilegítima, de muito curta duração inexistindo, ainda, quaisquer elementos do processo que preencham as circunstâncias objetivas que permitem indiciar a mudança de residência habitual para Portugal em 31/08/2020, pelo que à data da propositura da ação não era possível afirmar que, por força da deslocação com a sua progenitora, a residência habitual do menor se houvesse alterado de Espanha para Portugal.

XXV. Contrariamente ao propugnado pelo Tribunal a quo, a mera ligação afetiva maternal, mais ainda de uma criança que nunca foi amamentado pela Progenitora, por si só e desacompanhada de outros elementos, nunca poderá ser suficiente para fazer concluir sem mais pela residência habitual de uma criança num outro Estado com o qual nem a criança, nem sequer a mãe tem uma ligação particular, mais ainda ao final de seis dias, sobretudo quando tal deslocação se qualificou como ilícita.

XXVI. Concluindo-se que, por aplicação do critério do superior interesse do menor e da maior proximidade, no momento da instauração da presente ação, era o Estado Espanhol aquele que apresentava maior ligação ao menor, sendo que, sem outros elementos de facto – porquanto não os tinha – nunca poderia afirmar o Tribunal a quo que o Estado Português fosse aquele com maior proximidade e, consequentemente aquele que melhor garantia o superior interesse do menor.

XXVII. Ao decidir nos termos em que decidiu violou o douto Tribunal da Relação de Lisboa o disposto nos artigos 8.º, n.º 1 e 10.º do Regulamento (CE) n.º 2201/2013, de 27 de novembro, impondo-se a revogação da decisão proferida, e a mesma substituída por nova decisão que determine pela incompetência internacional dos Tribunais Portugueses para julgarem a presente causa.».


5. A Recorrida contra-alegou, concluindo nos termos seguintes:

«1. Por tudo anteriormente descrito, a recorrente [rectius: recorrida] pretende com a presente demonstrar que não existe matéria para Recurso de Revista, na medida em que:

2. O Douto Tribunal da Relação no seu Acórdão enumerou de forma clara e descritiva os motivos que levaram a improceder o recurso e concordar com a decisão da 1.º instância sobre a competência internacional.

3. Descortinou de forma singular todas as questões levantas pelo recorrente vencido, nomeadamente quanto:

A) Litispendência

A litispendência entre o processo iniciado em Córdoba e o presente. Apoiando-se nos termos do artigo 19.º e 20.º do regulamento CE n.º 2201/2003 de 27 de Novembro, que o levou tão bem argumentar/decidir pela não configuração na medida que: “No caso em apreço, contrariamente ao que o apelante invoca, o procedimento que instaurou, a .../08/2020, no Tribunal de Lucena, não corresponde a uma Acão sobre o mérito de matéria de responsabilidade parental, mas somente de Pedido de Medidas Provisórias Urgentes (Procedimento de Medidas Provisionales Previas del art. 771 LEC n.º 504/20) relativas ao pedido de guarda e custódia e pensão de alimentos, contra a requerente, relativos ao menor AA. A esta luz, face ao que dispõe o artº 20º do Regulamento, a declaração de competência (internacional) proferida a 29/03/2022 pelo Tribunal Provincial de Córdoba, ... Secção Civil que revogou a decisão anterior proferida pelo Tribunal de Lucena que se havia declarado internacionalmente incompetente para apreciar as medidas provisórias requeridas pelo aqui requerido – decidindo que “…o Tribunal de Lucena tem jurisdição para julgar o presente processo”, apenas tem relevância para as Medidas Provisórias e Cautelares ali solicitadas e não para a decisão de mérito sobre a Regulação das Responsabilidades Parentais. Assim sendo, resta concluir que não ocorre a invocada excepção de litispendência nos termos do artº 19º nº 2 do Regulamento e, assim sendo, não há que suspender o presente processo nem, tão-pouco, há lugar à declaração de incompetência nos termos do artº 17º do Regulamento”

B) A Competência Internacional para a Ação Regulação das Responsabilidades Parentais.

a) Nos termos do artigo 8.º do Regulamento (CE) suprarreferido, entendeu o Douto Tribunal que, não havendo na lei taxativamente uma definição de “residência habitual”, este se auxiliaria de jurisprudência, doutrina e costumes para chegar a um entendimento. Não ignorando de forma alguma a sua aplicação, menos ainda a sua má interpretação.

b) Quanto ao artigo 10.º do mesmo regulamento: verdade é que o mesmo não se mostra mais aplicável ao caso em questão, pois existe uma decisão Suprema (Acórdão do STJ de 09/09/2021 Processo n.º 6810/20.5T8ALM) que define a residência habitual do menor com a progenitora.

c) De acordo com o artigo 16º n.º 1, al. a) do Regulamento, primeira parte, quando é instaurada a ação, concretamente, “Na data de apresentação ao tribunal do acto introdutório da instância…”. (Cf., entre outros, os acórdãos do TJUE, de 01/10/2014 (Proc. C-436/13), de 06/10/2015 (Proc. C-489/14), de 15/112017 (Proc. C-499/15)).

d) Ainda reforçou a sua decisão, fazendo uso de lei interna. Ora, esta fixação da competência internacional no momento em que o processo é instaurado, expressa uma regra semelhante à do direito interno (perpetuatio fori), prevista no artigo 38º, n.º 1 da Lei 62/2013, de 28/08 (LOSJ), que determina que a competência de um determinado tribunal se “…fixa no momento em que a acção se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente…” e, como sucede, de resto, no artigo 9º nº1 da lei 41/2015, de 08/09 (RGPTC) e artigo 79º, n.º 1 da Lei 147/99, de 01/09 (LPCJP).

4. Portanto, atribui-se “…a competência ao tribunal da residência da criança no momento em que o processo é instaurado….” (Cf. José Fialho, A Competência Internacional…, cit., pág. 22). Por conseguinte, no caso dos autos, a competência internacional do Tribunal de Família e Menores de Lisboa fixou-se na data da instauração da Ação Especial para Regulação das Responsabilidades Parentais relativas ao menor AA, a 31/08/2020.

5. Alegar em Revista, nos termos do artigo 629.º n.º 2 al a) que “foram violados, entre outros, os artigos 8.º nº 1 e artigo 10.º do Regulamento CE) nº 2201/2013 de 27 de novembro” é claramente uma tentativa de protelar ainda mais a Regulação das Responsabilidades Parentais, nos termos do artigo 670.º e artigo 542.º do CPC.

6. Por não haver qualquer violação, correta é a aplicação dos referidos dispositivos e é o Tribunal de Família e Menores de Lisboa competente internacionalmente para apreciar e julgar a presente Ação Especial de Regulação das Responsabilidades Parentais.».


6. O recurso foi admitido por despacho de 14/12/2022, mantendo-se a atribuição de efeito meramente devolutivo determinada por despacho do relator do tribunal a quo.


7. Verificando-se a omissão de apresentação ao Ministério Público das alegações e contra-alegações do recurso, por despacho de 27/12/2022, foi suprida essa omissão.


8. Por promoção de 05/01/2023, pronunciou-se o Exmo. Magistrado do Ministério Público nos seguintes termos:

«A questão objeto do presente recurso é a de saber se o Tribunal de Família e Menores de Lisboa é internacionalmente competente para apreciar e decidir o processo especial para Regulação do Exercício das Responsabilidades Parentais relativamente ao menor AA.

A factualidade relevante a ter em consideração é a seguinte:

1 - AA nasceu a .../.../2020, em ..., ..., Espanha, mostrando-se registado no Registo Civil de ..., como filho de CC e de BB.

2 - Tem Documento Nacional de Identidade emitido por Espanha.

3 - Entre .../02/2020 e .../08/2020 (durante cerca de 6 meses) a criança e os seus progenitores residiram habitualmente em Espanha.

4 - Em .../08/2020 a progenitora BB viajou com a criança para Portugal, sem a autorização e consentimento do progenitor.

5 - Em 31/08/2020 (6 dias após a deslocação ilícita) a progenitora BB dá início à presente ação destinada a regular o exercício das Responsabilidades Parentais do seu filho.

6 - Em outubro de 2020 é intentada ação especial para entrega judicial da criança, ao abrigo da convenção de Haia de 1980 sobre os Aspetos Civil do Rapto Internacional de Crianças e do Regulamento (CE) n.º 2201/2003, de 27/11, que deu origem ao processo n.º 6810/20.5T8ALM, que correu termos no Tribunal ....

7 - No âmbito desse processo e na sequência de decisão a ordenar o regresso da criança, a mesma foi entregue ao progenitor em 14/01/2021, que o levou para Espanha, onde ainda permanece, embora a decisão em causa tenha sido posteriormente revogada pelo STJ.

8 - O acórdão do STJ considerou verificada uma deslocação ilícita tendo, porém, entendido ocorrer uma situação de risco para a criança, nos termos da al. b) do art.º 13.º da Convenção sobre os Aspetos Civis do Rapto Internacional de Crianças e, por via disso, revogou a decisão que ordenara o seu regresso imediato.

Na presente situação é aplicável o Regulamento (CE) nº 2201/2003 do Conselho, de 27 de Novembro de 2003, alterado pelo Regulamento (CE) nº 2116/2004 do Conselho, de 2 de Dezembro de 2004 (também conhecido por Regulamento Bruxelas II bis, doravante Regulamento), relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria de responsabilidade parental, e que revogou o Regulamento (CE) nº 1347/2000.

No seu art.º 8.º, o Regulamento estabelece como regra geral de competência em matéria de responsabilidade parental a do tribunal do Estado-Membro onde a criança resida habitualmente à data em que o processo seja instaurado.

Considerando-se como tal a data da apresentação ao Tribunal do ato introdutório da instância ou ato equivalente, cfr. art. 16.º, n.º 1, al. a) do Regulamento.

Os artigos 9.º, 10.º, 12.º e 13.º estabelecem as exceções à norma geral, indicando os casos em que os tribunais competentes podem ser os de um Estado-Membro diferente do Estado da residência habitual da criança, à data da propositura da ação.

No caso em análise, tendo ocorrido uma deslocação ilícita da criança, é aplicável o art.º 10.º do Regulamento, o qual, sob a epígrafe competência em caso de rapto de criança, dispõe que “em caso de deslocação ou retenção ilícitas de uma criança os Tribunais do Estado-Membro onde a criança residia habitualmente imediatamente antes da deslocação ou retenção ilícitas, continuam a ser competentes até a criança passar a ter a sua residência habitual noutro Estado Membro” devendo, ainda, verificar-se cumulativamente alguma das hipóteses das diversas alíneas do referido normativo.

Ora, resulta provado que o AA residiu em Espanha desde o seu nascimento até à data da deslocação ilícita, motivo por que a sua residência habitual imediatamente antes da deslocação situava-se naquele Estado-Membro, não se verificando nenhuma das situações restritas previstas no art.º 10.º do Regulamento e que determinariam, no caso concreto, a atribuição de competência aos tribunais portugueses.

Assim sendo, afigura-se-nos, salvo melhor opinião, que o Tribunal de Família e Menores de Lisboa não é internacionalmente competente para apreciar e decidir o processo especial para Regulação do Exercício das Responsabilidades Parentais relativamente ao AA, devendo ser dado provimento ao recurso.».


9. Notificadas as partes da promoção do Ministério Público, veio a Recorrida, em 17/01/2023, apresentar requerimento do seguinte teor:

«1. O Tribunal Espanhol, Jusgado de Primeira Instancia e Instrucción numero ... de Lucena, conforme decisão anexa, considerou competente internacionalmente o Tribunal de Família e Menores da Comarca de Lisboa para a ação de Regulação das Responsabilidades Parentais do menor AA nos autos da "demanda de medidas sobre relaciones paternofiliales" proposta pelo progenitor naquele país em outubro de 2022, o que corrobora com a Decisão do Tribunal da Relação de Lisboa nestes autos assim como da Decisão de Setembro de 2021 deste próprio Superior Tribunal de Justiça no âmbito do Processo de Entrega Judicial de Criança.

2. Ao contrário do posicionamento exarado pelo Procurador-Geral Adjunto DD, o Supremo Tribunal de Justiça, nos autos do Processo de Entrega Judicial, já se posicionou quanto à residência do menor AA, em Acórdão de 08 de setembro de 2021, Processo n.º 6810/20.5T8ALM, já transitado em julgado, referindo que o menor não deveria ter sido entregue ao Pai, residente em Espanha, em janeiro de 2021.

3. O Supremo Tribunal de Justiça já reconheceu que houve uma saída compulsiva ILEGAL do menor de Portugal. Isso é, o mesmo NÃO deveria ter saído do território nacional!

4. Resta evidente que cabe ao Tribunal Português a competência internacional, sob pena de contradizer a própria execução de sentença portuguesa de retorno do menor, entretanto, com o máximo respeito que se impõe, é rigorosamente isso que faz a Promoção do Procurador-Geral Adjunto, datada de 5 de janeiro de 2023.

5. O menor ainda não se encontra em território nacional, o que viola gravemente a soberania Nacional do Estado Português, pois a Autoridade Central Espanhola negou-se a aplicar a Sentença deste Tribunal, levando a Progenitora a intentar uma Ação de Execução de Sentença Estrangeira em Espanha (abril de 2022), a qual continua sem andamento, em face da primeira e posteriormente a segunda instância terem se considerado incompetentes.

6. Contudo, este não seria o primeiro caso em que tal situação ocorre, visto que os Tribunais Espanhóis já foram condenados pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos por incumprirem decisões de regresso de menores.

7. Tal se verificou há poucos meses no caso VERES v. ESPANHA n.º 57906/18, 8.11.2022 em que se reconheceu a violação do direito à vida familiar pelo regresso tardio de uma criança1.

8. A morosidade daqueles Tribunais afeta diretamente a relação familiar entre Progenitora e filho, sobretudo neste caso, que como amplamente se verificou no Processo de Entrega Judicial, o menor foi entregue quase que a um desconhecido, já que o Progenitor não tinha relação nem mesmo de cuidados mais básicos – como dar o biberão, por exemplo, ao seu próprio filho.

9. Mas não só a relação entre a Progenitora e filho são colocados em causa, como os processos judiciais de competência portuguesa, pois como bem se verifica, a ausência em território do menor, leva os representantes da Justiça a colocarem em causa as próprias decisões nacionais, gerando uma completa insegurança jurídica e violando frontalmente os interesses do menor AA de apenas 2 anos e 11 meses.

10. Não se compreende, assim, a posição do Procurador Adjunto face à factualidade apresentada no processo, pois acaba por ostentar um conhecimento raso e limitado da Convenção da Haia – baseando-se apenas na “residência habitual” do menor, sem considerar os meandros da sua aplicação em casos concretos, sobretudo complexos como este em que se tratou de um bebé.

11. Tendo o próprio Tribunal da Relação de Lisboa nestes autos em 15/09/2022 esclarecido na página 22 do acórdão que: "Na verdade, relativamente a um bebé de 6 meses de idade, não pode falar-se em "integração num ambiente social", regularidade de permanência num território, ou de laços sociais, ou de condições de escolaridade ou de conhecimento linguísticos. Com seis anos de idade releva a ligação afectiva maternal".

12. Além disso, o tema da residência habitual já foi profundamente discutido em diversas decisões nacionais e internacionais, e sobretudo, já foi decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça Português que este “requisito” não seria, por si só, suficiente, mantendo interpretação à luz do superior interesse da criança, o que se afigura lógico e apropriado.

13. O Acórdão exarado a 09/09/2021 pelo STJ no processo de Entrega Judicial levou em consideração, inclusive, o risco psíquico imputado à criança, em razão da violência de mantê-la distante fisicamente da sua mãe por tanto tempo.

14. Cabe ressaltar ainda que há diversas interpretações do Tribunal Europeu sobre o conceito de “residência habitual”, tal como amplamente demonstrado nas contra-alegações da recorrida, nos pontos 29 a 42, que contrapõe o posicionamento vertido na dita Promoção.

15. Por fim, já fez dois anos que por um erro judicial, também por claro desconhecimento da Convenção de Haia do Juiz de Primeira Instância do Processo de Entrega Judicial, que esta mãe e esta criança deixaram de estar juntos, sendo afastados por sucessivos processos desnecessários por puro despreparo do judiciário e outras entidades envolvidas, o que é inadmissível.

16. A batalha vem sendo incansável para chegarmos neste momento e termos uma posição não só contrária à devida interpretação e aplicação da Convenção de Haia, mas também contrária à própria decisão do STJ, já transitada em julgado.

17. Desta forma, pugna-se, com a devida vênia, pela improcedência do Recurso de Revista do progenitor, atentando não só as Decisões Nacionais, mas também a própria posição do Tribunal Espanhol que reconheceu recentemente a competência do Tribunal Português para regular as Responsabilidades Parentais do menor AA.».


II - Admissibilidade do recurso

1. O processo de regulação do exercício das responsabilidades parentais configura uma providência tutelar cível, nos termos do artigo 3.º, alínea c), do Regime Geral do Processo Tutelar Cível (RGPTC), aprovado pela Lei n.º 141/2015, de 8 de Setembro.

As providências tutelares cíveis têm, processualmente, natureza de jurisdição voluntária (artigo 12.º do RGPTC); e os recursos de decisões proferidas em providências tutelares cíveis, reguladas pelo RGPTC, têm natureza cível e são regulados supletivamente pelo Código de Processo Civil (artigos 32.º, n.º 3, e 33.º, n.º 1, do RGPTC). Assim, nos termos do disposto no artigo 988.º, n.º 2, do CPC, não é admissível recurso de revista das decisões proferidas no âmbito deste processo segundo “critérios de conveniência ou oportunidade”, pelo que apenas será admissível o recurso de decisões baseadas em critérios de estrita legalidade.

No caso dos autos, o cerne do litígio assenta na interpretação do disposto nos artigos 8.º e 10.º do Regulamento (CE) n.º 2201/2003 do Conselho, de 27 de Novembro de 2003, alterado pelo Regulamento (CE) n.º 2116/2004 do Conselho, de 2 de Dezembro de 2004 (também conhecido por Regulamento Bruxelas II bis), relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria de responsabilidade parental. Sendo que também a decisão recorrida se baseou na interpretação das referidas normas comunitárias, em especial, no conceito de “residência habitual” da criança, fundamental para determinar o Estado-Membro competente para apreciar a acção.

Podemos, assim, concluir que o objecto do recurso consiste exclusivamente na interpretação e aplicação de normas legais, ou seja, em questões de estrita legalidade, não existindo, desta forma, à luz do regime do n.º 2 do artigo 988.º do CPC, obstáculo à apreciação do mesmo.

Contudo, ocorrendo dupla conforme entre as decisões das instâncias, importa ainda apurar do funcionamento do obstáculo à admissibilidade da revista previsto no n.º 3 do artigo 671.º do CPC.

Verifica-se que esta mesma norma ressalva, precisamente, da aplicação desse obstáculo aqueles “casos em que o recurso é sempre admissível”. Ora, no caso dos autos, o recurso de revista assenta na aferição da competência internacional dos tribunais portugueses. Sendo que, nos termos do disposto no artigo 629.º, n.º 2, alínea a), do CPC, “independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admissível recurso: a) com fundamento na violação das regras e competência internacional (…).”.

Mantém-se, assim, a decisão da relatora deste Supremo Tribunal que admitiu o recurso.


III – Objecto do recurso

Atendendo às conclusões formuladas pelo Recorrente, o objecto do recurso consiste unicamente na seguinte questão:

- Saber se os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para apreciar e decidir a presente acção especial para regulação do exercício das responsabilidades parentais relativas ao menor AA.


IV – Fundamentação de facto

Para além da factualidade mencionada no relatório antecedente, a Relação deu como provado o seguinte:

1- AA nasceu a .../.../2020, em ..., Córdoba, Espanha, mostrando-se registado no Registo Civil de ..., como filho de CC e de BB.

2- O menor tem Documento Nacional de Identidade emitido por Espanha.

3- Em .../08/2020 a progenitora do menor viajou com o filho para Portugal, o que deu origem ao procedimento de entrega judicial do menor ao progenitor, como referido no ponto 4 do Relatório supra, tendo sido entregue ao progenitor em 14/01/2021, decisão posteriormente revogada pelo STJ sem que, até à data da elaboração do acórdão da Relação haja nota do regresso do menor para junto da mãe.

- Já após a apresentação do recurso de apelação, o requerido veio pedir a junção, aceite pelo Tribunal da Relação, de cópia da decisão proferida a 29/03/2022 pelo Tribunal Provincial de Córdoba, ... Secção Civil, que revogou a decisão anterior – proferida pelo Tribunal de Lucena que se havia declarado internacionalmente incompetente para apreciar as medidas provisórias requeridas pelo aqui requerido – decidindo que “…o Tribunal de Lucena tem jurisdição para julgar o presente processo.”.

V – Fundamentação de direito

1. No acórdão recorrido, a decisão de considerar internacionalmente competentes os tribunais portugueses, assentou: (i) na subsunção do caso à previsão do artigo 8.º, n.º 1, do Regulamento Bruxelas II bis (“Os tribunais de um Estado-Membro são competentes em matéria de responsabilidade parental relativa a uma criança que resida habitualmente nesse Estado-Membro à data em que o processo seja instaurado no tribunal.”; (ii) no entendimento de que a determinação da “residência habitual”, na acepção do mesmo artigo 8.º, n.º 1, do Regulamento, “há-de ser feita à luz das disposições e do objectivo do dito Regulamento, nomeadamente do constante do seu considerando décimo segundo, daí ressaltando que as regras de competência nele fixadas são definidas em função do superior interesse da criança, em particular do critério da proximidade.”.

Concluiu a Relação que “uma criança de seis meses de idade, que foi deslocada pela mãe da localidade onde nasceu e vivia em Espanha e, que passou a residir em Portugal onde, ao fim de seis dias, foi instaurado processo especial de Regulação das Responsabilidades Parentais, deve ter-se como residindo junto da mãe, em Portugal, por ser mais conforme ao superior interesse dessa criança permanecer junto da mãe, quer enquanto figura primária de referência, quer em face do critério da preferência maternal para crianças de tenra idade, permitindo, assim, assegurar a continuidade das relações afectivas da criança essenciais para o seu bem-estar psicológico.”.

Mais considerou a Relação irrelevante o facto de a criança ter sido, entretanto, levada para Espanha ao abrigo da decisão proferida no processo n.º 6810/20.5T8ALM (processo especial de entrega judicial da criança ao progenitor ao abrigo da Convenção da Haia de 1980 sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças e do Regulamento (CE) n.º 2201/2003, de 27 de Novembro), uma vez que a atribuição da competência internacional aos tribunais do Estado-Membro em questões relativas a matéria de responsabilidade parental, de acordo com o artigo 16.º, n.º 1, alínea a), primeira parte, do referido Regulamento, se fixa no momento em que é instaurada a acção (“Considera-se que o processo foi instaurado: a) Na data de apresentação ao tribunal do acto introdutório da instância, ou acto equivalente (...)”.).


1.1. Na sua fundamentação, o acórdão recorrido refere várias decisões do Tribunal de Justiça da União Europeia sobre a interpretação do conceito de “residência habitual” previsto no artigo 8.º, n.º 1, do Regulamento n.º 2201/2003. Afigura-se, porém, subsistirem dúvidas sobre a correcta interpretação e aplicação das disposições comunitárias.

Com efeito, todos os acórdãos do TJUE convocados no acórdão recorrido referem-se a situações de deslocação lícita do menor do Estado onde residia habitualmente para outro Estado (Acórdão de 22 de Dezembro de 2010 - Barbara Mercredi vs Richard Chaffe, processo C‑497/10, ponto 23 da fundamentação; Acórdão de 2 de Abril de 2009, processo C-523/07, ponto 14 da fundamentação; e Acórdão de 28 de Junho de 2018, processo C-512/17 - HR vs KO e Prokuratura Rejonowa Poznań Stare Miasto w Poznaniu, pontos 14 a 17 da fundamentação).


1.2. Assume especial relevância o primeiro dos referidos acórdãos, de 22 de dezembro de 2010, (Barbara Mercredi vs Richard Chaffe), pelo qual se decidiu o seguinte:

“1) O conceito de «residência habitual», na acepção dos artigos 8.° e 10.° do Regulamento (CE) n.° 2201/2003 do Conselho, de 27 de Novembro de 2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental e que revoga o Regulamento (CE) n.° 1347/2000, deve ser interpretado no sentido de que essa residência corresponde ao lugar que traduz uma certa integração da criança num ambiente social e familiar. Para tanto, e quando está em causa a situação de uma criança em idade lactente que se encontra com a mãe apenas há alguns dias num Estado‑Membro diferente do da sua residência habitual, para o qual foi deslocada, devem designadamente ser tidas em conta, por um lado, a duração, a regularidade, as condições e as razões da estada no território desse Estado‑Membro e da mudança da mãe para o referido Estado e, por outro, em razão, designadamente, da idade da criança, as origens geográficas e familiares da mãe, bem como as relações familiares e sociais mantidas por esta e pela criança no mesmo Estado‑Membro. Cabe ao órgão jurisdicional nacional fixar a residência habitual da criança tendo em conta todas as circunstâncias de facto específicas de cada caso.

Na hipótese de a aplicação dos critérios acima referidos levar, no processo principal, a concluir que a residência habitual da criança não pode ser fixada, a determinação do tribunal competente deveria ser efectuada com base no critério da «presença da criança» na acepção do artigo 13.° do regulamento.”.

Aplicando a doutrina expressa neste acórdão do TJUE ao caso dos presentes autos, no qual também se verifica que uma criança de alguns meses de idade foi deslocada pela mãe do país onde residia habitualmente para outro país, importa começar por referir que não resulta da factualidade provada qual a intenção ou as razões da progenitora ao deslocar-se com a criança para Portugal, nem se o menor ou a sua mãe já tinham estado no nosso país anteriormente; nem tampouco se apuraram as origens geográficas e familiares da progenitora (sabendo-se apenas que tem nacionalidade brasileira), nem as relações familiares e sociais mantidas pela progenitora e pela criança em Portugal.

Assim, segundo a orientação do mesmo acórdão do TJUE, atenta a escassez da factualidade apurada – e num primeiro nível de análise –, não sendo possível, face às circunstâncias de facto específicas do caso concreto, apurar a residência habitual da criança, a determinação do tribunal competente deveria ser efectuada com base no critério da “presença da criança” na acepção do n.º 1 do artigo 13.° do Regulamento n.º 2201/2003 (“Se não puder ser determinada a residência habitual da criança nem for possível determinar a competência com base no artigo 12.º, são competentes os tribunais do Estado-Membro onde a criança se encontra.”). Pelo que, encontrando-se a criança com a mãe em Portugal quando foi instaurada a presente acção especial, seriam internacionalmente competentes os tribunais portugueses.

Porém, como acima se referiu, o acórdão em causa diz respeito a uma situação em que a deslocação do menor do país onde residia habitualmente para outro país foi lícita, como é expressamente referido no ponto 23 da respectiva fundamentação:

“Está assente que a residência habitual da criança, antes de ter partido em 7 de Outubro de 2009, se situava em Inglaterra. Está igualmente assente que a deslocação da menor Chloé para a ilha da Reunião foi lícita, uma vez que B. Mercredi era, no momento dessa deslocação, a única pessoa que dispunha de um «direito de guarda» na acepção do artigo 2.°, ponto 9, do regulamento.”.

Ora, no caso em apreciação nos presentes autos, assume toda a relevância o facto de a deslocação do menor de Espanha para Portugal ter sido ilícita, como se assume no próprio acórdão recorrido, como decorre da factualidade dada como provada nestes autos e como foi também decidido no Acórdão deste Supremo Tribunal de 8 de Setembro de 2021, proferido no processo n.º 6810/20.5T8ALM (processo especial de entrega judicial da criança ao progenitor, ao abrigo da Convenção da Haia de 1980 sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças e do Regulamento n.º 2201/2003).

1.3. Com efeito, concluindo-se pela deslocação ilícita da criança, é aplicável ao caso dos autos o disposto no artigo 10.º do Regulamento n.º 2201/2003, e não o n.º 1 do artigo 8.º do mesmo Regulamento, como é expressamente ressalvado pelo n.º 2 do mesmo artigo 8.º (“O n.º 1 é aplicável sob reserva do disposto nos artigos 9.º, 10.º e 12.º”.). Nas palavras de António José Fialho («A Competência Internacional dos Tribunais Portugueses em Matéria de Responsabilidade Parental», in Revista Julgar, n.º 37, Janeiro/Abril 2019, pág. 23):

“A competência internacional dos tribunais do Estado da residência habitual da criança cede nas situações previstas no artigo 8.º, n.º 2, do Regulamento, nos seguintes termos:

(...)

b) Quando se verificar uma situação de deslocação ou retenção ilícitas, os tribunais do Estado-Membro onde a criança residia habitualmente antes da deslocação ou retenção ilícitas mantêm a sua competência até que a criança passe a ter a sua residência habitual noutro Estado-Membro e se verifiquem alternativamente determinadas condições (artigo 10.º do Regulamento): i) O titular do direito de guarda dê o seu consentimento à deslocação ou retenção ilícitas; ii) A criança tenha estado a residir nesse outro Estado-Membro durante, pelo menos, um ano após a data em que o titular do direito de guarda tenha tomado ou devesse ter tomado conhecimento do paradeiro da criança, se esta se encontrar integrada

(...).”.

No mesmo sentido, ver Anabela Susana de Sousa Gonçalves, «A deslocação ou retenção ilícita de crianças no Regulamento n.º 2201/2003 (Bruxelas II bis)», in Cadernos de Direito Transnacional (Marzo 2014), Volume 6, n.º 1, págs. 150 e 152.     

Ora, compulsada a fundamentação do acórdão recorrido, verifica-se que, embora o conteúdo do artigo 10.º nele tenha sido transcrito (cfr. pág. 13), juntamente com a reprodução de diversas outras normas do Regulamento n.º 2201/2003, constata-se que o regime previsto naquele preceito não foi interpretado e aplicado ao caso dos autos.

Dispõe o referido artigo 10.º do Regulamento o seguinte:

“Competência em caso de rapto da criança

Em caso de deslocação ou retenção ilícitas de uma criança, os tribunais do Estado-Membro onde a criança residia habitualmente imediatamente antes da deslocação ou retenção ilícitas, continuam a ser competentes até a criança passar a ter a sua residência habitual noutro Estado-Membro e:

a) Cada pessoa, instituição ou outro organismo titular do direito de guarda dar o seu consentimento à deslocação ou à retenção; ou

b) A criança ter estado a residir nesse outro Estado-Membro durante, pelo menos, um ano após a data em que a pessoa, instituição ou outro organismo, titular do direito de guarda tenha tomado ou devesse ter tomado conhecimento do paradeiro da criança, se esta se encontrar integrada no seu novo ambiente e se estiver preenchida pelo menos uma das seguintes condições:

i) não ter sido apresentado, no prazo de um ano após a data em que o titular do direito de guarda tenha tomado ou devesse ter tomado conhecimento do paradeiro da criança, qualquer pedido de regresso desta às autoridades competentes do Estado-Membro para onde a criança foi deslocada ou se encontra retida,

ii) o titular do direito de guarda ter desistido do pedido de regresso e não ter sido apresentado nenhum novo pedido dentro do prazo previsto na subalínea i),

iii) o processo instaurado num tribunal do Estado-Membro da residência habitual da criança imediatamente antes da deslocação ou retenção ilícitas ter sido arquivado nos termos do n.º 7 do artigo 11.º,

iv) os tribunais do Estado-Membro da residência habitual da criança imediatamente antes da deslocação ou retenção ilícitas terem proferido uma decisão sobre a guarda que não determine o regresso da criança.”.

Importa assinalar que a ilicitude dessa deslocação deve ser aferida nos termos previstos no próprio Regulamento n.º 2201/2003 (cfr. Acórdão do TJUE de 8 de Junho de 2017, processo C‑111/17; e Despacho do TJUE de 10 de Abril de 2018, processo C‑85/18).

O conceito de deslocação ou retenção ilícitas de uma criança encontra-se previsto no ponto 11. do artigo 2.º do mesmo Regulamento, em termos semelhantes ao que consta do artigo 3.º, primeiro parágrafo, da Convenção de Haia de 1980, prevendo-se naquela primeira norma que tal conceito se define como a “deslocação ou a retenção de uma criança, quando:

a) Viole o direito de guarda conferido por decisão judicial, por atribuição de pleno direito ou por acordo em vigor por força da legislação do Estado-Membro onde a criança tinha a sua residência habitual imediatamente antes da deslocação ou retenção; e

b) No momento da deslocação ou retenção, o direito de guarda estivesse a ser efectivamente exercido, quer conjunta, quer separadamente, ou devesse estar a sê-lo, caso não tivesse ocorrido a deslocação ou retenção. Considera-se que a guarda é exercida conjuntamente quando um dos titulares da responsabilidade parental não pode, por força de uma decisão ou por atribuição de pleno direito, decidir sobre local de residência da criança sem o consentimento do outro titular da responsabilidade parental.”.

Como se sintetiza no Acórdão do TJUE de 08/06/2017 (processo C‑111/17), ponto 53. da fundamentação, acima referido:

“[E]m conformidade com a definição de «deslocação ou retenção ilícitas de uma criança», que figura no artigo 2.°, n.° 11, do referido regulamento e no artigo 3.° da Convenção de Haia de 1980, recordada no n.° 36 do presente acórdão, a legalidade ou ilegalidade de uma deslocação ou retenção é apreciada em função dos direitos de guarda atribuídos nos termos do direito do Estado‑Membro da residência habitual da criança antes da sua deslocação ou retenção”.

Também a nível nacional, no acórdão deste Supremo Tribunal de 10 de Outubro de 2013 (processo n.º 1211/08.6TBAND-A.C1.S1), disponível em www.dgsi.pt, se afirma:

“[Q]ue em face do Regulamento, duas situações se desenham para que se considere ter havido ilicitude na deslocação ou retenção de uma criança:

a) – ter havido violação do direito de guarda conferido por decisão judicial;

b) – estar, no momento da deslocação ou retenção, o direito de guarda a ser efetivamente exercido, quer conjunta, quer separadamente, ou devesse esta a sê-lo, caso não tivesse ocorrido a deslocação ou retenção, sendo que se considera que “a guarda é exercida conjuntamente quando um dos titulares da responsabilidade parental não pode, por força de uma decisão ou por atribuição de pleno direito, decidir sobre local de residência da criança sem o consentimento do outro titular da responsabilidade”.

1.4. Ora, no caso dos autos, está provado que a criança AA nasceu a .../.../2020, em ..., Córdoba, Espanha, encontrando-se registado no Registo Civil de ..., como filho de CC, de nacionalidade espanhola, e de BB, de nacionalidade brasileira. Mais se provou que o menor tem Documento Nacional de Identidade emitido por Espanha e que, em .../08/2020, a sua progenitora, aqui Recorrida, viajou com o filho para Portugal, o que deu origem ao procedimento de entrega judicial do menor ao progenitor, intentado por este último no Tribunal ... (processo n.º 6810/20.5T8ALM), tendo a criança sido entregue ao progenitor em 14/01/2021, decisão posteriormente revogada no mesmo processo por este Supremo Tribunal, sem que haja notícia do regresso do menor para junto da mãe.

Do exposto, decorre que o menor nasceu em Espanha, tem nacionalidade espanhola e viveu nesse país entre a data do seu nascimento e a data da viagem para Portugal em .../08/2020. Não resulta da mesma factualidade que tenha havido alguma decisão judicial prévia a esta última data que tenha atribuído a guarda da criança a algum dos seus progenitores. Também é evidente a inexistência de acordo prévio entre os progenitores no que respeita à deslocação do menor para Portugal. Não havendo dúvidas de que a criança tinha residência habitual em Espanha antes de .../08/2020, importa apurar o regime legal aplicável à guarda e residência do menor, de acordo com a legislação espanhola, nos termos previstos no ponto 11. do artigo 2.º do Regulamento n.º 2201/2003.


2. Não constando dos factos apurados se os progenitores do menor são casados entre si, tal facto não assume relevância no que respeita ao exercício das responsabilidades parentais, uma vez que, de acordo com o disposto no parágrafo 2.º do artigo 108.º do Código Civil espanhol (aprovado por Real Decreto de 24/07/1889, publicado na Gaceta de Madrid n.º 206, de 25-07-1889), na última redacção introduzida pela Ley Orgánica 1/1996, de 15 de Janeiro, a filiação matrimonial e não matrimonial, assim, como a adoptiva, surtem os mesmos efeitos de acordo com as disposições desse Código.[1]

Por sua vez, de acordo com o disposto no artigo 154.º do mesmo Código, na redacção em vigor na data da deslocação do menor para Portugal, introduzida pela Ley 26/2015, de 28 de Julho, os filhos não emancipados estão sob a autoridade parental dos seus pais, que deve ser sempre exercida no interesse dos filhos, de acordo com a sua personalidade, e no respeito pelos seus direitos e pela sua integridade física e psíquica. Nos termos do mesmo preceito, esta função compreende os poderes-deveres dos progenitores em relação aos filhos de os vigiar, acolher, alimentar, educar e fornecer-lhes uma formação integral, bem como de os representar e gerir os seus bens, prevendo ainda essa norma a audição obrigatória dos filhos antes da tomada de decisões que os afectem desde que tenham maturidade suficiente para o efeito, além da possibilidade de os pais, no exercício da sua função, recorrerem ao auxílio da autoridade.[2]

Por sua vez, de acordo com o parágrafo 1.º do artigo 156.º do mesmo Código, na redacção em vigor na data da deslocação da criança de Espanha para Portugal, introduzida pela Ley 15/2015, de 2 de Julho, o poder paternal deve ser exercido conjuntamente por ambos os progenitores ou por apenas um com o consentimento expresso ou tácito do outro. Sendo que os actos praticados por um deles serão válidos conforme o uso e as circunstâncias sociais ou em situações de urgência.[3]

O 3.º parágrafo do mesmo preceito dispõe que, em caso de desacordo, qualquer um dos progenitores poderá recorrer ao Juiz, que, ouvindo ambos e o filho, se for suficientemente maduro e, em todo o caso, se for maior de doze anos, atribuirá o poder de decidir ao pai ou à mãe. Sendo que, se os desacordos se repetirem ou houver qualquer outra causa que dificulte gravemente o exercício do poder paternal, este pode ser atribuído total ou parcialmente a um dos progenitores ou serem distribuídas as suas funções entre eles, medida que vigorará pelo período estabelecido, que nunca poderá ser superior a dois anos.[4]

No último parágrafo desse artigo, é estabelecido que, se os progenitores viverem separados, o poder paternal será exercido pela pessoa com quem a criança vive. Todavia, o Juiz, a pedido fundamentado do outro progenitor, pode, no interesse do menor, conceder ao requerente o poder paternal para o exercer conjuntamente com o outro progenitor ou distribuir entre o pai e a mãe as funções inerentes ao seu exercício.[5]

Importa referir que o parágrafo 2.º do artigo 154.º do Código Civil espanhol foi, entretanto, alterado pela disposição final segunda da Ley Orgánica 8/2021, de 4 de Junho, passando a prever-se expressamente que o poder paternal inclui, para além do acima exposto, o poder-dever de decidir o local de residência habitual do menor, que só pode ser alterado com o consentimento de ambos os progenitores ou, na sua falta, mediante autorização judicial.[6]  

De acordo com o preâmbulo desta Ley Orgánica 8/2021, de 4 de Junho, esta alteração ao artigo 154.º do Código Civil espanhol visou clarificar que o poder de decidir sobre o local de residência dos filhos menores faz parte do conteúdo do poder que, regra geral, compete a ambos os progenitores, pelo que, salvo suspensão, privação de autoridade ou atribuição exclusiva desses poderes a um dos progenitores, é necessário o consentimento de ambos ou, na sua falta, autorização judicial para a transferência do menor, independentemente da medida que tenha sido adoptada em relação à sua guarda ou custódia como já foi expressamente estabelecido por algumas comunidades autónomas.[7]  


2.1. Porém, mesmo antes desta alteração legislativa, a necessidade de consentimento de ambos os progenitores para decidir sobre o local de residência dos filhos menores era defendida pela jurisprudência do Supremo Tribunal espanhol. Na decisão da Sala Civil de 26/10/2012 (n.º 642/2012, ECLI:ES:TS:2012:6811)[8], considerou-se que as responsabilidades parentais respeitam a ambos os pais de tal forma que qualquer um deles, tanto o que tem a guarda da criança, como o que não tem, pode exercer em relação ao menor uma posição activa que implica não só colaborar com o outro progenitor, mas também participar na tomada de decisões fundamentais para o melhor interesse da criança, sendo uma dessas decisões a que diz respeito à sua transferência ou deslocação quando está em causa o afastamento do seu ambiente habitual e tal deslocação viola o direito de relacionar-se com o progenitor não guardião.[9]

Mais se afirma na mesma decisão que, das responsabilidades parentais, deriva, entre outras consequências, o estabelecimento da casa de morada da família, conforme previsto no artigo 70.º do Código Civil espanhol, para dar cumprimento ao disposto no artigo 68.º do mesmo Código, quanto à obrigação de coabitar. Sendo que a ruptura matrimonial anula a coabitação e obriga os progenitores a chegarem a acordo para o exercício da qualquer uma dessas faculdades inerentes ao poder paternal, entre outras a de estabelecer o novo domicílio e, consequentemente, o domicílio das crianças que se integram no grupo familiar afectado pela ruptura, o qual é coincidente, em geral, com o da pessoa que detém a guarda. Segundo o Supremo Tribunal espanhol, sendo essa uma das decisões mais importantes que podem ser adoptadas na vida do menor e da própria família, a mesma deve assentar no acordo dos pais ou na decisão de um deles expressa ou tacitamente consentida pelo outro, e somente na ausência desse acordo cabe ao juiz decidir após a identificação dos bens e direitos em conflito para poder apreciar de forma equilibrada a necessidade e a proporcionalidade da medida adotada, sem condicioná-la ao conflito que motivou a ruptura.[10]

Conclui o Supremo Tribunal espanhol que, embora a Constituição espanhola, no seu artigo 19.º, consagre o direito dos espanhóis de escolher a sua residência livremente e a sair de Espanha nos termos estabelecidos por lei, no caso dos menores, o problema coloca-se no prisma da admissibilidade ou inadmissibilidade da deslocação do menor para residir noutro local, o que pode originar uma mudança radical no seu ambiente social e familiar, com problemas de adaptação. Tanto mais que, se a mudança de residência afectar os interesses do menor, que devem protegidos preferencialmente, tal poderia motivar uma mudança da tutela e custódia.[11]

Podemos, assim, concluir que, de acordo com o direito espanhol, que corresponde ao direito do Estado-membro no qual a criança tinha a sua residência habitual antes da sua deslocação, a transferência da residência do menor para Portugal dependia do consentimento expresso ou tácito dos seus dois progenitores, salvo se houvesse decisão judicial que autorizasse a progenitora a deslocar o menor.  


2.2. Por outro lado, nos termos previstos na alínea b) do ponto 11. do artigo 2.º do Regulamento n.º 2201/2003, não existindo informação nos autos de que, no momento da deslocação do menor, o direito de guarda estivesse a ser efectivamente exercido, quer conjunta, quer separadamente, importa referir que, nos termos da legislação espanhola, na falta de decisão judicial em contrário, esse direito de guarda deveria estar a ser exercido por ambos os progenitores, caso não tivesse ocorrido a deslocação. Pois, segundo a mesma norma do Regulamento, “[c]onsidera-se que a guarda é exercida conjuntamente quando um dos titulares da responsabilidade parental não pode, por força de uma decisão ou por atribuição de pleno direito, decidir sobre local de residência da criança sem o consentimento do outro titular da responsabilidade parental”, o que sucede de acordo com a legislação espanhola nos termos acima referidos.

Assim, à luz do Regulamento n.º 2201/2003, de 27 de Novembro, a deslocação do menor para Portugal em .../08/2020 foi uma deslocação ilícita.


2.3. Contrariamente ao alegado pela requerente (no seu requerimento de 17/01/2023), essa ilicitude foi também reconhecida no acórdão deste Supremo Tribunal de 08-09-2021, proferido no processo n.º 6810/20.5T8ALM.L1.S1 (processo especial de entrega judicial da criança AA ao progenitor), disponível em www.dgsi.pt.

Com efeito, e apesar de esta decisão deste Supremo Tribunal ter revogado a ordem de entrega da criança ao progenitor em Espanha, com o consequente regresso da criança a Portugal, o que não há nota de que tenha sucedido, nela se afirma que:

No caso dos autos, não vemos razão para negar a conclusão relativa à “deslocação ilícita”. Decisiva é a constatação do local onde a criança nasceu e onde se encontrava, quando de lá foi retirada pela mãe, que se ausentou para Portugal, sem conhecimento ou autorização do pai.

É certo que a mãe do menor passou o período de gravidez em Portugal, de acordo com dados do inquérito social, mas não é menos certo que demonstrou um comportamento confessadamente errático, ora estando em Portugal (onde possuía estudos superiores de doutoramento suspensos), ora residindo em Espanha.

E, seja no momento do nascimento, seja em Junho de 2020, no momento em que se deslocou em definitivo para Portugal, residiu em Espanha.

Cabia ter consultado ou obtido consentimento do pai do menor para a referida deslocação.

Nesse sentido, existiu deslocação ilícita, que não pode ser obstaculizada por actuações esparsas e não demonstrativas de consentimento para a deslocação, da parte do pai do menor – a decisão do Julgado de 1ª Instância de ..., que decisivamente entendeu que o menor residia em Lisboa, operou apenas para efeitos da declaração de incompetência do tribunal espanhol para o conhecimento da regulação das responsabilidades parentais e constituiu um elemento probatório mais que foi analisado nas instâncias (em 1ª e em 2ª instâncias), tendo elas fixado, de forma que não nos é lícito sindicar, que pai e mãe viviam em Espanha e que a mãe se deslocou para Portugal, na companhia do menor, mas sem autorização do pai.”. [negrito nosso]


3. Ora, como se afirmou supra, a qualificação da deslocação do menor para Portugal como sendo uma deslocação ilícita tem consequências directas na aferição da jurisdição competente para apreciar o presente litígio.

Aplica-se, deste modo, ao caso concreto dos autos, o disposto no artigo 10.º do Regulamento n.º 2201/2003, supra transcrito no ponto IV, 1.3. do presente acórdão. De acordo com essa norma, os tribunais do Estado-Membro (Espanha), onde a criança residia habitualmente imediatamente antes da deslocação ilícita para Portugal, continuam a ser competentes até a criança passar a ter a sua residência habitual noutro Estado-Membro e se verifique alguma das condições previstas na alínea a) ou na alínea b) do mesmo artigo 10.º.


3.1. Da factualidade assente nos autos, resulta que, na data de instauração da presente acção, que coincide com a data da apresentação da petição inicial (31/08/2020) – única data relevante para aferir da competência internacional dos tribunais portugueses nos termos previstos no artigo 16.º, n.º 1, alínea a), do mesmo Regulamento (“Considera-se que o processo foi instaurado: a) Na data de apresentação ao tribunal do acto introdutório da instância, ou acto equivalente (...)”) –, não se verificava qualquer das condições previstas na alínea a) ou na alínea b) do artigo 10.º do Regulamento n.º 2201/2003.

Desde logo, no que respeita à alínea a) do artigo 10.º do Regulamento (“Cada pessoa, instituição ou outro organismo titular do direito de guarda dar o seu consentimento à deslocação ou à retenção”), é manifesto que, em 31/08/2020, o progenitor não havia dado o seu consentimento à deslocação da criança, tendo, pelo contrário, proposto um processo especial de entrega judicial da criança ao abrigo da Convenção da Haia de 1980.

No que respeita à alínea b) do mesmo artigo 10.º (A criança ter estado a residir nesse outro Estado-Membro durante, pelo menos, um ano após a data em que a pessoa, instituição ou outro organismo, titular do direito de guarda tenha tomado ou devesse ter tomado conhecimento do paradeiro da criança, se esta se encontrar integrada no seu novo ambiente (...)”), também é manifesto que, em 31/08/2020, ou seja, apenas seis dias após a sua deslocação ilícita para Portugal, o menor AA não residia no nosso país há um ano, nem tampouco se verificava qualquer das condições previstas nas sub-alíneas da referida alínea b) do artigo 10.º (“i) não ter sido apresentado, no prazo de um ano após a data em que o titular do direito de guarda tenha tomado ou devesse ter tomado conhecimento do paradeiro da criança, qualquer pedido de regresso desta às autoridades competentes do Estado-Membro para onde a criança foi deslocada ou se encontra retida, ii) o titular do direito de guarda ter desistido do pedido de regresso e não ter sido apresentado nenhum novo pedido dentro do prazo previsto na subalínea i), iii) o processo instaurado num tribunal do Estado-Membro da residência habitual da criança imediatamente antes da deslocação ou retenção ilícitas ter sido arquivado nos termos do n.º 7 do artigo 11.º, iv) os tribunais do Estado-Membro da residência habitual da criança imediatamente antes da deslocação ou retenção ilícitas terem proferido uma decisão sobre a guarda que não determine o regresso da criança.”).

Sobre a interpretação deste artigo 10.º e a sua articulação com o artigo 8.º do Regulamento, num caso similar ao que é objecto deste recurso, o TJUE pronunciou-se no Despacho de 10/04/2018 (processo C‑85/18) com o seguinte dispositivo:

O artigo 10.º do Regulamento (CE) n.º 2201/2003 do Conselho, de 27 de novembro de 2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental e que revoga o Regulamento (CE) n.º 1347/2000, e o artigo 3.º do Regulamento (CE) n.º 4/2009 do Conselho, de 18 de dezembro de 2008, relativo à competência, à lei aplicável, ao reconhecimento e à execução das decisões e à cooperação em matéria de obrigações alimentares, devem ser interpretados no sentido de que, num litígio como o que está em causa no processo principal, no qual um menor que tinha a sua residência habitual num Estado‑Membro foi deslocado por um dos seus progenitores de forma ilícita para outro Estado‑Membro, os tribunais desse outro Estado‑Membro não são competentes para decidir sobre um pedido relativo ao direito de guarda ou à fixação de uma pensão de alimentos em relação a esse menor, na falta de indicações de que o outro progenitor concordou com a sua deslocação ou não apresentou um pedido de regresso do menor.[negrito nosso]

Nesse caso, submetido à apreciação do TJUE, um menor foi deslocado de Portugal para a Roménia pelo pai, sem o acordo da mãe, em violação do direito de guarda conjunta atribuído aos progenitores ao abrigo do direito do Estado‑Membro onde o menor tinha a sua residência habitual imediatamente antes da referida deslocação, ou seja, a República Portuguesa. Foi suscitada a intervenção do TJUE para responder à questão de saber se os tribunais do Estado-Membro para o qual um menor foi deslocado por um dos seus progenitores de forma ilícita são competentes para decidir sobre um pedido formulado por esse progenitor sobre o direito de guarda e as obrigações alimentares para com esse menor, quando, após essa deslocação, o menor revela um certo grau de integração social e familiar nesse Estado‑Membro, de que ambos os progenitores são, de resto, nacionais, apesar de existir uma decisão judicial provisória proferida pelos tribunais do Estado‑Membro onde o menor residia antes dessa deslocação, que atribuiu a sua guarda ao outro progenitor tendo o domicílio do menor sido fixado na morada do outro progenitor, no Estado de residência habitual inicial do menor, do qual também tem a nacionalidade.

Da fundamentação do referido despacho do TJUE, consta o seguinte:

“41 - a competência do tribunal de um Estado‑Membro em matéria de responsabilidade parental relativa a um menor que tenha sido deslocado ilicitamente não deve ser determinada com base na regra de atribuição de competência geral prevista no artigo 8.º, n.º 1, do Regulamento n.º 2201/2003, enunciada nas questões prejudiciais, que prevê o caso de uma deslocação lícita para outro Estado‑Membro (v., neste sentido, Acórdão de 22 de dezembro de 2010, Mercredi, C‑497/10 PPU, EU:C:2010:829, n.º 42).

42 -Com efeito, em conformidade com o artigo 8.º, n.º 2, do Regulamento n.º 2201/2003, a regra de atribuição de competência geral prevista no n.º 1 do referido artigo é aplicável sob reserva, nomeadamente, do disposto no artigo 10.º deste regulamento, que prevê uma regra especial em caso de deslocação ou de retenção ilícitas de um menor.”. [negritos nossos]

Concluiu o TJUE (ponto 50. da fundamentação) que:

“[M]esmo supondo que o menor em causa tenha, no processo principal, adquirido uma nova residência habitual na Roménia, na aceção deste regulamento, importa constatar que, como foi recordado no n.º 46 do presente despacho, o referido tribunal só pode declarar‑se competente, em aplicação do artigo 10.º do referido regulamento, em vez dos tribunais do Estado‑Membro onde esse menor tinha a sua residência habitual imediatamente antes da sua deslocação se uma das condições alternativas enunciadas neste artigo 10.º, alíneas a) e b), estiver igualmente preenchida.”.

Com efeito, o TJUE reafirmou nessa decisão a doutrina já defendida no Acórdão do mesmo tribunal de 01/07/2010 (processo n.º C‑211/10 – Doris Povse vs Mauro Alpago), de que o Regulamento n.º 2201/2003 visa dissuadir os raptos de menores entre Estados‑Membros e de que o rapto ilícito de um menor não deve, em princípio, ter por consequência a transferência da competência dos tribunais do Estado‑Membro onde o menor residia habitualmente imediatamente antes da sua deslocação para os tribunais do Estado‑Membro para o qual a criança foi levada, mesmo na hipótese de, após o rapto, o menor ter adquirido residência habitual neste último Estado‑Membro (concluindo, no caso ali em apreciação, que, por esse motivo, deve ser feita uma interpretação restritiva das condições enunciadas no artigo 10.º, alínea b), sub-alínea iv), do Regulamento n.º 2201/2003, consideração, porém, que não releva para o caso dos presentes autos).


3.2. Na jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça, a respeito de um caso em que se entendeu existir “retenção ilícita” de uma criança, seguiu esta orientação o acórdão de 28 de Janeiro de 2016 (processo 6987/13.6TBALM.L1.S1), disponível em www.dgsi.pt (com anotação concordante de Anabela Susana de Sousa Gonçalves “Competência internacional e litispendência em matéria de responsabilidades parentais no Regulamento Bruxelas II bis”, in Cadernos de Direito Privado, n.º 55, Julho/Setembro 2016, págs. 33 e segs.) em cuja fundamentação se pode ler o seguinte:

“Como se dá nota no acórdão recorrido, tendo a criança a sua residência habitual em Itália imediatamente antes da sua deslocação a Portugal e sendo nesse país o exercício das responsabilidades parentais conjunto, nenhum dos pais poderá decidir individualmente sobre aspectos essenciais da vida da criança, concretamente sobre a escolha do local da sua residência, à revelia do acordo previamente estabelecido entre ambos. Assim, nenhum dos pais da menor CC podia, unilateralmente, introduzir qualquer alteração ao que fora instituído por acordo entre ambos, o qual só poderia ser alterado por um novo acordo ou por decisão judicial.

É o que também preconizam os arts. 155, e 316 e 317-bis do “Codice Civile” italiano, como salienta, igualmente, o acórdão recorrido, estabelecendo que o poder paternal é exercido de comum acordo por ambos os pais.

O que significa que não caberá a nenhum dos pais decidir individualmente sobre aspectos essenciais da vida do filho, como o local da fixação da sua residência, a não ser que o exercício desse poder lhe caiba em exclusivo. Logo, se à luz da lei italiana aplicável competia aos pais, em conjunto, o direito de escolher a residência da filha, nenhum deles podia, unilateralmente, introduzir qualquer alteração ao decidido por acordo entre ambos.

Donde se infere, à luz do estabelecido no nº 11 do artigo 2º do Regulamento (CE) nº 2201/2003, que a permanência da menor CC em Portugal a partir de Outubro de 2013 se configurou como retenção ilícita.

Logo, tendo a menor CC residência habitual em Itália na data em que ocorreu a sua deslocação a Portugal, não ocorrendo qualquer desvio à regra geral de competência internacional contida no nº 1 do artigo 8º do aludido regulamento e não determinando o superior interesse da criança solução que a afaste, tem de concluir-se, em sintonia com o doutamente decidido nas instâncias, pela incompetência internacional dos Tribunais Portugueses para julgar o presente pleito, incompetência absoluta que conduz à absolvição da instância da requerida, aqui recorrida em conformidade com o disposto nos artigos 96º al. a) e 99º nº 1 do Código de Processo Civil.”. [negritos nossos]


3.3. Aqui chegados, segundo a interpretação dos artigos 8.º e 10.º do Regulamento n.º 2201/2003 realizada pelo TJUE, e ainda que se entendesse, por aplicação da regra geral constante do artigo 8.º, n.º 1, que o menor AA tinha adquirido uma nova “residência habitual” em Portugal, os tribunais portugueses apenas poderiam declarar-se internacionalmente competentes, em aplicação do artigo 10.º, em vez dos tribunais de Espanha onde o menor tinha a sua residência habitual imediatamente antes da sua deslocação, se uma das condições alternativas enunciadas neste artigo 10.º, alíneas a) ou b) (e respectivas sub-alíneas), estivesse igualmente preenchida, o que não sucede no caso dos autos.

Deste modo, conclui-se que os tribunais espanhóis mantêm a competência internacional para apreciar o litígio à luz do regime consagrado no Regulamento n.º 2201/2003, devendo proceder a pretensão do progenitor Recorrente.


4. Assinale-se que nem a posição assumida pela progenitora pelo requerimento de 17/01/2023, nem tampouco a decisão de 30/12/2022 do Juzgado de Primera Instancia e Instrucción numero ... de ..., junta com o mesmo, revestem qualquer relevância para a decisão a proferir neste recurso.

Com efeito, lida a decisão judicial do tribunal espanhol, verifica-se que a mesma diz respeito a um processo correspondente ao nosso processo tutelar cível para regulação ou alteração das responsabilidades parentais, tendo o tribunal espanhol, ao abrigo do disposto no art. 19.º, n.º 2, do Regulamento n.º 2201/2003, suspendido a instância ao constatar que ainda está pendente a presente acção nos tribunais portugueses[12], em que também se discute as responsabilidades parentais sobre a mesma criança, atendendo a que a acção nos tribunais portugueses foi instaurada em primeiro lugar. Ora, nos termos do mesmo artigo, essa suspensão da instância perdura até que seja decidida definitivamente a questão da competência dos tribunais portugueses nesta acção.

De referir ainda que a progenitora tenta induzir em erro ao referir, logo no início do seu requerimento, que “o Tribunal Espanhol, Juzgado de Primeira Instancia e Instrucción numero ... de Lucena, conforme decisão anexa, considerou competente internacionalmente o Tribunal de Família e Menores da Comarca de Lisboa para a ação de Regulação das Responsabilidades Parentais do menor AA”.

Como se pode ler no texto da decisão judicial anexa, em 30/11/2020, o Juzgado de Primera Instancia n.º ... de Lucena proferiu decisão em que declarava a falta de competência internacional dos tribunais espanhóis para conhecer do procedimento de aplicação de “medidas Provisionales Previas”. Mas, em 25/03/2022, a Audiência Provincial de Córdoba revogou aquela decisão de 1.ª instância e determinou o prosseguimento do mesmo procedimento, considerando competentes os tribunais espanhóis.

A decisão judicial ora junta pela progenitora já não diz respeito a providências provisórias, mas ao processo de regulação/alteração de responsabilidades parentais e vem confirmar que os tribunais espanhóis aguardam a decisão final a proferir nos presentes autos para decidir se o processo neles instaurado deve ou não prosseguir.

VI – Decisão

Pelo exposto, julga-se o recurso procedente, decidindo-se:

a) Revogar o acórdão recorrido, declarando-se os tribunais portugueses incompetentes para apreciar a presente acção especial para regulação do exercício das responsabilidades parentais;

b) Absolver o requerido da instância.

Custas no recurso e na acção pela requerente.

Lisboa, 2 de Fevereiro de 2023


Maria da Graça Trigo (Relatora)

Catarina Serra

Paulo Rijo Ferreira

_____

[1] “…La filiación matrimonial y la no matrimonial, así como la adoptiva, surten los mismos efectos, conforme a las disposiciones de este Código”.
[2] “Los hijos no emancipados están bajo la patria potestad de los progenitores. La patria potestad, como responsabilidad parental, se ejercerá siempre en interés de los hijos, de acuerdo con su personalidad, y con respeto a sus derechos, su integridad física y mental. Esta función comprende los siguientes deberes y facultades: 1.º Velar por ellos, tenerlos en su compañía, alimentarlos, educarlos y procurarles una formación integral. 2.º Representarlos y administrar sus bienes. Si los hijos tuvieren suficiente madurez deberán ser oídos siempre antes de adoptar decisiones que les afecten. Los progenitores podrán, en el ejercicio de su función, recabar el auxílio de la autoridade”.
[3] “La patria potestad se ejercerá conjuntamente por ambos progenitores o por uno solo con el consentimiento expreso o tácito del otro. Serán válidos los actos que realice uno de ellos conforme al uso social y a las circunstancias o en situaciones de urgente necesidad”.
[4] “En caso de desacuerdo, cualquiera de los dos podrá acudir al Juez, quien, después de oír a ambos y al hijo si tuviera suficiente madurez y, en todo caso, si fuera mayor de doce años, atribuirá la facultad de decidir al padre o a la madre. Si los desacuerdos fueran reiterados o concurriera cualquier otra causa que entorpezca gravemente el ejercicio de la patria potestad, podrá atribuirla total o parcialmente a uno de los padres o distribuir entre ellos sus funciones. Esta medida tendrá vigencia durante el plazo que se fije, que no podrá nunca exceder de dos años”.
[5] “Si los padres viven separados, la patria potestad se ejercerá por aquel con quien el hijo conviva. Sin embargo, el Juez, a solicitud fundada del otro progenitor, podrá, en interés del hijo, atribuir al solicitante la patria potestad para que la ejerza conjuntamente con el otro progenitor o distribuir entre el padre y la madre las funciones inherentes a su ejercicio”.
[6] “Esta función comprende los siguientes deberes y facultades: (…) 3.º Decidir el lugar de residencia habitual de la persona menor de edad, que solo podrá ser modificado con el consentimiento de ambos progenitores o, en su defecto, por autorización judicial”.
[7] “Asimismo, se modifica el artículo 154 del Código Civil, a fin de establecer con claridad que la facultad de decidir el lugar de residencia de los hijos e hijas menores de edad forma parte del contenido de la potestad que, por regla general, corresponde a ambos progenitores. Ello implica que, salvo suspensión, privación de la potestad o atribución exclusiva de dicha facultad a uno de los progenitores, se requiere el consentimiento de ambos o, en su defecto, autorización judicial para el traslado de la persona menor de edad, con independencia de la medida que se haya adoptado en relación a su guarda o custodia, como así se ha fijado ya explícitamente por algunas comunidades autónomas”.
[8] Disponível em www.poderjudicial.es/search/indexAN.jsp.
[9] “Las acciones y responsabilidades que derivan de la patria potestad corresponden a ambos padres de tal forma que cualquiera de ellos, tanto el que tiene la guarda como el que no la conserva, puede actuar en relación a sus hijos una posición activa que no solo implica colaborar con el otro, sino participar en la toma de decisiones fundamentales al interés superior del menor. Una de ellas la que concierne a su traslado o desplazamiento en cuanto le aparta de su entorno habitual e incumple el derecho de relacionarse con el padre o madre no custodio.”
[10] “Pues bien, la guarda y custodia de los menores deriva de la patria potestad y de la patria potestad, entre otras cosas, deriva la fijación del domicilio familiar, según dispone el artículo 70 del Código Civil, para dar cumplimiento a lo previsto en el artículo 68 del Código Civil, respecto de la obligación de vivir juntos. La ruptura matrimonial deja sin efecto la convivencia y obliga a los progenitores a ponerse de acuerdo para el ejercicio de alguna de estas facultades que traen causa de la patria potestad, entre otra la de fijar el nuevo domicilio y, como consecuencia, el de los hijos que se integran dentro del grupo familiar afectado por la ruptura coincidente por lo general con el de quien ostenta la guarda y custodia. Estamos, sin duda, ante una de las decisiones más importantes que pueden adoptarse en la vida del menor y de la propia familia, que deberá tener sustento en el acuerdo de los progenitores o en la decisión de uno de ellos consentida expresa o tácitamente por el otro, y solo en defecto de este acuerdo corresponde al juez resolver lo que proceda previa identificación de los bienes y derechos en conflicto a fin de poder calibrar de una forma ponderada la necesidad y proporcionalidad de la medida adoptada, sin condicionarla al propio conflicto que motiva la ruptura”.
[11] “Es cierto que la Constitución Española, en su artículo 19, determina el derecho de los españoles a elegir libremente su residencia, y a salir de España en los términos que la ley establezca. Pero el problema no es este. El problema se suscita sobre la procedencia o improcedencia de pasar la menor a residir en otro lugar, lo que puede comportar un cambio radical tanto de su entorno social como parental, con problemas de adaptación. De afectar el cambio de residencia a los intereses de la menor, que deben de ser preferentemente tutelados, podría conllevar, un cambio de la guarda y custodia.”
[12] A qual, por lapso material, vem identificada como tendo o número n.º 27505/20.0T8LSB-A.L1, em vez do n.º 17505/20.0T8LSB-A.L1.