Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 5.ª SECÇÃO | ||
Relator: | JORGE DOS REIS BRAVO | ||
Descritores: | RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS ABUSO SEXUAL DE MENORES DEPENDENTES CÚMULO JURÍDICO MEDIDA CONCRETA DA PENA PENA ÚNICA IMPROCEDÊNCIA | ||
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Data do Acordão: | 11/28/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | PROVIDO EM PARTE | ||
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Sumário : |
I. A irrecorribilidade por «dupla conforme» respeita a toda a decisão que implica a valoração da prova e determinação da culpa e suas consequências penais, e não apenas quanto à questão da determinação da pena. II. Assim, apesar de a decisão do TRL o ter admitido na totalidade, a mesma não vincula o STJ (art. 414.º, n.ºs 2 e 3 do CPP, pelo que não se admite o recurso do arguido quanto à decisão recorrida no tocante à condenação pelo crime de detenção de arma proibida, na pena de cinco anos de prisão. III. A motivação da decisão sobre matéria de facto respeitante à intenção de matar do arguido – condenado pela prática de dois crimes de homicídio qualificado (pela qualidade de funcionários das supostas vítimas) – baseada nas perceção ou convicção destas, de que o arguido iria disparar na sua direção, apesar de se dizer que “desconheciam” a intenção do arguido, não pode, em termos de conformidade com as regras de experiência e a sã racionalidade, levar-nos inexoravelmente a concluir pela verificação de tal factualidade, sendo certo que o arguido não efetuou qualquer disparo, e colocou a arma no chão antes de se por em fuga. IV. Nessa medida, nos termos do disposto nos artigos 374.º, n.º 2, 379.º, n.º 1, al. a) e 425.º, n.º 4, do CPP, impõe-se declarar a nulidade (parcial) do acórdão recorrido Relação no tocante à fundamentação de facto que baseou a confirmação do acórdão de 1.ª instância, quanto à intenção de matar – elemento subjetivo típico subjacente aos crimes de homicídio qualificado, na forma tentada –, devendo o acórdão recorrido ser, nessa parte, reformulado de acordo com a supra apontada fundamentação. | ||
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Decisão Texto Integral: |
I. Relatório 1. Por acórdão do tribunal coletivo do Juízo Central Criminal de .../Juiz 2, de 2 de fevereiro de 2024 (Ref.ª Citius ...23), foi proferida a seguinte decisão: «1. Absolve os arguidos AA e BB de um crime de dano com violência, previsto e punível pelo art.º 214.º n.º 1 al. a), por referência aos artigos 212.º, 213.º n.º 2 al. a) e 202.º al. b), todos do Código Penal; 2. Procedendo à necessária reconvolação, condena o arguido BB: a. pela prática, em co-autoria material, de um crime de dano simples, previsto e punível pelo artigo 212.º, nº 1 do Código Penal, na pena parcial de 6 (seis) meses de prisão; b. pela prática, em autoria material, de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punível pelo art.º 86.º n.º 1, alínea a), art.º 2.º n.º 1 al. aaa), art.º 3.º n.º 2 al. b) e art.º 4.º todos da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, com as alterações introduzidas pelas Leis n.º 59/2007, de 04 de Setembro, n.º 17/2009, de 06 de Maio, n.º 26/2010, de 30 de Agosto, n.º 12/2011, de 27 de Abril, n.º 50/2013, de 24 de Julho e n.º 50/2019, de 24 de Julho (Regime Jurídico das Armas e Munições), na pena parcial de 3 (três) anos de prisão; c. Em cúmulo jurídico, na pena unitária de 3 (três) anos e 2 (dois) meses de prisão (efectiva); 2. Procedendo à necessária reconvolação, condena o arguido AA: a. pela prática, em co-autoria material, de um crime de dano simples, previsto e punível pelo artigo 212.º, nº 1 do Código Penal, na pena parcial de 9 (nove) meses de prisão; b. pela prática, em autoria material, de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punível pelo art.º 86.º n.º 1, alínea a), art.º 2.º n.º 1 al. aaa), art.º 3.º n.º 2 al. b) e art.º 4.º todos da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, com as alterações introduzidas pelas Leis n.º 59/2007, de 04 de Setembro, n.º 17/2009, de 06 de Maio, n.º 26/2010, de 30 de Agosto, n.º 12/2011, de 27 de Abril, n.º 50/2013, de 24 de Julho e n.º 50/2019, de 24 de Julho (Regime Jurídico das Armas e Munições), na pena parcial de 5 (cinco) anos de prisão; c. pela prática, em autoria material, de dois crimes de homicídio qualificado, na forma tentada, previstos e puníveis pelos artigos 22.º, 23.º, 73º. nº 1 a) e b), 131.º, 132.º, n.º 1 e 2, alínea l), todos do Código Penal, nas penas parciais de 10 (dez) anos de prisão; d. Em cúmulo jurídico, na pena unitária de 14 (catorze) anos de prisão; 3. Nos termos das disposições conjugadas dos artigos 16.º, da Lei n.º 130/2015, de 04/09 e 67º-A e 82.º-A, do Código de Processo Penal, decide condenar o arguido AA a pagar, a título de montante compensatório, € 500,00 (quinhentos euros) ao ofendido CC e € 500,00 (quinhentos euros) ao ofendido DD;». 2. Dessa decisão recorreram o coarguido BB e o arguido AA para o Tribunal da Relação de Lisboa (doravante, também TRL), que, por acórdão de 15-07-2024 (Ref.ª Citius ...58), julgou ambos os recursos improcedentes, mantendo integralmente o decidido no acórdão do tribunal de 1.ª Instância. 3. Deste acórdão, recorreram também ambos os arguidos para este Supremo Tribunal de Justiça (doravante, também STJ), o BB em 09-08-2024 (Ref.ª Citius ...40) e o AA em 24-07-2024 (Ref.ª Citius ...72). 4. Por despacho do Senhor Desembargador relator no TRL de 13-08-2014 (Ref.ª Citius ...84), não foi admitido o recurso do coarguido BB, tendo sido admitido o recurso do arguido AA. Tendo aquele reclamado de tal despacho para o Senhor Presidente deste STJ, por despacho de 23-09-2024 (transitado em julgado em 07-10-2024) foi indeferida tal reclamação, tendo o respetivo despacho transitado, pelo que cumpre apenas apreciar o recurso do arguido AA. 5. No seu recurso, o arguido AA alinha as seguintes conclusões: «1. O presente recurso tem como objeto o douto acórdão proferido pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, o qual, decidiu confirmar a pena única aplicada pelo tribunal de 1.ª instância. 2. O recorrente não se conforma com tão severa condenação, nomeadamente no que toca à dosimetria da pena pelo crime de detenção de arma proibida e à condenação por dois crimes de homicídio qualificado na forma tentada. 3. Em sede de recurso da decisão da 1.ª instância para o TRL, o recorrente invocou o erro notório na apreciação da prova e erro no enquadramento jurídico relativamente aos dois crimes de homicídio qualificado na forma tentada, nas suas conclusões de 37.º a 55.º. 4. No douto acórdão recorrido no seu ponto B “Erro na apreciação do enquadramento jurídico dos factos” o tribunal apenas se pronuncia sobre outro arguido recorrente, mas nada refere sobre o arguido AA, aqui recorrente. 5. Omitindo-se, assim, a pronunciar-se sobre o erro, ou não, do enquadramento jurídico acerca dos crimes de homicídio qualificado na forma tentada, nomeadamente a forma do dolo, bem como os atos de execução previstos no art. 22.º, n.º 2, alínea c) do CP, e todos os requisitos objetivos e subjetivos do tipo de crime. 6. O douto acórdão recorrido é nulo por omissão de pronúncia nos termos do disposto no art. 379.°, n.º 1, al. c), 1.ª parte e art. 425.º n.º 4, todos do CPP, devendo por isso ser substituído por outro que se pronuncie e fundamente a mencionada questão do recorrente. 7. Ainda assim, sempre se dirá que existiu erro notório na apreciação da prova no acórdão recorrido. 8. Nos termos do disposto no art. 410.º, n.º 2 alínea c), ex vi art. 432.º, n.º 1 alínea a) do CPP, é admissível recurso para o STJ com fundamento no erro notório na apreciação da prova. 9. O presente recurso é ainda admissível por se tratar de condenação em pena de prisão superior a 8 anos. 10. O ponto 15 dos factos dados como provados determinou a condenação do arguido pelos dois crimes de homicídio qualificado na forma tentada dos agentes da PSP. 11. Dos depoimentos dos agentes da PSP existem muitas dúvidas, em virtude da contradição, sobre a direção da pessoa em concreto em que ficou apontada a arma, bem como a que parte do corpo. 12. Na sua motivação, o recorrente transcreveu os depoimentos dos dois agentes da PSP, contra quem, alegadamente, o arguido atentou contra a vida, demonstrando-se as suas contradições. 13. Não é o receio dos agentes da PSP que determina que esse mesmo sujeito iniciou atos de execução para concretizar o crime. 14. Se assim fosse poderia afirmar-se que para qualquer situação em que alguém detém uma arma de fogo e que, ao contrário do que aqui se verificou, chegasse a apontar essa mesma arma a um terceiro, criando nele receio de morte, estava a cometer uma tentativa de homicídio. 15. Veja-se que no caso em concreto o arguido não chegou sequer a apontar a arma aos agentes da PSP. 16. O legislador impôs requisitos legais para que verifique este tipo de crime. 17. Desconhece-se se o movimento que o suspeito realizou após a ordem para largar a arma é ou não instintivo. 18. Em conformidade com o depoimento de ambos os agentes, o recorrente não se apercebeu da presença da polícia imediatamente, mas só após a advertência policial. 19. As testemunhas EE e FF, também no local junto ao arguido recorrente, confirmaram não se terem apercebido da presença da polícia no imediato. 20. Nesse momento, o suspeito, que estava de perfil, vira-se e faz um movimento na direção dos agentes, movimento esse que não sabem se foi por impulso após advertência policial. 21. Pelos agentes da PSP foi dito que o suspeito se virou na direção deles após ser advertido, admitindo que o movimento na sua direção pudesse ter sido por impulso e uma vez que tinha a arma na mão, ao virar o corpo, virou também a arma. 22. Pelo agente CC foi ainda dito que disparou por cautela e não por ter perceção de que o arguido iria direcionar a arma na sua direção e disparar. 23. Os agentes da PSP CC e DD seguiam paralelamente um ao outro com o agente DD na retaguarda, com a distância de cerca de 2/3 metros entre si e a 7/8 metros de distância do arguido recorrente. 24. Não olvidando a letalidade da arma em causa, não se concebe que nestas circunstâncias de distância fosse dado como provado que o arguido tentou matar dois agentes da PSP. 25. Não consta dos factos provados que a posição “R” em que se encontrava a arma fosse apta a dispara contra dois sujeitos em simultâneo. 26. Não podia ter sido dado como provado o facto 15 na conceção de que o movimento não é feito por impulso (o que de facto se desconhece) e de que a arma tenha sido apontada diretamente a qualquer um deles. 27. Ou ainda que esse movimento se destinasse a apontar a arma e a disparar. 28. Vem o acórdão recorrido afirmar a fls. 41 que “ii. Assim, a intenção de matar resulta da acção e da escolha feitas pelo próprio arguido e pela qual é o único responsável, de direccionar uma arma a agentes de autoridade e mostra-se de acordo com as regras de experiência comum. Tanto assim é que a reacção do agente que procedeu ao disparo, dirigido aos membros inferiores do arguido, revela que, naquele momento temporal, este temeu, efectivamente, pela sua integridade física e pela sua vida, independentemente do modo como verbaliza tais circunstâncias em sede de depoimento. Ele não pode assegurar, porque não está dentro da cabeça do arguido, naquele momento, que este, efectivamente, contra si dispararia, mas a percepção que teve (ele e os restantes agentes que o acompanhavam, como qualquer normal cidadão), foi a de que era essa a intenção do recorrente. Diga-se, aliás, que foi uma decisão que, fossem outras as circunstâncias e outros os intervenientes policiais, poderia mesmo ter custado a vida ao arguido. São, assim, os actos deste arguido, que determinam essa percepção externa. Percepção essa que, diga-se, se mostra reforçada pela circunstância de a arma, no momento em que o recorrente a empunhava, estar pronta a disparar, bastando para tal apertar o gatilho.” 29. Não se concebe que o TRL possa afirmar convictamente que a intenção de matar é demonstrada pelo facto de o arguido, que desconhecia a presença policial no local, reitere-se, ao ser advertido, se voltar na sua direção. 30. É altamente violador da lei que tal incerteza seja tomada como garantia para condenar o recorrente, não só pelos fundamentos ora invocados, mas também e, consequentemente, em obediência ao princípio in dubio pro reo – art. 32.º n.º 2 da CRP. 31. As perceções externas das potenciais vítimas, neste caso dos agentes da PSP, não demonstram o dolo (em qualquer das suas formas). 32. Demonstram menos ainda que a arma estivesse apta a disparar contra duas pessoas em simultâneo dada a distância entre ambos os agentes da PSP. 33. Desconhecendo-se, ainda, se a arma em questão estava na posição tiro a tiro ou rajada para se determinar com tanta certeza que iria disparar contra ambos e bem assim atentar contra as suas vidas. 34. Revela-se imprescindível aferir se os atos praticados, alegadamente, pelo arguido recorrente, e os que se lhe seguiriam eram idóneos a provocar a morte dos dois agentes da PSP. 35. O douto tribunal deu como provado no ponto 15 que o arguido começou a direcionar a arma aos agentes da PSP. 36. No entanto, não se provou (ponto e) dos factos não provados) “que o arguido AA conseguisse apontar a pistola metralhadora diretamente aos agentes da PSP CC e DD”. 37. Nesta medida, e, à contrario sensu, provou-se que o arguido não apontou a arma aos agentes da PSP. 38. A afirmação de que “começou a direcionar a arma aos agentes” com intenção de os matar (dolo direto), e que é esse o ato de execução que o art. 22.º, n.º 2, alínea c) do CP impõe que se encontre preenchido, é uma clara violação da lei e com efeitos nefastos para o arguido e para o nosso ordenamento jurídico. 39. As dúvidas de que o movimento é ou não feito por impulso e de que a arma tenha sido apontada diretamente a qualquer um deles, ou ainda que esse movimento se destinasse a apontar a arma e a disparar, trazem uma enorme insegurança jurídica para efeitos de condenação. 40. Não há prova do dolo, em qualquer das suas formas. 41. Não se aceita que o receio que os agentes da PSP tiveram naquelas circunstâncias, configure um crime de homicídio qualificado na forma tentada e por isso deve o arguido ser absolvido destes dois crimes. 42. Como decorre dos factos considerados provados não se deteta um único facto que demonstre o preenchimento dos elementos objetivos e subjetivos do crime de homicídio na forma tentada pelo qual veio a ser condenado. 43. É, antes, com o devido respeito, consequência de uma construção lógico-dedutiva totalmente desfasada da realidade e contrária à factualidade, verdadeiramente, apurada. 44. Ainda assim, por cautela de patrocínio sempre se dirá que na eventualidade de o tribunal recorrido considerar que o arguido tivesse alguma intenção de limitar ou impedir a atuação da PSP naquele momento, tal comportamento somente poderia consubstanciar a prática de crime de resistência e coacção sobre funcionário (p.p. art. 347.º n.º 1 do CP). 45. É este um crime de perigo, pelo que não se mostra necessário para o seu preenchimento a efetiva lesão do bem jurídico que lhe está subjacente, mas apenas a possibilidade ou a probabilidade da correspondente conduta típica vir a afetar os interesses protegidos. 46. A medida da pena deverá, por isso, ser ajustada ao novo enquadramento jurídico em caso de provimento dos argumentos supra expostos. 47. É ainda importante ressalvar o excesso na fixação da pena de cinco anos pelo crime de detenção de arma proibida. 48. O arguido tem uma condenação por crime da mesma natureza praticado em 2008 e com trânsito em julgado em 2013, ou seja, dista mais de dez anos (facto 71 da matéria dada como provada). 49. Os factos provados de 52 a 56 demonstram ainda que o arguido tem apoio familiar, tinha uma boa situação laboral, social e financeira previamente à reclusão, bem como o seu relatório social emitiu parecer de cumprimento de pena em meio livre, precisamente por reunir as competências sociais e pessoais necessárias. 50. Nos termos do disposto nos arts. 70.º e 71.º do CP a condenação numa pena de cinco anos pelo crime de detenção de arma proibida é excessiva, quando ponderadas todas as circunstâncias inerentes à prevenção especial positiva, devendo por isso ser reduzida. 51. Em caso de manutenção da decisão recorrida, e bem assim, a decisão condenatória de 1.ª instância, ressalva-se que a pena única de catorze anos a que foi condenado, é manifestamente excessiva, desadequada e desproporcional. 52. Nos termos do disposto no art. 18.º, n.º 2 da CRP “A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.” 53. Deste modo acredita-se que outra pena, em concreto mais benévola, e bem assim mais justa, será a adequada a satisfazer as premissas de tutela que o caso concreto reivindica. Nestes termos e demais de direito deverá o presente recurso obter provimento e, em consequência: a) Ser o acórdão recorrido declarado nulo por omissão de pronúncia relativamente ao enquadramento jurídico nos termos art. 379.°, n.º 1, al. c), 1.ª parte e art. 425.º n.º 4, todos do CPP, devendo ser substituído por outro. Caso assim não entendam V. Exas. b) Deve o arguido recorrente ser absolvido dos dois crimes de homicídio qualificado na forma tentada por não provados os elementos objetivos e subjetivos do tipo de crime. c) Ser a pena reduzida quanto ao crime de detenção de arma proibida. d) Caso V. Exas. mantenham na íntegra o acórdão recorrido, que as penas parcelares sejam reduzidas, bem como a pena única resultante de cúmulo jurídico. NORMAS JURÍDICAS VIOLADAS: - Artigos 22.º, n.º 2, 70.º, 71.º e 132.º do Código Penal; - Artigo 355.º, n.º 1 do Código de Processo Penal; - Artigo 32.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa V. EXAS. FARÃO ASSIM A COSTUMADA JUSTIÇA!» 6. Respondeu o Ministério Público junto do TRL, no dia 20-08-2024 (Ref.ª ...87), apresentando as seguintes conclusões: «1. O tribunal apreciou cabalmente as questões suscitadas pelo recorrente face ao acórdão da 1.ª instância, nomeadamente, apreciou a decisão proferida sobre matéria de facto e os eventuais vícios resultantes do texto da decisão recorrida. 2. Não ocorre qualquer omissão de pronúncia do acórdão recorrido quanto às questões suscitadas pelo recorrente. 3. O arguido manifestou o intuito de fazer uso da pistola metralhadora contra os agentes da polícia quando, após instado com a expressão “polícia, larga a arma mãos no ar”, iniciou o movimento de a direcionar para a zona onde os agentes se encontravam; 4. E só não concretizou o uso da pistola metralhadora porquanto um dos agentes teve a capacidade e discernimento de efetuar um disparo de aviso na direção dos membros inferiores do arguido face ao que este se colocou em fuga. 5. Não se suscita, pois, qualquer dúvida sobre o dolo do arguido. 6. A medida da pena quanto ao crime de detenção de arma proibida (5 anos de prisão), situada sensivelmente no ponto médio da moldura abstrata (2 a 8 anos de prisão), encontra-se devidamente ajustada à culpa do arguido. 7. Também as demais penas parcelares e a pena única se encontram devidamente ajustadas à culpa do arguido. 8. Aliás, o que resulta da apreciação integral dos factos e das circunstâncias é que a pena única se mostra fixada em patamar adequado, face às características do caso, às fortíssimas exigências de prevenção especial e às fortes necessidades de prevenção geral, bem como à culpa do arguido, que se situa num patamar superior. Termos em que se pugna seja negado provimento ao recurso e, assim, confirmando a decisão recorrida farão V.ª Exas. a costumada JUSTIÇA!» 7. Recebido o processo no STJ, o Senhor Procurador-Geral-Adjunto neste tribunal exarou parecer em 24-09-2024 (Ref.ª Citius ...22), tendo, especificadamente, rejeitado todas as objeções do recurso do arguido – em concreto, a questão da nulidade do acórdão por omissão de pronúncia, o erro notório na apreciação da prova e a violação do princípio in dubio pro reo, a subsunção jurídica dos factos, a excessiva e desproporcional medida da pena do crime de detenção de arma proibida, bem como da pena única aplicada –, secundando a posição do Senhor magistrado do Ministério Público no tribunal de 1.ª instância. 8. Notificado de tal parecer, nos termos do art. 417.º, n.º 2, do CPP, o arguido veio responder em 07-10-2024 (Ref.ª Citius ...04), nos termos seguintes: «Alegou o Digníssimo Procurador Geral Adjunto na última página do douto parecer “… (o arguido não impugnou a medida das penas parcelares dos crimes de homicídio qualificado na forma tentada) …” Tal alegação não corresponde, de todo, à verdade, porquanto na alínea d) do pedido final de recurso pode ler-se “d) Caso V. Exas. mantenham na íntegra o acórdão recorrido, que as penas parcelares sejam reduzidas, bem como a pena única resultante de cúmulo jurídico.”» 9. Colhidos os vistos, não tendo sido requerida audiência, foram os autos julgados em conferência - artigos 411.º, n.º 5, e 419.º, n.º 3, alínea c), do CPP. Cumpre apreciar e decidir. II. Fundamentação II.1. Fundamentação de facto - Factos provados e não provados 10. No que releva para o enquadramento e decisão das questões que são objeto do recurso do arguido AA, encontram-se provados os seguintes factos (transcrição): «1. No dia 22 de Junho de 2022, os arguidos BB e AA encontraram-se no estabelecimento de bebidas denominado “S...”, sito na Rua ..., ... e antes das 20h00 ausentaram-se desse local. 2. AA fez-se munir de uma pistola metralhadora, automática, calibre 9 mm Parabellum, modelo UZI, devidamente municiada. 3. Os dois arguidos entraram no veículo da marca ..., modelo ..., com a matrícula ..-..-OB, propriedade do arguido BB, tendo-se este sentado no lugar do condutor e o arguido AA no lugar do pendura, levando consigo, empunhada, a descrita pistola metralhadora. 4. O arguido BB conduziu o dito veículo em direção ao denominado “bairro ...”, sito na ..., local onde o arguido AA efetuou, pelo menos, um disparo para o ar com a descrita pistola metralhadora. 5. Após, os arguidos seguiram em direção à Praceta das ... e, depois, para a Praceta dos ..., ambos na ..., locais onde o arguido AA efetuou, pelo menos, dezasseis disparos com a referida pistola metralhadora, com a dita viatura sempre em movimento. 6. Dois dos disparos atingiram a parede de um estabelecimento de diversão noturna existente na Praceta das ... e outros quatro disparos atingiram a parede do estabelecimento de bebidas denominado ..., sito na Praceta dos ..., pertencente a GG e onde se encontravam, para além deste, três ou quatro clientes. 7. Depois, o arguido BB dirigiu o veículo por si conduzido até à Avenida ..., junto ao estabelecimento de bebidas denominado “T...”, localizado no número de polícia 76, na ..., .... 8. Nesse local, ambos os arguidos saíram da viatura ..-..-OB, tendo o arguido AA se dirigido a uma viatura que ali estava parada, em segunda fila, no interior da qual estavam EE e FF. 9. Seguidamente, o arguido AA direcionou a dita metralhadora à face de EE e, ao verificar que não se tratava da pessoa que procurava, disse, além do mais, “não é este”. 10. Por haver notícia da existência de disparos na via pública com arma de fogo, brigada da Esquadra de Investigação Criminal da Polícia de Segurança Pública composta pelos agentes CC, DD e HH, dirigiu-se à Avenida ..., .... 11. O agente CC seguiu apeado na direção do estabelecimento de bebidas “T...”, empunhando a sua arma de serviço e o agente DD seguiu a cerca de dois metros à retaguarda empunhando, igualmente, a sua arma de serviço. 12. O agente HH seguiu na mesma direção a cerca de 3/4 metros de distância do agente CC. 13. Todos os agentes da PSP traziam ao pescoço colares com os distintivos policiais. 14. Assim que visualizou o arguido AA com a pistola metralhadora, o agente CC dirigiu-se-lhe e, em tom alto, disse-lhe, pelo menos uma vez, “polícia, larga a arma, mãos no ar”. 15. Não obstante ter compreendido de que se tratavam de polícias e que lhe ordenavam que largasse a arma, quando se encontrava a uma distância de cerca de 7 metros, o arguido AA começou a direcionar a pistola metralhadora para os referidos agentes, CC e DD. 16. Temendo pela sua integridade física e até pela vida, o agente CC fez uso da sua arma de serviço e efetuou um disparo na direção dos membros inferiores do arguido AA, o que fez com que este largasse a pistola metralhadora e caísse ao solo e, após se erguer, se colocasse em fuga apeada. 17. O arguido AA não é portador de licença de uso e porte de arma, nem de licença de detenção de arma no domicílio quanto à arma descrita e, mesmo assim, não se absteve de a municiar, de a deter e de a usar nos termos descritos. 18. O arguido BB não é portador de licença de uso e porte de arma, nem de licença de detenção de arma no domicílio quanto à arma descrita, e mesmo assim, não se absteve de a transportar, devidamente municiada, na viatura por si conduzida. 19. Os arguidos sabiam que para deter, guardar, portar, usar e transportar armas e munições necessitavam de uma licença específica para o efeito. Não obstante não se inibiram de agir como descrito. 20. Ambos os arguidos conheciam as características da pistola metralhadora com que o arguido AA previamente se muniram e sabiam que, ante as características que possuía, é um meio idóneo para tirar a vida, se usada contra uma pessoa, bem como, meio idóneo para a ferir com gravidade. 21.Os arguidos agiram em conjugação de esforços e intentos, com divisão de tarefas, e em execução de um plano gizado pelo arguido AA a que o arguido BB aderiu de imediato. 22. Ao efetuar múltiplos disparos, em diversas direções, nos descritos Bairros da ..., designadamente na Praceta dos ..., na Praceta das ... e na Praceta dos ..., o arguido AA agiu com o propósito, concretizado, de causar estragos nos edifícios ali existentes e colocou em perigo a vida e a integridade física das pessoas que ali circulavam àquela hora e também das que se encontravam à janela ou à varanda das residências ali existentes, bem como no interior do estabelecimento R..., conduta com a qual o arguido BB se conformou e nada fez para impedir, sabendo ambos que se tratavam de bairros com elevada densidade habitacional e populacional e que os edifícios atingidos não lhes pertenciam e que agiam contra a vontade dos seus legítimos proprietários. 23. Os dois edifícios atingidos pelos disparos efetuados pelo arguido AA têm valores não concretamente apurados, mas superior a 20.400,00€ (vinte mil e quatrocentos euros) cada. 24. Com as suas condutas, os arguidos causaram um prejuízo a GG, dono de um destes prédios, de valor não concretamente apurado. 25. Ao utilizar e direcionar a referida pistola metralhadora para os corpos dos agentes da PSP CC e DD, com a qual poderia atingir órgãos vitais como o coração e os pulmões, o arguido AA, disso ciente, atuou com o propósito de lhes tirar a vida, o que apenas não conseguiu por razões alheias à sua vontade, designadamente porque o agente CC reagiu de imediato fazendo uso da sua arma de serviço e neutralizou a intenção do arguido AA usar a pistola metralhadora. 26. O arguido AA bem sabia que CC e DD eram agentes da Polícia de Segurança Pública e que se encontravam ali no exercício destas suas funções. 27. Os arguidos agiram, em todas as circunstâncias descritas, de forma livre, deliberada e consciente, sabendo as suas descritas condutas eram proibidas e punidas por lei. * (…). 52. AA, antes de ter sido, em 1 de setembro de 2022, sujeito a prisão preventiva, residia com a companheira e com o filho do casal (atualmente com cinco anos de idade) em casa arrendada, local onde a família do arguido se mantém a residir. 53. O arguido mantém ligação afetiva à companheira e filho. 54. Antes de ser preso, o arguido encontrava-se a trabalhar como ..., com negócio próprio. 55. A companheira exercia a atividade profissional de ..., vindo a ficar desempregada, ainda que, na presente data, realize alguns trabalhos ocasionais, nas limpezas e na cozinha. 56. Na altura da reclusão do arguido, o casal dispunha de uma situação económica estável, auferindo o arguido, em média, o valor de três mil euros mensais. 57. O casal tinha, como despesa, o pagamento da a renda de casa, no valor de trezentos e cinquenta euros e da loja, no valor de quatrocentos euros mensais. 58. Com o 5º ano de escolaridade, AA pretende voltar a trabalhar como ..., assim que a situação jurídica o permitir. 59. AA cumpriu pena de prisão efetiva, nos termos infra descritos, tendo sido preso com vinte e seis anos de idade. 60. Por força da sujeição à medida de coação de prisão preventiva o arguido entregou ao senhorio o espaço que explorava e onde exercia a atividade de ... – F..., em .... 61. Em situação de reclusão, AA tem apresentado comportamento adequado, beneficiando do apoio da família e amigos, sendo visitado pela companheira e pelo filho menor. (…) 65. O arguido AA foi condenado em 9 de dezembro de 2008, por sentença transitada em 9 de janeiro de 2009, proferida no processo nº 2211/08.1..., do 2º Juízo Criminal de ..., na pena de 70 dias de multa, pela prática, em 17 de novembro de 2008, de um crime de condução sem habilitação legal. Esta pena foi declarada extinta, pelo cumprimento, em 7 de novembro de 2011. 66. Foi condenado por acórdão de 16 de fevereiro de 2007, transitado em 12 de novembro de 2007, no processo nº 1681/03.9..., do Juiz 3, da 1ª Secção, do Juízo de Grande Instância Criminal de ..., na pena de 18 meses de prisão, suspensa por 3 anos, com a obrigação do arguido proceder ao pagamento de € 1500,00, pela prática, em 3 de setembro de 2003, de um crime de furto qualificado. Esta pena foi declarada extinta, pelo cumprimento, em 29 de outubro de 2013. 67. Foi condenado, em 4 de maio de 2009, por sentença transitada em 12 de junho de 2009, no processo nº 157/07.0..., do Juiz 2, da 1ª Secção do Juízo de Média Instância Criminal de ..., na pena de 100 dias de multa, pela prática, em 17 de janeiro de 2007, de um crime de roubo. Esta pena foi declarada extinta, por prescrição, em 11 de outubro de 2013. 68. Foi condenado, em 14 de maio de 2009, por sentença transitada em 19 de novembro de 2009, proferida no processo sumário nº 179/09.6..., do Juiz 2, do Juízo de Pequena Instância Criminal de ..., na pena de 3 meses de prisão, suspensa por um ano, subordinada ao pagamento de € 300,00 a Instituição, pela prática, em 29 de abril de 2009, de um crime de condução de veículo sem habilitação legal. A suspensão da execução da pena foi revogada por decisão de 7 de janeiro de 2015. O arguido saiu em liberdade condicional no dia 16 de janeiro de 2016 e, em 16 de março de 2016, foi declarada extinta a pena de prisão. 69. O arguido foi condenado, em 6 de dezembro de 2011, por sentença transitada a 9 de janeiro de 2012, proferida no processo nº 218/07.5..., do Juiz 4, da 2ª secção, do Juízo de Média Instância Criminal de ..., na pena de 1 ano de prisão, suspensa por igual período, pela prática, em 30 de junho de 2007, de um crime de ofensa à integridade física simples. Esta pena foi declarada extinta, pelo cumprimento, em 5 de novembro de 2013. 70. Foi condenado no processo nº 984/03.7..., do Juízo da Grande Instância Crimina de ..., por acórdão de 8 de fevereiro de 2012, transitado em julgado em 12 de março de 2012, de 2 anos e 9 meses de prisão, pela prática, em agosto de 2003, de um crime de furto simples e de 3 crimes de furto qualificado. 71. O arguido foi condenado no processo nº 1157/06.2..., da 2ª Secção, do Juiz 3, do Juízo de Média Instância Criminal de ..., por sentença de14 de maio de 2012, transitada em 6 de fevereiro de 2013, na pena de 180 dias de multa, pela prática, em 16 de junho de 2008, de um crime de detenção de arma proibida. Esta pena foi declarada extinta, por prescrição, em 6 fevereiro de 2017. 72. E foi condenado em 11 de abril de 2022, por sentença transitada em 18 de maio de 2022, no processo sumário nº 534/22.6..., do Juiz 1, do Juízo Local de Pequena Criminalidade de ..., na pena de 80 dias de multa e na pena acessória de 3 meses de proibição de conduzir, pela prática, em 10 de abril de 2022, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez. A pena acessória extinguiu-se, pelo cumprimento, em 16 de agosto de 2022 73. Este arguido AA foi ainda condenado, em 14 de setembro de 2023, por acórdão transitado em julgado em 16 de outubro de 2023, que foi proferido no processo nº 4/17.4..., do Juiz 5, deste Juízo Central Criminal de ..., na pena de 2 anos de prisão, suspensa por 2 anos, pela prática, em 2017, de crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade.» Por seu turno, não se provaram os seguintes factos com relevância para a decisão: «a. Que no dia 22 de junho de 2022, os arguidos BB e AA estivessem toda a tarde a ingerir bebidas e a fumar cigarros de haxixe no estabelecimento de bebidas denominado “S...”, sito na Rua ..., ...; b. Que a hora não concretamente apurada dessa tarde, o arguido AA se ausentasse do mencionado estabelecimento e regressasse ao mesmo local pelas 20h00 munido com a pistola metralhadora; c. Que, aí chegado, o arguido AA se dirigisse ao arguido BB e lhe dissesse que fosse com ele à procura de II com quem precisava de fazer um “ajuste de contas”, no que o arguido BB acedeu. d. Que BB seguisse, ao conduzir, as indicações dadas pelo arguido AA. e. Que o arguido AA conseguisse apontar a pistola metralhadora diretamente aos agentes da PSP CC e DD; f. Que, com as suas condutas, os arguidos causassem um prejuízo a GG no valor de cerca de 400,00€ (quatrocentos euros);» II.2. Mérito do recurso 11. Os poderes de cognição do tribunal de recurso são delimitados pelo teor das conclusões da motivação do recorrente (artigos 402.º, 403.º, 412.º e 434.º do CPP), sem prejuízo dos poderes de conhecimento oficioso do tribunal ad quem quanto a vícios da decisão recorrida, a que se refere o artigo 410.º, n.º 2, do CPP (acórdão de fixação de Jurisprudência STJ n.º 7/95, DR-I.ª Série, de 28-12-1995), os quais devem resultar diretamente do texto desta, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum, a nulidades não sanadas (n.º 3 do mesmo preceito) ou quanto a nulidades da sentença (artigo 379.º, n.º 2, do CPP, na redação da Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro), os quais se analisam infra, na sequência das questões suscitadas pelo recorrente. 12. Das conclusões da motivação de recurso do arguido, infere-se que o mesmo pretende colocar à apreciação deste Supremo Tribunal de Justiça, as questões seguintes: i) – Nulidade do acórdão recorrido [do TRL] por omissão de pronúncia - conclusões 1.ª a 6.ª; ii) – Vício do acórdão de erro notório na apreciação da prova e violação do princípio in dubio pro reo, o que deveria conduzir à absolvição do arguido - conclusões 7.ª a 43.ª; iii) – Erro de subsunção jurídica dos factos, a manter-se a factualidade provada, devendo os mesmos integrar crime de resistência e coação sobre funcionário - conclusões 44.ª a 46.ª; iv) – Excesso da medida da pena (parcelar) aplicada ao crime de detenção de arma proibida - conclusões 47.ª a 50.ª; v) – Excesso da medida das penas parcelares (de 10 anos de prisão), aplicadas aos crimes de homicídio na forma tentada, e da pena única - conclusões 51.ª a 53.º. Apreciaremos as questões colocadas não por ordem de exposição nas conclusões, mas por ordem de precedência lógica. 13. iv) – Excesso da medida da pena (parcelar) aplicada ao crime de detenção de arma proibida O arguido AA foi condenado, além do mais, pela prática, em autoria material, de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punível pelo art.º 86.º, n.º 1, alínea a), art.º 2.º, n.º 1, al. aaa), art.º 3.º, n.º 2, al. b) e art.º 4.º todos da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, com as alterações introduzidas pelas Leis n.º 59/2007, de 04 de Setembro, n.º 17/2009, de 06 de Maio, n.º 26/2010, de 30 de Agosto, n.º 12/2011, de 27 de Abril, n.º 50/2013, de 24 de Julho e n.º 50/2019, de 24 de Julho (Regime Jurídico das Armas e Munições), na pena parcial de 5 (cinco) anos de prisão. O acórdão recorrido do TRL, manteve integralmente a condenação do recorrente por tal ilícito penal, bem como a pena ao mesmo aplicada. Conforme pertinentemente refere, a este respeito, o Senhor Procurador-Geral Adjunto neste STJ, «Ora, segundo o art. 400.º, n.º 1, al. f), do CPP, não é admissível recurso de acórdãos proferidos, em recurso, pelas Relações, que confirmem decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 (oito) anos. A inadmissibilidade do recurso vale separadamente para as penas parcelares e para a pena conjunta, podendo acontecer que todas ou algumas das penas parcelares não sejam recorríveis, mas já o ser a pena única (cf. os acórdãos do STJ de 21 de dezembro de 2020, processo 32/14.1SULSB-G.L1.S1, e de 15 de setembro de 2021, processo 1249/16.0JAPRT.P1.S1, ambos relatados pelo conselheiro Eduardo Loureiro, e de 27 de janeiro de 2022, processo 960/19.8JAAVR.P2.S1, relatado pela conselheira Maria do Carmo Silva Dias). Esta interpretação conta com a chancela do Tribunal Constitucional que já teve o ensejo de concluir pela não inconstitucionalidade do art. 400.º, n.º 1, al. f), do CPP, na interpretação de que havendo uma pena única superior a 8 (oito) anos, não pode ser objeto do recurso para o STJ a matéria decisória referente aos crimes e penas parcelares inferiores a 8 (oito) anos de prisão (v. os acórdãos n.ºs 186/2013, relatado pelo conselheiro José da Cunha Barbosa, e 212/2017, que confirma a decisão sumária n.º 174/2017, relatado pela conselheira Maria José Rangel Mesquita, in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos). Nesta parte, o recurso deve, por isso, ser rejeitado por inadmissibilidade legal (arts. 400.º, n.º 1, al. f), 414.º, n.ºs 2 e 3, 420, n.º 1, al. b), e 432.º, n.º 1, al. b), todos do CPP).» Efetivamente, assim é. Dispõe o art. 400.º, n.º 1, al. f) do CPP (Decisões que não admitem recurso), o seguinte: «1 - Não é admissível recurso: (…) f. De acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1.ª Instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos; (…)». Por seu turno, o disposto no art. 432.º, n.º 1, al. b) do CPP (Recursos para o Supremo Tribunal de Justiça), tem a seguinte redação: «1 - Recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça: (…); b) De decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do artigo 400.º; (…).» Trata-se do modelo de “dupla conforme”, enquanto manifestação ou indício de coincidente bom julgamento nas duas instâncias, que não supõe necessariamente identidade total, absoluta convergência, concordância plena, certificação simétrica, ou consonância total, integral, completa, ponto por ponto, entre as duas decisões. A conformidade parcial, mesmo falhando a circunstância da identidade da qualificação jurídica (desde que daí resulte efetiva diminuição de pena, de espécie ou medida de pena), não deixará de traduzir ainda uma presunção de bom julgamento, de um julgamento certo e seguro. É essa a solução legalmente consagrada nos artigos 400.º, n.º 1, al. f) e 432.º, n.º 1, al. b) a contr., do CPP. Resulta do exposto que o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa é irrecorrível na parte em que fixa, confirmando-a, a pena parcelar aplicada ao arguido AA pela prática do crime de detenção de arma proibida, sendo definitiva a pena [parcelar] aplicada. Esta solução quanto à irrecorribilidade de decisões proferidas, em recurso, pelo Tribunal da Relação, enquanto confirmativas da deliberação da primeira instância, que tenha aplicado pena de prisão igual ou inferior a oito anos, não ofende qualquer garantia do arguido, nomeadamente o direito ao recurso, expressamente incluído na parte final do n.º 1 do artigo 32.º da Constituição pela 4.ª Revisão Constitucional (introduzida pela Lei Constitucional n.º 1/97, de 20 de Setembro – Diário da República, I-A, n.º 218/97, de 20-09-1997, entrada em vigor em 5 de Outubro de 1997). No caso vertente nos autos, a verificação da situação de «dupla conforme» é uma situação decorrente da homologação pela Relação da pena parcelar de prisão inferior a oito anos. Como é reconhecido pela doutrina e jurisprudência constitucionais, o legislador tem alguma latitude para conformar o regime de recursos, nomeadamente em matéria penal, desde que as soluções não atentem contra o núcleo do princípio do direito ao recurso, contra o princípio da legalidade ou contra o princípio do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva, consagrados, respetivamente, nos artigos 32.º, n.º 1, in fine 29.º, n.º 1, e 20.º, n.º l, todos da Constituição da República Portuguesa, considerando-se não ser obrigação do legislador a uma previsão sistemática de um duplo grau de recurso (ou triplo grau de jurisdição). No tocante à norma do art. 400.º, n.º 1, al. f) do CPP, o Tribunal Constitucional (doravante, também TC) tem considerado, de forma sistemática e reiterada, não ser a mesma desconforme à Constituição (cfr., entre outros, os Acórdãos TC n.ºs 385/2011, 186/2013, 156/2016, 260/2016, 418/2016, 212/2017, 286/2017, 372/2017, 724/2017, 151/2018, 232/2018, 248/2018, 592/2018, 599/2018, 659/2018, 677/2018, 443/2019, 655/2019, 84/2020, 96/2021, 207/2021, 399/2021, 745/2021, 898/2021, 400/2022, 590/2022, 261/2023). Pelo Ac. do TC do seu Plenário n.º 186/2013, foi, aliás, decidido «Não julgar inconstitucional a norma constante da alínea f), do n.º 1, do artigo 400.º, do Código de Processo Penal, “na interpretação de que havendo uma pena única superior a 8 anos, não pode ser objeto do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça a matéria decisória referente aos crimes e penas parcelares inferiores a 8 anos de prisão.» Por outro lado, sindicada que foi já a (in)constitucionalidade da interpretação normativa do disposto no art. 400.º, n.º 1, al. f) do CPP, no sentido de abranger situações de dupla conforme in mellius, tal interpretação foi considerada não inconstitucional. O Acórdão TC n.º 260/2016 – que apreciou reclamação da Decisão Sumária TC n.º 201/2016 –, pronunciou-se já especificadamente pela não inconstitucionalidade «da interpretação do artigo 400.º, n.º 1, alínea f) do Código de Processo Penal no sentido que não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça de acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1.ª Instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos e de que “ali se devem incluir, quer os acórdãos condenatórios da Relação que mantêm a pena aplicada pela 1.ª Instância, quer os acórdãos que a reduzem”». Este entendimento é transponível para a apreciação do recurso relativo à apreciação da condenação pelo crime que fundamentou a aplicação da pena parcelar inferior a 8 anos de prisão. Como tem sido amplamente enfatizado pelo STJ, “estando este, por razões de competência, impedido de conhecer do recurso interposto de uma decisão, estará também impedido de conhecer de todas as questões processuais ou de substância que digam respeito a essa decisão, tais como os vícios da decisão indicados no artigo 410.º do CPP, respectivas nulidades (artigo 379.º e 425.º, n.º 4) e aspectos relacionadas com o julgamento dos crimes que constituem o seu objecto, aqui se incluindo as questões relacionadas com a apreciação da prova nomeadamente, de respeito pela regra da livre apreciação (artigo 127.º do CPP) e do princípio in dubio pro reo ou de questões de proibições ou invalidade de prova, com a qualificação jurídica dos factos e com a determinação da pena correspondente ao tipo de ilícito realizado pela prática desses factos ou de penas parcelares em caso de concurso de medida não superior a 5 ou 8 anos de prisão, consoante os casos das alíneas e) e f) do artigo 400.º do CPP, incluindo nesta determinação a aplicação do regime de atenuação especial da pena previsto no artigo 72.º do Código Penal, bem como questões de inconstitucionalidade suscitadas neste âmbito” [acórdão do STJ de 14-03-2018, processo 22/08.3JALRA.E1.S1, relat. Cons. Lopes da Mota (www.dgsi.pt), com abundante apontamento de jurisprudência no mesmo sentido]. Acompanhando ainda outro aresto deste STJ, “[a] irrecorribilidade das penas parcelares não significa apenas que a sua medida fica intocada, mas coenvolve a insindicabilidade de todo o juízo decisório – absolvição ou condenação – efetuado incluindo todas questões processuais relativas a essa decisão no tocante às penas singulares. De outro modo não se verificaria a irrecorribilidade” [acórdão do STJ de 15-07-2021, processo 178/19.0JAGRD.C1.S1, relat. Cons. Margarida Blasco (www.dgsi.pt)]. Subscrevemos inteiramente este entendimento, aliás praticamente sem dissonância recente na jurisprudência deste STJ. Por ser assim, a irrecorribilidade por «dupla conforme» respeita a toda a decisão que implica a valoração da prova e determinação da culpa e suas consequências penais, e não apenas quanto à questão da determinação da pena. Regista-se que no despacho de 13-08-2024 (Ref.ª Citius ...84), o Senhor Desembargador relator no TRL admitiu o recurso do arguido AA in totum, o que, todavia, não pode vincular este Supremo Tribunal - art. 414.º, n.ºs 2 e 3 do CPP. Pelo exposto, nos termos do disposto nos artigos 400.º, n.º 1, al. f) e 432.º, n.º 1, al. b) a contr., do CPP, apesar de a decisão do TRL o ter admitido na totalidade, a mesma não vincula o STJ, pelo que é inadmissível o recurso do arguido AA quanto à decisão recorrida no tocante ao crime de detenção de arma proibida, não se conhecendo do mesmo nesse segmento. 14. i. – Nulidade do acórdão recorrido [do TRL] por omissão de pronúncia, e ii) – Vício do acórdão de erro notório na apreciação da prova e violação do princípio in dubio pro reo, o que deveria conduzir à absolvição do arguido. Como decorre do que se decidiu supra, as questões respeitantes à condenação do recorrente pelos crimes de homicídio qualificado na forma tentada admitem a sindicância por este STJ, uma vez que a medida (de cada uma) das penas parcelares aplicadas se cifra em 10 anos de prisão, não se encontrando, por isso, a coberto da irrecorribilidade do regime da dupla conforme. Além disso, por se encontrarem estreitamente imbricados entre si, apreciar-se-ão em conjunto os aspetos que estas duas questões iniciais do recurso suscitam. Como se antecipou, o recorrente aponta ao acórdão recorrido a nulidade por omissão de pronúncia, nos termos do «art. 379.°, n.º 1, al. c), 1.ª parte e art. 425.º n.º 4, todos do CPP», por ter invocado, no seu recurso do acórdão do tribunal da condenação para o TRL, o «o erro notório na apreciação da prova e erro no enquadramento jurídico relativamente aos dois crimes de homicídio qualificado na forma tentada» (conclusões 37.ª a 55.ª de tal recurso), sem que o TRL se tivesse pronunciado sobre tais questões relativamente a si, conquanto o tivesse feito relativamente ao coarguido. O que evola do acórdão recorrido a tal respeito, é algo que contraria essa posição do recorrente, nomeadamente quando ali se refere: « (…) 16. Temos pois que, revista a prova, se constata que a selecção realizada pelos arguidos porque muito restritiva e não abrangendo, nem contra-argumentando os raciocínios globais, relativos a toda a prova e a cada facto, que se mostram enunciados pelo tribunal “a quo”, acarreta o insucesso das pretendidas alterações factuais, face à solidez da argumentação pelo julgador expendida, que as críticas formuladas não abalam. (…) 18. No que concerne ao arguido AA, a acrescer aos elementos probatórios acima referidos, constata-se a existência de prova objectiva, que resulta, desde logo, do facto de vários agentes de autoridade atestarem que, no momento em que se depararam com o mesmo, este empunhava a arma que, pela perícia realizada, se comprovou ter sido a utilizada nos disparos realizados em momento prévio, arma esta que foi aliás, recuperada no local e apreendida à ordem dos autos. No mais, atestaram igualmente os agentes presentes que o arguido, ao ouvir as palavras “polícia, larga a arma, mãos no ar”, não obedeceu, antes rodando e começando a direccionar a pistola metralhadora, na direcção de dois agentes policiais, o que determinou que um destes disparasse, para os seus membros inferiores. Esta descrição é feita por todos os agentes policiais que tiveram intervenção nesse incidente, em número de três. (…) 20. Face ao que se deixa dito, tem de se concluir que a reapreciação probatória realizada não é de molde a permitir a alteração da matéria factual dada como provada. Na verdade, os elementos probatórios recolhidos e acima reapreciados não impõem que outro juízo tivesse forçosamente de ser alcançado e assim, a decisão tomada em 1ª instância, mostra-se inatacável e intocável, não merecendo censura a determinação dos factos assentes e não assentes por si realizada, que se deve manter. De igual modo, a matéria de facto dada como assente não padece de nenhum dos vícios previstos no artº 410 nº2 do C.P.Penal. Mantém-se, pois, inalterada, a matéria de facto dada como assente, na sua integralidade. 21. No que concerne a todos os pedidos de absolvição formulados pelos recorrentes, há que constatar que os mesmos se fundavam, exclusivamente, na expectativa de uma radical alteração da matéria de facto dada como assente, que os excluísse da autoria da prática dos actos que impugnaram. Frustrando-se tal expectativa, sucumbem, natural e consequentemente, as pretensões absolutórias deduzidas.» (negritos nossos). Do que ali se infere é que a análise das questões sobre o erro na apreciação da prova e sobre o enquadramento jurídico dos factos foi efetivamente levado a cabo pelo TRL no seu acórdão (recorrido), abrangendo inquestionavelmente a atuação de ambos os arguidos, incluindo expressamente o recorrente. O que o recorrente talvez pretenda é discordar de tal decisão do TRL, mas a invocação da nulidade por omissão de pronúncia, quanto a essa concreta questão, não é forma idónea para expressar tal dissenso. Isso mesmo é salientando pelos Senhores magistrados do Ministério Público nas duas instâncias. Na verdade, o acórdão sob escrutínio pronunciou-se detalhadamente sobre a intervenção do aqui recorrente, não havendo dúvida sobre a ponderação da sua intervenção, tendo de improceder a alegada nulidade por omissão de pronúncia, quanto a tal questão. No mais, o recorrente defende que «Não podia ter sido dado como provado o facto 15 na conceção de que o movimento não é feito por impulso (o que de facto se desconhece) e de que a arma tenha sido apontada diretamente a qualquer um deles» e «Ou ainda que esse movimento se destinasse a apontar a arma e a disparar.» (conclusões 26.ª e 27.ª). Acresce, ainda, o seu inconformismo ao alegar que «Não se concebe que o TRL possa afirmar convictamente que a intenção de matar é demonstrada pelo facto de o arguido, que desconhecia a presença policial no local, reitere-se, ao ser advertido, se voltar na sua direção.» (conclusão 29.ª), e que «As perceções externas das potenciais vítimas, neste caso dos agentes da PSP, não demonstram o dolo (em qualquer das suas formas).» e «Demonstram menos ainda que a arma estivesse apta a disparar contra duas pessoas em simultâneo dada a distância entre ambos os agentes da PSP» (conclusões 31.ª e 32.ª). Mais procura evidenciar a insuficiência de elementos de prova, no sentido de demonstrar a inviabilidade de se dar como provada a “intenção de matar”, o que faz ao alegar que «36. No entanto, não se provou (ponto e) dos factos não provados) “que o arguido AA conseguisse apontar a pistola metralhadora diretamente aos agentes da PSP CC e DD”.», «37. Nesta medida, e, à contrario sensu, provou-se que o arguido não apontou a arma aos agentes da PSP.», «38. A afirmação de que “começou a direcionar a arma aos agentes” com intenção de os matar (dolo direto), e que é esse o ato de execução que o art. 22.º, n.º 2, alínea c) do CP impõe que se encontre preenchido, é uma clara violação da lei e com efeitos nefastos para o arguido e para o nosso ordenamento jurídico.», «39. As dúvidas de que o movimento é ou não feito por impulso e de que a arma tenha sido apontada diretamente a qualquer um deles, ou ainda que esse movimento se destinasse a apontar a arma e a disparar, trazem uma enorme insegurança jurídica para efeitos de condenação.», «40. Não há prova do dolo, em qualquer das suas formas.», «41. Não se aceita que o receio que os agentes da PSP tiveram naquelas circunstâncias, configure um crime de homicídio qualificado na forma tentada e por isso deve o arguido ser absolvido destes dois crimes.», e, finalmente, «42. Como decorre dos factos considerados provados não se deteta um único facto que demonstre o preenchimento dos elementos objetivos e subjetivos do crime de homicídio na forma tentada pelo qual veio a ser condenado.» Decorre da motivação do tribunal de 1.ª Instância, no tocante à inferência da verificação da intenção de matar, o seguinte: «(…) Os depoimentos dos três agentes da PSP, CC, DD e HH, em confronto com os demais elementos probatórios, permitem alicerçar certezas de que o arguido AA, detendo a metralhadora, baixa-a na direção dos dois primeiros, indiferente às ordens que lhe foram dadas. O que permite ancorar certezas de que a ia disparar na direção daqueles, produzindo, necessariamente a sua morte, vista a elevada eficácia e letalidade da arma, cuja posse bem sabia estar-lhe vedada. Os factos assentes de 19. a 27., referentes à vontade interior dos arguidos, para além do que já se comentou, são objetivados e projetados no exterior pelas suas conduta e não são postos em crise pelas declarações destes que já foram analisadas. A especial capacidade de avaliação da natureza ou alcance dos atos por si praticados e de se determinarem de acordo não é posta em causa por qualquer elemento carreado para o processo.» Por seu turno, o TRL, a propósito dessa mesma questão, ensaia a seguinte fundamentação: «18. No que concerne ao arguido AA, a acrescer aos elementos probatórios acima referidos, constata-se a existência de prova objectiva, que resulta, desde logo, do facto de vários agentes de autoridade atestarem que, no momento em que se depararam com o mesmo, este empunhava a arma que, pela perícia realizada, se comprovou ter sido a utilizada nos disparos realizados em momento prévio, arma esta que foi aliás, recuperada no local e apreendida à ordem dos autos. No mais, atestaram igualmente os agentes presentes que o arguido, ao ouvir as palavras “polícia, larga a arma, mãos no ar”, não obedeceu, antes rodando e começando a direccionar a pistola metralhadora, na direcção de dois agentes policiais, o que determinou que um destes disparasse, para os seus membros inferiores. Esta descrição é feita por todos os agentes policiais que tiveram intervenção nesse incidente, em número de três. i. Salvo o devido respeito, numa situação em que alguém, com uma arma nas mãos, à ordem de “mãos no ar”, não obedece e começa a apontar uma arma de fogo na direcção de quem lhe deu essa ordem, as regras de experiência comum determinam que qualquer pessoa, nessa situação, entenderia que a intenção do agente era a de usar tal arma contra a sua pessoa. Se tal não fosse o caso, o arguido teria obedecido e levantado as mãos ao ar. Não o fez. Na verdade, apenas acabou por abrir mão da pistola depois do tiro de aviso, queda ao chão e fuga precipitada do local. ii. Assim, a intenção de matar resulta da acção e da escolha feitas pelo próprio arguido e pela qual é o único responsável, de direccionar uma arma a agentes de autoridade e mostra-se de acordo com as regras de experiência comum. Tanto assim é que a reacção do agente que procedeu ao disparo, dirigido aos membros inferiores do arguido, revela que, naquele momento temporal, este temeu, efectivamente, pela sua integridade física e pela sua vida, independentemente do modo como verbaliza tais circunstâncias em sede de depoimento. Ele não pode assegurar, porque não está dentro da cabeça do arguido, naquele momento, que este, efectivamente, contra si dispararia, mas a percepção que teve (ele e os restantes agentes que o acompanhavam, como qualquer normal cidadão), foi a de que era essa a intenção do recorrente. Diga-se, aliás, que foi uma decisão que, fossem outras as circunstâncias e outros os intervenientes policiais, poderia mesmo ter custado a vida ao arguido. São, assim, os actos deste arguido, que determinam essa percepção externa. Percepção essa que, diga-se, se mostra reforçada pela circunstância de a arma, no momento em que o recorrente a empunhava, estar pronta a disparar, bastando para tal apertar o gatilho.» Nos termos do disposto no art. 425.º, n.º 4, do CPP, é aplicável aos acórdãos proferidos em recurso o regime da nulidade da sentença proferida pela 1.ª Instância. O Código de Processo Penal prevê no art. 379.º o regime específico da nulidade da sentença, cominando como tal – de forma simplificada –, a falta de fundamentação (alínea a) do n.º 1 do artigo citado), a condenação por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia (alínea b) do mesmo n.º 1) e a omissão e o excesso de pronúncia (alínea c) do mesmo n.º 1). Embora nos acórdãos de instâncias superiores que julgam recursos não seja exigível um grau de fundamentação idêntico ao do tribunal recorrido, importa indagar sobre se o acórdão recorrido – aqui o do TRL – expôs satisfatoriamente, ou não, a fundamentação necessária para a demonstração da existência do elemento subjetivo fundamental da intenção de matar, por parte do arguido. A verificação de existência de nulidade, seja por via de requerimento da parte, seja por via oficiosa possibilita a indagação por parte do STJ em matéria de facto, mesmo que o recurso se circunscreva a matéria de direito, alargando-se assim o quadro de possibilidades de incursão indireta no plano fáctico, também possível através da análise da existência de vícios decisórios. Para indagar da existência da invocada nulidade, importa ter em conta a factualidade assente na decisão recorrida, impondo-se cotejar a fundamentação do acórdão da Relação e do acórdão do Coletivo sobre que incidiu a reapreciação suscitada pelo recurso do arguido desta primeira decisão. Vejamos se o acórdão sob censura está ferido de nulidade. A consagração na Lei Fundamental do dever de fundamentação das decisões judiciais veio a verificar-se com a primeira revisão constitucional operada pela Lei Constitucional n.º 1/82, de 30-09,prescrevendo então o n.º 1 do artigo 210.º que «As decisões dos tribunais são fundamentadas nos casos e nos termos previstos na lei», redação que se manteve no n.º 1 do artigo 208.º na revisão da Lei Constitucional n.º 1/89, de 08-07, bem como na revisão da Lei Constitucional n.º 1/92, de 25/11, sofrendo alteração na 4.ª revisão constitucional – Lei Constitucional n.º 1/97, de 20-09 – passando então a dispor o n.º 1 do artigo 205.º que «As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei». Sobre tal alteração, o Tribunal Constitucional considerou já no seu acórdão n.º 680/98, de 02-12-1998- processo n.º 456/95 (pub. DR, II Série, de 05-03-1999): “A Constituição revista deixa perceber uma intenção de alargamento do âmbito da obrigação constitucionalmente imposta de fundamentação das decisões judiciais, que passa a ser uma obrigação verdadeiramente geral, comum a todas as decisões que não sejam de mero expediente, e de intensificação do respectivo conteúdo, já que as decisões deixam de ser fundamentadas «nos termos previstos na lei» para o serem «na forma prevista na lei». A alteração inculca, manifestamente, uma menor margem de liberdade legislativa na conformação concreta do dever de fundamentação”. No âmbito infraconstitucional, além do comando do art. 97.º, n.º 5, do CPP – que obriga à motivação de facto e de direito da fundamentação de qualquer ato decisório – a motivação em processo penal é introduzida apenas no Código de Processo Penal de 1987, com o artigo 374.º. Definindo os requisitos da sentença penal dispõe o artigo 374.º, n.º 2, do CPP, na redação atual (conferida pela Lei n.º 59/98, de 25-08, entrada em vigor em 1 de janeiro de 1999, inalterada pela Lei n.º 48/2007, de 29-08 e subsequentes alterações ao Código de Processo Penal): «Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal». Relativamente à versão anterior, a resultante da Reforma de 1998 apenas introduziu a necessidade do exame crítico das provas, tendo assim perfeita atualidade as posições jurisprudenciais firmadas a propósito da questão concreta suscitada pelo recorrente, aqui a discutir. A fundamentação da decisão judicial é, simultaneamente, exigência de legitimidade do órgãos decisor e garantia de sindicabilidade da decisão. Importando distinguir as nulidades da decisão (acórdão) dos vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP, este Supremo Tribunal vem consolidadamente decidindo que «Os vícios previstos no art.º 410.º, n.º 2, do CPP, são vícios de lógica jurídica ao nível da matéria de facto – implicam erro de facto – que tornam impossível uma decisão logicamente correcta e conforme à lei. Enquanto subsistirem, a causa não pode ser decidida, determinando o reenvio do processo para novo julgamento (art. 426.º do CPP)» [v.g., entre muitos outros, nos acórdãos STJ de 22-10-1997, proferido no processo n.º 612/97-3.ª (Sumários STJ, n.º 14, pág. 155) e de 05-111997, proferido no processo n.º 549/97-3.ª (Sumários, n.ºs 15 e 16, pp. 150/1 e CJSTJ 1997, t. 3, p. 222)]. Constituem vícios da decisão, não do julgamento, como se exprime Maria João Antunes em «Conhecimento dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 6 de maio de 1992 - Anotação de jurisprudência», Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 4.º, Fasc. 1 – jan.- mar. 1994, p. 121, em anotação a acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 6 de maio de 1992, pub. na Colectânea de Jurisprudência, 1992, t. 4, p. 5. Observa a Autora, a pp. 121-123 de tal artigo: «Nesta disposição legal, estamos em face de vícios da decisão recorrida, umbilicalmente ligados aos requisitos da sentença previstos no artigo 374.º, n.º 2, do CPP, concretamente à exigência da “fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação das provas que serviram para fundamentar a convicção do Tribunal”». Prossegue, afirmando que «O artigo 374.º, n.º 2, impõe a fundamentação das decisões de facto e de direito, sob pena de nulidade da sentença (…), enquanto o artigo 410.º, n.º 2, concede ao tribunal «ad quem» os poderes de cognição em matéria de facto permitidos pelo texto da decisão recorrida, com o objectivo de assim ser controlado o conteúdo da própria fundamentação. O artigo 410.º, n.º 2, não serve, pois, para verificar a existência ou não da fundamentação da sentença, nos termos previstos no artigo 374.º, n.º 2 – isso é feito através do mecanismo da arguição da nulidade –, mas para controlar se a matéria de facto provada é suficiente para a decisão de direito tomada, se não há contradição insanável da fundamentação e se não há erro notório na apreciação da prova, podendo assim dizer-se que estes são requisitos da fundamentação e consequentemente da própria decisão». Conclui a referida Autora que, por serem vícios que contendem diretamente com «a boa decisão da causa», tendo o tribunal de recurso o poder-dever de fundar a «boa decisão de direito» numa «boa decisão de facto», o seu conhecimento é oficioso. Ao ressalvar-se a intromissão nos mencionados vícios, consagra-se aquilo a que se designa de recurso de revista ampliada, de cognição da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, da contradição insanável da fundamentação ao nível dos factos essenciais, de erro notório na apreciação da prova, evidentes. O Supremo Tribunal de Justiça não se pode alhear da sua primordial missão, pois seria inaceitável que, na aplicação do direito, se deixassem persistir aqueles vícios no silogismo judiciário, porque o tribunal de recurso tem o poder-dever de fundar a “boa decisão de direito” numa “boa decisão de facto”, que não padeça daqueles vícios (cfr. Maria João Antunes, loc. cit., pp. 118 e ss., em anotação ao Acórdão deste STJ, de 6 de Maio de 1992). Independentemente da questão de não se ter transposto para a matéria de facto relevante a matéria atinente à concreta municiação da arma metralhadora, e da modalidade da sua aptidão para disparar (a posição “R” – repetição tiro a tiro, e não rajada), consideremos, pois, aqueles excertos dos acórdãos em apreço. Em primeiro lugar, no acórdão recorrido (do TRL) é ignorada a asserção da factualidade não provada em 1.ª Instância, no segmento em que não se provou «Que o arguido AA conseguisse apontar a pistola metralhadora diretamente aos agentes da PSP CC e DD;». Tal circunstância factual não pode ser ignorada no contexto geral da fundamentação da intenção de matar do arguido. O tribunal ensaiou a motivação da decisão de matéria de facto, entre outros, com as seguintes asserções: «Quando se encontra a cerca de 7/8 metros, o arguido vira-se para o depoente. Desconhecendo qual a intenção, a testemunha assevera que, nesse momento, o arguido AA começa a baixar a pistola metralhadora, na sua direção e do seu colega DD que se encontra a “um passo” de si. O agente ora depoente ainda grita “polícia larga a arma” (confirmando o facto assente em 14.) e porque percebe que o arguido continuava a baixar a arma na sua direção, desconhecendo a sua intenção, dispara a pistola de serviço que empunhava na direção deste.» (negritos nossos). A conclusão do tribunal de 1.ª Instância, sancionada pelo TRL, no sentido de se inferir a intenção de matar, por parte do arguido, pela reação do agente CC ao disparar contra ele, não encontra eco nessa motivação, em que, independentemente do estado psicológico dos dois agentes da PSP, o que há de objetivo é o desconhecimento (a ignorância) por tal agente – assumida pelo tribunal – da intenção do arguido. Para além disso, parece-nos que fazer depender a verificação da intenção de matar [do arguido] da persuasão ou convicção – de resto contraditoriamente fundamentadas, como se viu – daquela intenção, por parte da(s) vítima(s), encerra um raciocínio algo temerário. Não sendo o direito penal um direito penal de autor, mas sim um direito penal do facto, a certeza prático-processual a atingir no plano da factualidade tipicamente relevante há de resultar das conclusões que se estabeleçam, a partir da conjugação de todos os elementos de prova produzida, de forma coerente e de acordo com as regras da experiência e da sã racionalidade. Nessa medida, não se julga suficientemente justificada a conclusão a que chegam as instâncias no tocante à afirmação da intenção de matar do arguido através do estado emocional das vítimas, que sofre, de resto, um processo evolutivo entre a data da prática dos factos e a dos seus depoimentos em julgamento, em que, consciente ou inconscientemente, se reconstrói mentalmente um processo histórico concretizado na prática dos factos ilícitos típicos. Reportando-se as conclusões probatórias à ocorrência de factos precisos, historicamente situados, a reconstrução dessa realidade não pode alicerçar-se – de forma preponderante – nas perceções ou impressões que a(s) vítima(s) diz(em) ter sentido acerca da intenção do agente, o aqui arguido. Foi esse itinerário justificativo que os tribunais – concretamente o TRL – fizeram nos acórdãos condenatório e confirmativo, respetivamente. O qual, com o devido respeito, não merece a nossa adesão por nos parecer não ter sido o mais adequado em função do que emerge das regras da experiência e da sã racionalidade. O quadro factual demonstrado é o de o arguido ser abordado pelos agentes CC e DD, e após ter sido advertido que se tratava de agentes policiais, ter rodado o corpo para a direita e, acompanhando tal movimento, baixado a metralhadora na direção dos referidos agentes. Esse comportamento, por si só, não indicia que pretendesse disparar a arma contra os agentes policiais. Muito menos se pode concluir pela certeza de que era essa a intenção do agente. É certo que a motivação da matéria de facto quanto à intenção de matar sugere que o arguido «(…) estava, assim, de lado para o depoente, com o cotovelo a descrever um ângulo de cerca de 90º e com a arma erguida para o céu.», após o que a baixou na direção dos agentes CC e DD. O facto de direcionar a arma contra os agentes da PSP pode ter sucedido por se tratar de um movimento involuntário ao rodar o corpo, ou mesmo um ato reflexo. Não se encontrando os agentes completamente uniformizados, o arguido pode ter pretendido certificar-se de que eram efetivamente agentes policiais que o interpelavam; podia querer certificar-se de que não se tratava da pessoa que procurava e que, por esse facto, teria de se defender de alguma atitude violenta por parte dela; enfim, esse comportamento do arguido não é apenas e necessariamente compatível com a conclusão de o mesmo ter intenção de tirar a vida aos agentes CC e DD. Não é, assim, forçoso concluir que, ao virar ou rodar o corpo na direção dos (dois) agentes policiais, o arguido tivesse pretendido efetivamente disparar e atentar contra a vida dos mesmos. Tal comportamento corporal não é, de resto, exclusivamente compatível com tal conclusão sobre a intenção do arguido. Acresce que não se encontra especificado de que forma o arguido terá direcionado a arma na direção dos dois agentes, uma vez que estes se encontravam ainda a uma distância entre eles de cerca de 2 ou 3 metros. O que temos de objetivo é que o arguido AA não efetuou qualquer disparo com a arma que detinha, uma pistola metralhadora UZI, na posição “R” (repetição tiro-a-tiro), podendo efetivamente tê-lo feito e falhar, caso em que poderia efetivamente concluir-se pela tentativa de homicídio, ou por duas tentativas de homicídio. Sucede que tal não ocorreu. Além disso, o facto de o arguido AA ter deixado a arma no local, não procurando recuperá-la, e fugindo do local, reforça a conclusão de não ser inexorável, ou mais plausível, a conclusão de pretender atingir mortalmente os dois agentes policiais. É certo que a fuga empreendida pode ter resultado do estado de receio de ser atingido por outro disparo do agente CC ou do agente DD. Mas, tudo não passa de hipóteses, mais ou menos plausíveis, a que o tribunal recorrido não deu resposta(s) cabal(ais), ou seja, não indagou e, por isso, não respondeu. Antes, quedam-se as instâncias pela conclusão – no seu entendimento, inexorável – de que o arguido AA pretendeu tirar a vida dos agentes policiais, a partir da convicção das vítimas, ou seja, a partir da reconstrução por estas do que terá sido a sua reação ao comportamento corpóreo do arguido. Por fim, relativamente à justificação de que, se o arguido não tivesse querido atentar contra a vida dos agentes policiais, teria levantado os braços, depreendendo-se que “apenas” essa atitude significaria não querer disparar, exprimimos igualmente a nossa discordância de tal justificação. O facto de o arguido não ter levantado as mãos (no ar) não torna essa conduta, ipso facto, suspeita, tornando-o incurso nas tentativas de homicídio dos agentes policiais. O próprio tribunal recorrido refere que, perante o aviso do agente CC de que eram polícias, o arguido «(…), apenas acabou por abrir mão da pistola depois do tiro de aviso, queda ao chão e fuga precipitada do local.» Não poderia o arguido, querendo efetivamente disparar contra os agentes policiais, ou só contra um deles, tê-lo feito, ou ter disparado ainda noutra direção? É tempo de concluir sobre as consequências processuais do que pensamos ter sido uma deficiente fundamentação de facto da decisão recorrida, ao sancionar pela forma como o fez, a decisão do tribunal de 1.ª Instância. Presumindo ter-se distinguido acima nulidades do art. 374.º, n.º 2 – enquanto défices da formação da convicção e da sua expressão decisória – e vícios do n.º 2 do art. 410.º do CPP – enquanto défices da decisão em si mesma considerada ou conjugada com as regras da experiência comum, impõe-se concluir que no presente caso se está perante a primeira categoria. Ou seja, não se logra, mesmo com esforço, ultrapassar a dúvida que justificadamente se nos coloca sobre a intenção de matar imputada ao arguido – elemento subjetivo típico dos crimes de homicídio qualificado pelos quais foi condenado –, mormente da forma como o tribunal recorrido, secundando o tribunal de 1.ª Instância, o faz, i. e, a partir, exclusiva ou preponderantemente, da convicção íntima das vítimas de que o arguido iria disparar contra si, atingi-los e provocar-lhes a morte. Não se tratando, em nosso entender, de uma fundamentação “completa”, impõe-se reconhecer que a decisão recorrida enferma, nestes termos, de défices que se reconduzem a uma omissão de fundamentação, que implica a nulidade (parcial) do acórdão, de acordo com o regime dos artigos 374.º, n.º 2, 379.º, n.º 1, al. a), 410.º, n.º 3, 425.º, n.º 4, 432.º, n.º 1, al. a) e 434.º, do CPP. No cumprimento da obrigação de “completa” fundamentação, o tribunal há de apresentar uma fundamentação que permita uma avaliação segura e cabal das razões da decisão, com referência ao que foi adquirido e ao que não foi, em termos da factualidade apurada, se possível com explicitação diferenciada do que resultou da acusação, ou do que adveio da contestação e do que emergiu da discussão em audiência, com referência ao modo (lícito) de aquisição, permitindo a “transparência do processo e da decisão” – para utilizar a expressão de Michele Taruffo, em Note sulla garantia constituzionale della motivazione, in BFDUC, volume LV, Ano 1979, Coimbra, p. 31, citado, i. a., no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 680/98, de 2 de Dezembro de 1998, in DR, II Série, de 5 de Março de 1999 –, tendo que deixar bem claro que foram por ele apreciados todos os factos alegados, com interesse para a decisão, incluindo essa apreciação os que não foram considerados provados. O TRL deverá, assim, reponderar se, existindo os pressupostos consignados no art. 431.º, al. a), do CPP, lhe será viável modificar a matéria de facto assente no tribunal de 1.ª Instância, ou se, não o considerando, deverá alterar ou não a sua fundamentação no tocante à intenção de matar. Por tudo quanto se expôs, determina-se, nessa medida, nos termos do disposto nos artigos 374.º, n.º 2, 379.º, n.º 1, al. a) e 425.º, n.º 4, do CPP, a anulação do acórdão recorrido do TRL no tocante à fundamentação de facto que baseou a confirmação do acórdão de 1.ª instância, quanto à intenção de matar, elemento subjetivo típico subjacente aos crimes de homicídio qualificado, na forma tentada, pelos quais o arguido foi condenado. Em consequência, julga-se (parcialmente) procedente o recurso do arguido no tocante à sua condenação pelos dois crimes de homicídio qualificado na forma tentada, devendo o acórdão do TRL, nessa parte, ser reformulado de acordo com os fundamentos supra expostos. Prejudicadas ficam, assim, as restantes questões suscitadas nos demais segmentos do recurso do arguido. III. Decisão Por tudo quanto se expôs, acordam os juízes Conselheiros desta secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça, em: - rejeitar, por inadmissibilidade, nos termos do disposto nos artigos 400.º, n.º 1, al. f), e 414.º, n.º 2 e 3 e 432.º, n.º 1, al. b) a contr.do CPP, o objeto do recurso do arguido AA quanto à decisão recorrida no tocante ao crime de detenção de arma proibida, por ter havido «dupla conforme» quanto à condenação por tal ilícito em pena de cinco anos de prisão; e - declarar, nos termos do disposto nos artigos 374.º, n.º 2, 379.º, n.º 1, al. a) e 425.º, n.º 4, do CPP, a nulidade do acórdão recorrido do TRL no tocante à fundamentação de facto que baseou a confirmação do acórdão de 1.ª instância, quanto à intenção de matar – elemento subjetivo típico subjacente aos crimes de homicídio qualificado, na forma tentada, pelos quais o arguido foi condenado –, devendo o acórdão recorrido ser, nessa parte, reformulado de acordo com a supra apontada fundamentação. Sem tributação. * Dê conhecimento ao tribunal de 1.ª instância. * Lisboa, Supremo Tribunal de Justiça, data e assinaturas supra certificadas Texto elaborado e informaticamente editado, integralmente revisto pelo Relator, sendo eletronicamente assinado pelo próprio e pelos Senhores Juízes Conselheiros Adjuntos (art. 94.º, n.ºs 2 e 3, do CPP). Os juízes Conselheiros Jorge dos Reis Bravo (relator) João Rato (1.º adjunto) Agostinho Torres (2.º adjunto) |