Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3340/22.4T8FAR.E1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: FERREIRA LOPES
Descritores: ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
DUPLA CONFORME
FUNDAMENTAÇÃO ESSENCIALMENTE DIFERENTE
DOAÇÃO
NULIDADE
INEXISTÊNCIA
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
REAPRECIAÇÃO DA PROVA
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
Data do Acordão: 06/18/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
Não descaracteriza a dupla conforme (nº3 do art. 671º do CPC), a circunstâncias de as instâncias terem qualidade diversamente o vício da doação, inexistência para a 1ª instância, nulidade para a Relação.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


AA intentou a presente ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra BB e CC pedindo que seja:

a) Reconhecida à Autora a sua qualidade sucessória como herdeira de DD;

b) Reconhecido que os prédios identificados na clausula 9º e 10º da presente petição inicial fazem parte da herança aberta por óbito de DD;

c) Declarada a nulidade da escritura de doação realizada 26.04.2019, no Cartório Notarial de ...;

d) O 1º Réu condenado a restituir à herança os aludidos prédios em 9º e 10º da petição inicial.

Alega, em síntese, que na sequência de ter sido reconhecida filha de DD já depois do óbito deste, deverão os réus, seu tio e avô paternos, restituir os bens à herança deixada por seu pai, tendo já ocorrido uma doação do seu avô ao seu tio.

Os réus contestaram, impugnando a legitimidade da autora, entendendo que o reconhecimento da paternidade não tem efeitos retroativos, devendo ser absolvidos dos pedidos formulados, sustentando ainda ser o 2º réu parte ilegítima.

A Autora respondeu, concluindo pela improcedência das exceções invocadas, concluindo como na petição inicial.

No despacho saneador, foram as partes julgadas legítimas, e verificados todos os demais pressupostos processuais, identificado o objeto do litígio e enunciados os temas da prova.

Realizada a audiência final foi proferida sentença com o seguinte dispositivo;

«Em face do exposto, julga-se parcialmente procedente a presente ação e, em consequência, decide-se:

a) Declarar a Autora AA herdeira legítima de DD, seu pai, sendo a sua herança correspondente à totalidade da herança aberta por óbito da mesma;

b) Declarar que a herança aberta por óbito de DD é composta pelo quinhão hereditário da herança aberta por óbito de EE, a qual é constituído pelo direito indiviso sobre os bens referidos em 9) dos factos provados;

c) Declarar inexistente e de nenhum efeito, na escritura pública de doação de meação e de quinhões hereditários outorgada em 26 de abril de 2019, no Cartório Notarial de ..., a doação do quinhão hereditário da herança aberta por óbito de DD efetuada pelo Réu CC ao Réu BB;

d) Determinar que se proceda à retificação dos registos sobre os bens que compõem o quinhão hereditário em conformidade com o decidido;

e) Absolver os Réus do demais peticionado.

Registe e notifique, inclusivamente as partes.

Custas a cargo da Autora e dos Réus, na proporção dos respetivos decaimentos, que fixam, respetivamente, em 10% e 90%, nos termos do disposto no artigo 527º, nos 1 e 2 do Código de Processo Civil.

Comunique às Conservatórias competentes, com vista a que a aquisição da Autora dos direitos indivisos sobre os bens sujeitos a registo seja incluída no registo, na qualidade de herdeira de DD.

Comunique ao Cartório Notarial onde foi celebrada a escritura de doação de meação e de quinhões hereditários referida em 7) dos factos provados, que foi declarada inexistente e de nenhum efeito a doação do quinhão hereditário da herança aberta por óbito de DD feito pelo Réu CC ao Réu BB (não toda a escritura).»

Inconformado, o réu CC (2º réu) interpôs recurso de apelação.

Por acórdão de 25.01.2024 do Tribunal da Relação de Évora, foi o recurso julgado improcedente e confirmada a sentença.

Ainda inconformado, o Réu CC interpôs recurso de revista, concluindo como segue a sua alegação recursiva:

A. O presente recurso tem como objecto toda a matéria de direito da douta decisão, e determinou julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida, e rejeitando assim o requerimento de interposição do recurso e respectivas alegações do apelante.

B. Considera o apelante, com a devida vénia por entendimento diverso, que o tribunal fez uma interpretação do direito dispersa e sem precisar em concreto os fundamentos probatórios objectivos apresentados pelo apelante aquando das suas impugnações.

C. Entende o apelante que as impugnações por si evocadas e presentes ao recurso ao Tribunal “ad quem” não estavam carecidas de fundamento probatório objectivo, sendo que se impunha a indicação precisa dos meios de prova, que deveriam levar à pretensa modificação dos factos, tal foi evocado pelo recorrente esclarecendo concretamente o porquê do fundamento probatório objectivo, de irem tais factos impugnados.

D. Ora para tanto, veja-se o alegado nas conclusões presentes no recurso interposto pelo apelante do ponto IV ao ponto XIV.

E. Não é, pois, verdade, no entendimento do apelante a ilação que decorre do acórdão recorrido no que tange ao facto de se referir que não se cumpriu tal exigência, ao ali se afirmar que o recorrente apenas se limita a afirmar que determinados pontos da matéria de facto foram mal julgados e que por isso devem constar do elenco dos factos não provados na sentença recorrida.

F. O apelante justificou devidamente a motivação para se efetuar tais impugnações, pelo que não é justo os moldes em que se rejeita as suas alegações de facto e de direito.

G. Aliás, é o próprio Tribunal “a quo” que refere, que relativamente à sua meação e quinhão hereditário da herança aberto por óbito de EE, o Recorrente CC pode dispor da mesma como entender, sem prejuízo de eventuais ofensas da legítima da herança da Recorrida;

H. Não podendo o recorrente concordar e conformar-se com a finalização do ali infirmado (…) “ de que tal só após o seu óbito é que poderá ser apreciado, nos termos do disposto no artigo 2104º do Código Civil,” (…) pois que sempre o mesmo poderá dispor em vida dos seus bens, cfr. dispõe o n.º 1 do art.º 2029.º do CC, legislação que deveria ter sido aplicada, indo essa concreta matéria impugnada por no nosso entendimento se tratar de matéria controversa e mal interpretada pelo Tribunal “a quo”

I. O apelante em momento algum nega o que a Lei estabelece quanto: a) O estabelecimento da filiação tem eficácia nos termos do disposto no artigo 1797º, nº 2, do Código Civil; b) A retroação dos efeitos da filiação significa que todo o conjunto de consequências jurídicas que são previstas por várias normas - e que não se produziram antes - produzem-se agora como se a filiação tivesse sido estabelecida desde o nascimento.

J. Em boa verdade, a questão sobressai de entre o estabelecimento do reconhecimento e estabelecimento da filiação, ou seja, entender que a paternidade presume-se em relação nos casos de filiação fora do casamento, estabelece-se pelo reconhecimento, e não se afere qual o momento para se aplicar tal reconhecimento, apenas que o estabelecimento da filiação tem, todavia, eficácia retroativa.

K. Mas tão somente, coloca-se em causa, se tal filiação deve afetar a aceitação por todos os legítimos sucessíveis das heranças, naqueles concretos momentos, as heranças, ademais com constituição de doações entre si, encontram-se decididamente findos os devidos formalismos sucessórios e não em estado de jacência, ou seja, encontram-se fechados e já definitivamente aceites por quem à data tinha legitimidade para o efeito, de aceitar os negócios jurídicos das referidas heranças.

L. Reitera-se, sempre com a devida vénia que o doador, pai do donatário, era absolutamente livre de determinar, como muito bem lhe aprouvesse, o destino dos bens de que era legítimo proprietário, encaminhando-os para o filho.

M. Pois, que, na realidade não é bem assim que o recorrente fundamenta a sua pretensão, ele impugna a legitimidade da recorrida essencialmente quanto à anulação da doação para que deste modo seja feita a restituição à herança dos aludidos prédios, ao invés o que se afirma e pretende é que se apure, o valor equivalente ao quinhão hereditário que lhe adveio ao pai para ser entregue à recorrida tal valor.

N. Não se poderia nunca o apelante conformar, que o direito da recorrida sobre tais bens devesse ser restituído à herança, nos moldes peticionados por esta, ainda que se considerasse como herdeira legitima e se considerasse herdeira do quinhão hereditário que adveio ao pai, da sua avó que constitui a herança de seu pai.

O. E, não obstante, da doação que se pretende anular, sempre se terá que ter em linha de conta que, esta se baseia numa universalidade de bens, onde eventualmente se integra o quinhão hereditário do pai da apelada, logo como se pode anular um negócio jurídico na sua totalidade quando é consabido que daquele acervo bens existem que a apelada, não se pode arrogar.

P. Aliás, é o próprio Tribunal “a quo” que refere, que relativamente à sua meação e quinhão hereditário da herança aberta por óbito de EE, o Recorrente CC pode dispor da mesma como entender, sem prejuízo de eventuais ofensas da legítima da herança da Recorrida;

Q. Ademais atente-se no facto que o Tribunal “a quo” vem a considerar e ordenar que se declarasse no Cartório Notarial onde foi celebrada a escritura de doação de meação e de quinhões hereditários inexistente realizada a 26/04/2019, mas note-se, ordenou não toda.

R. (…) “ Comunique ao Cartório Notarial onde foi celebrada a escritura de doação de meação e de quinhões hereditários referida em 7) dos factos provados, que foi declarada inexistente e de nenhum efeito a doação do quinhão hereditário da herança aberta por óbito de DD feito pelo Réu CC ao Réu BB (não toda a escritura).” (…)

S. Em momento ulterior, vem o Tribunal “ad quem” a considerar que a doação não é inexistente, mas sim nula. Mas nula em que termos ? Integralmente nula ? Não toda a escritura como refere o Tribunal “a quo” ? Em que parte da aplicação do direito, é que o Tribunal “ad quem” julgou improcedente o recurso interposto pelo apelante ora recorrente ?

T. Logo e consequentemente sempre se deveria ter em conta pelo evocado pelo apelante no recurso para o Tribunal “ad quem”, e seguindo a mesma linha de pensamento, pelo facto da recorrida AA ter sido declarada filha biológica de DD, facto que se viria a constatar só quando foi reconhecida como legitima herdeira a partir da sentença transitada em julgado em 06-05-2021, e independentemente de o estabelecimento da filiação ter, todavia, eficácia retroativa;

U. Tão pouco seria causa para anular qualquer escritura de doação uma vez que segundo dispõe o n.º 2 do art.º 2029.º do CC, legislação que salvo melhor opinião e com o devido respeito, deveria ter sido interpretado e aplicado, no sentido de esta exigir que lhe seja composta em dinheiro a parte correspondente, atento o preceito e da forma como ele versa no segmento: “ Se sobrevier ou se tornar conhecido outro presumido herdeiro legitimário, pode este exigir que lhe seja composta em dinheiro a parte correspondente.”

V. Ou seja, atribuindo um valor ao quinhão hereditário sempre a recorrida é compensada pelo direito a que se arroga, sem ser necessário socorrer-se do peticionando para a nulidade da referida doação, o que desde logo se requer a V. Excelências Colendos Conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça, face ao objeto da referida doação, e da peticionada declaração de nulidade da escritura de doação do sobredito quinhão hereditário e sobretudo face a tudo o acima referido e ao prescrito na nossa legislação substantiva

W. No entendimento do recorrente o disposto no n.º 2 do art.º 2029.º do CC, em bom rigor teria sido a solução adotar, visto que para a recorrida sairia beneficiada com o facto de exigir que lhe seja composta em dinheiro a parte correspondente ao quinhão hereditário deixado pelo pai aquando do seu óbito, face a toda a factualidade que se veio a confirmar na tramitação dos vários processos, por se ter conhecido outro presumido herdeiro legitimário, in casu, ela.

Não foram apresentadas contra alegações.


///


Objecto do recurso.

A revista suscita a apreciação das seguintes questões: i) rejeição pela Relação da impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto; ii) nulidade da escritura de doação.

Fundamentação.

A decisão recorrida assentou no seguinte acervo factual:

1) No dia ... de ... de 2016 faleceu DD, maior, no estado civil de solteiro, sem doação, testamento ou escrito de última vontade (artigo 1º da petição inicial).

2) Em 2016 deu entrada uma ação de investigação de paternidade contra DD, processo que correu termos no juízo de Família e Menores de ..., ... 1, sob o n.º 1097/16.7... (artigo 2º da petição inicial).

3) No âmbito do processo n.º 1097/16.7... referido em 2), no dia ... de ... de 2020, a Autora AA foi declarada filha biológica de DD, tendo sido também condenado CC a reconhecê-la, tendo como consequência sido determinado o averbamento dos registos respeitantes à paternidade e avoenga paterna no respetivo assento de nascimento da Autora, tendo tal sentença transitada em julgado em 06-05-2021 (artigos 3º e 4º da petição inicial).

4) Encontra-se a decorrer no Juízo de competência Genérica de ..., ... 1, um processo de inventário sob o nº 139/22.1..., por óbito do pai da Autora, DD (artigo 5º da petição inicial).

5) A Autora requereu no processo de inventário referido em 4) a cumulação do inventário por óbito da sua avó paterna, EE falecida em ... de ... de 2003, no estado de casada com o Réu CC, no regime da comunhão geral de bens, tendo deixado como herdeiros o cônjuge o referido Réu CC, o seu filho DD já falecido e o seu filho e Réu BB (artigo 6º da petição inicial).

6) Notificado o cabeça de casal, o Réu DD, no processo de inventário referido em 4), o mesmo opôs-se à cumulação por considerar que à data do óbito da sua falecida esposa, a requerente não era herdeira legítima da sua avó paterna (artigo 7º da petição inicial).

7) Foi solicitado pela Autora a suspensão do processo de inventário referido em 4) com vista a intentar ação autónoma para reconhecimento judicial da sua qualidade sucessória na partilha da herança por óbito de seu pai e a restituição de todos os bens, inclusive os doados pelo seu avô ao seu tio, para acervo hereditário, o que foi deferido (artigos 13º e 14º da petição inicial).

8) Por escritura pública outorgada em 26 de abril de 2019, no Cartório Notarial de ..., o Réu CC cedeu, a título gratuito, a BB, “seu único filho e presuntivo herdeiro legitimário, por conta da sua quota disponível, a meação que possui nos bens comuns do património do dissolvido casal e ainda os quinhões hereditários que lhe pertencem nas heranças indivisas aberta por óbito da sua referida mulher, EE e do seu filho DD”, compreendendo as mencionadas heranças três imóveis:

a) prédio urbano sito na freguesia de ..., concelho de ..., inscrito na matriz predial com o artigo 2695º;

b) prédio urbano sito na freguesia de ..., concelho de ..., inscrito na matriz predial com o artigo 6186º, com o valor patrimonial de 100.485,00€ e

c) prédio rústico sito na freguesia de ..., concelho de ..., inscrito na matriz predial com o artigo 54º Secção AS, com o valor patrimonial de € 80,76, tal como resulta de fls. 14-vº a 17, cujo teor se dá por integralmente reproduzido (artigos 8º e 9º da petição inicial).

9) Da herança aberta por óbito de EE fazem parte:

i. direito indiviso sobre o prédio urbano sito na freguesia de ..., concelho de ..., inscrito na matriz predial com o artigo 2695º e omisso na Conservatória do Registo Predial;

ii. Direito indiviso sobre o prédio urbano sito na freguesia de ..., concelho de ..., inscrito na matriz predial com o artigo 6186º, descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ..47/...0...21025, inscrito a favor do Réu CC, pelas Ap. 5 e 6 de 05-01-2000, com o valor patrimonial de 100.485,00€;

iii. Direito indiviso sobre o prédio rústico sito na freguesia de ..., concelho de ..., inscrito na matriz predial com o artigo 54º Secção AS e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob a descrição n.º .92/...9...70921, inscrito a favor do Réu CC pela Ap. 7 de 21-09-1987, com o valor patrimonial de 27,47€;

iv. Direito indiviso sobre o prédio urbano sito na freguesia de ..., omisso na matriz e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob a descrição n.º 493/19870921, inscrito a favor do Réu CC, pela Ap. 7 de ...-...-1987, tal como resulta de fls. 17-vº a 22, 26, 131-v, 132, 152 a 154, 157, 158, cujo teor se dá por integralmente reproduzido (artigos 9º-parte, 10º e 11º da petição inicial).

10) Os prédios referidos em 9) são utlizados pelos Réus e o Réu BB fez obras de valor e conteúdo não concretamente apurado (artigo 12º da petição inicial).

11) O pai da Autora, DD, no momento do seu óbito, apenas deixou como património o seu quinhão na herança não partilhada aberta por óbito da sua mãe EE (artigo 15º da petição inicial).


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Fundamentação de direito.

O Recorrente começa por se insurgir contra o acórdão recorrido por alegadamente ter rejeitado a impugnação da decisão de facto defendendo ter dado integral cumprimento às exigências do art. 640º do CPC.

Mas não lhe assiste qualquer razão.

No ponto XL das conclusões da apelação, o Apelante sustentou que “por não existir nenhuma coincidência entre os factos dados por provados em 5, 6, 7 e 8 dos factos assentes e dados por provados na douta Sentença” aqueles deveriam “estarem inscritos nos factos dados como não provados na sentença recorrida”. (sic).

O acórdão recorrido, depois de uma referência aos ónus que o nº1 do art. 640º do CPC impõe ao recorrente que impugne a matéria de facto, designadamente o de especificar os concretos meios probatórios que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida (b) ponderou o seguinte:

“ (…) quer no corpo das alegações, quer nas conclusões, não diz o recorrente quais os concretos meios de prova que impunham decisão diversa quanto aos pontos 5, 7 e 8, limitando-se a afirmar «não existir nenhuma coincidência entre os factos dados por provados em 5, 6, 7 e 8 dos factos assentes e dados por provados na douta Sentença recorrida vai tal matéria impugnada por mal julgada, devendo esses concretos factos, estarem inscritos nos factos dados como não provados na sentença recorrida».

Ora, a natureza da exigência legal prevista na alínea b) do nº1 do artigo 640º do CPC (enquanto meio que dá suporte ao erro de julgamento da matéria de facto impugnada), que tem por finalidade impedir impugnações carecidas de fundamento probatório objetivo, impõe uma indicação precisa dos meios de prova que deveriam levar à pretensa modificação dos factos concretamente impugnados, pelo que não se compadece com a enunciação genérica e lacónica em termos de reescrutínio indiscriminado e global da factualidade subjacente à causa.

Em suma, a inobservância, por parte do recorrente, dos aludidos ónus determina a imediata rejeição do recurso no tocante à impugnação da matéria de facto, pelo que nenhuma alteração será feita à decisão sobre tal matéria proferida pela 1ª instância.

Sem prejuízo, e porque se trata de questão de manifesta simplicidade, sempre se dirá que a matéria vertida nos pontos 5, 7 e 8, à semelhança do que se disse a respeito do ponto 6, está corretamente julgada e assenta na prova documental junta com a petição inicial, carecendo de total fundamento a impugnação do recorrente.

Com efeito, os factos constantes dos pontos 5 e 7 estão devidamente comprovados pelo já mencionado “Doc. 3” junto com a petição inicial, consubstanciado em despacho judicial, do qual resulta que está a decorrer no Juízo de competência Genérica de ..., Juiz 1, um processo de inventário sob o nº 139/22.1..., por óbito do pai da autora.

A matéria fáctica do ponto 8 tem, por sua vez, o devido respaldo na escritura pública outorgada em 26 de abril de 2019, no Cartório Notarial de ..., a qual constitui o “Doc. 4” junto com a petição inicial.

Assim, ainda que não fosse caso de rejeição da impugnação da matéria de facto – o que não se concede -, sempre teria de concluir-se que, perante a prova produzida, bem andou a Sr.ª Juíza a quo na decisão sobre a matéria de facto, a qual, por isso, sempre permaneceria intacta.”

Subscrevemos inteiramente estas considerações.

Os factos dados como provados em 5, 6 e 7 da matéria de facto supra referem-se às posições assumidas pela Autora/Recorrida e pelo Réu DD no inventário por óbito de DD, pai daquela, inventário referido no ponto 4, referindo-se o ponto 8 à própria escritura de doação. Todos estes factos estão sustentados em prova documental, com força probatória plena que não foi ilidida (cf. art.s 369º, 371º e 372º do CCivil), o que foi determinante para a decisão da Relação como se extrai do excerto transcrito.

Aliás, contraditoriamente com a alegação de que o facto enunciado em 6 deveria transitar para os não provados, a Recorrente na conclusão nºXXXVIII da apelação concorda com o ponto 6 da matéria de facto da sentença dizendo “ Estando bem provado o facto do ponto 6) dos factos dados como provados, porquanto o Recorrente DD, no processo de inventário referido em 4), opôs-se à cumulação por considerar que à data do óbito da sua falecida esposa, a requerente não era herdeira legitima da sua avó paterna.”

Nesta parte improcede a revista, carecendo de total fundamento a imputação feita ao acórdão de ter violado as regras legais na reapreciação da matéria de facto.


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Da nulidade da escritura de doação.

A situação de facto é a seguinte:

- No dia ... de ... de 2016 faleceu DD, solteiro, maior, sem doação, testamento ou escrito de última vontade;

- Por sentença de ... de ... de 2022, proferida na acção de investigação de paternidade nº 1097/16.7... , a Autora AA foi declarada filha biológica de DD;

- Por escritura pública outorgada em 26 de abril de 2019, o Réu CC cedeu, a título gratuito, a BB, “seu único filho e presuntivo herdeiro legitimário, por conta da sua quota disponível, a meação que possui nos bens comuns do património do dissolvido casal e ainda os quinhões hereditários que lhe pertencem nas heranças indivisas aberta por óbito da sua referida mulher, EE e do seu filho DD”, compreendendo as mencionadas heranças três imóveis;.

- A herança do DD, pai da Autora, resume-se ao seu quinhão na herança não partilhada aberta por óbito da sua mãe EE.

Perante o quadro factual apurado, a sentença declarou a Autora herdeira de DD, sendo a “sua herança correspondente a metade da herança daquele”, e declarou inexistente e de nenhum efeito, na escritura outorgada em 26.04.2019, “a doação do quinhão hereditário da herança aberta por óbito de DD efectuada pelo réu CC ao Réu BB.

Para tanto ponderou que:

“Face ao reconhecimento da Autora como filha de DD, o Réu CC deixou de ser herdeiro do filho, pelo que não podia dispor da sua herança (o que aliás o mesmo saberia, uma vez que só cede um quinhão que não existe).

De facto, as normas que estabelecem a sucessão legítima são normas imperativas que apenas podem ser afastadas pelo autor da herança (que, não havendo herdeiros legitimários, pode dispor livremente dos seus bens), não podendo ser afastadas pelas pessoas que façam parte das classes de sucessíveis subsequentes, como sucedeu no caso dos autos, pelo que a doação nessa parte, também teria que ser considerada nula, atento o disposto nos artigos 280º e 294º do Código Civil.

Assim sendo, necessariamente se tem que considerar inexistente, não produzindo nenhum efeito a cedência a título gratuito do Réu CC o Réu BB do quinhão hereditário na herança de DD por não existir qualquer quinhão hereditário da mesma, sendo a mesma um todo que só pode ser atribuída a um herdeiro (o pai ou a filha- artigo 1133º do Código Civil).”

O acórdão recorrido confirmou inteiramente a decisão e respectivos fundamentos, salvo quanto ao vício que afecta a doação da herança aberta por óbito do DD, que considerou ser nulidade e não inexistência, como se extrai do seguinte excerto:

“In casu, o doador, ora recorrente, tinha legitimidade para fazer a doação, reunindo o negócio jurídico os requisitos essenciais para que pudesse ter a inerente eficácia jurídica, sendo que a doação adquiriria essa eficácia se a autora, parte interessada, não reagisse contra o respetivo vício.

Estamos, pois, perante um caso de nulidade e não de inexistência da doação, com a consequente nulidade da mesma na parte atinente ao quinhão hereditário da herança aberta por óbito de DD.”

Verifica-se uma dupla conforme nos termos do nº3 do art. 671º do CPC.

Dispõe a referida disposição que “sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível, não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido, a decisão proferida na 1ª instância, salvo nos casos previstos no artigo seguinte.”

A chamada “dupla conforme”, consagra, como regra geral, a inadmissibilidade de recurso de revista, com excepção das três situações particulares enunciadas no nº1 do artigo 672º.

Como escreve Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, Almedina, 7ª edição, pag. 422 e sgs, “tal solução visou compatibilizar diversos interesses, contrapondo a um generalizado direito de interposição de recurso a necessidade de uma gestão equilibrada dos meios humanos e materiais.

(…) Trata-se de uma regime equilibrado, na medida em que é ponto assente que o direito de acesso aos tribunais não exige necessariamente o triplo grau de jurisdição, tanto assim que o Tribunal Constitucional vem rejeitando alegações de inconstitucionalidades.”

Está consolidado no STJ o entendimento segundo o qual ao considerar a “fundamentação essencialmente diferente” como óbice à verificação da dupla conforme o legislador teve em vista os casos em que a confirmação da sentença pela Relação assenta num quadro normativo absolutamente distinto daquele que foi levado em linha de conta na decisão da 1ª instância. Assim, irrelevam a modificação da decisão de facto efectuada no Tribunal da Relação, as discrepâncias marginais, secundárias, periféricas que não representam um percurso jurídico diverso, ou o mero aditamento de fundamentos que não tenham sido anteriormente considerados. (cf. entre outros, os acórdãos de 15.05.2014, P. 5869/09, de 18.09.2014, P. 630/11, de 09.07.2015, P. 542/13).

Neste último aresto, relator Lopes do Rego, escreveu-se o seguinte:

“Só pode considerar-se existente uma fundamentação essencialmente diferente quando a solução jurídica do pleito prevalecente na Relação tenha assentado, de modo radicalmente ou profundamente inovatório, em normas, interpretações normativas ou institutos jurídicos perfeitamente diversos e autónomos dos que haviam justificado a decisão proferia na sentença apelada – ou seja, quando tal acórdão se estribe decisivamente no inovatório apelo a um enquadramento jurídico perfeitamente diverso e radicalmente diferenciado daquele em que assentara a sentença proferida em 1ª instância – não preenchendo esse conceito normativo o mero reforço argumentativo levado a cabo pela Relação para fundamentar a mesma solução alcançada na sentença apelada.”

Entendimento reiterado, entre outros, nos acórdãos de 17.11.2021, (relator Tibério Silva) P. 712/19, e de 15.02.2018, (relatora Rosa Ribeiro Coelho), P. 28/16, publicados, tal como os anteriormente referidos in www.dgsi.pt.

Neste último, decidiu-se que “para a descaracterização da dupla conforme não releva uma qualquer dissemelhança das fundamentações, a diferença existente entre cada uma delas tem de ser essencial.”

No caso presente, as decisões das instâncias não têm fundamentação essencialmente diferente. A sentença e o acórdão da Relação coincidiram em julgar inválida a doação feita pelo 2º Réu ao 1º Réu do quinhão hereditário da herança aberta por óbito de DD por o mesmo não lhe caber, mas sim à Autora, filha do falecido, atento a eficácia rectroactiva do estabelecimento da filiação, nos termos do disposto no artigo 1797º, nº 2, do CC.

A circunstância de terem divergida quanto à qualificação do vício que afecta o negócio, inexistência para a sentença, nulidade para a Relação não descaracteriza a dupla conforme, ficando assim inviabilizado o conhecimento da revista nesta parte.

Sumário:

Não descaracteriza a dupla conforme (nº3 do art. 671º do CPC), a circunstâncias de as instâncias terem qualidade diversamente o vício da doação, inexistência para a 1ª instância, nulidade para a Relação.

Decisão.

Pelo exposto, nega-se a revista e confirma-se o acórdão recorrido.

Custas pelo Recorrente.

Lisboa, 18.06.2024

Ferreira Lopes (relator)

Nuno Ataíde das Neves (1º Adjunto)

Nuno Pinto Oliveira (2º Adjunto)