Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
44/21.9GBCVD-B.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: CID GERALDO
Descritores: HABEAS CORPUS
PRAZO DA PRISÃO PREVENTIVA
ACUSAÇÃO
FALTA DE NOTIFICAÇÃO
INDEFERIMENTO
Data do Acordão: 02/10/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: HABEAS CORPUS
Decisão: IMPROCEDÊNCIA/NÃO DECRETAMENTO
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :
I - Para a verificação do cumprimento do prazo máximo de prisão preventiva, previsto no art. 215.º, do CPP, é relevante a data de prolação da acusação (ou do despacho de pronúncia, ou da condenação) e não a notificação ao arguido dessa peça processual.
II - Este Supremo Tribunal já tomou posição sobre a questão, defendendo-se no acórdão de 11-10-2005, in CJSTJ 2005, tomo 3, pág. 186, que para o efeito previsto no artigo 215.º do CPP, releva a data da acusação e não a notificação ao arguido dessa peça processual, podendo ver-se neste sentido ainda os acórdãos de 14 e 22 de Março de 2001, in Sumários do Gabinete de Assessores, n.º 49, págs. 62 e 81; de 15-05-2002 e de 11-06-2002, ibid., n.º 61, pág. 84 e n.º 62, pág. 81; de 13-02-2003, processo n.º 599/03-5.ª; de 22-05-2003, processo n.º 2159/03-5.ª; de 18-06-2003, processo n.º 2540/03-3.ª; de 13-11-2003, processo n.º 3943/03-5.ª; de 08-06-2005, processo n.º 2126/05-3.ª; de 19-07-2005, processo n.º 2743/05-3.ª; de 10-05-2007, processo n.º 1689/07-5.ª; de 24-10-2007, processo n.º 3977/07-3.ª; de 12-12-2007, processo n.º 4646/07-3.ª; de 13-02-2008 no processo n.º 522/08 -3.ª; de 10-12-2008, processo n.º 3971/08-3.ª; de 06-01-2010, processo n.º 28/09.5MAPTM-B.S1-3.ª e de 30-12-2010, processo n.º 4/09.8ZCLSB-A.S1-3.ª – Jurisprudência indicada no Acórdão do STJ de 09/02/2011, proc. 25/10.8MAVRS-B.S1, 3ª Secção, Relator: Raul Borges; cfr. também, o recente Ac. do STJ de 04/11/2021, proc. 77/21.5JALSB-C.S1, 5ª Secção, Relator: Helena Moniz.
III - O requerente fundamenta a providência em prisão ilegal, invocando ultrapassagem do prazo estatuído pela al. c) do artigo 222.º do CPP, por não ter sido notificado da acusação, quando o prazo de dedução da mesma precludia, em seu entendimento, no dia 29-01-2021, pelo que a prisão preventiva aplicada ao arguido extinguiu-se em 29-01-2021.
IV - No caso presente, o arguido encontrava-se indiciado (e já acusado), pela prática, em co-autoria material e em concurso efectivo, de 1 (um) crime de tráfico de estupefacientes agravado, p. e p. pelos artigos 21.º, n.º 1 e 24.º, al. c), ambos do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, na redacção dada pela Lei n.º 58/2020, de 31/08 por referência à tabela I -C anexa ao mesmo diploma legal; e de 1 (um) crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelos artigos 2.º, n.º 1, al. m) e av), 3.º, n.ºs 1 e 2, al. e) e 86.º, n.º 1, al. d), todos da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, na redacção dada pela Lei n.º 50/2019, de 24 de Julho.
V - Atendendo à natureza e moldura penal cabível ao crime imputado ao requerente, o prazo de duração máxima da prisão preventiva, sem que tenha sido deduzida acusação, é de seis meses, nos termos do artigo 215.º, n.º 1, al. a) e n.º 2, do CPP.
VI - O referido prazo de seis meses, aqui aplicável face ao crime cuja prática é indiciariamente imputada ao requerente, e considerando que se encontra preso desde 29 de Julho de 2021, terminava em 29 de janeiro de 2022 (como aliás, refere o requerente).
VII - Porém, a peça acusatória foi deduzida em 26 de janeiro de 2022, ou seja, dentro do referido prazo de 6 meses.
VIII - O termo final do prazo referido na al. a) do n.º 1 do artigo 215.º do CPP é a data da dedução da acusação, solução de que não resulta prejudicado o direito de defesa, uma vez que a acusação foi prolatada dentro do prazo máximo previsto, sendo certo que em 31 de janeiro de 2022, foram expedidas as notificações aos arguidos e aos Ilustres Defensores dos arguidos do despacho de acusação, não obstante o requerente tivesse já conhecimento da existência da acusação, como facilmente se pode retirar da leitura do despacho que reexaminou os pressupostos da medida de coação, proferido em 26 de Janeiro de 2022.
IX - O motivo aduzido pelo requerente não cabe no elenco contemplado no artigo 222.º, n.º 2, do CPP, inexistindo, nomeadamente, o fundamento da al. c), nos termos que invoca, pelo que é de indeferir a providência por falta de fundamento bastante - artigo 223.º, n.º 4, al. a), do CPP.
Decisão Texto Integral:


Processo n.º 44/21.9GBCVD-B.S1

Providência de Habeas Corpus

Acordam, precedendo audiência, os juízes do Supremo Tribunal de Justiça:

I. RELATÓRIO

1. O arguido AA, encontrando-se a aguardar julgamento em prisão preventiva, por decisão proferida nos autos em 29 de Julho de 2021, por se considerar fortemente indiciada a prática, em co-autoria material e na forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, previsto e punido pelos artigos 21.º, n.º 1 e 24.º, alínea c), ambos do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, veio ao abrigo do artigo 31.º da CRP e dos artigos 222.º e 223.º do CPP, requerer providencia de Habeas Corpus, em virtude de prisão ilegal, nos termos e com os fundamentos seguintes:

1. Em 29 de Julho de 2021, o arguido AA foi apresentado à Juiz para primeiro interrogatório judicial.

2. Neste interrogatório foi-lhe aplicada a medida de prisão preventiva, que está a cumprir desde o dia 29 de Julho de 2021, primeiro no Estabelecimento Prisional ... e no momento no Estabelecimento Prisional ....

3. O arguido AA recorreu da medida de coação, mas foi julgada improcedente, estando o mesmo indiciado da prática de crime de tráfico de estupefacientes previsto e punido pelo Art. 21.º n.º 1 e tabela l-C anexa ao D.L nº 15/93 DE 22 de Janeiro.

4. Sucede que até à presente data e passados 6 meses ainda não foi deduzida acusação na medida em que ainda de nada foi o mesmo arguido notificado.

5. Ora nos termos do Art. 21.º do CPP n.º 2 a pena de prisão extingue-se, quando desde o seu início tiverem decorrido 6 meses sem que tenha sido deduzida acusação.

6. Sucede que nos presentes autos, conforme mencionado o prazo está claramente ultrapassado.

7. Pelo que a prisão preventiva aplicada ao arguido extinguiu-se em 29-01-2021.

8. Não obstante ainda não foi dada ordem de libertação ao arguido, conforme previsto no Art. 217.º do CPP.

CONCLUSÕES

A- Pelo exposto encontra-se ilegalmente preso nos termos do Art. 222.º n.º 2 alínea c) do CPP, em clara violação com o previsto no Art. 27.º e 28.º n.º 4 do CRP e Art. 215.º n.º 2 e 217.º n.º 1 do CPP.

B- Assim deve ser declarada ilegal a prisão e ordenada a sua imediata libertação, nos termos do Art. 31.º n.º 3 da CRP e dos Art. 222.º e 223.º n.º 4 alínea d) do CPP.

Nestes termos e nos melhores de direito, deve ser declarada a ilegalidade da prisão preventiva e ordenada a libertação imediata do arguido.

*

2. O Ministério Público junto do Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo Local Criminal ..., emitiu parecer nos seguintes termos:

«Em sede de interrogatório judicial, a 29 de Julho de 2021, foi determinada a aplicação da medida de coação de prisão preventiva ao arguido AA, por se considerar fortemente indiciada a prática, em autoria material, de 1 (um) crime de tráfico de estupefacientes agravado, p. e p. pelos artigos 21.º, n.º 1 e 24.º, alínea c), ambos do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro. Tal medida de coação veio a ser revista trimestralmente, decidindo-se pela sua manutenção, tendo havido inclusivamente um recurso para o Tribunal da Relação ... que decidiu igualmente por aquela manutenção.

Por despacho proferido a 26 de Janeiro de 2022, o Ministério Público deduziu acusação contra o arguido, imputando-lhe a prática, em co-autoria material e em concurso efectivo, de 1 (um) crime de tráfico de estupefacientes agravado, p. e p. pelos artigos 21.º, n.º 1 e 24.º, alínea c), ambos do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, na redacção dada pela Lei n.º 58/2020, de 31/08 por referência à tabela I-C anexa ao mesmo diploma legal; e de 1 (um) crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelos artigos 2.º, n.º 1, alíneas m) e av), 3.º, n.ºs 1 e 2, alínea e) e 86.º, n.º 1, alínea d), todos da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, na redacção dada pela Lei n.º 50/2019, de 24 de Julho. Concomitantemente, o Ministério Público, ao abrigo do disposto no artigo 213.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal, promoveu que o arguido continuasse a aguardar os ulteriores trâmites do processo sujeito à medida de coação de prisão preventiva, para além do T.I.R. já prestado (cfr. re...).

Assim, por despacho proferido a 26 de Janeiro de 2022, a Meritíssima Juiz de Instrução Criminal decidiu que deveria o arguido continuar a aguardar os ulteriores termos do processo sujeito, para além da medida de coação de termo de identidade e residência, à medida de coação de prisão preventiva (cfr. re...). Nesse despacho, e conforme expressamente solicitado pelo Ministério Público no despacho de acusação, a Meritíssima Juiz de Instrução Criminal ordenou a remessa dos autos aos serviços do Ministério Público a fim de ser dado cumprimento ao despacho de acusação, o que veio a suceder no dia 28 de Janeiro de 2022, sexta-feira.

Efectivamente o despacho de acusação apenas veio a ser notificado aos arguidos no dia 31 de Janeiro de 2022 (não obstante os arguidos já soubessem da sua existência, como facilmente se depreende da leitura do despacho que reexaminou os pressupostos da medida de coação).

Verifica-se, por isso, que na data da apresentação da petição de habeas corpus já tinha sido deduzida acusação contra o arguido, ora peticionante, antes de terminar o prazo de 6 (seis) meses, contados a partir da data em que ficou em prisão preventiva à ordem destes autos (artigo 215.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Penal).

Ora, ainda que o peticionante não tivesse conhecimento do teor da acusação, por não ter sido dela notificado, tal não releva para efeitos de julgamento da providência de habeas corpus, visto que a notificação da acusação não é fundamento legal daquela petição que, aliás, não delimita a contagem do prazo da prisão preventiva. De facto, para efeitos do disposto no artigo 215.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, do Código de Processo Penal, não é a notificação da acusação que delimita o prazo máximo da prisão preventiva, mas, sim, a dedução ou não de acusação em determinado período temporal (vide, v.g., Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 04.11.2021, processo n.º 77/21.5JALSB-C.S1, 5.ª Secção, disponível em www.dgsi.pt).

Conforme supra se escreveu, a acusação foi deduzida no dia 26 de Janeiro de 2022, cumprindo o prazo de seis meses legalmente previsto. Acresce que o prazo de prisão preventiva que agora está em causa para a extinção da medida coactiva, é de 10 meses até à decisão instrutória, se houver lugar à instrução, e, se não houver lugar à instrução, é de 1 ano e 6 meses até à condenação em 1.ª instância, conforme artigo 215.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Penal.

Por todo o exposto, é nosso entendimento que não se verifica uma situação de prisão ilegal e que a petição de habeas corpus apresentada é manifestamente infundada».

*

3. A Senhora Juiz lavrou despacho, nos termos do disposto no artigo 223.º n.º 1, do CPP, informando o seguinte:

«1) Em sede de Primeiro interrogatório judicial de arguidos detidos, realizado a 29 de julho de 2021, foi determinada a aplicação da medida de coação de prisão preventiva aos arguidos AA e BB, por se considerar fortemente indiciada a prática, em co-autoria material e na forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, previsto e punido pelos artigos 21.º, n.º 1 e 24.º, alínea c), ambos do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro.

2) Os arguidos deram entrada no Estabelecimento Prisional para cumprimento da medida de coação de prisão preventiva em 29 de julho de 2021.

3) Foi interposto recurso desta decisão judicial, ainda não tendo descido à 1.ª Instância. Contudo, da consulta pública na tabela de sessões do portal Citius, surge a informação de que foi negado provimento.

4) Em 20 de outubro de 2021 a medida de coação foi revista, tendo o Tribunal decidido pela sua manutenção.

5) Em 23 de dezembro de 2021 o Tribunal decidiu manter a prisão preventiva, quanto ao arguido BB, indeferindo a requerida alteração da medida de coação.

6) Em 19 de janeiro de 2022 a medida de coação de prisão preventiva foi novamente revista, decidindo o Tribunal pela sua manutenção.

7) Por despacho proferido a 26 de janeiro de 2022, o Ministério Público deduziu acusação contra os arguidos, imputando-lhes a prática, em co-autoria material e em concurso efetivo, de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, p. e p. pelos artigos 21.º, n.º 1 e 24.º, alínea c), ambos do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, na redação dada pela Lei n.º 58/2020, de 31/08 por referência à tabela I-C anexa ao mesmo diploma legal; e de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelos artigos 2.º, n.º 1, alíneas m) e av), 3.º, n.ºs 1 e 2, alínea e) e 86.º, n.º 1, alínea d), todos da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, na redação dada pela Lei n.º 50/2019, de 24 de julho.

8) O Ministério Público, ao abrigo do disposto no artigo 213.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal, promoveu que os arguidos continuassem a aguardar os ulteriores trâmites do processo sujeitos à medida de coação de prisão preventiva, para além do T.I.R. já prestado.

9) Por despacho proferido a 26 de janeiro de 2022, o Tribunal decidiu que deveriam os arguidos continuar a aguardar os ulteriores termos do processo sujeitos, para além da medida de coação de termo de identidade e residência, à medida de coação de prisão preventiva.

10) Nesse despacho, conforme expressamente solicitado pelo Ministério Público no despacho de acusação, foi ordenado a remessa dos autos aos serviços do Ministério Público a fim de ser dado cumprimento ao despacho de acusação.

11) Foram expedidas as notificações aos arguidos e aos Ilustres Defensores dos arguidos, do despacho de acusação, em 31 de janeiro de 2022.

*

Tomada de Posição pelo Tribunal de 1.ª Instância:

Face à factualidade supra enunciada, considero que in casu não se verifica que o arguido se encontre em situação de prisão ilegal, por não se encontrarem preenchidos quaisquer dos pressupostos enunciados nas alíneas a) a c), do n.º 2, do artigo 222.º do Código de Processo Penal, acompanhando aqui a promoção do Ministério Público antecedente.

A medida de coação de prisão preventiva foi sempre revista trimestralmente, nos termos do artigo 213.º n.º 1 alínea a) do Código de Processo Penal.

Foi deduzida acusação em 26 de janeiro de 2022 (dentro assim do prazo máximo de 06 meses previsto no artigo 215.º n.º 1 alínea a) e n.º 2, em conjugação com o artigo 1.º alínea m) do Código de Processo Penal), e foi proferido, na mesma data despacho de reexame, nos termos do artigo 213.º n.º 1 alínea b) do Código de Processo Penal, mantendo a decisão preventiva.

Os prazos máximos de prisão preventiva do artigo 215.º n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Penal não se mostram esgotados, nem foram anteriormente esgotados, estando em causa criminalidade altamente organizada (artigo 1.º alínea m) do Código de Processo Penal).

Acolhe-se aqui a argumentação do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04-11-2021, processo n.º 77/21.5JALSB-C.S1, segundo o qual: «Para a verificação do cumprimento do prazo máximo de prisão preventiva, previsto no art. 215.º, do CPP, é relevante a data de prolação da acusação (ou do despacho de pronúncia, ou da condenação) de modo que não se faça recair sobre os serviços o ónus de cumprimento, pois cabe apenas ao Magistrado Judicial ou ao Ministério Público (consoante a fase processual em que se encontrem os autos) o cumprimento deste prazo» (disponível em www.dgsi.pt).

Está em curso ainda o prazo previsto nas alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 215.º do Código de Processo Penal.

Por conseguinte, entendo não assistir razão ao requerente, considerando que não se verifica uma situação de prisão ilegal e que a petição de habeas corpus apresentada é infundada».

*

4. Notificados o Ministério Público e o Ilustre mandatário do arguido, realizou-se a audiência nos termos dos artigos 223.º, n.º 2 e 424.º, do CPP.

*

II. FUNDAMENTAÇÃO

1. A questão a decidir é a de saber se, no caso presente, estamos perante prisão ilegal, face ao excesso de prazo de prisão preventiva, por o arguido não ter sido notificado da acusação, quando o prazo de dedução da mesma precludia, em seu entendimento, no dia 29-01-2021.

*

2. Compulsados os elementos existentes nestes autos, verificamos que em sede de interrogatório judicial, a 29 de Julho de 2021, foi determinada a aplicação da medida de coação de prisão preventiva ao arguido AA, por se considerar fortemente indiciada a prática, em autoria material, de 1 (um) crime de tráfico de estupefacientes agravado, p. e p. pelos artigos 21.º, n.º 1 e 24.º, alínea c), ambos do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro.

Tal medida de coação veio a ser revista trimestralmente, decidindo-se pela sua manutenção, tendo havido inclusivamente um recurso para o Tribunal da Relação ... que decidiu igualmente por aquela manutenção.

Por despacho proferido a 26 de Janeiro de 2022, o Ministério Público deduziu acusação contra o arguido, imputando-lhe a prática, em co-autoria material e em concurso efectivo, de 1 (um) crime de tráfico de estupefacientes agravado, p. e p. pelos artigos 21.º, n.º 1 e 24.º, alínea c), ambos do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, na redacção dada pela Lei n.º 58/2020, de 31/08 por referência à tabela I-C anexa ao mesmo diploma legal; e de 1 (um) crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelos artigos 2.º, n.º 1, alíneas m) e av), 3.º, n.ºs 1 e 2, alínea e) e 86.º, n.º 1, alínea d), todos da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, na redacção dada pela Lei n.º 50/2019, de 24 de Julho.

Concomitantemente, o Ministério Público, ao abrigo do disposto no artigo 213.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal, promoveu que o arguido continuasse a aguardar os ulteriores trâmites do processo sujeito à medida de coação de prisão preventiva, para além do T.I.R. já prestado (cfr. re...).

Assim, por despacho proferido a 26 de Janeiro de 2022, a Meritíssima Juiz de Instrução Criminal decidiu que deveria o arguido continuar a aguardar os ulteriores termos do processo sujeito, para além da medida de coação de termo de identidade e residência, à medida de coação de prisão preventiva (cfr. re...).

Nesse despacho, e conforme expressamente solicitado pelo Ministério Público no despacho de acusação, a Meritíssima Juiz de Instrução Criminal ordenou a remessa dos autos aos serviços do Ministério Público a fim de ser dado cumprimento ao despacho de acusação, o que veio a suceder no dia 28 de Janeiro de 2022, sexta-feira.

Efectivamente, foram expedidas as notificações aos arguidos e aos Ilustres Defensores dos arguidos, do despacho de acusação, em 31 de janeiro de 2022.

*

3. O requerente fundamenta a providência em prisão ilegal, invocando ultrapassagem do prazo estatuído pela alínea c) do artigo 222.º do Código de Processo Penal, por não ter sido notificado da acusação, quando o prazo de dedução da mesma precludia, em seu entendimento, no dia 29-01-2021, pelo que a prisão preventiva aplicada ao arguido extinguiu-se em 29-01-2021.

Vejamos se a pretensão do requerente se enquadra no disposto na alínea c) do n.º 2 do artigo 222.º do Código de Processo Penal – ilegalidade da prisão por se manter para além do prazo fixado pela lei.

Apreciando:

4. O habeas corpus é um meio, procedimento, de afirmação e garantia do direito à liberdade (arts. 27.º e 31.º, CRP), uma providência expedita e excecional – a decidir no prazo de oito dias em audiência contraditória art. 31.º/3, CRP – para fazer cessar privações da liberdade ilegais, isto é, não fundadas na lei, sendo a ilegalidade da prisão verificável a partir dos factos documentados no processo. Enquanto nas palavras do legislador do Decreto-lei n.º 35 043, de 20 de outubro de 1945, «o habeas corpus é um remédio excepcional para proteger a liberdade individual nos casos em que não haja qualquer outro meio legal de fazer cessar a ofensa ilegítima dessa liberdade», hoje, e mais nitidamente após as alterações de 2007, com o acrescento do n.º 2 ao art. 219.º, CPP, o instituto não deixou de ser um remédio excecional, mas coexiste com os meios judiciais comuns, nomeadamente com o recurso (arts. 219.º/2, 212.º, CPP, no respeitante a medidas de coação).

A jurisprudência deste Supremo Tribunal vai no sentido de “os fundamentos do «habeas corpus» são aqueles que se encontram taxativamente fixados na lei, não podendo esse expediente ser utilizado para a sindicância de outros motivos susceptíveis de pôr em causa a regularidade ou a legalidade da prisão” (Ac. STJ de 19-05-2010, CJ (STJ), 2010, T2, pág.196).

Tem sublinhado a jurisprudência deste Supremo Tribunal que a providência de habeas corpus constitui uma medida expedita perante ofensa grave à liberdade com abuso de poder, sem lei ou contra a lei. Não constitui um recurso sobre actos de um processo através dos quais é ordenada ou mantida a privação da liberdade do arguido, nem um sucedâneo dos recursos admissíveis, que são os meios adequados de impugnação das decisões judiciais. Esta providência não se destina a apreciar erros de direito e a formular juízos de mérito sobre decisões judiciais determinantes de privação da liberdade (Ac. STJ de 20/09/2017, Proc. 82/17.6YFLSB, e jurisprudência aí citada (máxime: por remissão para o Ac. de 4.02.2016, proc. 529/03.9TAAVR-E.S1).

*

Quanto ao pedido de habeas corpus por prisão ilegal, dispõe o art. 222.º:

«1- A qualquer pessoa que se encontrar ilegalmente presa o Supremo Tribunal de Justiça concede, sob petição, a providência de habeas corpus.

2 - A petição é formulada pelo preso ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos, é dirigida, em duplicado, ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, apresentada à autoridade à ordem da qual aquele se mantenha preso e deve fundar-se em ilegalidade da prisão proveniente de:

a) Ter sido efetuada ou ordenada por entidade incompetente;

b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou

c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial».

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Como foi acima referido, o arguido fundamenta a providência em prisão ilegal, invocando ultrapassagem do prazo estatuído pela alínea c) do artigo 222.º do Código de Processo Penal, por não ter sido notificado da acusação.

Porém, não assiste qualquer razão ao requerente.

No caso presente, o arguido encontrava-se indiciado (e já acusado), pela prática, em co-autoria material e em concurso efectivo, de 1 (um) crime de tráfico de estupefacientes agravado, p. e p. pelos artigos 21.º, n.º 1 e 24.º, alínea c), ambos do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, na redacção dada pela Lei n.º 58/2020, de 31/08 por referência à tabela I-C anexa ao mesmo diploma legal; e de 1 (um) crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelos artigos 2.º, n.º 1, alíneas m) e av), 3.º, n.ºs 1 e 2, alínea e) e 86.º, n.º 1, alínea d), todos da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, na redacção dada pela Lei n.º 50/2019, de 24 de Julho.

Atendendo à natureza e moldura penal cabível ao crime imputado ao requerente, o prazo de duração máxima da prisão preventiva, sem que tenha sido deduzida acusação, é de seis meses, nos termos do artigo 215.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, do CPP.

O referido prazo de seis meses, aqui aplicável face ao crime cuja prática é indiciariamente imputada ao requerente, e considerando que se encontra preso desde 29 de Julho de 2021, terminava em 29 de janeiro de 2022 (como aliás, refere o requerente).

Porém, a peça acusatória foi deduzida em 26 de janeiro de 2022, ou seja, dentro do referido prazo de 6 meses.

Acresce referir que, para a verificação do cumprimento do prazo máximo de prisão preventiva, previsto no art. 215.º, do CPP, é relevante a data de prolação da acusação (ou do despacho de pronúncia, ou da condenação) e não a notificação ao arguido dessa peça processual.

Este Supremo Tribunal já tomou posição sobre a questão, defendendo-se no acórdão de 11-10-2005, in CJSTJ 2005, tomo 3, pág. 186, que para o efeito previsto no artigo 215.º do CPP, releva a data da acusação e não a notificação ao arguido dessa peça processual, podendo ver-se neste sentido ainda os acórdãos de 14 e 22 de Março de 2001, in Sumários do Gabinete de Assessores, n.º 49, págs. 62 e 81; de 15-05-2002 e de 11-06-2002, ibid., n.º 61, pág. 84 e n.º 62, pág. 81; de 13-02-2003, processo n.º 599/03-5.ª; de 22-05-2003, processo n.º 2159/03-5.ª; de 18-06-2003, processo n.º 2540/03-3.ª; de 13-11-2003, processo n.º 3943/03-5.ª; de 08-06-2005, processo n.º 2126/05-3.ª; de 19-07-2005, processo n.º 2743/05-3.ª; de 10-05-2007, processo n.º 1689/07-5.ª; de 24-10-2007, processo n.º 3977/07-3.ª; de 12-12-2007, processo n.º 4646/07-3.ª; de 13-02-2008 no processo n.º 522/08 -3.ª, infra mencionado; de 10-12-2008, processo n.º 3971/08-3.ª; de 06-01-2010, processo n.º 28/09.5MAPTM-B.S1-3.ª e de 30-12-2010, processo n.º 4/09.8ZCLSB-A.S1-3.ª, o mesmo se passando com a decisão instrutória, como decidiu o acórdão de 28-06-1989, processo n.º 18/89-3.ª: “ Os prazos de prisão preventiva referidos no art. 215.º, n.º 1, al. b), do CPP contam-se até ao momento em que é proferida a decisão instrutória, e não até ao momento em que ela é notificada” – Jurisprudência indicada no Acórdão do STJ de 09/02/2011, proc. 25/10.8MAVRS-B.S1, 3ª Secção, Relator: Raul Borges; cfr. também, o recente Ac. do STJ de 04/11/2021, proc. 77/21.5JALSB-C.S1, 5ª Secção, Relator: Helena Moniz, referido pela Srª Juiz a quo, no despacho proferido nos termos do disposto no artigo 223.º n.º 1, do CPP.

Em conclusão: o termo final do prazo referido na alínea a) do n.º 1 do artigo 215.º do CPP é a data da dedução da acusação, solução de que não resulta prejudicado o direito de defesa, uma vez que a acusação foi prolatada dentro do prazo máximo previsto, sendo certo que em 31 de janeiro de 2022, foram expedidas as notificações aos arguidos e aos Ilustres Defensores dos arguidos do despacho de acusação, não obstante o requerente tivesse já conhecimento da existência da acusação, como facilmente se pode retirar da leitura do despacho que reexaminou os pressupostos da medida de coação, proferido em 26 de Janeiro de 2022.

O motivo aduzido pelo requerente não cabe no elenco contemplado no artigo 222.º, n.º 2, do CPP, inexistindo, nomeadamente, o fundamento da alínea c), nos termos que invoca.

Por outro lado, na situação presente a prisão do requerente foi ordenada por entidade competente, no caso pelo juiz de instrução criminal com jurisdição na área da Comarca ..., Juízo Local Criminal ..., e com fundamento na existência de indícios da prática pelo arguido de crime que justifica a aplicação da medida de prisão preventiva, por cair na previsão dos artigos 1.º, alínea m) e 202.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal, sendo que o requerente foi sujeito à medida de coacção de prisão preventiva em 29 de Julho de 2021, não estando em causa qualquer excesso de prazo, tendo sido já deduzida acusação, de que o arguido foi já notificado, encontrando-se o processo numa nova fase.

Não se verifica, pois, a ilegalidade da prisão, inexistindo o invocado fundamento da alínea c) do n.º 2 do artigo 222.º do Código de Processo Penal, ou qualquer outro, o que inviabiliza desde logo a providência, por ausência de pressupostos, já que a violação grave do direito à liberdade, fundamento da providência impetrada, há-de necessariamente integrar alguma das alíneas daquele n.º 2 do artigo 222.º do CPP.

Sendo assim, é de indeferir a providência por falta de fundamento bastante - artigo 223.º, n.º 4, alínea a), do Código de Processo Penal.

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III. DECISÃO

Termos em que acordam os Juízes do Supremo Tribunal de Justiça em indeferir o pedido de habeas corpus requerido pelo arguido AA, por falta de fundamento bastante (art. 223.º, n.º 4, al. a) do CPP).

Custas pelo requerente, com 2 UC de taxa de justiça, sem prejuízo de apoio judiciário.

Lisboa, 10.02.2022

Cid Geraldo (Relator)

Eduardo Loureiro (Adjunto)

Helena Moniz (Presidente da Secção)