Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
198/20.1GAOHP.C1.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: CONCEIÇÃO GOMES
Descritores: RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
DECISÃO INSTRUTÓRIA
DESPACHO DE NÃO PRONÚNCIA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
DECISÃO FINAL
OBJETO DO PROCESSO
Data do Acordão: 03/23/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I – Nos termos do disposto no art. 400.º, n.º 1, alínea c), do CPP, não é admissível recurso dos acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações que não conheçam, a final, do objeto do processo.

II - No caso, o recurso interposto pelo assistente para o tribunal da Relação de Coimbra da decisão da 1.ª instância tem por objeto despacho de pronúncia.

III - O acórdão sob recurso é irrecorrível, porquanto não conheceu, a final, do objeto do processo, de harmonia com o disposto no art. 400.º, n.º 1, al. c) do CPP, conjugado com o disposto al. b), do n.º 1, do art. 432.º, do mesmo código.

III - O art. 400.º, n.º 1, al. c), do CPP, estatui que não é admissível recurso de “acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações que não conheçam, a final, do objeto do processo”. E a al. b), do n.º 1, do art. 432.º, do mesmo código, dispõe que se recorre para o Supremo Tribunal de Justiça de “decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do art. 400”.

IV - Assim sendo, o acórdão recorrido, não conheceu do objeto do processo, pelo que não é passível de recurso para o STJ.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 3ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça



I. RELATÓRIO


1.1. AA identificado nos autos, inconformado com o acórdão do Tribunal da Relação ... de 17 de novembro de 2021, que julgou procedente o recurso apresentado pelo arguido BB e, em consequência, revogou o despacho de pronúncia, proferido no âmbito do processo de instrução nº 198/20...., que corre termos no Juízo de Instrução Criminal ..., determinando a não pronúncia do arguido, veio interpor recurso para este Supremo Tribunal de Justiça, que motivou, concluindo nos seguintes termos:

«1. Foi proferida decisão com a qual o Assistente ora Recorrente não se conforma, e que julgou procedente o recurso interposto, considerando não haver suporte probatório sustentado e credível que leve a concluir pela existência de indícios suficientes.

2. O actual Código de Processo Penal, no seu n.º 2 do art.º 283.º considera "suficientes os indícios sempre que deles resultar a possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou medida de segurança".

3. A definição do que deve entender-se por "suficientes indícios" contida neste preceito, bem como no art.º 308.° n°1 do código de Processo Penal, é idêntica à que, no âmbito do Código de Processo Penal de 1929 havia sido colhida pela Jurisprudência e pela Doutrina, que "por indícios suficientes entendem-se vestígios, suspeitas, presunções, sinais, indicações, suficientes e bastantes, para convencer de que há crime e é o arguido responsável por ele”.

4. No decurso da instrução, o Mmo Juiz a quo procedeu a todas as diligências que entendeu necessárias e que, diga-se culminaram com uma análise rigorosa e bem fundada da factualidade apurada nos presentes autos na perspectiva do direito penal.

5. Começamos por consignar que a decisão instrutória se apresenta quer no aspecto técnico, quer material, elaborada de forma exaustiva na avaliação dos indícios justificativos dos argumentos que articula, como na escolha da factualidade pertinente e possível para a decisão, e, por último, na leitura jurídica desses mesmos factos.

6. Logo, quer a selecção das provas indiciárias, quer a apreciação que delas é feita, bem como a respectiva ilação e a sua subsunção jurídica, mostram-se porquanto desmerecedoras de reparo.

7. Antecipamos, pois, que a posição expressa na decisão instrutória é aquela que, indubitavelmente, no presente caso se impõe.

8. Adere-se à decisão de pronúncia pelos mesmos fundamentos, nos mais amplos termos consentidos pelo artigo 425.º n.º 5 do Código de Processo Penal.

9. De facto no recurso da decisão instrutória de pronúncia do que se trata, é precisamente de sindicar o juízo sobre as provas (indiciárias) efectuado pelo juiz de instrução, ou seja, de julgar o texto em confronto com, ou em conjunto com todos os indícios recolhidos na fase instrutória do processo (em sentido amplo de inquérito e instrução), para se decidir sobre a possibilidade de entre o mais existir uma probabilidade grande de condenação futura, exceptuando naturalmente os casos em que inexistam factos que possibilitem sequer, uma pronúncia de um qualquer crime. O actual Código de Processo Penal, no artº 283º, nº 2, considera “suficientes os indícios sempre que deles resultar a possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança”.

10. O despacho de pronúncia terá que ser, assim, devidamente ponderado, pois a simples sujeição de uma pessoa a julgamento, mesmo que venha a ser absolvida, quase sempre lhe acarreta consequências gravosas.

11. E que no presente caso, o despacho de pronúncia assim o foi.

12. Assim, para a suficiência dos indícios não deve bastar uma maior possibilidade de condenação do que de absolvição. Só uma forte ou alta possibilidade pode justificar a dedução da acusação ou a prolação do despacho de pronúncia.

13. Que no presente caso existe, e que bem fundamentada se encontra na decisão de pronúncia.

14. Não apenas por ser esta a solução que melhor se adapta à particular estrutura do processo penal, como também por ser a única que consegue a imprescindível harmonização entre o critério normativo presente no juízo de afirmação da suficiência dos indícios e as exigências do princípio da presunção de inocência do arguido.

15. Por todas estas razões, afirmar a suficiência dos indícios deve pressupor a formação de uma verdadeira convicção de probabilidade de futura condenação.

16. Assim, “in casu” não pode deixar de se concluir pela existência de indícios fortes ou relevantes ou suficientes fortes do estrito ponto de vista jurídico também relativamente a um determinado crime, da prática, pelo arguido do crime pelo qual foi pronunciado, secundando o mesmo, no sentido da não submissão do arguido a julgamento, pois que se afigura prognosticável que, em tal sede, sempre viria a ser absolvido, conforme ali se deixa bem expresso.

17. Para se concluir sobre a sua suficiência ou não com vista à prolação do despacho de pronúncia ou não pronúncia, respectivamente, pelo que a crítica à decisão sobre a existência ou inexistência dos indícios não é admissível pela invocação do vício de erro notório na apreciação da prova tal como no nosso ordenamento jurídico se encontra configurado, conforme anota Vinício Ribeiro, Código de Processo Penal - Notas e Comentários, Coimbra Editora, 2008, pág. 909.

18. E, que este é o entendimento consentâneo com a lei, extrai-se também de a verificação de qualquer dos vícios enunciados no artigo 410º ter como consequência (quando não for possível decidir da causa) o “reenvio do processo para novo julgamento”, nos termos dos artigos 426º e 426º-A, do Código de Processo Penal, o que pressupõe que os vícios tenham derivado de um julgamento anterior e não de diligências realizadas em fase de instrução que culmina numa decisão instrutória que reveste a forma de um despacho.

19. Deveria assim ter improcedido o invocado segmento do recurso.

20. Ora, tendo presente, como ficou referido, que o juízo que se exige em sede de pronúncia - probabilidade séria e razoável de condenação que deve resultar dos factos indiciários - o juízo formulado pelo tribunal a quo, sobre os indícios, foi correcto e criterioso, ponderando judiciosamente as provas produzidas em inquérito e na instrução, e por isso, para além do que ficou dito, o subscrevemos na sua fundamentação, entendendo também haver indiciação suficiente da prática pelo arguido dos factos que lhe eram imputados no despacho de pronúncia.

21. Inexiste pois qualquer fundamento para alterar a decisão recorrida de pronúncia.

22. Deve assim ser proferida decisão que julgue totalmente procedente o presente recurso, devendo manter-se na íntegra o despacho de pronúncia proferido pelo Tribunal de Primeira Instância.

DAS NORMAS VIOLADAS:

1. Artigo 144º, alínea b), primeira parte; 145º, nº. 1, alínea c) e nº. 2, com referência ao artigo 132º, nº. 2, alínea h), todos do Código Penal.

2. Artigo 283.º nº 2 do CPP;

3. Artigo 308.° n°1 do código de Processo Penal,

4. Artigo 425.º n.º 5 do Código de Processo Penal.

5. Artigo 283º, nº 2,

6. Artigo 410º

7. Artigo 426º e 426º-A, do Código de Processo Penal,

Nestes termos, e nos mais em Direito consentidos que vós, Venerandos Juízes Conselheiros, muito doutamente suprireis, se requer seja o presente recurso julgado procedente nos, exactos termos supra expostos.

Para que, pela vossa douta palavra, se cumpra a consueta Justiça».

1.2. No Tribunal da Relação ... o Ministério Público pronunciou-se pela rejeição do recurso, concluindo nos seguintes termos:

«1. O recurso deve ser liminarmente rejeitado, nos termos do art.º 420º.1, al. b), do CPP:

a. quer porque o douto acórdão recorrido não conhece, a final, do objeto do processo;

b. quer porque a matéria que o assistente pretende ver reexaminada é matéria de facto. Sem prescindir,

2. Na eventualidade de se entender conhecer do mérito do recurso, deve o mesmo ser julgado parcialmente procedente, pronunciando-se o arguido pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples.

Vossas Excelências, porém, como sempre, farão a costumada Justiça».

1.3. A Exmª Procurador-Geral Adjunta junto deste Tribunal emitiu Parecer, no sentido que o recurso deve ser rejeitado, nos seguintes termos: (transcrição)

«Questão Prévia - Da admissibilidade do recurso

4 - O recurso interposto pelo assistente AA foi admitido por despacho do Tribunal da Relação ..., com fundamento no “disposto nos artigos 399º, 400º, nº 1, alínea c) “a contrario” ex vi 432º, nº 1, alínea b) e 401º, nº 1, alínea b), 411º e 412º, todos do Código do Processo Penal”.

Afigura-se-nos, todavia, que a decisão recorrida é irrecorrível, por se enquadrar no disposto na al. c), do nº 1, do art. 400, do CPP.

Com efeito, o art. 400, nº 1, al. c), do CPP, estatui que não é admissível recurso de “acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações que não conheçam, a final, do objeto do processo”.

E a al. b), do nº 1, do art. 432, do mesmo código, dispõe que se recorre para o Supremo Tribunal de Justiça de “decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do art. 400”.

Consideramos, tal como o Magistrado do Mº Pº no Tribunal da Relação ... na resposta que apresentou e que acompanhamos, que o despacho de não pronúncia não conhece a final do objeto do processo.

Como refere Pereira Madeira[1], “«Conhecer do objeto do processo», que, em processo penal, é balizado pela acusação e ou pronúncia e a pertinente defesa, é afinal, conhecer do mérito ou fundo da causa, enfim da viabilidade da acusação, com o inevitável desfecho de condenação ou absolvição do arguido, conforme o caso”. “Assim, cairão no âmbito da irrecorribilidade, as decisões colegiais da relação, em recurso, que, pondo, ou não, fim ao processo, fiquem aquém do conhecimento final do objeto da acusação e ou pronúncia”.

Como se refere no acórdão deste Supremo Tribunal de 27/09/2006[2], mas também no de 21/04/2004:

 “… o despacho de não pronuncia não determina o fim da relação substantiva consubstanciada na referida relação jurídica processual.

Na verdade, invocando Germano Marques da Silva, (1) há que dizer que, «em todos os casos de não-pronúncia, o tribunal não conhece do mérito da causa, mas simplesmente da não verificação dos pressupostos necessários para que o processo possa prosseguir ..., [tratando-se] sempre, pois, de uma decisão de conteúdo estritamente processual» (fls. 209). Por outro lado, mesmo no caso de despacho de não pronúncia final (com o sentido de despacho que determina o arquivamento do processo) nada impede que este (o processo arquivado) possa ser reaberto se surgirem novos factos ou elementos de prova que invalidem os fundamentos daquele arquivamento, nos mesmos termos prescritos pelos artigos 277º e 279º do CPP para a reabertura do inquérito arquivado pelo Ministério Público (fls. 213).”

Embora os acórdãos citados sejam anteriores à redação introduzida na norma em questão pela Lei nº 48/2007, de 29 de agosto, a verdade é que este diploma, como refere P. Pinto de Albuquerque[3], amplia o fundamento de irrecorribilidade anteriormente previsto, alargando-o às decisões proferidas em recurso pelas Relações que não conheçam do objecto do processo, ainda que ponham termo à causa.

Em conformidade com o exposto, entendemos que o recurso interposto pelo condenado para este Supremo Tribunal, não é admissível, devendo ser rejeitado nos termos do disposto nos arts 400º, nº 1, al. c) e 432º n.º 1, al. b), do CPP.

A tal não obsta a circunstância de ter sido admitido no Tribunal da Relação,  uma vez que a “decisão que admita o recurso ou que determine o efeito que lhe cabe ou o regime de subida não vincula o tribunal superior”, como estatui o nº 3, do art. 414º, do CPP, o recurso deve ser rejeitado sempre que se verifique causa que devia ter determinado a sua não admissão, nos termos do nº 2, do art. 414º, do CPP, como decorre do nº 1, al. b), do art. 420º, do mesmo código».

1.4. Foi cumprido o art. 417º, do CPP.

1.5. O recorrente ofereceu Resposta mantendo a posição assumida na motivação de recurso, e o recorrido aderiu à posição assumida na Resposta ao recurso pelo Ministério Público, no sentido de que o recurso deve ser rejeitado.

1.6. Com dispensa de vistos foram os autos à Conferência.


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II. FUNDAMENTAÇÃO

1. Resultam dos autos as seguintes ocorrências processuais

1.1. No processo nº 198/20.... que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca .../Juízo de Instrução Criminal .../Juiz ..., na sequência de ter sido proferido despacho de arquivamento pelo Ministério Público, o assistente AA requereu a abertura de instrução, no sentido de ser proferido despacho de pronúncia do arguido BB, a quem imputa a prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 144º, alíneas b), c) e d), 145º, nº. 1, alínea c) e 132º, nºs. 1 e 2, alínea h), todos do Código Penal.

1.2. Aberta e realizada a instrução, após as diligências probatórias, foi realizado o debate instrutório, após o qual, em 27 de maio de 2021, foi proferido despacho de pronúncia do arguido BB, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física grave qualificada, previsto e punido pelo artigo 144º, alínea b), primeira parte; 145º, nº. 1, alínea c) e nº. 2, com referência ao artigo 132º, nº. 2, alínea h), todos do Código Penal.

1.3. Inconformado o arguido BB interpôs do recurso despacho de pronúncia para o Tribunal da Relação ....

1.4. Por acórdão de 17 de novembro de 2021, o Tribunal da Relação ... julgou procedente o recurso do arguido BB e, em consequência, revogou o despacho de pronúncia, determinando a não pronúncia do arguido.


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III. O DIREITO

Questão Prévia:

A Exmª Procuradora Geral Adjunta suscitou a questão prévia da inadmissibilidade do recurso, devendo ser rejeitado nos termos do disposto nos arts. 400º, nº 1, al. c) e 432º n.º 1, al. b), do CPP.


Vejamos:

De harmonia com o disposto no art. 400º, nº 1, alínea c), do Código do Processo Penal, não é admissível recurso dos acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações que não conheçam, a final, do objeto do processo.

A decisão que conhece, a final, do objeto do processo é a que, apreciando uma acusação ou uma pronúncia, profere uma condenação ou uma absolvição.

Ou seja, «do mérito ou fundo da causa, enfim da viabilidade da acusação, com o inevitável desfecho de condenação ou absolvição do arguido, conforme o caso».

Como se afirma no AC do STJ de 10-09-2014, processo nº 223/10.4SMPRT.P1. S1, Relator Sousa Fonte:

«Nos termos do artº 432º, nº 1, alínea b), do CPP, recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça de decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do artº 400º que, por sua vez, na alínea c) do seu nº 1, na versão saída da Reforma de 2007, deixada incólume, neste particular, pelas Reformas e alterações posteriormente introduzidas no mesmo Código pelo DL 34/2008, de 26 de Fevereiro e pelas Leis 52/2008, de 28 de Agosto, 115/2009, de 12 de Outubro, 26/2010, de 30 de Agosto e 20/2013, de 21/2, decreta a irrecorribilidade dos acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que não conheçam, a final, do objeto do processo.

A Lei 48/2007, de 29 de agosto ampliou, é verdade, as situações de irrecorribilidade dos acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações. Como, por exemplo, diz o Acórdão de 31.01.2012, Pº nº 171/05.0TADPL.L2. S1, desta Secção, «o traço distintivo entre a redação atual e a anterior à entrada em vigor da Lei 48/07, de 29-08, reside … na circunstância de anteriormente serem suscetíveis de recurso todas as decisões que pusessem termo à causa, sendo que atualmente só são suscetíveis de recurso as decisões que põem termo à causa quando se pronunciem e conheçam do seu mérito». Ou, como refere o Acórdão do Tribunal Constitucional de 06.03.2012, Pº nº 859/2011, DR. 2ª Série, de 11.04.2012, «… após a reforma de 2007 [o preceito em causa] deixou de enunciar como critério de insindicabilidade dos acórdãos das relações o que assentava no respetivo efeito (não pôr termo ao processo), substituindo-o por um critério objetivo que assenta no respetivo conteúdo decisório (não conhecer, a final, do objeto do processo)». (…)

«São assim irrecorríveis, desde então, todas as decisões da relação que, «pondo, ou não, fim ao processo, fiquem aquém do conhecimento final do objeto da acusação e ou da pronúncia» (cfr. A., ob. e loc. cit.), trate-se ou não de decisões interlocutórias e independentemente da forma como o respetivo recurso é aí processado e julgado, isto é, quer se trate de um recurso autónomo quer se trate de impugnação inserida no recurso da decisão final que conheça do objeto do processo.

A circunstância de a decisão sobre determinada questão interlocutória não ter sido objeto de recurso autónomo, mas, antes, englobada no recurso interposto da sentença/acórdão não lhe confere recorribilidade a reboque de as restantes, ou algumas das restantes, poderem ser objeto de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça. Em suma, tal circunstância não tem a virtualidade de alterar o regime daquela alínea c), já que a lei não estabelece aí qualquer distinção, determinando a irrecorribilidade, tout court, de todas as decisões proferidas em recurso, pelas relações, que não conheçam, a final, do objeto do processo.

Este entendimento, além de respeitar a garantia constitucional do duplo grau de jurisdição – como no caso foi efetivamente respeitada, porque exercida –, está em perfeita consonância com o regime traçado pela Reforma de 1998 e prosseguido pela de 2007 para os recursos para o Supremo Tribunal de Justiça as quais quiseram obstar, de forma clara, ao segundo grau de recurso, terceiro grau de jurisdição, relativo a questões interlocutórias ou que não tenham conhecido, a final, do objeto do processo, sendo certo, por outro lado, que a situação não tem qualquer paralelo com a prevista na alínea e) do artº 432º do CPP – solução diversa, esta sim, imposta indiscutivelmente pela referida imposição constitucional.

Neste sentido, decidiram, entre outros, os Acórdãos de 20.12.06, Pº 3043/06-3ª; de 14.11.2007, Pº 3750/07-3ª; de 10.07.2008, Pº 2142/08-3ª; de 10.09.2008, Pº 1959/08-3ª; de 25.09.2008, Pº 809/08-5ª; de 13.10.2010, Pº nº 200/06.0JAAVR.C1.S1-3º; de 09.06.2011, Pº nº 4095/07.8TPPRT.P1.S1; de 22.02.2012, Pº nº 1239/03.2GCALM.L1.S1-3ª; de 18.04.2012, Pº nº 660/10.4TDPRT.P1.S1-3ª; de 12.09.2012, Pº nº 269/08.2JABNV.L1.S1; de 05.12.2012, Pº nº 704/10.0PVLSB.L1.S1».


No caso subjudice, o recurso interposto pelo assistente para o Tribunal da Relação ... da decisão da 1ª Instância tem por objeto o despacho de pronúncia do arguido BB, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física grave qualificada, previsto e punido pelo artigo 144º, alínea b), primeira parte; 145º, nº. 1, alínea c) e nº. 2, com referência ao artigo 132º, nº. 2, alínea h), todos do Código Penal, proferido pelo Juízo de Instrução Criminal ... em 27 de maio de 2021.

Como bem refere a Exmª Procuradora-Geral Adjunta, citando Pereira Madeira, in Código de Processo Penal Comentado, 3ª edição revista, Almedina, 2021, pg. 1228., bem como o AC do STJ de 14-09-2016, proc.11744/13.7TDPRT.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt, «Conhecer do objeto do processo», que, em processo penal, é balizado pela acusação e ou pronúncia e a pertinente defesa, é afinal, conhecer do mérito ou fundo da causa, enfim da viabilidade da acusação, com o inevitável desfecho de condenação ou absolvição do arguido, conforme o caso”. “Assim, cairão no âmbito da irrecorribilidade, as decisões colegiais da relação, em recurso, que, pondo, ou não, fim ao processo, fiquem aquém do conhecimento final do objeto da acusação e ou pronúncia».

Como se refere no acórdão deste Supremo Tribunal de 27/09/2006[4], mas também no de 21/04/2004:

 “… o despacho de não pronuncia não determina o fim da relação substantiva consubstanciada na referida relação jurídica processual».


Do exposto se conclui, que o acórdão sob recurso é irrecorrível, porquanto não conheceu, a final, do objeto do processo, de harmonia com o disposto no art. 400º, nº 1, al. c) do CPP, conjugado com o disposto al. b), do nº 1, do art. 432, do mesmo código.

O art. 400, nº 1, al. c), do CPP, estatui que não é admissível recurso de “acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações que não conheçam, a final, do objeto do processo”.  E a al. b), do nº 1, do art. 432, do mesmo código, dispõe que se recorre para o Supremo Tribunal de Justiça de “decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do art. 400”.

Assim sendo, o acórdão recorrido, não conheceu do objeto do processo, pelo que não é passível de recurso para este Supremo Tribunal.

Não sendo admissível, o recurso interposto terá de ser rejeitado – arts. 432º, nº 1-b), 400º, nº 1-c), 414º, nº 2 e 420º, nº 1-b), todos do CPP, pois, o facto de ter sido admitido, não vincula o Supremo Tribunal de Justiça (art. 414º, nº 3 do CPP).



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IV. DECISÃO:

Termos em que acordam os juízes que compõem a 3ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em rejeitar o recurso, por inadmissibilidade legal.

Custas pela recorrente, fixando a taxa de justiça em 6 (seis UC’s) e ao abrigo do disposto no art. 420º, nº 3, do CPP, vai condenado no pagamento da importância de 4 (quatro) UC’s.

Processado em computador e revisto pela relatora (art. 94º, nº 2, do CPP).


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Lisboa, 23 de fevereiro de 2022


Maria da Conceição Simão Gomes (relatora)

Nuno Gonçalves

Pires da Graça (Presidente da Secção)

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[1] Código de Processo Penal Comentado, 3ª edição revista, Almedina, 2021, pg. 1228. Neste sentido, também o Ac. do Stj de 14-09-2016, proc.11744/13.7TDPRT.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt.
[2] Proc. 6P2798 e 04P263, respectivamente, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.
[3] Comentário do Código de Processo Penal, anotação ao art. 400, ed. Universidade Católica.
[4] Proc. 6P2798 e 04P263, respetivamente, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.