Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
5577/18.1T8LSB.L2.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: MANUEL CAPELO
Descritores: ADMINISTRAÇÃO DOS BENS DOS CÔNJUGES
BENS COMUNS
BENS PRÓPRIOS
PRESTAÇÃO DE CONTAS
DIVÓRCIO
SEPARAÇÃO JUDICIAL DE PESSOAS E BENS
RETROATIVIDADE
FACTO ILÍCITO
DIREITO À INDEMNIZAÇÃO
PARTILHA DOS BENS DO CASAL
Data do Acordão: 04/08/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
1 - Nos termos do art. 1681 nº 1 do CCivil, o cônjuge administrador só tem de prestar contas da administração que realize dos bens comuns ou próprios do outro cônjuge, depois de dissolvido o casamento ou da separação de pessoas e bens.

a) - Nascendo a obrigação de prestação de contas a partir do decretamento do divórcio ou da separação judicial de pessoas e bens, a mesma retroage os seus efeitos à data da entrada em juízo do requerimento apresentado nesse mesmo processo, conforme resulta do disposto no artigo 1795º-A do Código Civil, que remete para o artigo 1789 do CCivil.

b) - A acção de responsabilidade civil por facto ilícito doloso prevista no art. 1681 nº 1 parte final, pode ser intentada a todo o tempo sem as restrições temporais referentes à prestação de contas e a sua propositura não é impedida pela circunstância de a eventual prática dolosa incidir sobre bens comuns que também pertençam à lesante.

c) - Sentindo-se prejudicado pela gestão intencionalmente danosa do cônjuge administrador, o não administrador é através dessa acção do art. 1681 nº 1 parte final do CCivil que poderá obter a fixação do seu direito à indemnização cujo pagamento será considerado em sede de partilhas nos termos do art. 1689 do CCivil. .

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


 

Relatório

AA intentou ação declarativa de condenação com processo comum contra BB, pedindo a condenação desta a pagar-lhe, a título de indemnização, por responsabilidade civil extracontratual a quantia de € 99.000,00.

Foi proferida sentença que julgando a ação improcedente, absolveu a ré do pedido contra si formulado.

Inconformado, veio o autor apelar da sentença.

 O Tribunal da Relação julgou improcedente as conclusões do recurso de apelação e confirmou “a decisão proferida pelo tribunal a quo, embora por outros fundamentos.”, tendo o acórdão sido tirado por maioria com voto de vencido.

Inconformado com esta decisão dela interpõe revista o autor concluindo que:

 “Através da presente acção visa o ora recorrente obter a condenação da aqui recorrida (sua mulher à data da instauração do processo, mas com divórcio litigioso pendente) a indemnizá-lo pelos danos que lhe causou ao ceder chapéus (que faziam parte do património conjugal e que tinham sido judicialmente arrolados) a uma sociedade dos filhos dela – a “G...... Métrico, Lda.”, então recém constituída – que possuía estabelecimento na Rua …, em ……, a escassos metros daquele onde o A. exerce a sua actividade de chapeleiro;

b) A conduta da Ré teve por consequência a diminuição das vendas do A., realidade reconhecida no, aliás douto, acórdão recorrido que acrescentou esse facto,

c) Os efeitos do divórcio quanto às relações patrimoniais entre os cônjuges retrotraem à data da propositura da acção, por força do disposto no art. 1789º., nº. 1, do Código Civil;

d) A partir da data da instauração do divórcio, e por força da norma citada na conclusão c) supra, deixa de ser aplicável às relações patrimoniais entre os cônjuges o regime especial de responsabilidade previsto no nº. 1 do art. 1681º. do Código Civil, vigorando antes o regime geral da responsabilidade previsto no art. 483º. Do mesmo Código, que dispensa o dolo que aquele exige, bastando-se com a mera culpa;

e) No caso dos autos configura-se mesmo uma situação de dolo eventual, porquanto, a ora recorrida, ao ceder chapéus para o concorrente mais directo do A., não pode ter deixado de prever que essa cessão lhe causaria prejuízos decorrentes das vendas que deixasse de fazer;

f) O acto ilícito da ora recorrida foi a venda dos chapéus integrados no património comum de que o recorrente é um dos titulares, para serem revendidos por um concorrente (de que são únicos sócios os filhos dela) cujo estabelecimento se situa a escassos metros do do A.;

g) Estando provado, no facto do ponto 19, que a conduta da recorrida causou uma redução nas vendas do A., tem de dar-se por verificada a existência do dano e do nexo de causalidade;

h) Reunidos os pressupostos da verificação da responsabilidade civil, a acção deveria ter sido julgada procedente, pelo menos, pela Veneranda Relação … que aditou o facto de que emergem a verificação do dano e o nexo de causalidade entre este e a conduta da Ré;

i) O, aliás douto, acórdão recorrido procedeu a errada interpretação e aplicação dos arts. 1789º., nº. 1, 1681º., nº. 1, 483º., 487º. e 563º., todos do Código Civil.

Conclui pedindo a revogação da decisão recorrida”

 Nas contra alegações a ré defende a confirmação da decisão recorrida.

Colhidos os vistos cumpre decidir.

… …

 Fundamentação

O tribunal deu como provada a seguinte matéria de facto:

1. A. e R. contraíram casamento no dia 11 de setembro de 2010; Cfr. doc. de fls.15;

2. Aquele casamento foi celebrado sob o regime de comunhão de adquiridos; Cfr. doc. de fls.15 v.;

3. A e R. separaram-se em 26 de março de 2017; (acordo das partes)

4. Por decisão de 9.10.2017, foi ordenado o arrolamento dos bens comuns do casal, tendo sido nomeada fiel depositária a Ré; Cfr. doc. de fls.85 e ss;

5. Os bens arrolados são os constantes dos autos de arrolamento juntos a fls.23 e ss.;

6. No dia 7 de novembro de 2017 foi efetivado o arrolamento das mercadorias existentes na loja nº … do Centro Comercial …. e na loja da Rua …; Cfr. docs. de fls.23 e ss;

7. Em 10 de Novembro de 2017, o A. intentou ação de divórcio sem consentimento do outro cônjuge contra a aqui Ré; Cfr. fls.45 v.;

8. Com data de 27.11.2017, foi expedida carta para citação da Ré tendo sido recebida no destino no dia seguinte; Cfr. fls.45 v. e 46 e acordo das partes;

9. O A. dedicava-se à atividade de fabrico e comercialização de chapéus, atividade desenvolvida em nome individual que gira sob o nome “A.…”; Cfr. fls.68 e ss;

10. Até à separação do casal ambos A. e R. colaboraram nesta atividade comercial; (acordo)

11. Após a separação do casal, o A. ficou a explorar a loja da Rua da …. e a Ré as outras duas onde o negócio era desenvolvido, sitas na Rua …. e na Av. … em …; (acordo)

12. A sociedade “G.…. Métrica, Lda.” foi constituída em 13.12.2017 e tem como sócios, CC e DD; Cfr. fls.46 e 47;

13. A sociedade referida tem sede na Rua ….., em …. e o seu objeto é a exploração comercial e industrial de chapelaria e artigos correlativos; Cfr. fls.46/47;

14. Na morada referida em 13, encontram-se expostos e à venda chapéus com a marca “A.......”; (acordo)

15. O A. comercializa chapéus com a marca “A.......” na Rua …., em …. tendo até à separação ocorrida entre si e a Ré, ambos colaborado nessa atividade comercial; (acordo)

16. A Ré vendeu mercadoria (chapéus) com a marca “A.......” à sociedade “G....... Métrico”; (acordo)

17. Tal mercadoria foi comercializada no estabelecimento sito a metros do estabelecimento sito na Rua …. explorado pelo A.; (acordo)

18. No estabelecimento referido em 13, comercializam-se para além dos produtos cedidos pela R., outros produtos.

19. O referido em 14 e 17 causou uma redução nas vendas do A....”

… …

Foram considerados não provados os seguintes factos:

“1. No concelho de …. jamais foram vendidos chapéus com a marca “A.......” fora das três lojas referidas em 11;

2. A imagem do produto fica banalizada por estar a ser comercializado no estabelecimento referido em 15;”

… …

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das Recorrentes, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso, conforme prevenido nos arts. 635º n.º 4 e 639º n.º 1, ex vi, art.º 679º, todos do Código de Processo Civil.

  O conhecimento das questões a resolver, delimitadas pelas alegações, importa em apreciar se a decisão recorrida deve ser revogada e substituída por outra que reconheça que a ré incorreu em responsabilidade civil extracontratual e deve indemnizar o autor.

... …

A estrutura da acção, configurada pelo autor na petição, revela que este pretende obter da ré uma indemnização, decorrente da responsabilidade civil por facto ilícito consistente em a demandada, depois da separação do demandante, enquanto casados, ter procedido à cedência mercadoria - chapéus - que eram património comum, existente numa loja do casal, a outra loja situada na mesma rua pertencente a terceiros.

Tendo as instâncias fixado a matéria de facto como provada, retiramos dessa factualidade que autor e ré eram casados desde 11 de Setembro de 2010, sob o regime da comunal de adquiridos, separaram-se em 26 de Março de 2017 tendo sido intentada acção de divórcio em 10 de Novembro de 2017.

Na sequência da separação foi ordenado o arrolamento dos bens comuns do casal e, mais concretamente, em 7 de novembro de 2017 arrolada a mercadoria existente na loja nº … do Centro Comercial …. e na loja da Rua …...

Até à separação do casal o A. dedicava-se à atividade de fabrico e comercialização de chapéus, atividade desenvolvida em nome individual que gira sob o nome “A.…” e ambos colaboraram nesta atividade comercial.

Após a separação o autor ficou a explorar a loja da Rua da …. e a ré as outras duas onde o negócio era também desenvolvido, na Rua ….. e na Av. ….. em …., tendo a ré vendido mercadoria (chapéus) com a marca “A.......” à sociedade “G....... Métrico” que comercializou essa mercadoria no seu estabelecimento situado a metros daquele outro na Rua …. que é explorado pelo autor, causando a este uma redução nas vendas.

Organizada a matéria de facto nesta narrativa, as instâncias analisaram a venda da mercadoria por parte da ré no sentido de apurarem se esse acto constituía a prática de um ilícito gerador da obrigação de indemnizar, mais concretamente, se a ré praticou intencionalmente esse acto de venda em prejuízo do casal, uma vez que os bens vendidos pertenciam ao património comum.

Dispõe o art. 1681 nº 1 do CCivil que “O cônjuge que administrar bens comuns ou próprios do outro cônjuge, ao abrigo do disposto nas alíneas a) a f) do nº 2 do art. 1678, não é obrigado a prestar contas da sua administração, mas responde pelos atos intencionalmente praticados em prejuízo do casal ou do outro cônjuge – art. 1681º, nº 1, do CCivil.”

Este preceito, que firma o princípio da irresponsabilidade do cônjuge administrador - vd. Cristina Dias, Breves notas sobre a responsabilidade civil dos cônjuges entre si: O novo regime do art. 1792º do Código Civil, Estudos dedicados ao Professor Doutor Carvalho Fernandes, Revista Direito e Justiça, Universidade Católica Portuguesa, volume I, 2011, p. 407 – distingue o  exercício de administração do cônjuge que administrar bens comuns ou próprios do outro, conferindo-lhe um regime especial, dos restantes administradores de bens alheios. E essa diferença traduz-se em só ser exigível a prestação de contas da administração dos bens do casal depois de dissolvido o casamento ou da separação de pessoas e bens, e só em relação ao tempo posterior ao divórcio ou declaração de separação. Terminando o casamento com o divórcio e retroagindo os efeitos patrimoniais deste à data da propositura da ação de divórcio (art. 1789º, nº 1 do CCivil), o cônjuge não administrador poderá exigir do outro, administrador de facto ou de direito, a prestação de contas desde a propositura da ação - cfr. Cristina Dias, op. loc. cit. E a salvaguarda de segurança deste regime de não prestação de contas antes de dissolvido o casamento, encontra-se inscrita no próprio art. 1681 nº 1 quando admite que o cônjuge administrador responda pelos prejuízos resultantes de actos intencionalmente praticados em prejuízo do casal ou do outro cônjuge.

Registe-se que esta responsabilidade do cônjuge administrador é conformada legalmente com a exigência de a actuação ser culposa, na modalidade de dolo – cfr. ac. STJ de 22-2-2011 proc. 1561/07. 9TBLRA.C.1.S.1, in dgsi.p – o que é explicado por “só nos casos mais nítidos e descabelados de actuação prejudicial do cônjuge administrador, se deve conceder ao lesado o direito a indemnização (…) que não quanto às puras abstenções ou omissões.” - Pires de Lima e Antunes Varela “Código Civil Anotado”, IV, 3.ª ed., 296. O cônjuge administrador não tem de prestar contas da sua administração, sendo irresponsável pelas consequências de uma administração negligente, relapsa ou desastrosa ainda que isso redunde em prejuízo do casal e do outro cônjuge, constituindo uma limitação “às regras gerais da responsabilidade civil em nome do interesse superior da paz conjugal e da harmonia familiar (…).” - cfr. Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, in “Curso de Direito da Família”, I, 4.ª ed., 377-  não podendo os actos meramente culposos fundamentar pedidos de indemnização. Só os  actos positivos praticados com dolo cabem na previsão do art. 1681 nº 1 do CCivil, podendo essa actuação do cônjuge administrador dirigir-se que ao património próprio do outro cônjuge, quer ao património comum, que neste caso também é do lesante.

O princípio instituído na primeira parte do n.º 1 do artigo 1681, ao excepcionar uma regra geral por razões que se prendem com a estabilidade e harmonia conjugais, revela, mesmo com cautelas de admissão quanto ao que deva considerar-se acção dolosa, que “a exigência de prestação de contas de um dos cônjuges ao outro, estaria em desarmonia com o sentimento de recíproca confiança que entre eles deve existir, podendo ser, até, que tal exigência viesse a motivar dissensões entre os cônjuges, com grave reflexo no ambiente familiar.” – Cons. Rodrigues Bastos, in “Notas ao Código Civil”, VI, 1998, p. 122; e no mesmo sentido o Prof. Antunes Varela – RLJ, 115.º-126 e “Direito Matrimonial” I, 1993, 382 e Ângela Cerdeira, in “Da Responsabilidade Civil dos Cônjuges Entre Si”, 2000, p. 122 e nota 285, a citar o Prof. Braga da Cruz, “Capacidade patrimonial dos cônjuges” – BMJ, 69-367.

Em sentido igual se pronuncia Antunes Varela - Direito da Família, 1º vol. 4ª ed., p. 382 – acrescentando, esclarecidamente, que a justificação para a excepcionalidade do art. 1681 nº1, quanto à não responsabilidade de prestação de contas, se mantém mesmo que a harmonia e estabilidade familiar estejam definitivamente comprometidas porque, depois de instalado o conflito conjugal mas antes de proposta a acção de divórcio ou separação, a exigência, em pleno curso das hostilidades, de prestação de contas da administração só contribuiria para agravar o conflito, valor negativo este que, por contrário aos subjacentes à instituição familiar, a ordem jurídica não pode acolher.

Em síntese, nascendo a obrigação de prestação de contas a partir do decretamento do divórcio ou da separação judicial de pessoas e bens, a mesma retroage os seus efeitos à data da entrada em juízo do requerimento apresentado nesse mesmo processo, conforme resulta do disposto no artigo 1795º-A do Código Civil, que remete para o artigo 1789º, nº 1, do mesmo diploma legal -  vd. Ac. STJ 11-4-2019 no proc. 3185/12.0YXLSB-F.L1.S1. in dgsi.pt. Todavia, enquanto subsistir o vínculo conjugal, o mesmo é dizer, enquanto o casamento não for dissolvido, a administração de bens comuns por um dos cônjuges não legitima ao outro a exigência de prestação de contas de tal administração. Só poderá ser exigida a prestação de contas se o divórcio vier a ser decretado e, neste caso, as contas a prestar são apenas as referentes ao período posterior à data da propositura da acção, não abrangendo o período da vida em comum do casal.

Compreendida a função da prestação de contas no exercício da administração dos bens do casal, fazemos incidir a atenção na parte final do art. 1681 nº 1 do CCivil no que se refere à responsabilidade que se invoque contra o cônjuge administrador de bens comuns ou próprios do outro, e que envolva uma actuação intencional em prejuízo do casal ou do outro cônjuge.

A decisão recorrida, com base na lição Pereira e Coelho e Guilherme de Oliveira - Curso de Direito da Família, volume I, 3ª edição, p. 420 – sublinhou ser necessário decidir se o crédito de indemnização é próprio ou comum, uma vez que sendo comum, como no caso em decisão, pode entender-se que o crédito integral pertence ao património comum, ou, em diverso, que o crédito corresponde apenas a metade do dano e pertence ao cônjuge meeiro que se achou prejudicado. Esta distinção confronta a qualidade do cônjuge não administrador como defensor da comunhão e protector do património comum com a singularidade de, neste caso, o cônjuge lesado pagaria a indemnização a que está obrigado como prejuízo total e mesmo no que diz respeito à sua metade no património comum – veja-se a análise realizada por Pereira Coelho e Guilherme Oliveira, op. loc. cit. Diferentemente, se se aceitasse que o cônjuge credor pode considerar o crédito (correspondente à sua metade do dano) como um bem próprio, não teria sentido considerar este crédito (de metade do dano) como um valor comum, sujeito a partilha.

Apresentada a situação e sabendo-se que no caso em decisão o dano invocado é um dano em bens comuns, porque o acto causador de prejuízo se diz ocorrido na administração de bens comuns, foi aceite na decisão recorrida como razoável que tal prejuízo só poderá computar-se após o fim do casamento de modo a restabelecer o valor total do património comum. A eventual estranheza de o lesante ser condenado numa indemnização relativamente aos bens comuns, que entraria como crédito nesse património que também lhe pertence, poderia então ser compreendida tendo presente que, a administração que provoque intencionalmente prejuízo é dirigida aos bens que também lhe pertencem (ao lesante) e não àqueles que são próprios do outro cônjuge.

Apreciando este raciocínio, uma primeira evidência é a de, não obstante o autor se posicionar na acção como titular de interesses patrimoniais distintos e diferenciados da ré, presumindo e antecipando a partir da separação uma divisão de patrimónios, a verdade é que o faz prematuramente porque a ofensa que invoca, como causa de indemnização, não compreende um crédito correspondente ao seu próprio e exclusivo património material e não material ou moral, mas sim aos bens de que é ainda titular com a ré. O dano, a verificar-se e a ser indemnizável, é um dano em bens comuns e o crédito pertence ao património comum do casal, cujo valor total só nas partilhas pode ser apurado. Veja-se que são distintas as responsabilidades previstas nos nos.1 dos arts.1681 e 1792 do CCivil revelando este último o direito de o cônjuge lesado pedir a reparação dos danos causados pelo outro cônjuge, nos termos gerais da responsabilidade civil, com incidência naquilo que a lei anterior inscrevia na “violação culposa dos deveres conjugais que deixaram de constituir um dos fundamentos da acção de divórcio autónoma, para passar apenas a representar uma causa de pedir da acção de responsabilidade civil, destinada ao ressarcimento do cônjuge lesado, nos termos do disposto pelo artigo 1792º, nº 1, do CC – cfr. ac. STJ de de 9 de Fevereiro de 2012, no proc. n.º 819/09.7TMPRT.P1.S1 e de 17.09.2013 no proc. n.º 5036/11.3TBVNG.P1.S. Por sua vez, como deixámos referido a responsabilidade do art. 1681 nº1 tem diversa previsão porque situa a actuação ofensiva no exercício da administração dos bens. 

No âmbito da definição desta responsabilidade, a decisão recorrida concluiu que, por ter sido o património comum do casal administrado pela ré, tendo tal património sido também beneficiado pelas vendas de mercadoria que a demandada realizou à sociedade terceira, “ só após a dissolução do casamento quando o cônjuge não administrador exigir do outro, administrador de facto ou de direito, a prestação de contas desde a propositura da ação de divórcio, é que se poderá apurar se essas vendas se traduziram em prejuízos para o património comum do casal.  No caso de se apurar, em processo de prestação de contas, que os atos praticados se traduziram em prejuízos para o património comum do casal, então, em ação intentada pelo cônjuge não administrador, é que se poderá averiguar se foram, ou não, intencionalmente praticados em prejuízo o património comum do casal. Até lá, não havendo prestação de contas por parte da apelada quanto à administração do património comum do casal, não se poderá saber se os atos foram intencionalmente praticados em prejuízo do casal.”

Este raciocínio conduziu o tribunal recorrido a concluir que, em qualquer caso, a presente acção não poderia reconhecer o direito reclamado pelo autor, mesmo que nela se demonstrasse que a ré na sua administração praticou intencionalmente actos em prejuízo do casal, porque, primeiro, se teria de apurar em prestação de contas que os actos se traduziram em prejuízo e, só após, intentar uma acção para averiguar a ilicitude a culpa e os restantes pressupostos da responsabilidade imputada. O que é dizer que, primeiro, seria na prestação de contas que se apreciariam eventuais prejuízos, os danos, para a partir daí se ir discutir em acção autónoma os outros pressupostos da responsabilidade civil.

Julgamos não ser assim.

A acção proposta é configurada como de responsabilidade civil por facto ilícito, a partir da indicação da própria previsão do art. 1681 nº 1 do CCivil que consagra o direito de o cônjuge não administrador fazer responder aquele que administra, por actos intencionalmente praticados em prejuízo do casal (ou do outro cônjuge o que não é o segmento da acção). Resulta da literalidade e do sentido antes apurado do texto legal que o lesado, mesmo que o seja de um património comum, pode intentar a acção a partir do momento em que verificar a existência da prática de actos dolosos do cônjuge administrador sobre os bens, sem ter de esperar pela prestação de contas, e nessa acção pode e deve ser discutida a responsabilidade do lesante. Caso se aceitasse que quando a administração intencionalmente prejudicial incidisse sobre os bens comuns, e não os próprios do não administrador, se teria de esperar pelo resultado da prestação de contas, onde se apurassem os eventuais prejuízos, para propor a respectiva acção de responsabilidade, tal redundaria em contradizer o próprio normativo. Significaria impossibilitar aquilo que ele pretendeu, ou seja, atribuir aos casos de responsabilidade pela prática de facto ilícito doloso a possibilidade de o não administrador lesado não ter de esperar pelo fim do casamento e pela prestação de contas para accionar o lesante.   

Na acção de responsabilidade civil prevista no art. 1681 nº 1 do CCivil cabe, sem restrições, a discussão dos factos e a decisão de direito correspondente a afirmar a procedência ou improcedência do pedido, na verificação dos pressupostos legalmente estabelecidos no art. 483 do CCivil: a existência de um facto voluntário do agente; a ilicitude desse facto; o nexo de imputação do facto ao lesante; a existência de danos; o nexo de causalidade entre o facto praticado pelo agente e o dano sofrido pelo lesado. Uma vez que não se certifiquem estes requisitos a acção deve improceder, embora, se eles ficarem demonstrados, possa eventualmente colocar-se a questão de não ser possível fixar de imediato o objecto ou a quantidade do pedido conforme prevê o art. 609 nº 2 do CPC, o que não impede a condenação.

A circunstância de os bens administrados pela alegada lesante, e sobre os quais se diz ter sido realizada uma administração dolosa, pertencerem ao acervo patrimonial do casal e não ao outro cônjuge exclusivamente, não pode determinar a admissibilidade ou inadmissibilidade da propositura da acção com base no entendimento segundo o qual, a própria existência de prejuízos apenas na prestação de constas se poder determinar.

Como já se decidiu, se o autor “(…) se sentir prejudicado com esse acto de gestão praticado pelo recorrente, pode reagir através da propositura de uma acção de indemnização de perdas e danos conforme decorre do art. 1681 nº 1 do C. Civil.

É nessa acção que a requerente poderá obter a fixação do seu direito à indemnização

E o direito aí obtido pela sentença traduzir-se-á num crédito sobre o outro cônjuge, sendo, então, o seu pagamento considerado em sede de partilha do casal de acordo com o estatuído no citado art. 1689 do C. Civil.” – cfr. ac. STJ de 26-11-2014 no proc. 2009/06.1TBAMD-B.L1.S1 e também Augusto Lopes Cardoso, in “A Administração dos Bens do Casal”  pag. 299.

Decidido que nada obsta a que nesta acção se conheça da responsabilidade civil inscrita no art. 1681 nº 1 parte final do CCivil, passamos a analisar a existência dos pressupostos dessa responsabilidade.

Exigindo o art. 483 nº 1 do CCivil como primeiro elemento constitutivo a existência de um facto ilícito, esta exigência remete para um acto naturalístico em forma de conduta do agente, que pode consistir numa omissão, controlável pela vontade, o que, nos autos, se revela nas vendas efetuadas pela ré de bens comuns a uma outra entidade. Por outro lado, a ilicitude confronta o acto realizado, em si mesmo, com a valoração que dele a lei faça proibindo-o, ou não o permitindo, podendo traduzir-se na violação de um direito de outrem, ou, na violação da lei que protege interesses alheios.

Com este quadro de referência, as vendas efetuadas pela ré assumem carácter lícito não violando previsões legais por acção ou por omissão. Objectivamente, as vendas são actos permitidos e regulados pelo direito. Aliás, o autor não alegou na petição inicial que a ré tivesse vendido a mercadoria aludida, sim que a tinha cedido ignorando ele a que título e em que condições, mas sem colher qualquer benefício do negócio celebrado uma vez que esse acto violava o direito do A. à exclusividade da comercialização dos chapéus que fabricou e que não se destinavam a revenda, no concelho ….

Na consulta dos factos provados é evidente que não ficou demonstrado que a comercialização dos chapéus com a marca “A.......” região …..., fosse exclusiva das três lojas ao tempo exploradas pelo casal, ou que não fosse feita a venda para revenda nesta região, como também se não demonstrou qualquer banalização da marca em virtude da venda que passou a ser feita também noutro estabelecimento para o qual a R. vendeu a mercadoria. Resulta assim inverificada a existência de facto ilícito que teria, para ser relevante, de ser qualificado pela actuação dolosa da ré, traduzida em dolo directo, até mesmo em dolo necessário ou, no limite, em dolo eventual. Isto é, respectivamente, na actuação para atingir um fim ilícito (ou para omitir um comportamento devido); ou quando “num acto de duplo efeito, o agente pretende atingir um fim lícito, mas sabe que a sua acção determinará, inevitavelmente, o resultado ilícito.”- cfr. Prof. Pessoa Jorge, “Ensaio sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil”, 322 - ou, finalmente, que o recorrido actuou numa perspectiva de um fim lícito, mas com a consciência de que do seu acto pudesse resultar um ilícito, querendo, não obstante, a sua produção.

Na sentença e na apelação, o argumento para afastar o dolo consolidou-se em se afirmar não ter ficado acordado entre autora e ré que esta estivesse proibida de vender chapéus com a etiqueta “A.......” a qualquer outra entidade.  A isto opõe o recorrente que a prova de a ré ter vendido chapéus com aquela etiqueta a uma loja situada a metros de distância do estabelecimento que pertencia ao ex-casal, e que era explorada pelo A., nela vendendo produtos idênticos, bastaria para impor a conclusão de actuação dolosa por parte da recorrida.

Perante estes elementos o que verificamos é que a ré, no exercício da sua actividade de administração das duas lojas que lhe foram entregues para esse fim, realizou os actos de gestão que se traduziram em venda de mercadoria, que era, afinal, o fim a que estavam destinadas as lojas e a mercadoria. Se se afirmasse que a ré tinha procedido a vendas com menores taxas de lucro, ou que não teria aproveitado os fluxos crescentes e decrescentes do mercado para em cada um deles agir de forma a evitar ao mínimo as perdas e a elevar ao máximo os ganhos, seria consensualmente entendido como estando fora de qualquer possibilidade de qualificação como actuação dolosa nos termos do art. 1681 nº 1 do CCivil, independentemente do que tivesse sido ganho ou perdido. Em igual exemplo, se as concretas vendas realizadas pela ré, à concreta loja situada a metros de distância daquela outra explorada pelo autor, não tivessem causado nesta, como se provou, uma redução nas vendas, seguramente que se teria por indiscutível que o comportamento da ré ao realizar as vendas não poderia ter censura.

Num quadro de hostilidade evidente entre as partes, que os articulados revelam existir, mas que a prova fixada não permite confirmar nem sufragar nos inúmeros factos que se articularam, pode ser-se conduzido a inscrever na interpretação dos que ficaram provados um sentido de normalidade e experiência comum, referente à situação de conflito, que exceda os limites que esses mesmos factos permitem.

Num exercício de lógica prudente podemos começar por anotar que a prova de a exposição de chapéus com a marca “A.......”, e a sua comercialização, num estabelecimento situado a metros do estabelecimento explorado pelo A., ter causado neste uma redução nas vendas, não pode servir para introduzir um indicador de intencionalidade dolosa e nem mesmo de existência de prejuízo. Não se sabendo o preço pelo qual foi essa mercadoria vendida pode perfeitamente aceitar-se como probabilidade séria que, afinal, a redução das vendas numa loja possa constituir aumento de venda na que vendeu, sendo que ambas pertencem ao património comum e o prejuízo é aferida não por referência a uma loja, mas ao património no seu todo.

As regras de experiência comum que se pretendam convocar enunciam-se como aquelas que, segundo a maneira como a realidade se repete, de forma constante e regular, fazem interceder com toda a segurança com que a lógica confirma essa repetição, que a um determinado facto causa corresponderá um facto consequente e de óbvia ocorrência, o qual só não se terá por admitido se, entretanto, intervier um outro facto, esse sim de tal maneira imprevisto, por raro, inabitual e improvável, que para ser tomado em consideração exija, ele sim, uma prova confirmada e não resultante de lógica implícita. Deste modo, aplicando este mecanismo de aferição da normalidade do acontecer aos factos em apreciação, não cremos que possa afirmar-se com qualquer segurança, capaz de produzir prova, que a circunstância de se saber que a ré vendeu mercadoria para ser comercializada numa loja, perto da loja do casal explorada pelo autor, sabendo ela a quem estava a vender, não poderia deixar de a fazer prever a possibilidade de tal determinar a redução de vendas na loja administrada pelo autor. Aliás, o importante seria apurar, não se ela previa a possibilidade da loja do casal explorada pelo autor poderia reduzir as vendas, mas sim se com a sua actuação, vendendo mercadoria como o fez, estava a causar prejuízo ao património comum.

Não havendo elementos para caracterizar o facto como ilícito, menos ainda existem que evidenciem a consideração valorativa que um eventual conhecimento (que como se disse não pode ter-se por provado) de redução de vendas naquela outra loja imporia, por experiência comum, a conclusão de que tal actuação foi dolosa, em qualquer uma das suas formas.

Como se referiu, a ré enquanto administradora das lojas de sua responsabilidade, tinha por finalidade vender e esta actividade de venda não estava condicionada por qualquer restrição geográfica. Por outro lado, quaisquer conflitos do casal que pudessem revelar um quadro informador através do qual se quisesse interpretar os comportamentos respectivos com um sentido de intenção de prejuízo não ficaram provados e não podem ser tomados em consideração na interpretação dos que servem a decisão.

Assim, entendemos que não se fez prova do facto o ilícito nem da intenção dolosa da ré exigíveis para que a responsabilidade civil se tivesse por verificada e, com base nessa não demonstração o recurso não tem provimento.

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Síntese conclusiva

Nos termos do art. 1681 nº 1 do CCivil, o cônjuge administrador só tem de prestar contas da administração que realize dos bens comuns ou próprios do outro cônjuge, depois de dissolvido o casamento ou da separação de pessoas e bens.

- Nascendo a obrigação de prestação de contas a partir do decretamento do divórcio ou da separação judicial de pessoas e bens, a mesma retroage os seus efeitos à data da entrada em juízo do requerimento apresentado nesse mesmo processo, conforme resulta do disposto no artigo 1795º-A do Código Civil, que remete para o artigo 1789 do CCivil.

- A acção de responsabilidade civil por facto ilícito doloso prevista no art. 1681 nº 1 parte final, pode ser intentada a todo o tempo sem as restrições temporais referentes à prestação de contas e a sua propositura não é impedida pela circunstância de a eventual prática dolosa incidir sobre bens comuns que também pertençam à lesante.

- Sentindo-se prejudicado pela gestão intencionalmente danosa do cônjuge administrador, o não administrador é através dessa acção do art. 1681 nº 1 parte final do CCivil que poderá obter a fixação do seu direito à indemnização cujo pagamento será considerado em sede de partilhas nos termos do art. 1689 do CCivil. .”

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 Decisão

Pelo exposto, acorda-se em julgar a revista improcedente e, em consequência, confirmar a decisão recorrida absolvendo a ré dos pedidos.


Custas pelo recorrente.


Lisboa, 8 de Abril de 2021


Nos termos e para os efeitos do art.º 15º-A do Decreto-Lei n.º 20/2020, verificada a falta da assinatura dos Senhores Juízes Conselheiros adjuntos no acórdão proferido, atesto o respectivo voto de conformidade da Srª. Juíza Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza e do Sr. Juiz Conselheiro Tibério Silva.


Manuel Capelo (relator)