Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3185/12.0YXLSB-F.L1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: ABRANTES GERALDES
Descritores: ADMINISTRAÇÃO DE BEM COMUM DO CASAL
PRESTAÇÃO DE CONTAS
EFEITOS PATRIMONIAIS DO DIVÓRCIO
Data do Acordão: 04/11/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DA FAMÍLIA / CASAMENTO / EFEITOS DO CASAMENTO QUANTO ÀS PESSOAS E AOS BENS DOS CÔNJUGES / DIVÓRCIO E SEPARAÇÃO JUDICIAL DE PESSOAS E BENS / DIVÓRCIO / EFEITOS DO DIVÓRCIO.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 1681.º, N.º 1 E 1789.º, N.ºS 1 E 2.
Sumário :
I. Os efeitos patrimoniais do divórcio apenas se produzem, em princípio, a partir da data da propositura da ação (art. 1789º, nº 1, do CC).

II. Para que tais efeitos retroajam à data da separação de facto é necessário que tal seja declarado na sentença que decreta o divórcio, a requerimento de algum dos cônjuges (art. 1789º, nº 2, do CC).

III. Sem prejuízo da responsabilidade pelos atos dolosos praticados em prejuízo do casal ou do outro cônjuge, o cônjuge que administra bens comuns não é obrigado a prestar contas dessa administração (art. 1681º, nº 1, do CC).

IV. No caso, não consta da sentença de divórcio a antecipação dos efeitos patrimoniais reportados à data da separação de facto entre os cônjuges, nos termos do nº 2 do art. 1789º do CC, de modo que a prestação de contas referentes à administração de bem comum do casal apenas pode abarcar o período posterior à data da instauração da ação de divórcio.

Decisão Texto Integral:

I - AA e BB contraíram casamento entre si a 20-12-74, segundo o regime de comunhão de adquiridos, o qual foi dissolvido, por mútuo consentimento, por decisão de 9-7-10 proferida na CRC de Lisboa e transitada em julgado a 26-7-10.

Em 1-10-12 AA instaurou contra o se ex-marido inventário para partilha dos bens comuns do casal.

Em 3-11-14, por apenso a tal processo, BB requereu contra AA a prestação de contas relativamente à administração/gerência do estabelecimento comercial de Farmácia denominado "Farmácia ...", alegando que o mesmo integra o património comum do extinto casal e que, desde o ano de 2002, é administrado pela Requerida.

Na 1ª instância, foi proferida decisão que recusou a prestação de contas relativa ao período entre 1-1-02 e 5-7-10, data em que foi apresentado o pedido de declaração de divórcio, cingindo tal obrigação ao período de 5-7-10 a Março de 2012. Relativamente ao período posterior a Março de 2012, considerou-se que a prestação de contas ficaria sujeita a produção de prova para apurar se a Requerida geriu ou não o referido Estabelecimento nesse período.

O Requerente interpôs recurso de apelação e a Relação revogou a decisão da 1ª instância determinando que a obrigação de prestar contas abarcaria também o período entre 1-1-02 e 5-7-10.

Desse acórdão foi interposto recurso de revista pela Requerida, na parte em que estendeu a sua obrigação de prestar contas ao período entre 1-1-02 e 5-7-10, alegando que nesse período ainda subsistia o casamento, de modo que, atento o disposto no nº 1 do art. 1681º do CC, não existe obrigação de prestar contas. Para o efeito argumentou que na sentença que decretou o divórcio por mútuo consentimento nada se determinou quanto à retroação dos efeitos patrimoniais do divórcio, nos termos do art. 1789º, nº 2, do CC.

Depois de ter sido rejeitado pela Relação, o recurso de revista foi admitido por despacho do ora relator proferido no âmbito da oportuna reclamação apresentada pela recorrente.

Não houve contra-alegações.

II – Decidindo:

1. Está aceite por ambas as partes que o Estabelecimento de “Farmácia ...” constituía bem comum do casal, por ter sido adquirido na pendência do casamento da Recorrente e do Recorrido que vigorou no regime de comunhão de adquiridos.

Nesta medida, podia ser administrado (administração ordinária) por cada um dos cônjuges, sem distinção, atento o disposto no art. 1678º, nº 3, do CC. Este regime de administração de bens comuns do casal responde a exigências de ordem familiar ou social cuja razoabilidade é quotidianamente testada, como o foi no caso concreto, pois foi nessa base e com essa legitimidade que o referido estabelecimento foi gerido pela ora Recorrente.

Mas o legislador, procurando resolver antecipadamente e de modo abstrato outros problemas, não se quedou pelo estabelecimento dessa regra; previu ademais que o cônjuge que, naquele contexto, administrar bens comuns do casal não fica obrigado a prestar contas da sua administração (art. 1681º, nº 1, do CC).

Também é evidente a razoabilidade desta medida, que encontra justificação quer na natureza jurídica quer nos objetivos do casamento como contrato mediante o qual duas pessoas se consorciam para constituir família mediante plena comunhão de vida (art. 1577º do CC). É isso que explica que nenhum dos cônjuges possa exigir do outro a prestação de contas relativamente a atos de administração para que está legitimado. O contexto em que isso ocorre justifica o estabelecimento de um tratamento diferenciado relativamente a outras situações em que ocorra a prática de atos de administração de bens cuja titularidade pertence a diversos interessados.

Ainda assim, o legislador não deixou de prevenir uma outra solução destinada a compensar eventuais efeitos de uma atuação dolosa de algum dos cônjuges em prejuízo do outro ou do casal, nos termos que figuram no nº 1 do art. 1681º, situação patológica que, no entanto, foi orientada pelas regras do instituto da responsabilidade civil. Nestes casos, o cônjuge administrador pode incorrer em responsabilidade civil geradora de um crédito de natureza indemnizatória a favor do casal ou do outro cônjuge, o qual é suscetível de ser ponderado, uma vez cessada a relação patrimonial entre os cônjuges, nos termos do art. 1689º do CC.

2. A mera leitura dos normativos indicados permite responder favoravelmente à questão colocada pela Recorrente relativamente à prestação de contas relativa ao período que precedeu a instauração da ação de divórcio por mútuo consentimento.

Considerando que:

- A Recorrente e o Recorrido foram casados no regime de comunhão de adquiridos;

- A Recorrente administrou o estabelecimento de Farmácia - que era bem comum - incluindo no período entre 1-1-2002 e a instauração da ação de divórcio em 5-7-2010;

- O divórcio por mútuo consentimento foi decretado em 9-7-2010, mas nada consta da sentença acerca da separação de facto e da retroação dos efeitos patrimoniais do divórcio;

- A única obrigação que está presente nesta ação e neste recurso de revista é a obrigação de prestação de contas da administração daquele estabelecimento por parte da Recorrente;

Tal administração não implica a obrigação de prestar contas relativamente ao período anterior a 5-7-2010, como decidiu a 1ª instância.

3. A ausência absoluta de fundamentação (é na verdade a total ausência de fundamentação jurídica que se verifica quando nos confrontamos com o acórdão da Relação) torna difícil identificar o motivo pelo qual foi contrariada a acertadíssima decisão da 1ª instância. Mas seguramente que a mesma não poderia encontrar eco nos argumentos que então foram tecidos pelo ora Recorrido no recurso de apelação.

Na verdade, atento o disposto no art. 1789º, nº 1, do CC, os efeitos patrimoniais do divórcio dependem do trânsito em julgado da respetiva sentença, posto que retroajam à da propositura da ação, in casu, a 5-7-2010. Para que a retroação desses efeitos se fizesse com referência a outra data – a do início da separação de facto - necessário era que tal tivesse sido definido na sentença que decretou o divórcio, nos termos do nº 2 do art. 1789º do CC.

Só nesta eventualidade seria legítimo afirmar que a obrigação de prestação de contas por parte do ex-cônjuge administrador de um bem comum abarcaria também o período relativamente ao qual já haviam cessado os efeitos patrimoniais do casamento.

Ora, no caso concreto, o divórcio assumiu a modalidade de divórcio por mútuo consentimento e a respetiva decisão (que, aliás, foi proferida pelo Conservador do Registo Civil) é totalmente omissa a respeito da data em que ocorreu a separação de facto.

Deste modo, fica sem qualquer apoio a consideração de outra data para efeitos de retroação dos efeitos do divórcio e, por conseguinte, há que respeitar a regra geral segundo a qual nenhum dos cônjuges – relativamente ao período em que perdurou o casamento e até à data da instauração da ação de divórcio – está obrigado à prestação de contas relativamente à administração de bens comuns do casal.

IV – Face ao exposto, acorda-se em julgar procedente o recurso de revista, sendo revogado o acórdão da Relação e passando a subsistir a decisão da 1ª instância que negou a obrigação de prestar contas por parte da Requerida quanto ao período entre 1-1-2002 e 5-7-2010, relativamente à administração do estabelecimento da “Farmácia ...”.

Custas desta revista e da anterior apelação a cargo do recorrido.

Notifique.

Lisboa, 11-4-18

Abrantes Geraldes (Relator)

Tomé Gomes

Maria da Graça Trigo