Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
101/19.1T8ANS-A.C1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: FERNANDO BAPTISTA
Descritores: AÇÃO EXECUTIVA
OPOSIÇÃO À EXECUÇÃO
LIVRANÇA
PREENCHIMENTO ABUSIVO
PACTO DE PREENCHIMENTO
ÓNUS DA PROVA
MORA DO CREDOR
CULPA
BOA FÉ
PLANO DE RECUPERAÇÃO
INCUMPRIMENTO
INSOLVÊNCIA
RECURSO SUBORDINADO
DUPLA CONFORME
Data do Acordão: 05/27/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. A mora do credor, ao contrário dos casos de impossibilidade da prestação por causa imputável ao credor, não desonera o devedor da sua obrigação, dela resultando tão só uma atenuação da sua responsabilidade, nos termos do disposto no art. 814.º do Código Civil.

II. Diferentemente do que ocorre com a mora do devedor, em que a lei exige que haja culpa sua, a mora do credor não depende de existência de culpa sua, isto é, não se exige que a sua não aceitação da prestação ou a omissão da sua colaboração sejam censuráveis.

III. O preenchimento de cada uma das hipóteses a que alude o artº 813º do CC (ou seja: a fixação dos termos em que o credor devia ter aceitado ou a determinação dos actos que devia ter praticado) faz-se atendendo às regras que, para o caso concreto, forem ditadas pela aplicação do princípio da boa-fé (n.º 2 do artigo 762.º, Cód. Civil).

IV. Quando o artº 813º do CC fala na falta dos actos necessários ao cumprimento da obrigação, quer-se apenas referir àqueles cuja prática incumbe ao credor – não, positivamente, àqueles que o obrigado deva praticar.

V. A colaboração exigida ao credor naquele artº 813º CC assenta em deveres secundário ou de conduta que interessam ao regular desenvolvimento da relação obrigacional, nos termos em que ela deve processar-se entre os contraentes que agem honestamente e de boa fé nas suas relações recíprocas, mas que devem ser essenciais ao correcto processamento da relação obrigacional em que a prestação se integra. Ou seja, a mora do credor ali subjacente, refere-se às situações em que o cumprimento da obrigação pressupõe a colaboração do credor, sendo que só faltando esta (pressuposta) colaboração se constitui o credor em mora.

VI. Na legislação do PER não se prevê a possibilidade de atribuir ao administrador judicial provisório poderes de fiscalização da execução do plano (como acontece com o plano de insolvência).

VII. Tendo o legislador sido omisso acerca das consequências jurídicas do incumprimento do plano, aplica-se, por analogia, o regime (legal supletivo) previsto no artº 218º do CIRE.

VIII. Incumbe ao executado/oponente, como facto impeditivo do direito invocado pelo exequente àquele a quem o pagamento é exigido, a alegação e prova da inobservância do acordo de preenchimento, ou do preenchimento abusivo.

Decisão Texto Integral:


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça, Segunda Secção Cível.



I – RELATÓRIO


“Rute Arnaut, L.da”, deduziu oposição à execução que lhe move Montepio Crédito Instituição Financeira de Crédito, SA, já ambas identificadas nos autos, sustentando, em síntese, que foi homologado plano de revitalização – com o voto contra do Exequente – onde foi consignada a manutenção dos contratos de leasing, com alargamento do prazo para o dobro do inicialmente contratado e correspetivo reajuste no montante das rendas mensais, perdão integral de juros de mora vencidos, vincendos e penalizações contratuais vencidas. Após aprovação do plano, a executada solicitou ao exequente que efetivasse o plano de pagamento da divida existente à data de 02 de abril de 2014 e acordo com o decidido no mesmo plano, pedidos que não mereceram qualquer resposta da exequente, vindo depois referir que a executada estava em incumprimento nos termos do artigo 218.º do CIRE, o que esta entende não corresponder à verdade por se não encontrar em mora.

Por outro lado, impugna o valor aposto na livrança, com as consequências daí decorrentes, nomeadamente a respectiva nulidade.

Por despacho de 09 de dezembro de 2019 foram os presentes embargos de executado recebidos e o Exequente notificado para, querendo, contestar.


O Exequente-Embargado apresentou contestação sustentando, em síntese, que em face do plano de revitalização aprovado, competia à Embargante-Executada limitar-se a efectuar o pagamento nos termos estipulados no plano, o que não fez, porque não tinha interesse em cumprir.

Mais alega que a Embargante conferiu ao Embargado o direito de livremente preencher a livrança pelo valor que à data do seu vencimento estivesse em dívida, o que foi feito, correspondendo o montante em dívidas às rendas vencidas e não pagas e respectivos juros de mora, indemnização pela mora na entrega dos veículos e selagem da livrança.


Foi proferido despacho saneador, onde foi fixado o valor da causa, fixado o objeto do litígio e os temas da prova.

Teve lugar a audiência de discussão e julgamento, finda a qual foi proferida a sentença, na qual se decidiu o seguinte:

a. Com os fundamentos de facto e de direito enunciados, julgo parcialmente procedente, por parcialmente provada os presentes embargos de executado e, em consequência, determino o prosseguimento da execução, para pagamento da quantia de 34.612,82 euros, acrescido de selagem de 173,06 euros e juros à taxa de 4%/ano desde o vencimento da livrança até integral pagamento.

b. Custas a cargo de Embargante e Embargado na proporção do decaimento.”.


Inconformada com a mesma, interpôs recurso a exequente-embargada Montepio, SA.

Por sua vez, a executada-embargante interpôs recurso subordinado, na parte em que não determinou a nulidade da livrança exequenda por violação do pacto de preenchimento.


O Tribunal da Relação …. a proferir acórdão, no qual decidiu:

“Julgar procedente o presente recurso principal de apelação, em função do que se revoga a decisão recorrida, que se substitui por outra que declara que a execução pode prosseguir os seus ulteriores termos, tal como requerido pela embargada/exequente e;

Se julga improcedente o recurso subordinado interposto pela embargante/executada”.


Inconformada com o assim decidido pela Relação, veio a embargante RUTE ARNAUT, LDª interpor recurso de revista, apresentando alegações que remata com as seguintes

CONCLUSÕES

1 – Não se aceita a resposta dada pelo Tribunal da Relação, decorrente apenas de uma mera interpretação teórica dos normativos, desligada de uma verdadeira integração e interacção do caso concreto.

É que,

2 – Mantém-se totalmente provados os factos confirmados pela 1ª instância e nomeadamente o de que a dívida em 2015 não se demonstra líquida, sendo assim este o recurso apenas de Direito,

3 – Existe total incumprimento por parte do credor embargado, em relação à devedora recorrente, por total alheamento do Plano Especial de Revitalização pois:

a) – O embargado ignorou por completo o plano de revitalização (Pag. 24 da sentença)

b) – O embargado desconsiderou por completo o plano de revitalização e a sentença que o homologou (Pag. 28 da sentença). E,

c) – O embargado fez completa tábua rasa do plano de revitalização (fls33).


4 – Aliás, o embargado, não observa nem os ditames da boa fé, nem os ditames do artº74 do Regime Geral da Instituição de Crédito e sociedade financeira, que nos termos do artº 74º devem proceder nas suas relações com os clientes, com diligência, neutralidade e descrição e respeito consciente, o que não sucede no presente caso.

5 – Existe contrariamente ao decidido, mora do credor, face ao disposto no artº 813 do C.C., e perante os factos provados constantes da aliás douta sentença de 1ª instância. Conforme motivação e fundamentação aqui dada por reproduzida.

6 – Pois foi a recorrente que face à omissão consciente ao não praticar os actos que lhe foram solicitados, inviabilizou a recorrente de dar cumprimento ao contrato em 120 meses, fazendo-o terminar em 27 de Maio de 2020 e nunca em Maio de 2015.

7 – É que o contrato de locação financeira é um contrato complexo, e só a instituição financeira, tem estrutura e capacidade para formatar o contrato e definir os valores face às regras decorrentes do Plano Aprovado, que se impõe “erga omnes”

8 – O processo de P.E.R., resulta de um quadro legal (C.I.R.E), que produz na esfera jurídica dos demandados e interessados o chamado efeito “Stand Still”, ou seja, o efeito paralizador decorrente do previsto no artº 17-E nº 1 do C.I.R.E

9 – E o efeito paralisador do P.E.R., continua e tem de se verificar na obrigação e execução pelo credor, no dever de praticar actos em conformidade com o plano, conformando o contrato originário, aos termos das novas condições aprovadas.

10 – É que a não ser assim, nenhum plano judicialmente homologado, tinha eficácia e exequibilidade.

11 – E o embargado nada fez para cumprir tal plano, comportamento que não pode merecer a tutela do direito face ao disposto no artº 813 do C.C.

12 – E para tal ser essencial, o embargado deveria ter respondido à carta que lhe foi enviada, contrariamente ao decidido pelo Tribunal da Relação.

13 – Também não cabe nos poderes de Administrador Judicial Provisório, fazer tal adaptação contratual após aprovação do P.E.R por tal não se conter dentro dos poderes que lhe são atribuídos.

14 – Resulta da experiência comum, e judicial dos Processos de Revitalização que são as instituições financeiras, não só para cumprimento da sentença homologatória, mas também da sua obrigação decorrente do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, quem sempre faz a adaptação dos contratos originários aos contratos derivados do Plano de Revitalização.

15 - E não havendo incumprimento por parte da devedora recorrente, não assiste ao recorrido embargado, o direito de fazer cancelar as moratórias e outros direitos nos precisos termos do disposto no artº 218 nº 1 do C.I.R,E. E,

16 – Face ao decidido nos autos, em matéria de facto, decidindo-se ou não pela mora do credor, deve sempre ser reduzida a divida ao montante provado de € 34.612,82, e não a qualquer outro,

17 – E sempre declarada nula e inexequível a livrança em execução, por violação do pacto de preenchimento, devendo sempre ser julgado procedente o recurso subordinado, tudo com as legais consequências.

18 – Assim o aliás douto acórdão violou além do mais o disposto nos artºs 813 do C.C e artº 17- E – Nº 1 e 218 alínea a) do C.I.R.E, e artº 10º da L.U.L.L


Termos em que deve ser dado total provimento ao recurso, mantendo-se a decisão de 1ª instância, com a alteração de julgar nula e inexequível a livrança dos autos e sempre por tal via ser declarada extinta a instância executiva, com todas as legais consequências, mandando-se arquivar a mesma com todas as legais consequências.


A Recorrida/Embargada/Exequente respondeu à alegação da Embargante/Executada.

Para além do mais, insurge-se contra o facto de a Recorrente vir levantar “novamente questões quanto ao valor em dívida” e requererque seja declarada nula a livrança por alegada violação no pacto de preenchimento da mesma conforme requerido em sede de Recurso Subordinado.

Considera a Recorrida que há dupla conforme no que respeita à matéria do recurso subordinado, que a Recorrente/embargante ora vem suscitar.

Termina pedindo seja mantida na íntegra o acórdão da Relação.


Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.



*


II – Delimitação do objecto do recurso


Questão prévia: da alegada dupla conforme no que respeita à matéria do recurso subordinado (interposto na apelação):

Na resposta às alegações da Recorrente, vem a Recorrida Montepio Crédito Instituição Financeira de Crédito, SA pugnar pela inadmissibilidade do recurso de revista interposto pela Recorrente Rute Arnaut, L.da no que respeita à matéria do recurso subordinado que esta última já havia interposto na apelação (a questão do preenchimento abusivo da livrança), por, quanto a ele, existir uma situação de dupla conforme.


Não olvidamos o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, de 27.11.2019, o qual decidiu que “o recurso subordinado de revista está sujeito ao n.º 3 do art. 671.º do CPC, a isso não obstando o n.º 5 do art. 633.º do mesmo Código[1].


Não cremos, porém, que tenha razão a Recorrente, pelo simples motivo de que a dupla conforme não ocorre na situação presente, no que respeita à matéria do dito recurso subordinado.

Vejamos.


O recurso subordinado interposto, na apelação, pela ora Recorrente, reportava-se (como dito) à decisão proferida na 1ª instância sobre a questão do alegado abuso do pacto de preenchimento da livrança.


Nos presentes embargos de executado, a embargante, para além do mais, impugnou a livrança exequenda, por entender que foi abusivamente preenchida, considerando-a, como tal, nula e, assim, peticionando a extinção da execução.

A sentença da 1ª instância, pronuncia-se sobre essa matéria, a pp 41-42, no capítulo da “FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO”, escrevendo ali

“O preenchimento da livrança não ocorreu – notoriamente – nos termos descritos e a sua verificação determina que o montante aposto no título seja inferior.

Isto porque (…), a exceção de preenchimento abusivo tem a função didática de separar o falso do verdadeiro, repondo a vontade do subscritor na medida em que se obrigou…”.

Dessa forma, decidiu-se pelo “prosseguimento da execução, para pagamento da quantia de 34.612,82 euros, acrescidos de…”.

Ou seja, a sentença da 1ª instância considerou que havia preenchimento abusivo, sim, mas tal não invalidava a livrança exequenda, somente implicando a redução do montante exequível, desse mesmo título executivo pelo qual a execução deveria prosseguir.


A Embargada/ora Recorrente veio recorrer pedindo a revogação integral da sentença, considerando que a execução deveria prosseguir nos termos inicialmente peticionados.


Na resposta à alegação, a Embargante/Exequente, veio, designadamente, alegar o seguinte:

“B) - QUANTO AO RECURSO SUBORDINADO

17 – Não deve manter-se a livrança, como válida e reportada a mera reconfiguração da pretensão cambiária de modo a contê-la dentro dos limites excedidos, devendo tal livrança ser julgada nula, por violação do pacto de preenchimento nos precisos termos do disposto no artº 10º da L.U.L.L.

18 – A recorrida alegou a violação daquele pacto de preenchimento no artº. 30º da sua petição de embargos.

19 - Não pode manter-se a exequibilidade da livrança para o montante de € 34.612,82, devendo a instância executiva ser julgada extinta com as legais consequências.”


Ora, a Relação, quanto a essa matéria, decidiu “julgar improcedente o recurso subordinado interposto pela embargante/executada”. E pela simples razão de que (diz-se no acórdão, a pp 15) era “à embargante/executada que incumbia fazer a prova da desconformidade entre o conteúdo da livrança exequenda e o acordado em termos de pacto de preenchimento”, prova que se considerou não ter sido feita. Por isso, na decisão do recurso principal foi decidido revogar a decisão recorrida, “que se substitui por outra que declara que a execução pode prosseguir os seus ulteriores termos, tal como requerido pela embargada/exequente”[2].


Ora bem. Não há a dupla conforme inviabilizadora da revista (artº 671º, nº 3 CPC), quer porque a fundamentação das instâncias não é essencialmente a mesma, quer porque o resultado (em termos de decisão de mérito) a que chegaram ambas a instância sobre esta questão foi completamente diferente.

Assim:

1. A primeira instância entendeu estar verificada a excepção do preenchimento abusivo, mas entendeu, ainda, que não havia nulidade do título (da livrança) com a consequência peticionada pela Embargante da extinção da execução, antes se ficando pela mera redução do montante exequendo (ou seja, entendeu que, afinal, era válida…), para o que recorreu a ensinamentos de doutrina, que cita; a Relação, por sua vez, entendeu não estar provado o preenchimento abusivo (era “à embargante/executada que incumbia fazer a prova da desconformidade entre o conteúdo da livrança exequenda e o acordado em termos de preenchimento”, prova que não fez - rematou).

2. A 1ª instância decidiu que a execução prosseguisse (portanto, com o mesmo título) mas por valor inferior ao que constava da livrança; a Relação, por sua vez (apesar de ter decidido julgar improcedente o recurso subordinado), decidiu (por via da procedência do recurso principal) que a execução deveria prosseguir, mas nos precisos termos inicialmente requeridos pela embargada/exequente.

Portanto, diferentes entendimentos quanto a essa matéria do recurso subordinado!


Ou seja, o facto de a Relação ter decidido julgar “improcedente o recurso subordinado interposto pela embargante/executada”, não significou, afinal, em termos práticos, a confirmação da sentença relativamente à questão nele suscitada: o acórdão, na apelação principal, decidira que a execução podia “prosseguir os seus ulteriores termos, tal como requerido pela embargada/exequente”; já no que que respeita ao recurso subordinado, embora tendo dito que o julgava improcedente, afinal, não confirmou, quanto ao seu objecto, o sentenciado, pois o que a Relação acabou por decidir não foi a (peticionada no recurso subordinado) declaração de extinção da execução, nem, sequer (como foi sentenciado) a redução do título executivo, mas, sim, a revogação total da sentença, declarando que a execução pode prosseguir os seus ulteriores termos, tal como requerido pela embargante/exequente!

O mesmo é dizer que, afinal, malgrado o recurso subordinado interposto pela Recorrente/Embargante, esta acabou por ficar sem o que na sentença lhe havia sido conferido (a redução do título exequendo). O que que dizer, afinal, que a Embargante não apenas acabou por sair vencida no recurso principal da apelação (mora do credor e suas consequências), como também saiu vencida na questão visada com o recurso subordinado (a extinção da execução, por nulidade do título exequendo, dado o seu abusivo preenchimento) - ou seja, saiu vencida na diferença entre o valor decidido na sentença para o prosseguimento da execução (“o valor da livrança exequenda passará a corresponder 34.612,82 euros, acrescido de selagem de 173,06 euros e juros…”) e “o valor inicial da livrança exequenda” pelo qual a Relação decidiu que a execução deveria prosseguir!

Valor esse de sucumbência a permitir-lhe a interposição de revista, tal como a interpôs.


Termos em que se admite a revista.


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Considerando que o objecto do recurso (o “thema decidendum”) é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, atento o estatuído nas disposições conjugadas dos artigos 663º nº 2, 608º nº 2, 635º nº 4 e 639º nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil (CPC), as questões a decidir são:

1. Da mora do credor (Exequente/Embargada) e suas consequências.

2. Do montante da dívida: se, a manter-se a decisão da 1ª instância, ou a situação de não existência de mora do credor, a execução deve continuar apenas para cobrança do montante de €34.612,82, arbitrados na 1ª instância.

3. Do abuso de preenchimento da livrança e suas consequências.

III - Fundamentação


III. 1. Matéria de facto provada (na 1ª instância, sem impugnação em recurso):

i. Entre o Embargado, como locador, e a Embargante, como locatária, foi celebrado um contrato de locação financeira com o n.º 5…, cujas condições particulares e gerais constam de fls. 65 a 70 dos autos e que aqui se dá por integralmente reproduzido.


ii. Das condições particulares resulta, para além do mais, o seguinte:

1. Bem móvel: ……, matrícula ….-JA-…., Ano 2006; KRONE, SDP 27, matricula 12……, Ano 2006;

2. Preço de aquisição: 40.000,00 euros, IVA 20%, total 48.000,00 euros; 15.000,00 euros, IVA 20%, total 18.000,00 euros.

3. Prazo da locação financeira mobiliária: 60 meses; para efeitos de registo e de fixação das datas de vencimento das rendas, o contrato tem o seu início em 27 de maio de 2010 e o seu termo em 27 de maio de 2015;

4. Rendas: 60 rendas mensais, variáveis, taxa de juro nominal de 7,2500%, spread 6,6062%, Euribor 3 meses;

5. Indexação das rendas: para a taxa de juro variável, o valor indexante resulta da média mensal da taxa de juro de referência calculada no mês anterior ao da data da produção de efeitos do presente contrato;

6. TAEG: 7,8%.

7. Montante e data das rendas: valor da 1ª renda: 13.200,00 euros; valor das restantes (de acordo com o plano anexo), ao que acresce valor comissão/despesa de cobrança mensal;

8. Os valores incluem IVA à taxa legal, assim como quaisquer outros encargos que, nos termos da legislação em vigor, sobre eles recaiam no momento do seu vencimento;

9. Valor residual: que o locatário terá de pagar ao locador para adquirir o bem 1320,00 euros (IVA incluído).


iii. Das condições gerais resulta, para além do mais, o seguinte:

1. Cláusula 6ª: o Locador é o único e exclusivo proprietário do Bem (…);

2. Cláusula 7.ª: a) A locação do bem é feita mediante o pagamento pelo Locatário ao Locador de uma renda cujo montante, periodicidade e datas de vencimento se encontram determinadas nas condições particulares.

3. Cláusula 10.ª: a) findo o prazo da locação financeira o locatário poderá adquirir o bem pelo valor residual fixado nas condições particulares, acrescido de despesas administrativas inerentes e todos os impostos e encargos a que houver lugar pago contra a apresentação de fatura; c) se o locatário não adquirir o bem deverá restitui-lo no termo do prazo do contrato ao Locador em lugar indicado por este, por sua conta e sob a sua responsabilidade; f) caso não proceda à restituição do bem no Termo da Locação, o locatário constitui-se na obrigação de pagar ao locador uma importância igual à da última renda vencida por cada mês ou fração em que perdurar a mora, sem prejuízo da obrigação de indemnizar por maior dano e ainda sem prejuízo do exercício, por parte do locador , do direito de reivindicar a posse física do bem.

4. Cláusula 20.ª: o locatário obriga-se a entregar ao locador, a título de garantia, uma livrança com local de pagamento no porto, não integralmente preenchida, mas devidamente subscrita pelo Locatário e assinada pelos avalistas que poderá ser livremente preenchida pelo Locador designadamente no que se refere as datas de emissão e vencimento pelo valor correspondente aos créditos de que em cada momento o Locador seja titular por força do presente contrato ou de encargos e despesas dele decorrentes.

5. Clausula 21.ª: serão por conta do locatário todas as despesas judiciais e extrajudiciais, fixando-se as mesmas no máximo de 12% do montante em divida.


iv. A Embargante procedeu ao pagamento de 27 rendas e parte da renda 28, ficando por liquidar, quanto a esta, o valor de € 234,48.


v. A Embargante estabeleceu negociações com os respetivos credores tendo em vista a sua revitalização, no âmbito do processo n.º 419/12…, que quanto às locadoras financeiras previa:

1. Manutenção de contratos de leasing em vigor com alargamento do prazo para o dobro do inicialmente contratado e correspetivo reajuste no montante das rendas mensais.

2. Perdão integral de juros de mora vencidos, vincendos e penalizações contratuais vencidas.


vi. O plano de recuperação foi homologado por decisão proferida em 13 de dezembro de 2013, transitada em julgado em 31 de dezembro de 2013.


vii. Em 2 de abril de 2014 a Embargante enviou à Embargada a carta registada com aviso de receção, que consta de fls. 30 a 31 dos autos e que aqui se dá por integralmente reproduzida, com os seguintes dizeres:

“(…) Ref.ª Contrato n.º CLEA/…… …-JA-…..: LE-…. (…) Transitada em julgado a sentença homologatória do plano de recuperação, aprovado pela maioria dos credores, solicito a V. Ex.as que nos termos constantes do mesmo nos enviem o plano de pagamentos do contrato em epigrafe.

Agradecendo desde a vossa atenção, fico a aguardar (…).”


viii. O Embargado não respondeu nem procedeu à elaboração de qualquer plano de pagamento, com reajuste das rendas mensais ao alargamento do prazo do contrato.


ix. Em 07 de abril de 2015 o Embargado enviou à Embargante as comunicações que constam de fls. 35 e v.º dos autos e que aqui se dão por integralmente reproduzidas, onde informou: que o contrato termina no dia 27 de maio de 2015; que caso pretenda adquirir a propriedade do equipamento em questão, o preço de venda será 1353 euros (IVA incluído) que serão cobrados no dia 27 de maio de 2015 por débito direto na conta com IBAN PT ….19; na eventualidade de não pretender adquirir o equipamento acima identificado, fica obrigado a proceder à sua entrega, até ao dia 27 de maio de 2015 nas nossas instalações, sitas na Rua …, ……, …… .


x. Em dezembro de 2015 o Mandatário do Embargado enviou uma carta à Mandataria da Embargante com os seguintes dizeres:

“(…) Fomos incumbidos pelo N/Constituinte (…) de proceder, nos termos do artigo 218º, n.º 1, al. a) do CIRE, à interpelação da S/Constituinte (…) para proceder ao pagamento dos montantes em dívida, relativos aos pagamentos devidos ao abrigo do Plano Especial de Revitalização aprovado no ano de 2013. Na verdade, e como referido, o N/Constituinte não acusa a receção de qualquer quantia desde março de 2013. Face ao exposto, aguardaremos por um período de 10 dias pela regularização dos montantes em dívida, findo o qual o N/Constituinte reservar-se-á no direito de exigir a totalidade do valor em dívida e de recorrer aos meios coercivos para o efeito. (…)”.


xi. Em 27 de julho de 2017 a Embargante, na qualidade de Locatária dos veículos de matrícula LE-…. e do veiculo de matricula …-JA-…., declarou, para os devidos efeitos que, finda a vigência do contrato de locação financeira em causa, não pretende adquirir o veiculo locado, sendo o mesmo restituído à entidade proprietária, pois não aceita o valor venal do contrato, e a divida que lhe vem sendo reclamada.


xii. Em 06 de fevereiro de 2018 o Embargado enviou aos avalistas a comunicação que consta de fls. 36 e v.º que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, onde informa que não tendo procedido ao pagamento dos montantes em dívida resultantes do termo do contrato, irá proceder ao preenchimento da livrança, pelo valor em dívida à data de 06 de fevereiro de 2018, correspondente aos valores vencidos e não pagos, acrescido dos juros, encargos e penalidades contratualmente estabelecidas, cujo montante ascende a 91.224,66 euros e que a livrança terá vencimento em 10 de fevereiro de 2018.


xiii. Em 11 de outubro de 2018 o Embargado enviou à Embargante a comunicação que consta de fls. 70 v.º que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, onde informa que não tendo procedido ao pagamento dos montantes em dívida resultantes do termo do contrato, procedeu ao preenchimento da livrança, pelo valor em dívida à data de 06 de fevereiro de 2018, correspondente aos valores vencidos e não pagos, acrescido dos juros, encargos e penalidades contratualmente estabelecidas, cujo montante ascende a 91.224,66 euros.


xiv. O Exequente apresentou como título executivo a livrança que se mostra junta aos autos de execução e cujo conteúdo se dá por inteiramente reproduzido para todos os legais efeitos.


xv. Da referida livrança consta que a mesma foi subscrita por RUTE ARNAUT, Lda., avalizada pelos Embargantes AA e BB, emitida em 06.02.2018 e com data de vencimento 10.02.2018, pela importância 91.224,66 euros.


xvi. As rendas n.º 28 (parte) à n.º 60 ascendem ao montante de 34.612,82 euros.


xvii. A componente de capital e juros de cada renda é variável, sendo crescente o capital e decrescente os juros remuneratórios, durante a vigência do contrato.


III. 2. Factos não provados:

i. Que em dezembro de 2015 a divida fosse líquida.


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III. 2. Do mérito do recurso


Analisemos, então, as questões suscitadas na revista.


DA MORA DO CREDOR (Exequente/Embargada) E SUAS CONSEQUÊNCIAS

Considerou a decisão recorrida que, o facto de a embargada/Exequente não ter dado resposta à missiva que a embargante, em 2 de Abril de 2014, lhe havia remetido para que lhe fosse enviado o “plano de pagamentos”, em virtude da aprovação do plano apresentado no PER requerido pela embargante, que alterou o crédito da ora embargada, não consubstancia mora creditoris (da embargada), pois – diz – a embargada não tinha de responder a tal missiva da embargante.

Ou seja, entendeu a Relação que, diferentemente do que se decidiu na 1ª instância, a embargada, com a sua conduta (de ausência daquela resposta), não impossibilitou a embargante/ora Recorrente de cumprir/pagar as prestações constantes daquele plano aprovado, assim não se podendo dizer que incorreu em mora, nos termos do artº 813ºº do CC, por não ter levado a cabo os “actos necessários ao cumprimento da sua obrigação” (sic) – quais sejam, o envio à embargante do solicitado plano de pagamentos em decorrência ou em conformidade com o que fora aprovado no Plano homologado por sentença transitada em julgado.

Para tal, considerou a Relação que não era essencial (para o cumprimento, pela Recorrente/Embargante, da obrigação em falta - pagamento das rendas) a resposta da embargada à carta supra aludida onde a Recorrente solicitava que a embargada apresentasse o novo plano de pagamento considerando o novo prazo, e as novas condições (elencadas no ponto v dos factos provados na sentença), quais sejam:

“1 - Manutenção de contrato de leasing em vigor com alargamento do prazo para o dobro inicialmente contratado e respectivo resgate no montante das rendas mensais.

2 Perdão total de juros de mora vencidos, vincendos e penalizações contratuais vencidas.”.


Mais considerou o tribunal recorrido que “Teria necessariamente de ser no âmbito do PER, se necessário, com recurso à intervenção do respectivo Administrador, que seriam quantificadas as rendas em dívida, se dúvidas houvesse acerca do respectivo montante “.


Em suma, atento ao estatuído no artº 813º do CC, importa saber se o credor (a embargada) cumpriu, in casu, os “actos necessários ao cumprimento da obrigação”: se sim, não há mora creditoris; se não, tal mora verificar-se-á, com as necessárias consequências no mérito da demanda (impedindo o Recorrido/embargado de recorrer ao estatuído no artº 218º, nº 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa (CIRE), dando sem efeito a moratória e perdão de juros acordados no Plano homologado pelo Tribunal por sentença transitada em julgado, e, consequentemente, ficando impedido de prosseguir com a execução da dívida nos termos constantes do processo de execução de que os embargos são apenso).

Vejamos.


A questão da mora creditoris tem sido alvo de abundante trato, em especial na doutrina, vindo os seus requisitos plasmados no artº 813º do CC: “O credor incorre em mora quando, sem motivo justificado, não aceita a prestação que lhe é oferecida nos termos legais ou não pratica os actos necessários ao cumprimento da obrigação.” - o segmento que destacámos é o que importa para o caso sob apreciação.

Se a impossibilidade temporária do cumprimento da prestação for imputável a uma conduta do próprio credor produz‑se a chamada mora do credor (artigos 813.º a 816.º, Cód. Civil).

Assim, há mora do credor sempre que a obrigação não foi cumprida no momento próprio porque o credor, sem causa justificativa, recusou a prestação que lhe foi regularmente oferecida ou não realizou os actos de cooperação da sua parte, necessários ao cumprimento [3].

Como escreve Almeida Costa[4], a cooperação do credor pode assumir várias expressões como sejam “apresentar‑se o credor ele próprio ou um seu representante, no lugar convencionado para a prestação (domicílio do devedor ou outro local), exercer o direito de escolha numa obrigação genérica ou alternativa, passar quitação, restituir o título da dívida, etc.”.

Por outro lado, a mora do credor, ao contrário dos casos de impossibilidade da prestação por causa imputável ao credor, não desonera o devedor da sua obrigação, dela resultando tão só uma atenuação da sua responsabilidade, nos termos do disposto no art. 814.º do Código Civil[5].

O preenchimento de cada uma das hipóteses a que alude aquele artº 813º do CC (ou seja: a fixação dos termos em que o credor devia ter aceitado ou a determinação dos actos que devia ter praticado) faz‑se atendendo às regras que, para o caso concreto, forem ditadas pela aplicação do princípio da boa-fé (n.º 2 do artigo 762.º, Cód. Civil).

Verificado este circunstancialismo, para todos os efeitos, o devedor não executou a prestação. Porém, uma vez que o seu oferecimento infrutífero não lhe é imputável, tal torna-o não apenas irresponsável pela falta de cumprimento (aplicando-se-lhe, assim, em geral, o regime contido entre os artigos 790.º e 797.º), como, inclusive, pode atenuar a respectiva (eventual) obrigação de indemnizar por danos atribuíveis à sua própria actuação (artigo 814.º, Cód. Civil)[6].

Podemos sintetizar assim as consequências da mora creditoris:

1. Atenuação da responsabilidade debitória (artigo 814.º, Cód. Civil): estando o credor em mora, nos termos do estatuído no aludido artº 813º CC, os eventuais danos que o objecto da prestação venha a sofrer por razões imputáveis à conduta do devedor somente o responsabilizam na medida em que ela tenha assumido carácter doloso, não constituindo a mera sua negligência na obrigação de indemnizar.;

2. O “risco de impossibilidade superveniente de prestação” é imputável ao credor (artigo 815.º, Cód. Civil)[7].

3. Ocorre um agravamento da responsabilidade creditória por causa do acréscimo de despesas que o devedor tenha sido “obrigado a fazer com o oferecimento infrutífero da prestação e a guarda e conservação do respectivo objecto” (artigo 816.º, Cód. Civil)[8].


Como é bom de ver, e ressalta do teor das alegações e contra-alegações, e no que tange à mora do credor, em causa importa aferir do eventual preenchimento do segmento aludido no citado artº 813º do CC: O credor incorre em mora quando, sem motivo justificado, (…) não pratica os actos necessários ao cumprimento da obrigação”.

Note-se, desde já, que, diferentemente do que ocorre com a mora do devedor, em que a lei exige que haja culpa sua[9], a mora do credor não depende de existência de culpa sua[10], isto é, não se exige que a sua não aceitação da prestação ou a omissão da sua colaboração sejam censuráveis.

O que se quer, então, significar com aquela expressão, em termos de suficiência para o preenchimento da mora creditoris? Quando pode dizer-se que o credor não praticou os actos indispensáveis para que o cumprimento da prestação pudesse ter lugar?

A decisão recorrida faz uma pertinente e desenvolvida abordagem doutrinal sobre a mora do credor, ali deixando bem claros os respectivos requisitos e sua significação.

Apenas algumas referências doutrinais se deixam, por particularmente impressivas.

Desde logo, os sempre actuais ensinamentos dos saudosos e sempre presentes PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA. Como ensinam estes Mestres civilistas[11], o primeiro dos requisitos para que se verifique a mora do credor é que este não tenha motivo justificado para não aceitar a prestação (sine justa causa accipere recusare). Depois, há que ter sempre presente que (como já ficou dito) a mora do credor não depende da culpa deste, ao contrário da mora do devedor, a qual depende sempre de culpa. Pois que (como ali ensinam aqueles Mestres) se o devedor está obrigado a cumprir, já o credor “não está propriamente obrigado a aceitar a prestação”.

Mas o requisito atinente à mora do credor, nuclear na economia do mérito da presente demanda (como se verá), é, como vimos, a falta de prática pelo credor dos “actos necessários ao cumprimento da obrigação”.

PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, no local citado, dão exemplos elucidativos da previsão legal, concluindo, quanto a este “segmento” do preceito legal, que, “De qualquer modo, é evidente, porém, que “quando a lei fala na falta dos actos necessários ao cumprimento da obrigação, se quer apenas referir àqueles cuja prática incumbe ao credor não, positivamente, àqueles que o obrigado deva praticar.”[12].

De forma muito elucidativa sobre o âmbito ou sentido da exigência legal da prática pelo credor dos “actos necessários ao cumprimento da obrigação”, esclarece JOÃO ABRANTES[13] que essa colaboração exigida ao credor assenta em deveres de conduta que “não respeitando directamente, nem à perfeição, nem à perfeita (correcta) realização da prestação debitória (principal), interessam todavia ao regular desenvolvimento da relação obrigacional, nos termos em que ela deve processar-se entre os contraentes que agem honestamente e de boa nas suas relações recíprocas” - assim secundando o entendimento já firmado por ANTUNES VARELA, este, porém, sustentando que os aludidos deveres secundário ou de conduta exigíveis ao credor devem ser essenciais ao correcto processamento da relação obrigacional em que a prestação se integra”[14].

Igualmente impressiva é a afirmação de JOSÉ CARLOS BRANDÃO PROENÇA[15] de que se impõe separar “os casos em que o credor se limita a dificultar o cumprimento, aqueles em que a falta de colaboração, não impedindo o cumprimento, apenas vai provocar uma crise na função da obrigação (…), dos casos (…) em que a não aceitação da prestação por parte do credor é impeditiva de uma posterior realização”.

Acrescentando que “O interesse fundamental que preside ao papel colaborante do credor tem a ver com a satisfação do seu direito e não com o escopo de liberação do devedor[16].

Também abordando as situações em que é devida a colaboração do credor e cuja falta preenche a mora creditoris, MENEZES LEITÃO[17] usa uma expressão particularmente impressiva para o caso sub judice, qual seja, de que a mora do credor se conexiona com as situações em que o cumprimento da obrigação pressupõe a colaboração do credor, sendo que só faltando esta (pressuposta) colaboração se constitui o credor em mora.

Já veremos se na situação a que os autos se reportam estava ou era pressuposta a colaboração do credor/Recorrido para que o devedor pudesse levar a cabo a sua obrigação de cumprimento. É que só não pode ser imputada ao credor a não realização da prestação quando a tal inexistente colaboração do credor não teve lugar, sim, mas era suposto que existisse (era necessária para que pudesse levar a cabo o cumprimento da prestação nos termos ajustados ou clausulados).

Anote-se que a recusa pelo credor da prática dos actos necessários ao cumprimento da obrigação é eficaz (em termos de funcionamento da mora do credor), não apenas quando essa colaboração do credor era esperável ou suposto ter lugar, mas ainda quando o credor não tiver motivo justificado para recusar a prestação. É que em certos casos o credor pode ter motivo justificado para recusar a prestação, como é o caso de esta não coincidir plenamente com a obrigação a que o devedor se vinculou[18].


**


Atentemos, então, na factualidade assente nos autos, subsumindo-a às notas doutrinais e jurisprudenciais aqui deixadas.

A sustentação da Revista assenta, como dito, e no seu aspecto nuclear, na premissa de que a ausência de resposta por parte da Recorrida à carta registada de 2.04.2014 com aviso de receção e que consta de fls. 30 a 31 dos autos, que lhe foi enviada pela Recorrente/Embargante, na qual solicitava a indicação do plano de pagamentos[19] – plano esse que havia sido definido no PER da empresa - e à qual o Embargado não respondeu nem procedeu à elaboração de qualquer plano de pagamento, com reajuste das rendas mensais ao alargamento do prazo do contrato[20], configura uma situação de mora do credor[21].


É um facto que o Embargado não respondeu àquela missiva da Embargante.

Como provado está, designadamente, que:

ix. Em 07 de abril de 2015 o Embargado enviou à Embargante as comunicações que constam de fls. 35 e v.º dos autos, onde informou: que o contrato termina no dia 27 de maio de 2015; que caso pretenda adquirir a propriedade do equipamento em questão, o preço de venda será 1353 euros (IVA incluído) que serão cobrados no dia 27 de maio de 2015 por débito direto na conta com IBAN PT ……….; na eventualidade de não pretender adquirir o equipamento acima identificado, fica obrigado a proceder à sua entrega, até ao dia 27 de maio de 2015 nas nossas instalações, sitas na Rua ………., ……. .

x. Em dezembro de 2015 o Mandatário do Embargado enviou uma carta à Mandataria da Embargante com os seguintes dizeres: “(…) Fomos incumbidos pelo N/Constituinte (…) de proceder, nos termos do artigo 218º, n.º 1, al. a) do CIRE, à interpelação da S/Constituinte (…) para proceder ao pagamento dos montantes em dívida, relativos aos pagamentos devidos ao abrigo do Plano Especial de Revitalização aprovado no ano de 2013. Na verdade, e como referido, o N/Constituinte não acusa a receção de qualquer quantia desde março de 2013. Face ao exposto, aguardaremos por um período de 10 dias pela regularização dos montantes em dívida, findo o qual o N/Constituinte reservar-se-á no direito de exigir a totalidade do valor em dívida e de recorrer aos meios coercivos para o efeito. (…)”.


Interessa, como tal, ver se, ao não responder à carta que solicitava o envio do plano de pagamentos, incorreu a embargada em mora. Para o que - em conformidade com o estatuído no citado artº 813º do CC e leitura que dele a melhor doutrina faz, acima explicitada - se imporá, então, aferir se tal remessa à embargante do solicitado plano de pagamentos (aprovado no PER que esta tinha solicitado e que terminara com acordo homologado por sentença transitada em julgado) constituía um acto essencial para que a embargante pagasse as rendas em dívida, ou seja, um dos actos necessários ao cumprimento da obrigação de que fala aquele normativo da lei substantiva civil.


Como visto, a embargante, dada a sua difícil situação financeira, sujeitou-se a um Processo especial de Revitalização (PER). Para tal, estabeleceu negociações com os respetivos credores tendo em vista a sua revitalização, no âmbito do processo n.º 419/12……, que quanto às locadoras financeiras previa:

1. Manutenção de contratos de leasing em vigor com alargamento do prazo para o dobro do inicialmente contratado e correspetivo reajuste no montante das rendas mensais.

2. Perdão integral de juros de mora vencidos, vincendos e penalizações contratuais vencidas.

Esse plano de recuperação foi aprovado (embora com o voto contra do credor/Embargado[22]) e homologado por decisão proferida em 13 de dezembro de 2013, transitada em julgado.


Assim, aprovado o plano, o mesmo vincula quem nele votou como quem o não votou. E devedor e credores ficam obrigados a proceder em conformidade com o que no mesmo plano tenha sido plasmado. Tal resulta da decisão judicial que o homologou, com a inerente força vinculativa para todos os nele abrangidos.


No que à Revista interessa, importa, então, ver se o embargante/credor, com a aprovação do plano, estava obrigado a fazer mais do que fez para que a embargante/devedora pudesse cumprir as obrigações que para si advieram da homologação do plano, isto é, pudesse pagar regularmente as prestações nos termos que do mesmo resultavam.

Ou seja:

    • Estava o credor/embargante obrigado a, depois da aprovação do plano, enviar-lhe o plano de pagamentos acordado no PER, conforme solicitado na carta de 2.4.2014?
    • Era essa remessa essencial para que a embargante pudesse cumprir o mesmo plano?
    • Sem tal remessa da embargada à embargante, esta ficava sem saber os montantes das prestações mensais a pagar àquela?
    • O que constava do processo do PER e a respectiva intervenção ou participação da embargante no mesmo não era bastante para esta tivesse ou pudesse ter cabal conhecimento do teor do tal plano de pagamentos?
A tudo se responde pela negativa.


Francamente, cremos que só por sofisma ou “distração” poderá a embargante dizer que desconhecia aquilo a que ficou obrigada no Plano aprovado no PER, designadamente (e no que aqui importa) quanto teria de “desembolsar” mensalmente a favor do credor/Embargado.

Salvo melhor opinião, a razão está aqui, in integrum, do lado da embargada/Recorrida.

Com efeito, na génese de tudo isto está um contrato de locação financeira outorgado entre as partes nestes autos, contrato esse que veio a sofrer uma alteração no seu percurso precisamente porque a embargante/Recorrente, por dificuldades financeiras, decidiu apresentar um PER,

E não pode nunca olvidar-se que o plano proposto aos credores foi a própria embargada que o elaborou, o que significa que sabia, com toda a certeza e clareza, qual o montante que, com a aprovação do PER, teria de pagar mensalmente a cada credor. O Embargado, aliás, que até votou contra o plano aprovado, mais não fez do que ter de se sujeitar ao “plano” apresentado pela embargante, aceitando-o nos seus precisos termos!

Pergunta-se, então: mas que dúvidas podia ter a Embargante quanto ao teor do mesmo plano de pagamentos que pudessem ser esclarecidas pelo credor, este que, em todo o processo do PER, se limitou, “comer e calar” (passe a expressão popular - pois o plano foi aprovado com o seu voto contra)?

Nenhumas!


Quem, obviamente, podia esclarecer quaisquer dúvidas eventualmente tidas pela embargada, enquanto decorria o PER, sobre os termos precisos e concretos do Plano (quanto tinha de pagar mensalmente, etc., etc) era, nunca o credor, mas, sim, o Administrador. Era a este que, se dúvidas tivesse, deveria ter pedido todos os esclarecimentos, aquando da discussão e aprovação do mesmo Plano.

Veja-se que o artº 17º-D, nº 9, do CIRE dispõe que “O administrador judicial provisório participa nas negociações, orientando e fiscalizando o decurso dos trabalhos e a sua regularidade, e deve assegurar que as partes não adotam expedientes dilatórios, inúteis ou, em geral, prejudiciais à boa marcha daquelas”.

Portanto, era no decurso dessas negociações, em que estava presente o administrador judicial provisório, nelas participando, que a embargante, se tinha algo a esclarecer, deveria procurar esclarecê-lo, suscitando todas as questões que lhe aprouvesse. Mas, repete-se, apenas no decurso das negociações, pois que o trabalho do administrador judicial provisório, que nelas participa, “orientando e fiscalizando o decurso dos trabalhos e a sua regularidade”, finda-se aí. Ou seja, não se prevê na legislação do PER a possibilidade de atribuir ao administrador judicial provisório poderes de fiscalização da execução do plano (como acontece com o plano de insolvência, nos termos do artº 220º)[23].

Afinal, não é crível que alguém fosse propor um plano, participar na sua discussão, votá-lo e no fim ficar sem saber as concretas obrigações que nele ficaram para si estipuladas, maxime, o quantitativo mensal que teria de pagar ao(s) credores. Seria uma irresponsabilidade total, sem o mínimo se sustentação, que a ninguém convenceria. Pois, afinal, o principal interessado era a devedora/embargante, a qual, obviamente, dada a sua complicada situação financeira, queria ficar em melhor situação, daí que nunca apresentasse e deixasse ser aprovado o Plano sem saber exactamente o teor preciso das responsabilidade que ali teria de assumir.

Portanto, não vemos que a falta de resposta da embargada/credor à carta da embargante de 2.4.2014 pudesse ter qualquer eficácia em termos de fazer incorrer a credora em mora, pois tal resposta não era (de todo) essencial para que a devedora/embargante pudesse cumprir com as obrigações que da aprovação do plano para si resultaram.


Não são os credores quem, no PER, definem o plano, antes quem o define é o devedor.

Donde ser uma pura ficção dizer-se ou pretender-se que seja o credor a fixar o montante da renda mensal a pagar pelo devedor.

O PER visa a satisfação dos interesses do devedor e só dele depende. Ou seja, só pode ser por ele desencadeado (ao contrário da insolvência, que pode ser requerida por credor, responsável legal ou Ministério Público, contra o devedor). E até pode o devedor, a todo o tempo, pôr termo às negociações (o que não ocorre na insolvência - artº 21º CIRE).

O PER destina-se, portanto, à recuperação do devedor, o que, naturalmente, pressupõe o seu acordo para que tal recuperação seja viável (o que não acontece no processo de insolvência, mais concretamente no plano de insolvência, que visa a satisfação dos interesses dos credores).


Em consequência, nada se nos afigura censurar à conduta da embargada. Esta, ao enviar à embargante a carta de Dezembro de 2015, limitou-se a actuar em conformidade com os termos do artº 218º, n.º 1, al. a) do CIRE, interpelando a devedora “para proceder ao pagamento dos montantes em dívida, relativos aos pagamentos devidos ao abrigo do Plano Especial de Revitalização aprovado no ano de 2013.”.

Afinal, a Recorrida aguardou dois anos pelo cumprimento aprovado em dezembro de 2013, sem que a devedora/embargante tivesse, durante todo esse período, efetuado um único pagamento. Pelo que, enviando à embargante a missiva de Dezembro de 2015, mais não fez a embargada do que, como dito, fazer uso dos direitos que o CIRE lhe confere (cit. artº 218º), logrando ver-se ressarcida do seu crédito.

Agora, deixar aprovar o Plano que ela própria apresentou, não suscitando quaisquer dúvidas, designadamente sobre o quantitativo mensal que teria de pagar ao credor aqui embargado e passado todo este tempo vir dizer que desconhece o que tem a pagar e que se limitou a aguardar que o credor lhe enviasse o plano de pagamentos, é de todo inaceitável.


Se não mesmo um abuso de direito na modalidade do venire contra factum proprium! Afinal, foi a Recorrente quem criou toda esta situação, não saldando as suas obrigações contratuais, emergentes do contrato de locação financeira que celebrara com a Recorrida e apresentando um PER, propondo ali um plano de pagamentos (que ela própria definiu em conformidade, obviamente, com as suas “finanças” e, como tal, em atenção às suas possibilidades futuras de o cumprir) que, após votação entre os credores, veio a ser aprovado nos mesmíssimos termos que o propôs (diríamos, um “fato à sua medida”).

E como se tudo não bastasse (e sobrasse), atente-se que a Recorrente já no recurso subordinado que apresentara (pág. 7), indicou, preto no branco, o montante mensal da prestação que iria pagar com a aprovação do plano de pagamentos[24]! Pelo que se não compreende a razão de toda esta “agitação” processual, procurando convencer que desconhecia as obrigações que do plano lhe adviriam, quedando-se no “deixa correr” e ficando a aguardar que a Recorrida/Embargada lhe enviasse o plano de pagamentos, com indicação da prestação mensal a pagar, a qual, portanto, era (ou bem podia ser desde que tivesse agido no PER com a razoável e espectável diligência) mais do que por si sabida - ou seja, procurando, assim, convencer que o credor estava em mora por não ter praticado “os actos necessários ao cumprimento da obrigação” (cit. artº 813º CC). Como se houvesse algum acto que o credor/embargada tivesse deixado de cumprir e que fosse essencial para que a devedora/embargante pudesse cumprir com as obrigações decorrentes da aprovação do plano.

Percute-se: a embargada nada fez ou diligenciou no fito de pagar o que devia, em função do plano, limitando-se a remeter uma carta à embargada a solicitar a esta a remessa desse mesmo plano - que, repete-se, era dela mais que sabido (ou, pelo menos, deveria ter sido se tivesse agido com a diligência mínima que era suposto ter nas circunstâncias do caso, pois, afinal, a primeira interessada na efectivação do plano era ela própria, pois resolvia-lhe os problemas de tesouraria que a levou a apresentar o PER)!

Ora, sendo manifestamente insuficiente essa missiva para efeitos de inverter a mora - passando-a para o lado do credor - , e nada mais tendo sido alegado pela embargante/Recorrente tendente a consubstanciar a mora creditoris, mora há, sim, mas da devedora, a qual, com a posterior interpelação da embargante (em conformidade com o disposto no artº 218º, nº 1, al. a), fine, do CIRE), foi convertida em incumprimento definitivo, permitindo ao credor exigir do devedor a totalidade da prestação em falta, nos termos contratuais.

É evidente que a excepção que a embargante invoca, da mora do credor, não é do conhecimento oficioso, tendo natureza disponível e, como tal, impõe-se que a factualidade que a preenche tenha de ser alegada (na contestação) por quem dela pretenda beneficiar, sob pena de preclusão[25]. Factualidade bastante essa que, como visto, não foi alegada, muito menos provada.

Outro aspecto aqui particularmente relevante, que a Recorrida bem observa, é o facto de a embargada ter procedido à entrega dos veículos objecto dos contratos em maio de 2017, o que mostra, à saciedade, duas coisas: primeiro, que a embargada (empresa Rute Arnaut, Lda) sabia estar em situação de incumprimento; segundo, que não queria cumprir nem ia cumprir.

Ou seja, mesmo que, por hipótese de raciocínio, se entendesse que a interpelação feita pela embargada em Dezembro de 2015 não era bastante para poder exigir o cumprimento pela embargante das obrigações contratuais, nos termos inicialmente acordados (ou seja, com perda de eficácia do plano que fora aprovado no PER), então aquela entrega das viaturas sempre consubstanciava uma conversão da mora da devedora (a embargante) em incumprimento definitivo; traduziu, afinal, uma declaração antecipada de não cumprimento, que é uma das variantes do incumprimento definitivo, pois tal declaração antecipada não tem de ser feita apenas por palavras. Aqui os actos (a entrega das viaturas objecto dos contratos de locação financeira), são mais que expressivos dessa vontade definitiva de não cumprimento, não havendo, como vimos, razões válidas, para recusar o cumprimento das obrigações, maxime das obrigações emergentes do plano aprovado no PER.

Como escreveu o saudoso JOÃO CALVÃO DA SILVA - embora falando do contrato promessa, tem aqui plena aplicação, naturalmente -, não há «razão para manter o credor vinculado, até ao vencimento, a uma relação jurídica que, em virtude de declaração séria, certa e segura, ante diem, de não cumprir do devedor, perdeu a força originária e desapareceu como vínculo em cuja actualidade final o sujeito activo possa confiar para satisfação plena e integral do seu interesse, razão existencial da obrigação. É exacto, por isso, configurar a declaração antecipada de não cumprir (ou o comportamento inequívoco demonstrativo da vontade de não cumprir, ou da impossibilidade antes do tempo de cumprir) como incumprimento (antes do termo), pressuposto suficiente de consequências jurídicas imediatas, como a exigibilidade do cumprimento (…), ou a própria resolução do contrato e, em geral, todos os remédios ou sanções previstas contra o incumprimento[26]».  

Como pode falar-se em mora do credor quando o devedor entrega ao credor, por sua única e própria e livre iniciativa, os bens adquiridos com o contrato que celebrara? E logo quando a embargada diz que ela, sim, não estava em incumprimento?

Não faz qualquer sentido.

Assim, portanto, a interpelação da Embargada contida na sua carta de dezembro de 2015, nos termos do artigo 218º, nº1, al. a) do CIRE, tem plena validade e eficácia para os efeitos ali plasmados. Nela, a embargada interpelou a embargante “para proceder ao pagamento dos montantes em dívida, relativos aos pagamentos devidos ao abrigo do Plano Especial de Revitalização aprovado no ano de 2013”, visto que “…não acusa a receção de qualquer quantia desde março de 2013” Assim (remata ali) “Face ao exposto, aguardaremos por um período de 10 dias pela regularização dos montantes em dívida, findo o qual o (…) reservar-se-á no direito de exigir a totalidade do valor em dívida e de recorrer aos meios coercivos para o efeito…)”.

Tudo normal e legal, portanto.

Pode questionar-se se tem aqui aplicação esse normativo do CIRE.

É evidente que sim.

É certo que o legislador foi (mais uma vez) omisso quanto a uma questão essencial: quais as consequências jurídicas do incumprimento do plano de recuperação aprovado e homologado no âmbito do PER.

No entanto, se é certo que seria mais prudente o próprio plano integrar disposições reguladoras desse incumprimento, concordamos com MARIA DO ROSÁRIO EPIFÁNIO[27] quando refere: “na sua falta, entendemos que o regime previsto no artº 218º, pela proximidade entre o PER e o plano de insolvência, poderá ser aplicado por analogia”.

Este artº 218º do CIRE, sob a epígrafe “incumprimento”, regula as hipóteses em que a moratória ou o perdão previsto no plano ficam sem efeito.

Trata-se de um regime legal supletivo (“salvo disposição expressa do plano…em sentido diverso”), que contém a disciplina da moratória ou do perdão estabelecidos no plano em duas hipóteses distintas, relevando para aqui a hipótese da al. a) do nº1: constituição do devedor em mora relativamente ao crédito que não é cumprido” no prazo de 15 dias após interpelação escrita pelo credor”.

Assim, nessa hipótese, preenchidos os requisitos legais, salvo disposição expressa do plano em sentido diverso, ficam sem efeito a moratória ou o perdão previstos pelo plano para o crédito relativamente ao qual o devedor se constituiu em mora, como sustentam LUÍS A. CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABAREDA[28].

Em suma: 1. inexiste, in casu, mora do credor; 2. a devedora/Recorrente não cumpriu o plano de recuperação aprovado, devidamente homologado por decisão transitada em julgado; 3. face a esse incumprimento, o credor/Recorrida fez o que tinha a fazer, ou seja, interpelá-la, nos termos e para os efeitos do disposto no artº 218º do CIRE (aqui aplicável); 4. não tendo a devedora procedido ao cumprimento da obrigação, na sequência dessa interpelação admonitória, ficou sem efeito o que havia sido acordado naquela plano de recuperação, ficando, dessa forma, a embargada/credora livre para exigir, querendo, a totalidade do valor em dívida e de recorrer aos meios coercivos para o efeito, conforme plasmou na carta interpelatória que dirigiu à devedora em dezembro de 2015.

Exigência da totalidade do valor em dívida que, afinal, vem concretizar com a demanda executiva, accionando a livrança que, nos termos previamente acordados, veio a preencher.

Assim improcede esta questão - da existência de mora creditoris (e respectivas consequências na economia dos autos).


Do montante da dívida

Como visto, não se verifica in casu mora do credor (embargada).

Como tal, visto que após a referida interpelação (artº 218º, nº1, al. a), do CIRE) ficou sem efeito a moratória ou o perdão previstos pelo plano de recuperação (quais sejam, o alargamento - para o dobro - do prazo de pagamento das rendas mensais e o perdão integral de juros de mora vencidos, vincendos e penalizações - cfr. ponto v. dos factos provados), passou a assistir à exequente/embargada o direito de exigir o pagamento da totalidade do valor em dívida, preenchendo a livrança que a locatária havia entregue à locadora, a título de garantia, aludida no ponto iii-4. dos factos provados (como ali se clausulou, a mesma “poderá ser livremente preenchida pelo Locador designadamente no que se refere às datas de emissão e vencimento pelo valor correspondente aos créditos de que em cada momento o Locador seja titular por força do presente contrato ou de encargos e despesas dele decorrentes”).

Foi o que fez.

E o valor global que nesta foi aposto corresponde aos valores em dívida “contrato terminado” (capital e despesas de cobrança) + juros de mora + selagem da livrança + mora na entrega do bem.

Portanto, não tendo sido cumprido pela Recorrente o plano de revitalização, a Recorrida/embargada assumiu a totalidade do crédito como se não tivesse existido plano, preenchendo a livrança pelas quantias referidas nas cláusulas 10ª e 20ª do contrato de locação financeira celebrado. Daí não se vislumbrar qualquer obstáculo a que a instância executiva prosseguisse tal com foi instaurada.


Do abuso de preenchimento da livrança e suas consequências.

Esta questão vinha suscitada no pressuposto da inexistência de incumprimento definitivo do PER por banda da embargante, visando-se, com a invocação desse abusivo preenchimento do título executivo, a extinção total da instância executiva.

Esta era a matéria atinente ao recurso subordinado - questão essa que (na verdade), mesmo que se não tivesse admitido o recurso nesta parte, sempre naufragaria, pois, como se verá, não merece qualquer provimento a suscitada excepção de preenchimento abusivo da livrança.

Neste segmento, a decisão recorrida, considerando que a embargante não cumpriu com o PER (o plano nele aprovado), limitou-se a dizer que a livrança foi preenchida em conformidade com o clausulado no contrato de locação (clªs 10ª e 20ª) e que incidia sobre a embargante a prova do preenchimento abusivo da livrança, a qual não foi feita. Daí, e sem mais, ter-se decidido pela improcedência do recurso subordinado.

Ora, atento o já supra explanado, cremos que (também neste segmento) assiste razão à decisão recorrida.


O contrato de preenchimento (a que alude o nº 4. do ponto iii. dos factos provados - entrega da livrança pelo locatário ao locador e termos do seu preenchimento) é o acto pelo qual as partes ajustam os termos em que deverá definir-se a obrigação cambiária, tais como a fixação do seu montante, condições, estipulação de juros, sendo que, conforme refere ABEL PEREIRA DELGADO[29], o acordo nem precisa de ser expresso, podendo ser tácito.

Embora ABEL DELGADO[30] atribua ao preenchimento abusivo natureza extintiva, já PAULO SENDIM[31] lhe confere natureza modificativa, que implica que a obrigação fica reduzida aos termos acordados, já que utile per inutile non vitiatur.


A admissibilidade da letra/livrança em branco resulta claramente do artigo 10º da LULL: basta que incorpore, pelo menos, uma assinatura feita com a intenção de contrair uma obrigação cambiária. E esse documento, desde que seja posteriormente preenchido nos termos fixados no artigo 1º da Lei Uniforme, passa a produzir todos os efeitos próprios de uma letra ou livrança.

Obviamente que quem emite uma letra ou livrança em branco atribui àquele a quem a entrega o direito de a preencher em certos e determinados termos - não de forma arbitrária, obviamente -, tendo em conta o chamado contrato de preenchimento.

Ora, prescreve o art. 342.º, n.º 1 do Código Civil: “àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado”, mais acrescentando o n.º 2 do mesmo preceito legal que “a prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita”.

Como lapidarmente afirmam PIRES DE LIMA / ANTUNES VARELA[32], “o significado do ónus da prova não está tanto em saber a quem incumbe fazer a prova como em determinar o sentido em que deve o tribunal decidir no caso de não se fazer essa prova”.

Ora, conforme tem sido uniformemente decidido pela jurisprudência, o preenchimento abusivo, i. e., a inobservância do acordo de preenchimento tem de haver-se como facto impeditivo do direito invocado pelo exequente. Como tal, incumbe ao executado/oponente, aquele a quem o pagamento é exigido, a respectiva alegação e prova, nos termos do n.º 2 do art. 342.º do Código Civil[33].

Prova essa que a Recorrente/Executada/Embargante não fez.

Sempre se esclareça, porém, que, face à perda de efeitos do plano de revitalização (por incumprimento da embargante/devedora), foi repristinado (ou ressuscitado) o estabelecido no contrato de locação financeira no que se reporta às consequências, para a locatária, do seu incumprimento por banda desta (por aplicação do aludido artº 218º do CIRE, ao preceituar que “a moratória ou o perdão previstos no plano ficam sem efeito”). E, em conformidade, porque o plano de revitalização estava totalmente incumprido e impossível de cumprir (veja-se que os veículos locados até já foram entregues), a embargada exigiu a totalidade do seu crédito de acordo com o estatuído no contrato de locação financeira celebrado (com o ali clausulado sobre incumprimento pela locatária), tendo-se limitado a, dessa forma e por essa causa, preencher a livrança que lhe havia sido entregue aquando da outorga desse mesmo contrato, ou seja, fazendo nela figurar o valor global devido e que incluía: valores em dívida (capital e despesas de cobrança), juros de mora, despesas de selagem da livrança e penalização pela mora na entrega do bem.

Ou seja, a execução (valor constante do título) decorre do facto de o plano de revitalização não ter sido cumprido, dessa forma assumindo a Embargada a totalidade do crédito como se não tivesse havido plano.

Assim sendo, o valor a apor na livrança nunca poderia conter os valores do plano homologado no âmbito do PER, pela simples e óbvia razão de que, aquando do preenchimento da livrança, esse plano já não era tido em consideração pelo Montepio Crédito uma vez que a sociedade Rute Arnaut não tinha até aí pago uma única prestação nos termos lá designados no mesmo plano.

Consequentemente, nada a censurar à forma como a embargada preencheu a livrança exequenda - sempre se reiterando o que já ficou dito sobre a ausência de prova do pretenso “preenchimento abusivo” do título, ónus a cargo da Recorrente/Embargante.

Assim, sem mais delongas, também esta questão merece o veredicto da improcedência.

Consequentemente, há-de ser julgado totalmente improcedente o recurso de revista interposto.


IV. Decisão:

Face ao exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso e, consequentemente, negar a revista, mantendo-se o decidido no Acórdão do Tribunal da Relação … .

Custas a cargo da Recorrente.

Notifique.


Nos termos do art. 15º-A do DL nº 10-A/20, de 13-3, aditado pelo DL nº 20/20, de 1-5, atesto o voto de conformidade dos srs. Juízes Conselheiros adjuntos.


Lisboa, 27-05-2021


Fernando Baptista (Juiz Conselheiro Relator)

Vieira e Cunha (Juiz Conselheiro 1º Adjunto)

Abrantes Geraldes (Juiz Conselheiro 2º Adjunto)

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[1] Processo 1086/09.8TJVNF.G1.S1-A, in www.dgsi.pt.
[2] Destaque nosso.
[3] Antunes Varela, Das Obrigações em GeraL, 5.ª ed., 1992, p. 159.
[4] Direito das Obrigações, 6.ª ed., 1994, p. 947.
[5] Cfr., neste sentido, Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, cit., p. 162.
[6] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06/11/2007, Proc. n.º 07A3056: "Não há mora do devedor se a não efectivação das prestações no tempo devido for imputável ao credor ou entretanto se tiver tornado impossível a prestação por ato que não seja do devedor.  II. A execução tardia da prestação não se transforma em incumprimento se continuar a haver interesse na prestação, determinado este objectivamente.  III. A simples mora acarreta a obrigação de indemnização do devedor ao credor".
[7] Se o risco de perecimento ou de depreciação da coisa objecto da prestação já estava a correr por conta do credor/adquirente, assim continuará; ao invés, se o referido risco estava, antes, sob a responsabilidade do devedor/alienante, ele inverte‑se, passando a “recair sobre o credor o risco da impossibilidade superveniente da prestação”, a menos que aquele tenha provocado o dano dolosamente.
[8] Tendo o devedor tentado cumprir a sua obrigação atempadamente, mas não contribuindo o credor para o recebimento da prestação como devia, aquele permanece adstrito a realizá‑la de novo (pois, para todos os efeitos, não a executou). Mas, na medida em que a reprodução do acto executivo provoque despesas acrescidas, o credor é por elas responsável.
[9] Artº 804º, nº 2 do CC.
[10] CALVÃO DA SILVA, Cumprimento e sanção pecuniária compulsória, pág. 118.
[11] Código Civil Anotado, Vol. II, 2.ª Edição Revista E Actualizada, Coimbra Editora, pág. 75-76.
[12] Destaque nosso.
[13] A Excepção de Não Cumprimento do Contrato, 1986, pág. 42, nota 8.
[14] Das Obrigações em Geral, 7ª ed., pp 124-125 - destaque nosso.
[15] Lições De Cumprimento E Não Cumprimento Das Obrigações, Coimbra Editora, 2011, a pág.s 197-198.
[16] Cit., pp 203-204.
[17] Direito das Obrigações, Vol. II, 6.ª Edição, pp 243-244.
[18] Sobre a mora do credor, pode ver-se, v.g., o Ac. do STJ de 12.09.2019, Proc. 712/17.0T8SNT.L1 (ROSA TCHING).
[19] Carta essa em que, no essencial, se dizia: “(…) Ref.ª Contrato n.º CLEA/…… …-JA-….: LE-….. (…) Transitada em julgado a sentença homologatória do plano de recuperação, aprovado pela maioria dos credores, solicito a V. Ex.as que nos termos constantes do mesmo nos enviem o plano de pagamentos do contrato em epigrafe.
Agradecendo desde a vossa atenção, fico a aguardar (…).”.
[20] Facto constante do ponto viii. da matéria de facto dada como provada.
[21] Levantando-se, depois, na revista, novamente, questões quanto ao valor em dívida e nulidade da livrança por alegada violação no pacto de preenchimento.
[22] O que, porém, nenhuma relevância teve.
[23] Cfr. MARIA DO ROSÁRIO EPIFÁNIO, O Processo Especial de Revitalização, Almedina, pp 97.
[24] Dizia ali: “Ou seja, a recorrida teria possibilidade de amortizar o capital em dívida de 34.62,82, em 66 prestações, com os legais acréscimos de P.E.R (dobro das 33 em falta) o que lhe daria prestação mensal de 524,43 (€34.612,82: 66 = 524,43), direito que se nos afigura legitimo continuar a reclamar, beneficiando assim dos efeitos do P.E.R. (…)”
[25]Ver STJ, Ac. de 22.11.2018, proc. 85159/13.0YIPRT.C1.S1, disponível em www.dgsi.pt.
[26] Sinal e Contrato-Promessa, 8a edição, Almedina, p. 127 e 129.
[27] O Processo de Revitalização, Almedina, 2015, pp 65.
[28] Código da insolvência e da Recuperação de Empresa Anotado, Quid Juris, Lisboa, 2008, pp 728-729, nota 7.
[29] Lei Uniforme Sobre Letras e Livranças, 1996, 80.
[30] Lei Uniforme sobre Letras e Livranças, 6ª ed., pg. 73 e ss.
[31] Letra de Câmbio, vol. I, pg. 217.
[32] Código Civil Anotado, vol. I, 4.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1987, p. 306.
[33] Neste sentido, cfr., entre outros, os seguintes Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto datados de 28/04/2009 (processo n.º 81/07.6TBCPV-A.P1); 13/03/2008 (processo n.º 0734831); 28/06/2007 (processo n.º 0732705); 23/04/2007 (processo n.º 0656357); 15/02/2005 (processo n.º 0520315); 05/11/2002 (processo n.º 0221406) – só o sumário está disponível em www.dgsi.pt; 04/07/2002 (processo n.º 0230592); e 12/10/1999 (processo n.º 9920949) – só o sumário está em www.dgsi.pt). Idem, v.g., CAROLINA CUNHA, Manual de Letras e Livranças, Almedina, 2016, pág. 186 e JORGE HENRIQUE PINTO FURTADO, Títulos de Crédito, Almedina, pp 145-146.