Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
697/16.0JABRG.S1.G1.S1
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: MANUEL AUGUSTO DE MATOS
Descritores: HOMICÍDIO
HOMICÍDIO PRIVILEGIADO
DESESPERO
COMPREENSÍVEL EMOÇÃO VIOLENTA
ATENUAÇÃO ESPECIAL DA PENA
MEDIDA CONCRETA DA PENA
Data do Acordão: 09/18/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL PENAL – JULGAMENTO / SENTENÇA / NULIDADE DA SENTENÇA – RECURSOS / RECURSOS ORDINÁRIOS / TRAMITAÇÃO / FUNDAMENTOS DO RECURSO.
DIREITO PENAL – CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS DO FACTO / ESCOLHA E MEDIDA D APENA – CRIMES EM ESPECIAL / CRIMES CONTRA AS PESSOAS / CRIMES CONTRA A VIDA / HOMICÍDIO.
Doutrina:
- AMÉRICO TAIPA DE CARVALHO, Direito Penal, Parte Geral, 2.ª Edição, Coimbra Editora, p. 65- 66;
- AUGUSTO SILVA DIAS, Comentário do Código Penal, 3.ª Edição Actualizada, Universidade Católica Editora, p. 523;
- CURADO NEVES, O Homicídio Privilegiado na Doutrina e na Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, RPCC, 11, 2001;
- FERNANDA PALMA, Direito Penal, Parte Especial, Crimes contra as Pessoas, AAFDL, Lisboa, 1983;
- FERNANDO SILVA, Direito Penal Especial, Os Crimes contra as Pessoas, 4.ª Edição, QJ – Quid Juris Sociedade Editora, Lisboa, 2017, p. 99 e 100;
- FIGUEIREDO DIAS, Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo I, Coimbra Editora, 1999, 2.ª edição, p. 83, 85 a 90 ; Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas Do Crime, Editorial de Notícias, p. 227 e ss.;
- FREDERICO COSTA PINTO, Crime de Homicídio Privilegiado, Acórdão da Relação de Évora de 4 de Fevereiro de 1997, RPCC, 8, 1998;
- JAIME FREIRE, O desespero em Direito Penal (tentativa de pré-compreensão de um conceito letal), Julgar on-line – 2014, p. 2;
- M. MIGUEZ GARCIA e J. M. CASTELA RIO, Código Penal, Parte Geral e Especial, 2015, 2.ª Edição, Almedina, p. 44, 541 e 546;
- MARIA JOÃO ANTUNES, Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, p. 44;
- PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário do Código Penal, p. 367;
- SOUSA E BRITO, Um caso de homicídio privilegiado, Direito Penal II, AAFDL, 1984;
- TERESA QUINTELA DE BRITO, O Homicídio Privilegiado: Algumas Notas, Direito Penal, Parte Especial: Lições, Estudos e Casos, Coimbra Editora, 2007, p. 316 e ss.;
- TERESA SERRA, Homicídio Qualificado, Tipo de Culpa e Medida da Pena, Almedina, 1990, p. 40 ; Homicídios em Série, Jornadas de Direito Criminal , Revisão do Código Penal , Alterações ao Sistema Sancionatório e Parte Especial, CEJ, 1998, p. 158 e 159.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 379.º, N.º 2 E 410.º, N.ºS 2 E 3.
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGOS 72.º, N.º 3, 73.º, 131.º E 133.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 15-12-2011, PROCESSO N.º 706/10.6PHLSB.S1;
- DE 05-06-2014, PROCESSO N.º 259/09.8JAPTM.E1.S1, IN SASTJ, SECÇÕES CRIMINAIS, WWW.STJ.PT;
- DE 05-02-2015, PROCESSO N.º 160/13.0GBTMR.C1.S1;
- DE 27-05-2015, PROCESSO N.º 445/12.3PBEVR.E1.S1;
- DE 24-02-2016, PROCESSO N.º 1825/08.4PBSXL.E1.S1;
- DE 07-09-2016, PROCESSO N.º 405/14.0JACBR.C1;
- DE 28-06-2017, PROCESSO N.º 557/09.0GEVNG.P3.S1, IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I - A exigibilidade diminuída constitui o fundamento do tipo privilegiado previsto no art. 133.º, do CP é comum a todas as situações aí previstas – “compreensível emoção violenta”, “compaixão”, “desespero” e “motivo de relevante valor social ou moral”.
II - A exigibilidade diminuída corresponde à “diminuição sensível da culpa” referida naquele preceito, que tem de corresponder à sensibilidade que o homem normalmente fiel ao direito teria sentido ao conflito espiritual criado ao agente e que o afectou na sua decisão, no sentido de ter tolhido o normal cumprimento das suas intenções.
III - A “diminuição sensível da culpa” tem, assim, de se fundar numa situação ao mesmo tempo endógena e exógena ao agente: endógena na medida em que tem de corresponder a uma emoção sentida pelo mesmo, e exógena no sentido de que tem de ter um suporte externo e objectivo para ser atendível.
IV - A “diminuição sensível da culpa” distingue-se da “compreensibilidade” exigida para a “emoção violenta”: esta corresponde à sensibilidade do homem normalmente fiel ao direito à situação externa geradora da “emoção violenta”; aquela corresponde à sensibilidade do mesmo homem normalmente fiel ao direito ao conflito espiritual criado ao agente e que o afectou na sua decisão.
V - Em ambas as situações, isto é, tanto no que diz respeito à “compreensibilidade”, exigida para a “emoção violenta”, como no que diz respeito à “diminuição sensível da culpa”, é ao homem médio, colocado na situação do agente, que tem de se atender para se verificar da existência, no caso, das mesmas.
VI - O desespero tem de diminuir sensivelmente a culpa do agente para o que se terá de conhecer os motivos significantes, que têm de ser bons e não vãos.
VII - Da factualidade provada decorre que a arguida vivenciava uma deterioração do relacionamento conjugal, iniciada a partir do nascimento do filho mais velho (a vítima), em 2009, com um progressivo afastamento do marido do contexto familiar, suspeitando ela que ele manteria uma relação extraconjugal. Por outro lado, o marido «repreendia frequentemente o filho mais velho, elevando o tom de voz, causando-lhe medo e insegurança»; o que desgostava a arguida que «foi sempre dedicada aos filhos, revelando-se diligente nos cuidados que lhes dispensava e demonstrando afectividade».
VIII - Estando ainda apurado que a arguida andava manifestamente ansiosa e perturbada; que contactou a sua médica de família pedindo-lhe uma consulta urgente, sendo medicada com um antidepressivo. Que 11 dias antes do homicídio do filho, inconformada com a sua situação familiar, a arguida já havia decidido por termo à sua própria vida e do filho mais velho, por se ter convencido que este iria sofrer muito com a sua ausência, tendo sido impedida de concretizar os seus intentos quando já estava na Ponte Medieval de ... para se atirar ao rio juntamente com o filho.
IX - Neste quadro fático, que se mantinha à data da prática do homicídio, concluiu-se que a arguida vivenciava uma situação emocional caracterizada por um sentimento geral de impotência, de pendor depressivo, perante uma situação externa tida como existencialmente insuportável, que se arrastava já há algum tempo, da qual a arguida se pretendia libertar provocando a sua própria morte, sendo que à concretização deste seu intento opunha-se a antevisão do que seria o futuro do filho mais velho, caso ela se suicidasse, futuro que previa ser de sofrimento, por estar convencida que este não suportaria a sua ausência.
X - Porém, ainda que se admita, como se entendeu nas instâncias, a existência de um estado de «desespero» da arguida, é ainda necessário que tal estado diminua sensivelmente a culpa.
XI - Ora, o estado «desespero» que dominou a arguida e que a levou a tomar a resolução criminosa que tomou, tal como se encontra configurado nos factos provados, não é de molde a diminuir sensivelmente a culpa pelo que, face aos factos provados, a arguida cometeu um crime de homicídio, p. e p. pelo art. 131.º, do CP.
XII - O não enquadramento da conduta da arguida nos elementos constitutivos do crime de homicídio privilegiado não afasta a consideração sobre uma eventual aplicação do regime de atenuação especial, estando salvaguardado o respeito pelo princípio da proibição de dupla valoração consagrado no art. 72.º, n.º 3, do CP.
XIII - Não tendo as circunstâncias descritas nas diversas alíneas do art. 72.º, do CP (ou outras que eventualmente sejam susceptíveis de integrar o n.º 1 do mesmo preceito) o efeito automático de atenuar especialmente a pena, conclui-se que a acentuada diminuição da ilicitude, da culpa ou das exigências de prevenção constituem o autêntico pressuposto material da atenuação especial da pena.
XIV - Encontra-se provado que a arguida agiu num contexto e num condicionalismo muito específico e invulgar que é susceptível de revelar uma forte diminuição da culpa; de uma culpa cuja intensidade não se considerou suficiente para o privilegiamento do crime mas que, aceitamo-lo, poderá justificar a atenuação especial da pena, cumprindo referir que a diminuição da culpa no homicídio privilegiado tem de ser mais acentuada do que no âmbito da atenuação especial do art. 72.º, do CP.
XV - Não obstante em termos de culpa e para efeitos da integração do crime de homicídio privilegiado, não ser de atender ao facto da arguida, aquando da prática dos factos, se encontrar perturbada psiquicamente em estado depressivo e de grande fragilidade emocional, tal circunstancialismo fáctico e condicionalismo que rodeou a prática do crime não podem ser ignorados, relevando para a constatação de uma diminuição acentuada da culpa no crime de homicídio executado pela arguida para efeitos da aplicação da atenuação especial.
XVI - Tal circunstancialismo, anterior à prática do crime, a que acresce a circunstância, igualmente anterior, de a arguida ter decidido matar o filho e suicidar-se devido ao pressentimento que a assolou relativamente ao subsequente sofrimento do seu filho, levam-nos a concluir, ao contrário do que fizeram as instâncias, pela existência de uma diminuição da culpa susceptível de suportar a atenuação especial da pena, nos termos do art. 72.º, do CP.
XVII - A pena a aplicar deverá satisfazer as exigências de prevenção que a comunidade reclama e ser adequada à culpabilidade, isto é, consonante com a culpa revelada.
XVIII - Relevam as exigências de prevenção geral expressas na perturbação provocada na comunidade pelo crime de homicídio competido pela arguida pois está em causa o bem mais valioso concebível: a vida humana. E, para mais, a vida do próprio filho.
XIX - Ponderando todas as circunstâncias que rodearam a prática do crime e todos os factores de ponderação que militam contra e a favor da arguida, já enunciados, consideramos que a pena concreta, respeitando a moldura decorrente da atenuação especial (de 1 ano, 7 meses e 6 dias de prisão a 10 anos e 8 meses de prisão), deve fixar-se numa dimensão que traduza devidamente a censura devida pelo crime praticado e que satisfaça as exigências de prevenção geral e especial aqui bem vincadas.
XX - Considera-se, em face dos elementos expostos, adequada e justa a aplicação à arguida de uma pena de 7 anos de prisão, sujeita ao regime de execução definido nas decisões proferidas nas instâncias: internamento em estabelecimento destinado a inimputáveis pelo tempo correspondente a esta pena e enquanto durar a causa determinante deste internamento.
Decisão Texto Integral:

            Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

            I - RELATÓRIO

1. Em processo comum, perante o Tribunal Colectivo no Juízo Central Criminal de ..., 2.ª secção – Comarca de ..., foi submetida a julgamento a arguida AA

Por acórdão proferido a 15 de Março de 2017 e depositado no mesmo dia, foi deliberado:
- Absolver a arguida da prática, como autora material, de um crime de homicídio qualificado, previsto e punível pelos artigos 132.º, n.os 1 e 2, alínea a), do Código Penal; e
- Condenar a arguida AA pela prática, como autora material, de um crime de homicídio, previsto e punível pelo artigo 131.º, do Código Penal, na pena de prisão de 10 (dez) anos, ordenando-se o seu internamento em estabelecimento destinado a inimputáveis pelo tempo correspondente a esta pena e enquanto durar a causa determinante deste internamento – [por] o regime dos estabelecimentos comuns se mostrar prejudicial à condenada face à anomalia psíquica de que padece.

2. O Tribunal da Relação de Guimarães, por acórdão de 22 de Janeiro de 2018, negou provimento ao recurso interposto pela arguida.

3. Inconformada, a arguida interpôs o presente recurso, apresentando a competente motivação que remata com as seguintes conclusões[1]:

«CONCLUSÕES

1. Não pode a Recorrente concordar com o douto Acórdão ora recorrido que negou provimento ao recurso interposto e manteve a sua condenação pela prática do crime de homicídio simples na pena de 10 (dez) anos.

2. Ao invés, e desde logo, sempre a conduta da Recorrente será de subsumir ao tipo de homicídio privilegiado, p. e p. no art. 133º do C. Penal.

3. Contrariamente ao agora decidido, dos factos provados resultam, relativamente à pessoa da Recorrente e à sua tomada de resolução criminosa, que passaria por pôr termo à sua vida, juntamente com a do seu filho, por verificados os pressupostos daquele tipo legal previsto no art. 133º do C. Penal.

4. Erradamente, afastou o Douto Tribunal da Relação a sensível diminuição da culpa da recorrente, pese embora tenha admitido, que a mesma se encontrava numa situação de desespero.

5. Donde, e porque no douto Acórdão ora recorrido se alude expressamente ao vertido na decisão proferida em sede de Acórdão proferido em 1ª Instância, será de reiterar tudo quanto anteriormente vertido em sede de recurso interposto daquele douto Acórdão.

6. Os factos provados configuram-se como bastantes para se concluir pela verificação de um verdadeiro «desespero» que diminuíram sensivelmente a culpa da Recorrente – cfr. art. 133º do C. Penal – encontrando-se assim justificado o tipo em causa.

7. Como diminuição sensível da culpa temos, como o refere Figueiredo Dias, a ocorrência do denominado “estado de afecto”, que condiciona as faculdades e capacidades do agente, empurrando-o para a desconformidade com o direito.

8. Assim sendo de ter por sensivelmente diminuída a culpa daquela, na medida em que, atento o seu estado emocional, a recorrente ficou numa situação de exigibilidade diminuída, tendo atuado dominada pelo seu próprio desespero, sendo levada a actuar contrariamente àquilo que queria e sabia de direito.

9. Agiu a recorrente em «desespero», fundado em todos os episódios de violência física e psicológica, que foram acontecendo ao longo dos anos, perpetrados pelo marido, a si e ao seu filho, agravada pela relação extra conjugal do mesmo, e que a levaram a achar-se num “beco sem saída”, geradores de angústia e depressão.

10. Sendo certo que, derivado da perturbação psicológica de que a recorrente padecida, para aquela não se “apresentava” qualquer alternativa tendente a por termo ao seu sofrimento, bem como, ao que o filho poderia sofrer, caso lhe sobrevivesse, que não a morte de ambos,

11. Sendo essa sua “opção” de entender como menos censurável, assim diminuindo a sua culpa, em razão do seu «desespero»,

12. O que, «significa e traduz um estado subjectivo em que a angústia, a depressão ou as consequências de factores não domináveis colocam o estado de afecto do sujeito no ponto em que nada mais das coisas da vida parece possível ou sequer minimamente positivo, de tal forma que se permite considerar, nas circunstâncias do caso, uma acentuada diminuição da culpa por menor exigibilidade de outro comportamento» - douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 14.07.2010 (proferido no âmbito do Proc. 408/08.3PRLASB.L2.S1, disponível in www.dgsi.pt) (negrito e sublinhado nossos),

13. Sem descurar que, «No desespero despontam estados de afecto ligados à angústia, à depressão ou à revolta. Podem referir-se os casos de suicídios da mãe que tenta matar-se com os filhos, para lhes poupar sofrimentos, mas que acaba por sobreviver-lhes (Ac. STJ de 28/09/2005 (05P2537); e Ac. STJ de 14/07/2010 (408/08.3) – Cfr. Código Penal Anotado, de M. Miguel Garcia e J.M. Castela Rio, da BDJUR, 2014, págs. 522 e 523 (negrito e sublinhado nossos).

14. Tudo isto, bem como a consequente diminuição sensível da sua culpa, resulta das declarações da própria recorrente, das quais resulta claro, o sofrimento em que vivia, e, ainda, a sua depressão.

15. Nos termos em que a mesma foi tida como provada, com o seu suicídio e o pôr fim à vida do seu filho, a factualidade assente é claramente demonstradora do «desespero» da recorrente, o qual se “apresentava” como bastante a diminuir sensivelmente a sua culpa,

16. “Afastando” assim a conduta da recorrente do tipo de homicídio simples e “integrando” a mesma no homicídio privilegiado, pois que estamos perante situação distinta da que previu o legislador, em que o autor do facto criminoso tenta conjuntamente com o seu suicídio, a morte de outrem.

SEM PRESCINDIR,

17. E sem conceder do exposto, atentos os fundamentos invocados, sempre haverá que referir ainda que, não pode a recorrente concordar com o facto de não ter o Digníssimo Tribunal “a quo” decidido pela “aplicabilidade” da figura da atenuação especial da pena, nos termos do disposto do art. 72º do C. Penal.

18. Porque a morte do seu filho resultou de uma conduta da recorrente também destinada a pôr termo à sua própria vida, sempre será de concluir que as circunstâncias anteriores, posteriores e contemporâneas ao crime, diminuem de forma acentuada a culpa da recorrente e a necessidade da pena.

19. Ainda que verdadeiramente “excepcional”, logo, reservada a casos distintos da generalidade, sempre tal atenuação é aplicável ao caso presente porquanto o mesmo trata de um filicídio mas contemporâneo a um suicídio falhado, sendo o acto causador da morte o mesmo com que pretendia a recorrente por termo à própria vida,

20. Não estamos apenas perante a morte de um filho, mas sim perante a tentativa de alguém, num único acto, terminar com a sua vida e do seu filho, porque atendendo o seu estado psíquico vê aquela como a única solução viável.

21. Porque pretendia a Recorrente, não a morte do seu filho, mas sim que ambos partissem conjuntamente deste mundo, claro se torna estarmos perante as denominadas circunstâncias que diminuem de forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente, bem como a necessidade da pena.

22. A recorrente só agiu como provado porque numa situação de grave perturbação psicológica e fragilidade emocional, valorizando de forma exacerbada os seus problemas familiares, entendeu que o seu sofrimento permanente, bem como a sua responsabilidade na protecção do seu filho menor, só poderia terminar com aquela sua conduta.

23. Assim, terá que se aferir da diminuição da culpa da recorrente tendo por base o estado psíquico em que se encontrava e o facto de, no seu entendimento, prejudicado e nebuloso, nada mais restar, na tentativa de se “libertar”, do que a sua morte a que se “juntaria” a do seu filho, para que também este não mais sofresse.

24. De referir ainda a acentuada diminuição da necessidade da própria pena, patente no facto de o maior dos castigos já o haver sofrido a recorrente, ao ter sobrevivido à morte do seu filho, que pretendia que “partisse” consigo, e que melhor resulta da prova documental existente nos autos e da qual resulta a “anuência” da recorrente na continuidade de acompanhamento psicológico.

25. Apesar de tudo o sucedido, continua a recorrente a poder contar com o apoio dos familiares.

26. Daqui resultando, então, a inexactidão do agora referido no douto Acórdão ora recorrido quando se refere que uma atenuação da pena neste caso, “apesar do manifesto peso dos factores atenuativos, mormente da situação de intenso desespero vivenciado pela recorrente, da confissão e do arrependimento sincero, a imagem global do facto, apresenta-se com uma razoável gravidade merecendo da comunidade frontal reprovação e forte censura, não assumindo aqueles factores a dimensão necessária e suficiente para que se possa considerar a possibilidade de uma atenuação especial nos termos do artigo 72º do Código Penal.

27. Pois que, para todos se torna patente que a actuação da recorrente se ficou a dever unicamente à perturbação de que sofria, e que a própria sofreu já o “preço” daquela sua actuação, ao se ver privada do seu filho.

28. Também os documentos clínicos existentes nos autos, respectivas perícias médicas/psíquicas, e os depoimentos prestados, permitem o esclarecimento quanto aos “antecedentes” da recorrente e à sua infeliz evolução para o estado emocional, psicótico, em que se encontrava quanto tomou a resolução de pôr fim à vida de ambos.

29. Pelo que, e porque atendendo a esse seu estado psicológico, não estaremos então perante uma verdadeira hipótese especial, divergente de tudo quanto o pensado pelo legislador na “criação” das respectivas molduras, ter-se-á aqui que se decidir pela aplicabilidade da verdadeira válvula de segurança que é a atenuação especial da pena – Cf. O Acórdão STJ, de 17.10.2002.

30. Isto porque, a recorrente não fez o seu filho pagar pelo seu sofrimento, antes sim, a recorrente pretendeu, única e exclusivamente, terminar com o seu próprio sofrimento, convencida de que a sobrevivência do menor seria ainda mais penosa para o mesmo, tomando então a decisão de acabar com a vida de ambos, por ser a única “saída” que se lhe apresentava como viável.

31. À conduta da Recorrente é aplicável o preceituado no art. 72º do C. Penal, sendo a punição da mesma de efectivar nos termos do disposto no art. 73º do mesmo C. Penal, o que deverá redundar na aplicação à mesma de uma pena de prisão em medida inferior a 5 (cinco) anos, com o recurso a internamento da recorrente em estabelecimento destinado a inimputáveis, - unidade de saúde mental não prisional, pelo tempo correspondente à duração da pena de prisão que lhe vier a ser aplicada e enquanto o seu estado de saúde não se coaduna ao regime dos estabelecimentos comuns, atendendo a toda a prova produzida de que a recorrente não reúne condições para estar num estabelecimento comum, uma vez que requer vigilância e acompanhamento médico permanente e apertado.

32. Do exposto, de referir que temos por inconstitucional a interpretação da norma contida no art. 72º do C. Penal efectivada pelo douto Acórdão ora recorrido, porque no sentido de se relevarem apenas as razões de prevenção geral, descurando-se, em absoluto, tudo quanto demais vertido naquele preceito legal;

33. Em clara violação dos princípios da “igualdade”, da “proporcionalidade” e da “legalidade”, designadamente, das normas constantes nos arts. 13º, 18º e 29º da Constituição da República Portuguesa.

34. O douto Acórdão sob recurso violou os arts. 72º, 73º, 131º e 133º do C.Penal, e 13º, 18º, 29º e 32º da Constituição da República Portuguesa.


           Nestes termos, nos melhores de direito e com o sempre mui douto suprimento de V. Exas., sopesadas as conclusões acabadas de exarar, deverá ser dado provimento ao presente recurso e, por via disso, ser o douto Acórdão ora recorrido revogado e substituído por outro que, decida pela subsunção da conduta da Recorrente no tipo de homicídio privilegiado, p. e p. no art. 133º do C. Penal,
mantendo-se o cumprimento da mesma num estabelecimento destinado a inimputáveis – Unidade de Saúde mental não prisional; e, sem conceder, decida pela atenuação especial da pena a aplicar, nos termos do disposto nos artigos 72º e 73º do C. Penal, mantendo-se o cumprimento da mesma num estabelecimento destinado a inimputáveis – Unidade de Saúde mental não prisional; com o que, modestamente se entende, V. Exas. farão, como sempre, inteira e sã JUSTIÇA.»

4. Respondeu o Ministério Público, concluindo[2]:

«Conclusões

1. O recurso deve ser julgado procedente quanto à qualificação jurídica dos factos como crime de homicídio privilegiado, previsto e punível pelo art.º 133.º do Código Penal, impondo-se à recorrente pena de prisão a fixar entre os 4 e os cinco anos, executada nos termos já decididos nos autos e que não foram objecto do recurso – a recorrente, expressamente, aceita e pede esse regime de execução.

2. A não se entender desta forma, deve ocorrer a atenuação especial da pena, nos termos dos artºs 72.º e 73.º do Código Penal, sendo esta fixada em medida similar, a executar nos termos definidos no acórdão recorrido, que, também nessa parte, sufragou o acórdão da primeira instância;

3. No que tange à impetrada inconstitucionalidade do art.º 72.º do Código Penal, deve o recurso ser julgado improcedente, quer por razões substantivas atinentes à inexistência do juízo/interpretação e aplicação que a recorrente invoca; quer por falta de observância de uma adequada suscitação da dita invalidade.

4. O Ex.mo Procurador-Geral Adjunto neste Supremo Tribunal emitiu o parecer que se transcreve:

«Parecer:

I São as seguintes as questões submetidas a reexame:

a) Subsunção dos factos no tipo de crime de homicídio privilegiado:

 Defende que os factos provados configuram-se como bastantes para se concluir pela verificação de um verdadeiro «desespero» que diminuíram sensivelmente a culpa da Recorrente…

 Agiu a recorrente em «desespero», fundado em todos os episódios de violência física e psicológica, que foram acontecendo ao longo dos anos, perpetrados pelo marido, a si e ao seu filho, agravado pela relação extra conjugal do mesmo, e que a levaram a achar-se num “beco sem saída”, geradores de angústia e depressão.

 Sendo certo que, derivado da perturbação psicológica de que a recorrente padecia, para aquela não se “apresentava” qualquer alternativa tendente a pôr termo ao seu sofrimento, bem como, ao que o filho podia sofrer, caso lhe sobrevivesse, que não a morte de ambos.

 Sendo essa sua “opção” de entender como menos censurável, assim diminuindo a sua culpa, em razão do seu» desespero».

b) Medida da penaatenuação especial.

 Sustenta que, sem prejuízo da subsunção que defende, pelas razões expostas, sempre seria de aplicar a atenuação especial, porquanto a morte do filho resultou de uma conduta da recorrente também destinada a pôr termo à sua própria vida.

 (…)

 Não estamos apenas perante a morte de um filho, mas sim perante a tentativa de alguém, num único acto, terminar com a sua vida e do seu filho, porque atendendo o seu estado psíquico vê aquela como a única solução viável….

 Termina por peticionar uma pena de prisão em medida inferior a 5 anos, com recurso a internamento em unidade de saúde mental não prisional.

c) Inconstitucionalidade da interpretação e aplicação do artigo 72.º do Código Penal

II Respondeu o Ministério Público (846-858), concluindo pela procedência do recurso quanto à subsunção no crime de homicídio privilegiado, propondo uma pena situada entre os 4 e 5 anos de prisão.

 A não ser sufragada tal tese, defende dever ocorrer a atenuação especial, fixando uma pena de medida similar.

 No que respeita à alegada inconstitucionalidade entende dever improceder o recurso, posto que o acórdão recorrido, na fundamentação do afastamento da atenuação especial, «foi abrangente de todos os requisitos de operacionalização do instituto, não efectuando, de todo, a compressão que a recorrente invoca.

III Nossa perspectiva.

Brevitatis causa, da argumentação esgrimida pela recorrente, acompanhada pelo Ex. mo Procurador-Geral Adjunto e da constante da fundamentação do acórdão recorrido, resulta que a divergência assenta na dimensão valorativa das circunstâncias em que o facto foi perpetrado.

 Vale por dizer que apenas cabe concluir se o estado psicológico em que a arguida se encontrava atinge, ou não, a graduação necessária para diminuição sensível da culpa, exigida pelo tipo previsto no artigo 133.º do Código Penal.

 Perante a doutrina e jurisprudência citadas e apreciação global da matéria de facto provada, propendemos para a aceitação da tese do acórdão recorrido, fundamentada a fls. 820 a 822, não obstante a judiciosa defesa de tese contrária, efectuada pelo Ministério Público junto da Relação e recorrente.

 Porém, o mesmo não sucede quanto ao repúdio da atenuação especial.

 Acompanhando-se integralmente a resposta do Ex. mo Procurador-Geral Adjunto (n.º 2, a fls. 855-856), entendemos, em consequência, na procedência desta pretensão, dever ser aplicada à arguida uma pena na proximidade superior dos 5 anos de prisão, que se adequa à culpa e ilicitude do facto, assegurando eficazmente as exigências de prevenção.»

         5. Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, doravante CPP, nada tendo sido dito.

           

           6. Colhidos os vistos e realizada a conferência, pois não foi requerido o julgamento em audiência [cfr. artigos 411.º, n.º 5 e 419.º, n.º 3, alínea c), do CPP], cumpre decidir.

            II - FUNDAMENTAÇÃO

            1. Delimitação do objecto do recurso

            Sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso – detecção de vícios decisórios ao nível da matéria de facto emergentes da simples leitura do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, referidos no artigo 410.º, n.º 2, do CPP – e verificação de nulidades, que não devam considerar-se sanadas, nos termos dos artigos 379.º, n.º 2 e 410.º, n.º 3, do CPP – é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação, que se delimita o objecto do recurso e se fixam os limites de cognição do Tribunal Superior.

            Como resulta das conclusões do recurso, as questões propostas a reapreciação por este Supremo Tribunal no âmbito deste recurso reportam-se aos seguintes temas:
- Subsunção jurídico-penal dos factos: crime de homicídio simples ou privilegiado.
- Atenuação especial da pena (em termos subsidiários).
- Inconstitucionalidade da interpretação e aplicação do artigo72.º do Código Penal.

            2. Os factos

            Encontra-se firmada a seguinte matéria de facto:

Factos Provados

1.º Desde data não concretamente apurada de 2007, a arguida AA viviam maritalmente, tendo contraído casamento no dia 05 de Setembro de 2015.

2.º Fixaram residência na rua ............., em Barcelos.

3.º Deste relacionamento nasceram dois filhos: BB, nascido a 11 de Julho de 2009, e CC, nascido a 03 de agosto de 2014.

4.º Após o nascimento do primeiro filho, o DD afastou-se do contexto familiar e o relacionamento entre o casal deteriorou-se.

5.º O DD repreendia frequentemente o filho mais velho, elevando o tom de voz, causando-lhe medo e insegurança.

6.º Desde a última semana de maio de 2016, a arguida sentia-se triste, desanimada, ansiosa, nervosa, sem apetite, e sofria de insónias, desconfiando que o marido mantinha um relacionamento extraconjugal.

7.º No dia 06 de Junho de 2016, a arguida, manifestamente ansiosa e perturbada, contactou a sua médica de família do Centro de Saúde de ..., pedindo-lhe uma consulta urgente.

8.º Nessa mesma data, a arguida foi consultada no Centro de Saúde de ..., tendo-lhe sido prescrito pela médica de família um antidepressivo – fluoxetina (20 mg de manhã) - e um ansiolítico – diazepam (10mg à noite).

9.º A arguida iniciou a medicação prescrita, sem supervisão de terceiros, não tendo sentido melhoras do seu estado.

10.º No dia 10 de Junho de 2016, inconformada com a sua situação familiar, a arguida decidiu colocar termo à sua própria vida e à do filho BB, por se ter convencido que este iria sofrer muito com a sua ausência.

11.º Assim, deslocou-se, nessa data, à Ponte Medieval em ..., com o filho BB, com a ideia de se atirar juntamente com este ao rio, sendo nessa altura impedida de concretizar os seus intentos por familiares.

12.º No dia 17 de Junho de 2016, a hora não concretamente determinada, a arguida, pelo seu próprio punho, escreveu num papel de tamanho aproximado A6 “não aguento sofrer mais Toma conta do Pequeno e BB vai comigo Ele sem mim iria sofrer muito Assim é o melhor. Se não conseguires ficar com o menino entrega à tua irmã”.

13.º E colocou-o sobre a cama do quarto do casal da sua residência, em cima do seu vestido de casamento; por cima do papel manuscrito, a arguida colocou a sua aliança de casamento e ao lado uma caixa com os sapatos que usara no dia do casamento.

14.º A arguida escreveu, num outro papel de tamanho aproximado A6, dos dois lados, pelo seu próprio punho o seguinte: “Só pesso desculpa por o que fiz o meu sofrimento é tão grande que não aguentava mais. O vosso filho se meteu com uma colega de trabalho. Eu não merecia isso. Nos nos chatiavamos às vezes mas não era motivo para ele me fazer isso. Se avia alguém que não merecia era eu dava tudo para casa. Levei o BB comigo, foi o melhor ele ia sofrer muito sem mim” e “se o vosso filho não conseguir ficar com o CC. Por favor a EE Vossa filha que fique com ele. Com ela ele vai ficar bem. adeus para sempre. Não culpem o vosso filho. Eu é que não aguentava tanto sofrimento…”.

15.º Naquele mesmo dia, cerca das 12h45m, a arguida deslocou-se à ponte rodoviária sobre o rio ... que liga ... a Rio ... (...), levando consigo o seu filho BB, a quem ministrou fármaco contendo benzodiazepinas, sempre convencida que este não suportaria a sua ausência, com o intuito de se lançar do cimo dessa ponte ao rio com este.

16.º Aí chegada, telefonou ao seu marido.

17.º Ato contínuo desligou o telemóvel, dirigiu-se ao gradeamento da ponte, do lado poente, sensivelmente a meio da mesma, e, com o seu filho BB ao colo, galgou esse gradeamento ficando de costas para o rio.

18.º Nessa posição, sempre com o filho BB ao colo, e apesar de entretanto se ter aproximado uma pessoa, a arguida atirou-se do cimo da ponte, caindo ambos ao rio.

19.º O menor BB acabou por se afundar e morrer afogado e a arguida foi resgatada do rio com vida.

20.º A arguida tinha conhecimento que não podia provocar a morte do filho BB da forma que o fez, mas não obstante tal cognição, querendo pôr termo à sua própria vida e não vislumbrando, no quadro depressivo que vivenciava, outra solução para o destino do descendente que queria proteger, fê-lo, voluntariamente, atirando-se do cimo da ponte para o rio, bem sabendo que dada a idade daquele o mesmo não sabia nadar e morreria afogado, como efectivamente veio a acontecer.

21.º A arguida agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

Mais se provou:

22.º A arguida nasceu em ..., no seio de um agregado composto pelos pais e cinco irmãos.

Os rendimentos do agregado familiar provinham dos salários dos progenitores e satisfaziam as respectivas necessidades básicas.

A arguida, demonstrando desinteresse pelos conteúdos escolares, abandonou o sistema de ensino após conclusão do 6º ano, contrariando a orientação parental.

Aos 13 anos, ingressou no mercado de trabalho, passando a laborar numa empresa têxtil local, exercendo funções adequadas à sua idade, aí se mantendo até aos 17 anos.

Nesta altura, transitou de entidade patronal, no mesmo ramo de actividade, que interrompeu após cerca de 7 anos, numa tentativa gorada e fugaz de emigração para Inglaterra.

Após esta experiência, passou a trabalhar como empregada de balcão numa pastelaria local, onde se manteve até à instauração do presente processo.

O regresso ao ensino ocorreu na idade adulta, com a frequência de um centro local de “novas oportunidades”, para obtenção de equivalência ao 9º ano de escolaridade.

A arguida contraiu um primeiro casamento aos 19 anos, sem descendentes, dissolvido pelo divórcio ao fim de 08 anos, caracterizado pela conflitualidade e assente em disparidades entre os cônjuges.

Decorrido cerca de 01 ano, em 2007, encetou relacionamento afectivo com o actual cônjuge, com união de facto até 2015, ano em que contraíram matrimónio e baptizaram os dois filhos do casal, entretanto nascidos.

Numa fase inicial, o relacionamento afectivo entre ambos era estável.

Após o nascimento do filho mais velho, iniciaram-se os conflitos entre o casal, com o afastamento do cônjuge da dinâmica familiar e consequente progressiva deterioração relacional.

O cônjuge direccionava, de modo reiterado, uma conduta agressiva ao filho mais velho, causando neste sentimentos de medo e insegurança, o que não se verificava com o filho mais novo.

A arguida foi sempre dedicada aos filhos, revelando-se diligente nos cuidados que lhes dispensava e demonstrando afectividade e amor.

À data dos factos, a arguida integrava o seu agregado familiar constituído pelo cônjuge e os filhos, então, de 06 e 02 anos de idade.

Em termos económicos, os rendimentos provinham da actividade que a arguida exercia como empregada de balcão, auferindo cerca de € 630,00 mensais, bem como da actividade exercida pelo cônjuge, na área da pastelaria, com um vencimento mensal de cerca de € 700,00.

O casal residia numa habitação adquirida com recurso a crédito bancário, com uma prestação de € 200,00 mensais, à qual acrescia a prestação mensal relativa ao crédito para aquisição de automóvel, no valor de € 120,00, e a mensalidade do infantário do filho mais novo, no valor aproximado de € 55,00.

O relacionamento intrafamiliar da família alargada – família de origem da arguida e do cônjuge- caracterizou-se pela interajuda funcional na gestão do quotidiano das crianças.

Durante o ano de 2013, a arguida sofreu uma depressão que teve a duração aproximada de seis meses.

Presentemente, a arguida padece de depressão grave sem sintomas psicóticos, com componente reactivo vivencial que perpetua o humor depressivo e com componente dissociativo traduzido no evitar de trazer à consciência os factos traumáticos, apesar de ter consciência dos mesmos.

Apresenta fragilidade emocional e dificuldade em gerir as contrariedades afectivas, com riscos de ideação suicida, que impõem uma vigilância permanente e apertada por parte de técnicos de saúde, com acompanhamento psiquiátrico e psicológico e ministração de medicação.

Cumpre com rigor as injunções a que está obrigada no âmbito da medida de coacção de obrigação de permanência na Casa de Saúde ..., sita em ..., ..., com vigilância electrónica, desde 15 de Julho de 2016, onde se encontra internada na unidade de doentes agudos, beneficiando de acompanhamento clínico ao nível da psicologia e psiquiatria, com terapêutica medicamentosa específica.

A arguida vivencia o presente processo de forma ansiosa e manifesta dificuldades em projectar a sua vida num futuro próximo, atendendo à consciência face à complexidade da sua actual situação processual, apontando mesmo assim a possibilidade de retomar a anterior actividade laboral.

Em abstracto, no que concerne à natureza dos factos subjacentes ao processo, a arguida revela-se inteirada do valor jurídico em causa e do respectivo dano.

Face ao facto que lhe é imputado, a arguida enquadra-o como um ato inexorável e irreversível com vista ao termo de um processo de sofrimento perpetrado contra si e o seu filho mais velho, por parte do cônjuge, a par de um sentimento de isolamento e desorientação pessoal, agravado pela vergonha sentida face à falência da relação conjugal.

Encontra-se em curso o processo de divórcio entre a arguida e o cônjuge, bem como o processo de regulação das responsabilidades parentais relativas ao filho mais novo do casal.

Esta situação é vivenciada pela arguida com angústia, designadamente o distanciamento face ao filho sobrevivo, que se encontra entregue aos cuidados do pai e família paterna, mantendo um relacionamento regular com a família materna.

A arguida beneficia do apoio da família (pais e irmãos), a qual lhe presta solidariedade e apoio, apesar da consternação vivenciada com o presente processo.

A quadra natalícia e o período do ano novo foram passados juntos dos familiares de origem, sem registo de incidentes.

No meio de residência da arguida, a situação é conhecida, tendo sido colhida com surpresa, embora sem sentimentos de rejeição expressos à sua presença.

23.º A arguida manifestou arrependimento sincero perante os factos, declarando que sofre diariamente.

24.º A arguida não tem antecedentes criminais.

*

Factos não provados

25.º A arguida dirigiu-se para a ponte rodoviária sobre o rio ... ao volante do veículo de marca “Renault”, modelo “Megane”, matricula 00-00-00, da sua propriedade

26.º No telefonema referido em 16, a arguida disse ao seu cônjuge, para além do mais, “não ficas comigo mas vais ficar com remorsos para a tua vida toda”.

27.º A arguida persistiu na ideia de se suicidar e tirar também a vida ao seu filho, pelo menos, pelo período de cerca de uma semana.»

Com a seguinte:

Motivação de facto

No apuramento da matéria de facto julgada como provada e não provada, o Tribunal formou a sua convicção com base na valoração conjunta e crítica das declarações da arguida, dos depoimentos da perita médica subscritora do relatório de exame médico-legal psiquiátrico de fls. 403/406 e das testemunhas inquiridas e da prova documental a seguir indicada:

. Informação de serviço de fls. 20 a 31 da PJ (relativa à notícia do crime, diligências encetadas, identificação da arguida e da vítima e apreensão de objetos); relatório de exame ao local do crime e de recolha de provas de fls. 32 a 43; print de fichas de identificação civil da arguida, da vítima e do cônjuge, DD de fls. 44 a 47; ficha do registo automóvel relativo ao veículo 00-00-00, propriedade da arguida, de fls. 48 a 49; relatos de diligência externa de fls. 50/51 (recolha de informação quanto ao estado de saúde da arguida no Hospital de ...) e 54/55 (deslocação à casa de residência da arguida); auto de apreensão de objectos de fls. 68 a 69; informação de serviço da Polícia Judiciária de fls. 75 a 80 (relativo às diligências realizadas na sequência da localização do cadáver da vítima); fotografias da vítima – cadáver- de fls. 81/82; fotografia do local onde foi encontrado o corpo da vítima de fls. 84; relato de diligência externa de fls. 85 a 86 (reportando-se ao acompanhamento da evolução clinica da arguida); cotas de fls. 87, 88, 113, 144 e 157 (todas relativas ao acompanhamento da evolução do estado de saúde da arguida); auto de notícia de fls. 90 a 93; auto de verificação de óbito de fls. 94; cota de fls. 114 (relativa a informações obtidas a propósito da autópsia do cadáver da vítima); relato de diligência externa de fls. 129/130 (recolha das peças de roupa que a arguida vestia quando foi resgatada do rio e deslocações ao supermercado minipreço e café ..., ..., com vista a obtenção de imagens dos respectivos sistemas de videovigilância); auto de apreensão de objectos de fls. 131; reportagem fotográfica de fls. 134 a 136 (relativa à diligência da apreensão das peças de roupa que a arguida vestia quando foi resgatada do rio); auto de exame directo de fls. 145 a 146 relativo aos bilhetes manuscritos pela arguida; cota de fls. 151 (relativa à obtenção de imagens do sistema de videovigilância do supermercado Minipreço e entrega de talão de caixa referente aos produtos adquiridos pela arguida no dia 17 de Junho de 2016); cópia do talão de compra e respectiva impressão informática de fls. 152; informação dos bombeiros de fls. 153 a 156; auto de visionamento de registo de imagens de fls. 158 a 168, obtidas pelas câmaras de videovigilância instaladas na loja pertencente à cadeia de supermercados “Minipreço”; registo das mensagens de telemóvel trocadas entre a arguida e o irmão FF constantes no telemóvel deste de fls. 319; assentos de casamento da arguida de fls. 407; assentos de nascimento da vítima e do irmão CC de fls. 408/409 e 411, respectivamente; informação Nos Comunicações, SA de fls. 461/462, relativa ao número de telemóvel 000000; certificado de registo criminal de fls. 495; registo clínico de consulta da arguida no Centro de Saúde de ... de fls. 578/579; e do relatório social de fls. 599/601.

O Tribunal tomou, ainda, em consideração a prova pericial a seguir indicada:

. Relatório de autópsia médico-legal de fls. 379 a 384 e 387/389 – do qual se retira que o exame toxicológico efectuado ao sangue da vítima confirmou a presença de benzodiazepinas; relatório de exame químico toxicológico de fls. 392 a 394; e relatório de exame médico-legal psiquiátrico de fls. 402 a 406.

Particularizando:

A arguida prestou declarações na audiência de julgamento, adoptando uma atitude de colaboração com a acção da justiça, procurando esclarecer de forma objectiva e serena os factos traumáticos ocorridos no dia 17 de Junho de 2016. O seu depoimento, acompanhado frequentemente por lágrimas silenciosas que escorreram no seu rosto, demonstrou claramente a fragilidade emocional que vive presentemente. Respondeu a todas as perguntas colocadas pelo Tribunal, embora tenha manifestado falta de memória quanto aos acontecimentos que tiveram lugar na ponte rodoviária sobre o rio ... na data fatídica em que ocorreu a morte do seu filho mais velho – esta falta de memória, explicada em audiência de julgamento quer pela perita médica subscritora do relatório médico-legal psiquiátrico de fls. 402/406, Dr.ª GG, quer pela testemunha Dr.HH, médico psiquiatra que acompanha a arguida na Casa de Saúde do ..., assenta na depressão grave de que padece, com componente dissociativa traduzida no evitar trazer à consciência os factos traumáticos. Apesar desta falha de memória, a arguida não recusou ter praticado os factos que lhe são imputados, tendo efectuado uma análise dos motivos que terão estado na origem do seu cometimento, manifestando o seu sincero arrependimento, concluindo que “agora sofre todos os dias”.

Assim, a arguida confirmou o ano em que iniciou a sua união de facto com o DD, o local onde fixaram a sua residência, a data do seu casamento, bem como as datas de nascimento dos dois filhos. Descreveu que a relação afectiva estável que mantiveram nos primeiros tempos deteriorou-se após o nascimento do filho mais velho, com um distanciamento do companheiro do contexto familiar - relatou inclusivamente episódios de agressão física e verbal que ocorreriam como alguma frequência desde essa data, dos quais apenas um terá contado à sogra (este relato foi confirmado pela testemunha II, sua cunhada, a qual declarou que há cerca de 4/5 anos a mãe transmitiu-lhe que a arguida se tinha queixado que o marido a tinha agredido fisicamente; neste sentido, o relatório social junto aos autos também inclui a referência a este episódio que terá sido assumido pelo DD; também os irmãos da arguida, as testemunhas FF e JJ transmitiram ao Tribunal que durante os almoços que tinham lugar ao fim de semana em casa da mãe, presenciaram algumas situações que em o DD se exaltava com a arguida, elevando o tom de voz). Por outro lado, a arguida descreveu um comportamento agressivo do DD para com o filho mais velho, que não se verificava relativamente ao filho mais novo, e que levava aquele a temer o pai – a arguida afirmou que o filho BB pediu-lhe algumas vezes para “arranjar outro pai” ou para fechar a porta de casa, quando o pai saía, de modo a impedir o seu regresso; o temor deste filho face ao pai foi igualmente testemunhado de forma credível pelos irmãos da arguida – FF e JJ– que, reportando-se a situações que presenciaram durante as refeições ao fim de semana em casa da mãe, afirmaram que o DD exaltava-se muitas vezes com o filho, elevando o tom de voz e levantando a mão, tendo a testemunha FF concluído que essa era a forma que o DD encontrava para educar o filho. Face ao ambiente que vivenciava em casa com o companheiro, a arguida declarou que “se agarrou aos filhos” – esta relação estreita entre a arguida e os filhos, caracterizada por um afecto mútuo, foi corroborada pelas testemunhas II, cunhada, FFe JJ, irmãos, KK, médica de família, e LL, amiga, vizinha e colega de trabalho. A suspeita de um relacionamento extraconjugal do marido com uma colega de trabalho – a existência desta suspeita foi confirmada pela testemunha FF, o qual confirmou que a arguida confidenciou-lhe essa desconfiança, pedindo-lhe inclusivamente para que efectuasse uns telefonemas com vista a obter certezas; neste sentido, veja-se o registo das mensagens trocadas entre a arguida e o seu irmão no dia 15 de Junho de 2016 (cfr. fls. 319) – durante o ano de 2016, esteve na origem da tristeza, do desânimo, da ansiedade e do mal-estar que sentiu nas semanas que antecederam a tragédia. A arguida descreveu que sentia a “cabeça descontrolada”, não sabia o que fazia, nem o que pensar e esquecia-se de realizar tarefas relacionadas com o seu quotidiano. Esta desorientação, perturbação e ansiedade foram claramente percepcionadas pela arguida, que, tendo consciência das mesmas, contactou no dia 06 de Junho de 2016 a sua médica de família do Centro de Saúde de ..., pedindo-lhe uma consulta urgente, o que veio a ocorrer nessa mesma data, com a prescrição do antidepressivo e do ansiolítico identificados nos factos provados – a testemunha Dr.ª KK (médica de família) confirmou a depressão em que a arguida se encontrava e as razões apontadas por esta que justificavam aquele estado emocional, descreveu a respectiva sintomatologia e identificou os medicamentos prescritos; a prova destes factos resultou ainda do teor do registo clínico de consultas da arguida no Centro de Saúde de ... de fls. 578/579, do qual se retira que já em maio de 2013, a arguida tinha sofrido uma depressão. A arguida declarou que tomou de imediato a medicação prescrita, mas que sentia dores de cabeça e alguma confusão mental – a perita Dr.ª GG e a testemunha Dr.ª KK declararam que estes sintomas poderão consubstanciar efeitos secundários da medicação, designadamente do antidepressivo e que habitualmente tendem a passar com o tempo. Reportando-se ao dia 17 de Junho de 2016, a arguida afirmou que tomou a medicação antes de sair de casa naquela manhã, na companhia do marido e dos filhos. Relatou que todos estavam de férias com excepção do filho CC que levaram ao infantário. Em seguida, descreveu os locais onde foram durante o período da manhã – café (sublinhou que discutiu com o marido à mesa do café a propósito de umas palavras que este lhe dirigiu na cama nessa manhã, que não conseguia esquecer, que a abalaram profundamente e a fizeram sentir-se humilhada) e loja do minipreço- e o que se passou até ao momento em que voltou a sair de casa com o objectivo de ir ao E´Leclerc comprar um brinquedo que o filho BB lhe pedia. A partir daí, a arguida só se consegue recordar de ter acordado na cama do hospital, na presença do irmão FF, que a informou que ela se tinha atirado da ponte ao rio com o filho BB que acabou por falecer. A arguida lembra-se de ter perguntado como é que isso tinha acontecido e de ter chorado. Presentemente, analisando o que se passou, a arguida, apesar da falha de memória - que se estende ao episódio ocorrido no dia 10 de Junho de 2016 sob a ponte medieval de Barcelos -, conclui que quis pôr termo à sua vida e à do filho BB, por entender que este não aguentaria a sua ausência, considerando designadamente a forte ligação que tinha consigo e o medo e a insegurança que o pai lhe causava – esta razão não se estenderia ao filho mais novo, o CC, pois como a arguida justificou “o pai era amigo dele”. Refutou qualquer sentimento de vingança ou de raiva para com o marido – tanto a perita Dr.ª GG como a testemunha Dr.HH declararam que nos contactos posteriores que tiveram com a arguida nunca denotaram qualquer indício de raiva ou de vingança por parte desta relativamente ao marido e que pudesse justificar o seu comportamento; ambos tendem a concluir que a conduta ilícita assentou antes numa intenção de protecção do filho BB. A arguida confirmou o seu número de telemóvel – 0000000, embora não se recorde de ter efectuado qualquer chamada para o marido no dia 17 de Junho de 2016. Declarou que o vestido de casamento, a aliança e os sapatos retratados nas fotografias de fls. 41/42 são seus. Reconheceu que a letra dos dois bilhetes cujas cópias constam a fls. 41 e 42 lhe pertence, não se recordando de os ter escrito. Afirmou que o filho BB não sabia nadar. Confirmou o teor do relatório social junto aos autos. Por fim, a arguida assumiu o arrependimento sincero e demonstrou o seu sofrimento diário por ser a responsável pela morte de um filho querido.

O assistente DD não prestou depoimento, ao abrigo do disposto no art. 134º, nº 1, do C.P.P.

A perita Drª GG, médica psiquiatra, confirmou e esclareceu o teor e as conclusões do relatório médico-legal psiquiátrico de fls. 402 a 406, por si subscrito, explicitando que para a sua elaboração efectuou uma entrevista com a arguida, consultou todo o processo clínico desta existente no Hospital de ... e ainda o processo judicial. A perita médica afirmou que a arguida sofreu alterações de humor com características depressivas que se foram manifestando cerca de três semanas antes da data da tragédia, quadro que foi diagnosticado na consulta datada de 06 de Junho de 2016, na qual foram prescritos o antidepressivo e o ansiolítico, identificados no ponto i. Referiu que a arguida, vivenciando este quadro psiquiátrico, adquiriu uma ideação suicida que terá estado na origem da sua conduta ilícita. Reconhecendo que a arguida tinha consciência dos seus actos e atitudes e entendia perfeitamente as suas consequências, a perita médica explicou que o estado emocional que aquela desenvolvia condicionou a sua tomada de decisão, esclarecendo que o polo negativo de humor consubstanciado na desesperança e na ideação suicida, impediram a adopção de uma atitude diferente daquela que foi tomada por si no dia 17 de Junho de 2016, traduzida no salto da ponte para o rio levando consigo o filho BB, com o objectivo de pôr termo à vida de ambos. A parte afectiva e emocional da arguida que, de acordo com a perita médica, poderão ter determinado um exacerbamento da avaliação negativa que a arguida fazia do seu ambiente familiar e designadamente da relação do pai/filho mais velho, obstaram que esta, responsável pelos seus actos, pudesse vislumbrar uma solução diversa para as contrariedades da sua vida. É com base nestas premissas que a perita concluiu que a arguida era seguramente imputável, embora com atenuantes. Reportando-se à falta de memória da arguida relativamente aos factos ocorridos na ponte, a perita admite como plausível o surgimento de um bloqueio emocional, que a protege da trágica realidade e dimensão das suas consequências. A perita médica afirmou que não encontrou qualquer sentimento de raiva ou revolta da arguida relativamente a ninguém. Analisando todo o circunstancialismo do caso e tal como fez constar no seu relatório, afirmou não ser absurdo concluir que subjacente à decisão da arguida em pôr termo à vida do filho mais velho existiu uma intenção de protecção deste descendente, porquanto se convenceu que este sofreria com a sua ausência. Concluiu que a arguida carece sem dúvida de um acompanhamento médico, nas vertentes de psiquiatria e psicologia, com administração de medicação, embora não vislumbre sintomas psicóticos que possam indicar uma paciente perigosa.

A testemunha II, cunhada da arguida, prestou um depoimento que, apesar de emocionado, revelou-se factual, sincero e objectivo, como decorreu claramente quando, em tom de desabafo, afirmou “não tenho nada contra a AA, quem me dera poder ter algo a apontar-lhe”. Na verdade, a testemunha afirmou que sempre se deu bem com a arguida, que esta era reservada e introvertida, cuidadosa com os filhos, responsável, trabalhadora e não gostava de falhar. Assinalou a existência de uma grande cumplicidade entre a arguida e o filho BB.

A testemunha que reside em ... declarou que aparentemente a arguida e o marido davam-se bem, iam para todo o lado juntos, viviam um para o outro, nunca tendo presenciado qualquer mal-estar entre ambos. Recorda-se apenas de há cerca de 4/5 anos, a mãe ter-lhe dito que a arguida se queixou do DD, acusando-o de lhe ter batido. Caracterizou como normal o relacionamento do seu irmão com o filho BB, dizendo que nunca presenciou qualquer agressão, embora tenha reconhecido que o DD é por vezes ansioso. De todo o modo, nunca viu qualquer marca física no sobrinho que denotasse agressões, sendo certo que estava com este semanalmente, por vezes mais do que uma vez. Referiu que o sobrinho mais velho era desde pequeno muito ligado à mãe, procurando estar sempre com esta. A testemunha não teve conhecimento do episódio ocorrido no dia 10 de Junho de 2016, na ponte medieval de ..., e não assistiu ao salto da arguida com filho para o rio ... no dia 17 daquele mês. Nessa data, por volta das 12h30, atendeu uma chamada telefónica da arguida que lhe perguntou se ela podia ficar com o CC, caso o pai não ficasse. A testemunha respondeu prontamente que sim, mas notando a perturbação da arguida, perguntou-lhe o que se passava, sendo que a arguida procurava assegurar-se que a cunhada ficaria com o filho mais novo. A testemunha perguntou se estava tudo bem com o irmão, tendo a arguida respondido que ele tinha confirmado a existência de uma relação extraconjugal com uma colega de trabalho. A testemunha disse à arguida que iria ter com ela para conversar, ela respondeu que não valia a pena, a testemunha ouviu o sobrinho BB a perguntar à mãe por que é que o irmão tinha que ficar com a tia e em seguida a chamada terminou. A testemunha efectuou então uma chamada telefónica ao irmão, mandou um “sms” à arguida pedindo que se acalmasse, e foi ao encontro do irmão. Não tendo encontrado o DD, a testemunha deslocou-se a casa da mãe da arguida, encontrando-a alterada, descontrolada, aos gritos, dizendo que uma irmã da arguida tinha recebido um telefonema no qual lhe transmitiram que uma mulher se tinha atirado ao rio juntamente com o filho. Apesar da mãe da arguida ter dado indicação que a referida mulher seria a filha, a testemunha não acreditou, tendo saído em direcção à ponte medieval para ver o que se passava. Aí não viu nada. Lembrou-se então da ponte nova, para onde se deslocou e viu muito movimento, tomando conhecimento do que se tinha passado. Desceu para junto da margem do rio e aí viu a arguida já fora da água a ser assistida. Mais tarde, a testemunha acompanhou os elementos da polícia judiciária a casa da arguida e do irmão, tendo encontrado o seu interior nos termos retratados a fls. 39/41. Dentro de casa, no quarto do casal, nos termos retratados a fls. 41/42, foi encontrado o bilhete manuscrito cuja cópia consta a fls. 41. A testemunha referiu ainda a existência do bilhete manuscrito cuja cópia consta a fls. 42 deixado na caixa de correio da sua mãe, sogra da arguida. Perguntada se não notou nada de anormal no comportamento da arguida nos dias que antecederam a tragédia, a testemunha declarou que na semana anterior encontrou-a abatida e perguntou-lhe o que se passava, tendo esta respondido que estava cansada. A testemunha sugeriu-lhe então que tirasse férias, tendo a arguida dito que já estava de férias e tinha ido ao médico.

O depoimento da testemunha KK não mereceu qualquer credibilidade ao Tribunal, considerando as incongruências nele detectadas, nomeadamente quando comparado com as declarações que prestou em sede de inquérito (fls. 61/64) – lidas na audiência de julgamento, ao abrigo do disposto no art. 356º, nºs 2, al. b) e 5, do C.P.P.-, a falta de coerência de raciocínio e de atitude e inverosimilhanças que transpareceram nas afirmações e relatos efectuados. Note-se, aliás, que apesar de se declarar amiga da arguida, esta não a reconheceu em audiência de julgamento, negando ter tido qualquer um dos contactos relatados pela testemunha nesta diligência.

A testemunha KK é a médica de família da arguida desde 2010, no Centro de Saúde de .... Declarou que desde então realizou várias consultas à arguida e aos filhos, salientando que não se lembra de ter visto o pai na maior parte das consultas dos filhos. Definiu a arguida como uma mãe altamente atenta e cuidadosa com os filhos, que cumpria o plano das consultas e seguia as recomendações médicas. Afirmou peremptoriamente que existia um vínculo forte entre a arguida e os filhos, nunca tendo verificado qualquer sinal de agressão física nestes ou sintoma de negligência. Referiu que a arguida padeceu de uma depressão em maio de 2013, a qual teve uma duração de aproximadamente seis meses, sendo que já em Janeiro de 2010 existiram queixas de sensação de ansiedade, nervosismo e tensão – estes factos retiram-se efectivamente do registo clínico de consulta da arguida de fls. 578/579. A testemunha confirmou que no dia 06 de Junho de 2016 a arguida contactou-a, pedindo uma consulta, dizendo que necessitava de falar com ela. Apercebendo-se de que aquela se encontrava perturbada, a testemunha atendeu-a nessa mesma data. Na consulta, constatou que a arguida se encontrava triste, chorosa, muito nervosa e ansiosa. A arguida transmitiu-lhe que não conseguia comer ou dormir há cerca de uma semana, tendo-lhe dito que suspeitava que o marido mantinha uma relação extraconjugal. A testemunha tentou acalmá-la e prescreveu-lhe um antidepressivo – fluoxetina 20 mg- para tomar de manhã e um ansiolítico – diazepan 10 mg- para a noite, medicação que a arguida já tinha tomado numa situação anterior. Nessa consulta, não identificou ideação suicida, nem verificou qualquer indício que pudesse consubstanciar um perigo para a arguida ou para os outros. A testemunha agendou uma consulta para o dia 13 de Junho de 2016, para fazer o acompanhamento do estado da arguida, mas esta não compareceu. A testemunha declarou que ficou surpreendida quando soube dos factos ocorridos no dia 17 de Junho de 2016.

A testemunha MM que tinha saído do trabalho no dia 17 de Junho de 2016, por volta das 12h30, passou de carro na ponte rodoviária sobre o rio ..., que liga ..., e avistou a arguida com um miúdo ao colo que lhe prendeu a atenção pois parecia ter óculos de piscina – note-se que a vítima tinha efectivamente naquela ocasião óculos com aros de massa azul, conforme se retira das fotografias de fls. 81/82. Então, viu a arguida a transpor o gradeamento da ponte com a criança, que se encontrava calma, apercebendo-se que aquela se preparava para saltar para o rio. A testemunha parou o seu veículo, berrou e dirigiu-se à arguida, tendo lançando ainda mão a um casaco que caiu – verificando mais tarde que era de criança- e que certamente não estava vestido. Nesse momento, a arguida atirou-se da ponte com a criança. Já no rio, a criança ainda mexeu os braços por uns instantes e a arguida boiava, sem qualquer reacção. A testemunha declarou que nessa altura não se encontrava mais ninguém na ponte e que o veículo “Renault Megane” retratado nas fotografias de fls. 34/35 não se encontrava ali estacionado – daí que o Tribunal tenha dado como não provado o facto vertido sob o ponto 25; esse veículo sendo propriedade da arguida foi certamente levado mais tarde pelo DD quando acorreu ao local. A testemunha abandonou o local quando chegaram os bombeiros e lhe pediram para desviar o seu veículo.

A testemunha DD tinha um barco no rio Cávado e foi chamado ao local pela irmã que se encontrava em cima da ponte. Meteu-se no seu barco e vendo a arguida a boiar de barriga para baixo no rio, resgatou-a da água. Afirmou que a arguida estava inconsciente, tendo-lhe feito algumas manobras de reanimação. A arguida nada disse e gemia. Estava no local quando chegaram os bombeiros. Acompanhou-os nas buscas da vítima que nunca viu.

A testemunha NN passou na ponte rodoviária sobre o rio ..., no dia 17 de Junho de 2016, por volta das 12h30, conduzindo o seu veículo automóvel, acompanhada da filha de 16 anos. Nesse instante, ambas avistaram a arguida à beira do passeio da ponte, a segurar um telemóvel junto ao ouvido, e uma criança “agarradinha” àquela. Apesar da filha ter dito que a arguida ia fazer uma asneira, talvez matar-se, a testemunha seguiu o seu caminho pois não lhe pareceu que nada de anormal se passasse. Mais tarde soube do sucedido e sentindo-se incomodada por nada ter feito quando avistou a arguida com o filho regressou à ponte para transmitir o que tinha presenciado quando por ali passou.

A testemunha OO circulava de carro sobre a ponte rodoviária sobre o rio ..., no dia 17 de Junho de 2016, entre as 12h00 e as 12h30, quando avistou a arguida e uma criança sentadas no rebordo do passeio da ponte, no lado contrário àquele onde viria a acontecer o salto. Nesse momento, a testemunha abrandou para verificar se estava tudo bem. Viu então que a arguida levou alguma coisa à boca da criança. Constatando que estavam bem, seguiu o seu caminho, sem mais preocupações.

A testemunha PP, inspector da Policia Judiciária – DIC de ..., que acompanhou a investigação dos factos sujeitos a julgamento, confirmou o teor de todas as informações de serviço, relatório de exame ao local do crime, relatos de diligência externa, autos de apreensão, reportagens fotográficas, e resultados das demais diligências realizadas por elementos da polícia judiciária juntos aos autos na fase de inquérito, sem que o teor destes tenha sido questionado por qualquer um dos intervenientes processuais – a testemunha subscreveu a informação de serviço de fls. 20 a 31, os autos de apreensão de fls. 68/69 e 131, as cotas de fls. 88, 114, 144, 151 e 157, o relato de diligência externa de fls. 129/130 e o auto de visionamento de registo de imagens de fls. 158 a 168.

A testemunha FF, irmão da arguida, declarou que havia contactos frequentes entre ambos. A testemunha, a propósito do relacionamento da arguida com o companheiro, declarou que presenciou em casa da mãe, aos fins de semana, algumas situações em que o DD exaltava-se com a irmã, elevando a voz e gesticulando, mesmo em frente aos filhos. Referiu, ainda, que essa exaltação se estendia frequentemente ao filho BB (v.g quando este não queria comer ou fazia alguma traquinice), apercebendo-se que este receava o pai – a testemunha concluiu, dizendo, que o DD pretendia manter o respeito e educar o filho de forma mais autoritária e agressiva. Afirmou que antes do dia 10 de Junho de 2016, esteve com a arguida e esta disse-lhe que “não estava bem da cabeça” e que já tinha ido ao médico. Não presenciou os factos que tiveram lugar na ponte medieval em ..., no dia 10 de Junho. Nessa data, depois de tomar conhecimento do sucedido, procurou a arguida que lhe disse que estava tudo mais calmo e que tinha pedido ajuda ao marido. Depois do dia 10 de Junho, a arguida confidenciou-lhe que tinha problemas com o marido, que era vítima de violência doméstica e que o DD era mau para o filho mais velho. Disse-lhe ainda que suspeitava de uma relação extraconjugal do marido com uma mulher de nome “...” e que não sabia lidar com esta situação. Confirmou a troca das mensagens retratadas a fls. 319. Confrontado, nos termos do art. 356º, nº 2, al. b) e 5, do C.P.P, com as declarações prestadas em sede de inquérito constantes no auto de fls. 315/318, a testemunha confirmou o teor daquelas consignadas nas linhas 15/44.

A testemunha JJ, irmã da arguida, declarou que no dia 10 de Junho de 2016, recebeu um telefonema, tendo-lhe sido dito que a arguida tinha ido para a ponte medieval em ... para fazer alguma asneira. A testemunha acorreu à ponte medieval, na companhia de um irmão, e aí encontrou a arguida perto do gradeamento, parada no meio do tabuleiro, com o filho BB ao colo, a olhar para a água do rio. A arguida só se apercebeu da sua presença quando chegou perto dela. Falou com a arguida, procurando acalmá-la. A irmã, visivelmente abatida, disse-lhe que queria atirar-se ao rio, nunca tendo mencionado que pretendia saltar juntamente com o filho BB – a testemunha confrontada com as declarações que prestou em inquérito a fls. 323/326, linhas 37/45, lidas em audiência de julgamento ao abrigo do disposto no art. 356º, nºs 2, al. b) e 5, do C.P.P, confirmou o seu teor. O episódio terminou com a chegada do DD, acompanhado do filho CC, que levou a arguida para casa. Mais tarde, a testemunha passou por casa da arguida, tendo esta dito que estava melhor e que ia descansar. Relativamente ao comportamento da arguida nos dias anteriores, a testemunha afirmou que a irmã andava agitada, nervosa e ansiosa, o que não era normal, mas nunca a confrontou com esse facto. Referiu que por vezes em casa dos seus pais, ao fim de semana, o DD exaltava-se com a arguida, subindo o tom de voz. Do relato que efectuou a propósito da relação que o DD tinha com o filho BB, pode concluir-se, no mínimo, que aquele revelava alguma impaciência e agressividade para com a vítima – “se fizesse alguma coisa batia-lhe, levantava logo a mão”.

A testemunha Dr.HH é o médico psiquiatra que acompanha a arguida na Casa de Saúde ..., desde a data em que aí foi internada – 18.06.2016. Do acompanhamento efectuado, a testemunha retira que a arguida padece desde aquela data de uma perturbação emocional, com flutuações na sua evolução, a exigir um acompanhamento e vigilância permanentes, designadamente ao nível psiquiátrico e psicológico, com ministração de medicação. A testemunha afirmou que a arguida revela grande fragilidade emocional, podendo registar-se facilmente um aumento da instabilidade que vivencia face a uma qualquer contrariedade ou evento, como ocorreu recentemente com a proximidade da realização do julgamento. A testemunha considera razoável, não vislumbrando qualquer sinal que a infirme, a verificação da falta de memória – bloqueio emocional- que a arguida invoca quanto ao acontecimento vivencial traumático. Referiu que nunca encontrou qualquer laivo de raiva ou rancor que pudesse ter motivado a conduta ilícita. Por fim, a testemunha foi muito esclarecedora quando afirmou que o estado actual da arguida impõe um acompanhamento e uma vigilância permanente por parte de técnicos que jamais poderá ser dispensado por guardas prisionais num qualquer estabelecimento prisional, tendo referido que o facto de aquela estar internada numa unidade de doentes agudos desde que chegou à Casa de Saúde do Bom Jesus é muito significativos acerca da atenção e cuidados que o caso requer.

A testemunha QQ é o enfermeiro que acompanha diariamente a arguida na Casa de Saúde do ... desde a data do seu ingresso nessa instituição. É o responsável por vigiar o comportamento da arguida e detectar qualquer indício de ideação suicida, assim como pela ministração da medicação. Descreveu o estado da arguida – ansiosa, triste, isolada, com insónia marcada, sem alegria de viver. Afirmou que a arguida nunca se referiu ao episódio trágico que determinou a morte do filho mais velho e sempre manifestou interesse em ver o mais novo, o que lhe foi negado. Perguntado sobre a perspectiva de recuperação da arguida, a testemunha, apelando à sua experiência profissional, explicou que o percurso até se atingir uma estrutura emocional mínima que permita enfrentar o quotidiano é longo, podendo implicar anos.

A testemunha LL é vizinha, amiga e colega de trabalho da arguida. Afirmou que esta é reservada e mantinha um óptimo relacionamento com os filhos, dizendo que estes eram “o seu tesouro”. Declarou que nas conversas que tinham frequentemente, a arguida nunca lhe relatou mau ambiente familiar, embora de sua casa tenha ouvido algumas discussões do casal. Nos dias que antecederam o trágico evento, a arguida andava cansada, queixou-se que a cabeça estava confusa e que necessitava descansar. Já no decurso das férias que gozava na ocasião dos factos, a arguida disse à testemunha que tinha ido ao médico e que andava a tomar antidepressivos. O trágico evento deixou-a surpreendida.

A testemunha RR é a psicóloga que acompanha a arguida na Casa de Saúde ..., desde a data do seu internamento nesta instituição. Depôs de forma serena, objectiva e esclarecedora quanto ao estado de saúde que a arguida apresentava naquela data, sua evolução até à actualidade e perspectivas para o futuro. Assim, a testemunha começou por afirmar que quando contactou a arguida pela primeira vez esta encontrava-se muito instável do ponto de vista emocional, apresentando sintomatologia própria de uma depressão muito grave - perdas de memória, falta de concentração, dificuldade em falar, choro frequente, desesperança e ideação suicida. Do que pode observar das sessões realizadas com a arguida e da consulta dos elementos clínicos a que teve acesso, a testemunha, sem nunca questionar a imputabilidade da arguida, não teve dúvidas em concluir que esta possuía à data dos factos a sua capacidade volitiva diminuída, querendo com isto significar que a vontade de tomar decisões num ou noutro sentido era permeável ao estado emocional que experimentava e certamente contribuiu para o cometimento do facto ilícito. Declarou que a evolução do estado da arguida não tem sido linear até à presente data, registando-se períodos de grande instabilidade, o que determina que continue na unidade de doentes agudos da Casa de Saúde do .... Referiu que a arguida necessita de uma vigilância apertada e diária – a testemunha aludiu a uma vigilância de 24 horas-, com acompanhamento médico – vertentes psiquiátrica e psicológica-, sempre supervisionada por técnicos de saúde que controlam inclusivamente a medicação prescrita. Manifestou preocupação perante o futuro do processo-crime e a possibilidade de a vigilância e acompanhamento por parte de técnicos de saúde poderem sofrer alterações, porquanto, entende, que qualquer facilitismo a este nível poderá determinar retrocessos e inclusivamente tentativas suicidas, já que esta ideação ainda constitui um risco elevado. A testemunha foi peremptória ao afirmar que a alegada falta de memória da arguida quanto aos factos criminosas corresponde à verdade, não tendo constatado qualquer sinal que a infirme. Por fim, a testemunha salientou que a arguida tem um longo caminho a percorrer – talvez anos- até conseguir ultrapassar a depressão de que padece.

Em suma:

Os elementos de prova acima indicados e analisados – devidamente conjugados e valorados e considerando que os depoimentos, com excepção do da testemunha KK, mereceram credibilidade ao Tribunal, uma vez que se revelaram objectivos e sinceros, coerentes e responsáveis- contêm aptidão probatória dos factos descritos sob o ponto i), suficiente, assim, para desvirtuar a presunção de inocência de que beneficia a arguida

A arguida, insatisfeita com o ambiente familiar que vivia – relacionamento com o marido e o comportamento deste para com o filho mais velho, a que acresceu a suspeita de um relacionamento extraconjugal daquele- desenvolveu uma depressão grave, durante a qual se veio a registar ideação suicida. Esse estado emocional condicionou o seu pensamento – inclusivamente, pode ter gerado um exacerbamento da visão negativa que tinha do seu casamento e da relação pai/filho C...., conforme referiu a Drª GG- e condicionou a tomada de decisões e comportamentos. Com consciência da gravidade dos factos e da sua valoração e por isso mesmo sem nunca ter deixado de ser responsável pelos mesmos, a arguida decidiu pôr termo à sua vida e à do filho mais velho, convencendo-se que este não suportaria a sua ausência. Esta solução (errada) foi tomada pela arguida em função da sensível diminuição da sua capacidade volitiva. Com efeito, o quadro depressivo não a afectou ao nível da consciência, da compreensão da ilicitude dos factos e da sua valoração, mas tão só ao nível do controlo da vontade. Deste modo, a arguida dirigiu-se à ponte sobre o rio ..., fazendo-se acompanhar do filho mais velho, e daí saltou com este para o rio, com o objectivo de pôr termo à vida de ambos. Agiu, pois, livre, deliberada e conscientemente, sabendo necessariamente, como qualquer outro cidadão, que a sua conduta era proibida e punida por lei - a conduta em discussão reporta-se a acção que a generalidade dos cidadãos (e bem assim a arguida) sabe ter relevância jurídico-penal e como tal ser proibida, aliás como demonstra bem o arrependimento que declarou na audiência de julgamento. Esta foi, porém, a única solução que vislumbrou para as contrariedades que experienciava. O filho acabou por morrer afogado e a arguida foi resgatada do rio com vida. A arguida, considerada uma boa mãe, a quem ninguém consegue apontar qualquer falha no seu relacionamento com os filhos, actuou convicta que protegia o filho BB (esse convencimento decorre, designadamente, do teor dos bilhetes por si escritos e apreendidos nos autos e é corroborado pela seriedade do ato que praticou visando pôr termo à sua própria vida; acresce que não foi apurado qualquer indício de vingança relativamente ao cônjuge que sustente qualquer intencionalidade com tais contornos subjacente à sua conduta para com o filho mais velho). Presentemente, padece de uma depressão grave, sem sintomas psicóticos, que impõe um acompanhamento e vigilância permanentes e apertados, realizados por técnicos de saúde, com ministração de medicação e terapia psiquiátrica e psicológica, controlando sempre os indícios de ideação suicida. A arguida demonstra arrependimento e sofrimento diário por ter posto termo a vida ao filho, apesar do bloqueio emocional relativamente a estes factos.

Sob os factos vertidos no ponto ii), importa tecer os considerandos que se seguem.

O facto descrito sob o ponto 25 foi considerado não provado atendendo ao depoimento da testemunha MM e às razões que se explanaram a propósito da sua análise acima efectuada.

Uma vez que o assistente DD não prestou depoimento, não foi possível apurar da veracidade do facto enunciado sob o ponto 26, tanto mais que não existe nenhum elemento de prova de onde se possa retirar o teor do telefonema que a arguida fez da ponte ao seu cônjuge no dia 17 de Junho de 2016.

Por fim, o Tribunal considerou que não foram reunidos elementos de prova que possam determinar a prova do facto vertido sob o ponto 27. Apesar do episódio ocorrido no dia 10 de Junho na ponte medieval em Barcelos, não se pode concluir sem mais que a arguida persistiu na ideia de se suicidar e tirar a vida ao filho BB pelo período de uma semana. Note-se que após aqueles factos, a testemunha JJ, sua irmã, deslocou-se a casa da arguida onde esta disse que estava melhor e que iria descansar, aparentando, deste modo, ter abandonado a ideia suicida. Por outro lado, não é absurdo pensar, atendendo à perturbação depressiva que sofria, que a decisão de se suicidar e tirar a vida ao filho, possa ter surgido de uma qualquer contrariedade ocorrida na manhã do dia 17 de Junho, tal como aquela que a arguida relatou, traduzida nas palavras que lhe dirigiu o marido, que não conseguiu esquecer e a fizeram sentir-se humilhada. Face ao exposto e em observância do princípio in dubio pro reo, considerou-se não provado o facto em causa.»

            3. Apreciação

            3.1. Qualificação jurídica dos factos

            Crime de homicídio simples ou privilegiado

3.1.1. A recorrente está condenada pela prática de um crime de homicídio simples, centrando agora a sua discordância do acórdão sob recurso relativamente à subsunção jurídico-penal dos factos, que pretende ver efectivada no tipo legal de crime de homicídio privilegiado p. e p. pelo artigo 133.º do Código Penal.

           Considera que, «Contrariamente ao […] decidido, dos factos provados resultam, relativamente à pessoa da Recorrente e à sua tomada de resolução criminosa, que passaria por pôr termo à sua vida, juntamente com a do seu filho, por verificados os pressupostos daquele tipo legal previsto no art. 133º do C. Penal».

E que, «Erradamente, afastou o Douto Tribunal da Relação a sensível diminuição da culpa da recorrente, pese embora tenha admitido, que a mesma se encontrava numa situação de desespero».

Concluindo que «Os factos provados configuram-se como bastantes para se concluir pela verificação de um verdadeiro «desespero» que diminuíram sensivelmente a culpa da Recorrente – cfr. art. 133º do C. Penal – encontrando-se assim justificado o tipo em causa».

3.1.2. Impõe-se, assim, analisar o crime de homicídio privilegiado, condensando os contributos mais relevantes da doutrina e da jurisprudência sobre o fundamento do privilegiamento que é invocado: o «desespero», enquanto estado que diminua sensivelmente a culpa.

Para tanto, segue-se muito de perto, o acórdão deste Supremo Tribunal de 28 de Junho de 2017, proferido no processo n.º 557/09.0GEVNG.P3.S1- 3.ª Secção[3], relatado pelo ora relator, relativo a «um caso com elevada similitude, pese embora alguma distância em termos de contornos de actuação concreta», como bem reconhece o Ex.mo Magistrado do Ministério Público no Tribunal da Relação de Guimarães na resposta ao recurso interposto.

Estabelece o artigo 133.º, do Código Penal que:

«Quem matar outra pessoa dominado por compreensível emoção violenta, compaixão, desespero ou motivo de relevante valor social ou moral, que diminuam sensivelmente a sua culpa, é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos.»

A redacção original do preceito, constante do Código Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 400/82, de 23 de Setembro, dispunha:

«Será punido com pena de prisão de 1 a 5 anos quem for levado a matar outrem dominado por compreensível emoção violenta ou por compaixão, desespero ou outro motivo, de relevante valor social ou moral, que diminua sensivelmente a sua culpa.»

O tipo previsto no Código Penal de 1982 traduziu-se numa ruptura com o regime anteriormente consagrado no artigo 370.º, do Código Penal de 1852/1886 relativo ao homicídio provocado «por pancadas ou outras violências graves contra as pessoas», uma vez que, como refere AMADEU FERREIRA, o fundamento do privilegiamento passou a estar «ligado ao próprio agente emocionado, menos culpado devido às características da sua emoção, independentemente das causas»[4], e não, como sucedia anteriormente, à existência de um facto exterior ao mesmo que o impelia a agir, diminuindo a sua culpa.

Foi com o Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, que o artigo 133.º passou a ter a sua actual redacção, tendo sido esclarecidas algumas das dúvidas que a redacção original suscitava.

Assim, questionava-se «se a compaixão e o desespero deveriam ser valorados, primeiro, enquanto motivos de relevante valor social ou moral, como a redacção do preceito parecia inculcar (…), valoração expressiva de uma menor ilicitude que conduziria à exigência de que estes motivos assumissem uma relevância objectiva»[5].

Questionava-se, ainda, «se a exigência de uma diminuição sensível da culpa respeitava a todas as cláusulas de privilegiamento ou apenas à última, ou seja, o motivo de relevante valor social ou moral, como a redacção do preceito deixava transparecer (…)»[6].

Com a redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 48/95, passou a ser claro que se nos deparam quatro conceitos autónomos e distintos: «compreensível emoção violenta», «compaixão», «desespero» ou «motivo de relevante valor social ou moral», aos quais acresce a exigência de que os mesmos diminuam sensivelmente a culpa, para que se verifique o privilegiamento do homicídio.

Questão amplamente debatida na doutrina e fundamental para ajudar a concretizar os requisitos exigidos para que se mostre preenchido o artigo 133.º, do Código Penal, é a de saber qual é afinal o fundamento do privilegiamento aí previsto.

O crime de homicídio privilegiado, previsto na citada disposição legal deriva de uma menor culpa do agente. O facto típico e ilícito «corresponde, segundo FERNANDO SILVA, ao mesmo do previsto no art. 131.º, acrescentando elementos privilegiadores. Em causa está um estado de perturbação psicológica do agente face a determinadas circunstâncias que tornam o seu comportamento menos exigível. A menor exigibilidade pode resultar de factores de perturbação distintos, mas todos eles influenciam a decisão do agente, que apenas decide cometer aquele facto por se encontrar sob um estado psicológico afectado»[7].

Para o autor que se vem citando, «[n]a estrutura do tipo do art. 133.º podemos identificar quatro elementos privilegiadores, e dois requisitos fundamentais. Os elementos privilegiadores são a compreensível emoção violenta, a compaixão, o desespero e o motivo de relevante valor social ou moral: A menor exigibilidade ocorre pelo facto do agente se encontrar sob um desses estados psicológicos e praticar o facto por força dessa influência». Para além da verificação de um dos quatro elementos privilegiadores, «é necessário, acrescenta o mesmo autor, que se verifiquem dois requisitos: que o agente actue dominado pelo respectivo elemento, o que significa que a circunstância em causa tem de envolver o agente e levá-lo a praticar o crime, sendo por esse motivo que a sua exigibilidade está diminuída». O segundo requisito consiste “na diminuição da culpa, que se apresenta neste tipo como o fundamento único do privilegiamento. Face à actual, redacção do tipo, não restam dúvidas que apenas pode haver privilegiamento se o agente tiver a sua culpa diminuída»[8]

Seguindo de perto a lição de TERESA QUINTELA DE BRITO[9], para uns, o fundamento do privilegiamento é diverso consoante estejam em causa as situações de «compreensível emoção violenta», «compaixão» e «desespero» ou o «motivo de relevante valor social ou moral».

Assim, FERNANDA PALMA[10] considera que o privilégio tem dois fundamentos distintos: por um lado, e no que diz respeito aos casos de «compreensível emoção violenta», «compaixão» e «desespero», a menor capacidade psicológica de o agente dominar os seus impulsos e de determinar a sua vontade; por outro, e no que concerne ao «motivo de relevante valor social ou moral», a menor exigibilidade de um comportamento de acordo com o Direito, atenta a relevância social do motivo que o conduziu à decisão criminosa.

FREDERICO COSTA PINTO[11] expressa entendimento semelhante, considerando que o fundamento do privilegiamento nos casos de «compreensível emoção violenta», «compaixão» e «desespero» é um estado de menor culpa do agente (imputabilidade diminuída), pelo que relativamente a estas causas não se aplica a exigência de diminuição sensível da culpa, prevista na parte final do artigo 133.º. Em sua opinião, tal exigência apenas é aplicável ao privilegiamento por conta de «motivo de relevante valor social ou moral», sendo que, neste caso, o mesmo tem natureza mista, assente num decréscimo do conteúdo de ilícito e da culpabilidade do facto.

Também AMADEU FERREIRA se situa nesta posição, ao cindir o fundamento do privilegiamento em dois aspectos distintos: por um lado, na «compreensível emoção violenta» a culpa é atenuada por via da imputabilidade diminuída; ao passo que nos restantes casos tal funda-se na exigibilidade diminuída de um comportamento diverso. Sendo que, em ambos os casos, «o art. 133.º constitui um tipo de culpa em que se atende prioritariamente, não à causa do facto ou à sua consideração global, mas ao estado do agente, ao grau de afectação da sua vontade»[12].

Por sua vez, para SOUSA E BRITO[13], o fundamento do privilegiamento do artigo 133.º, do Código Penal é, em todas as situações aí previstas – «compreensível emoção violenta», «compaixão», «desespero» e «motivo de relevante valor social ou moral» – a imputabilidade diminuída do agente.

Por fim, no entendimento sustentado por FIGUEIREDO DIAS[14], TERESA SERRA[15] e CURADO NEVES[16], o privilégio é reconduzido à exigibilidade diminuída, sendo certo, porém, que estes autores não são unânimes na concepção de exigibilidade diminuída perfilhada.

Para FIGUEIREDO DIAS, as várias circunstâncias elencadas no artigo 133.º - a «compreensível emoção violenta», a «compaixão», o «desespero» e o «motivo de relevante valor social ou moral» – têm de ser externas ao próprio agente. Tal conclusão resulta da delimitação e diferenciação do conceito de «diminuição sensível da culpa», exigida pelo preceito em causa, do conceito de «imputabilidade» (artigo 20.º, do Código Penal) e ainda do conceito de «consciência da ilicitude» (artigo 17.º, do Código Penal). Ou seja, uma vez que a aplicação do artigo 133.º, do Código Penal pressupõe a imputabilidade do agente e a consciência da ilicitude, o privilegiamento tem necessariamente que se fundar numa situação endógena e exógena ao agente e em que «também o homem normalmente “fiel ao direito” (“conformado com a ordem jurídico-penal”) teria sido sensível ao conflito espiritual que lhe foi criado e por ele afectado na sua decisão, no sentido de lhe ter sido estorvado o normal cumprimento das suas intenções»[17].

Também M. MIGUEZ GARCIA e J. M. CASTELA RIO consideram que «os fundamentos do privilégio assentam em motivos ligados ao agente, que contam unicamente para a culpa», salientando que «o art. 133.º tem o seu lugar próprio em situação de exigibilidade diminuída», sendo este, pois, «o fundamento único do privilégio»[18].

Como se considera no acórdão deste Supremo Tribunal, de 12-09-2013, proferido no processo n.º 844/11.8JAPRT – 3.ª Secção:           

«A enumeração das circunstâncias que caracterizam o tipo privilegiado de homicídio feita no artigo 133.º não é exemplificativa, o que ressalta com clareza a partir da redacção introduzida pela alteração do Código Penal, operada pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, entrada em vigor em 1 de Outubro de 1995 (anteriormente a jurisprudência considerava-a exemplificativa – cfr. acórdãos do STJ, de 16-01-1990, processo n.º 38690, CJ 1990, tomo 1, pág. 11 e BMJ n.º 393, pág. 212; de 16-01-1990, processo n.º 40599, AJ, n.º 5 e mesmo BMJ n.º 393, pág. 278; de 23-05-1991, BMJ n.º 407, pág. 341 e de 05-02-1992, comentado in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 6 (1996), Fasc. 1.º, pág. 119).

           «Não foi intenção do art. 133º (…) consagrar uma cláusula geral de menor exigibilidade no crime de homicídio; foi, pelo contrário, a de vincular uma tal cláusula à verificação de um dos pressupostos nele explicita e esgotantemente contidos. O que neles não caiba só pode ser (eventualmente) considerado através do instituto da atenuação especial da pena do homicídio simples previsto no art.131º» (cf., Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense …, §§ 6 e 12, págs. 49/50 e 53).

            A compreensível emoção violenta; a compaixão; o desespero; ou um motivo de relevante valor social ou moral constituem cláusulas que apontam para a redução da culpa, ou cláusulas de privilegiamento, ou elementos privilegiadores, traduzindo estados de afecto vividos pelo agente, ou causas de atenuação especial da pena do homicídio.

            O artigo 133.º consagra hipóteses de homicídio privilegiado em função, em último termo, de uma cláusula de exigibilidade diminuída legalmente concretizada, advertindo o Autor que a diminuição sensível da culpa não pode ficar a dever-se nem a uma imputabilidade diminuída, nem a uma diminuída consciência do ilícito, mas unicamente a uma exigibilidade diminuída de comportamento diferente, tratando-se da verificação no agente de um estado de afecto, que podendo ligar-se a uma diminuição da imputabilidade ou da consciência do ilícito, independentemente de uma tal ligação, opera sobre a culpa ao nível da exigibilidade.

“O efeito diminuidor da culpa ficar-se-á a dever ao reconhecimento de que, naquela situação (endógena e exógena), também o agente normalmente “fiel ao direito” (“conformado com a ordem jurídico penal”) teria sido sensível ao conflito espiritual que lhe foi criado e por ele afectado na sua decisão, no sentido de lhe ter sido estorvado o normal cumprimento das suas intenções” (cf., Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense § 1, pág. 47, e § 3, pág. 48).

            “Tanto a qualificação no artigo 132º, como o privilegiamento no artigo 133º, ficam-se a dever a diferentes graduações da culpa, no primeiro caso no sentido de uma especial censurabilidade da atitude contrária ao direito actualizada no facto pelo agente, e, no segundo, no sentido da consideração da atitude do agente manifestada no facto como sensivelmente menos censurável”; “o fundamento de uma agravação ou de uma atenuação que altera uma moldura penal pode não ser um fundamento de ilicitude, mas apenas um fundamento de culpa”.

            “A moldura penal do homicídio privilegiado funda-se ela própria numa atitude do agente sensivelmente menos censurável e que ultrapassa até os limites impostos pela atenuação especial prevista no (então) artigo 74º, nº 1, alínea a)” (cf., Teresa Serra, Homicídio Qualificado, Tipo de Culpa e Medida da Pena, Almedina, 1990, pág. 40).

3.1.3. De entre as várias situações a que alude o artigo 133.º, do Código Penal, cumpre, perante a economia deste recurso, examinar o desespero enquanto fundamento privilegiador. Na verdade, no caso vertente, é com base no estado emocional de desespero, recondutível ao conceito tipo do artigo 133.º do Código Penal que a recorrente entende dever censurada pelo homicídio do filho.

No desespero despontam estados de afecto ligados à angústia, à depressão ou à revolta.

É entendimento de M. MIGUEZ GARCIA e J. M. CASTELA RIO, que se acompanha, que «o desespero, como o elemento que privilegia o crime, significa ausência total de esperança e sentimento de absoluta incapacidade de superação das contingências exteriores que afectem negativamente o indivíduo, a falência irremediável das elementares condições para a manifestação da dignidade da pessoa. O desespero significa e traduz um estado subjectivo em que a angústia, a depressão ou as consequências de factores não domináveis colocam o estado de afecto do sujeito no ponto em que nada mais das coisas da vida parece possível ou sequer minimamente positivo»[19].

AUGUSTO SILVA DIAS trata o «desespero» como «vivência emocional caracterizável como total falta de esperança, como sensação de estar num “beco sem saída” existencial»[20].

Um estado de afecto que, segundo PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, «suscita no agente impotência diante de uma situação pessoal, de terceiro ou da vítima»[21].

Enfim, o agente do crime, observa JAIME FREIRE, «tem de estar desesperado, de se encontrar num beco sem saída»[22].

O acórdão deste Supremo Tribunal de 29-10-2008, proferido no processo n.º 08P1309, supra citado, condensa as contribuições da doutrina sobre a cláusula do desespero que se nos afigura pertinente convocar.

Assim:

«Para Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense …, pág. 52, o estado de afecto desespero corresponde, não tanto a situação objectiva de falta de esperança na obtenção de um resultado ou de uma finalidade, mas sobretudo a estados de afecto ligados à angústia, à depressão ou à revolta, não se tornando necessário que deva ter-se como compreensível.

Teresa Serra, Homicídios em Série, págs. 159/160, define desespero como estado emocional que tal como a compaixão afecta o discernimento normal do agente, em que em contraposição à emoção violenta, há uma acumulação de tensão que impele o autor a um beco sem saída ou a considerar-se num beco sem saída, actuando em conformidade com esse impulso. A situação de desespero implica estados emotivos de natureza passiva, interiorizada, reflexiva, com uma componente intelectual, não sujeita à cláusula da compreensibilidade, podendo reconduzir-se ao desespero os casos de homicídio de humilhação prolongada.

João Curado Neves, in RPCC 2001 citada, pág. 186, afirma que o desespero tanto pode consistir num estado de espírito ocasional como resultar da avaliação ponderada da situação em que o agente se encontra; está em causa, não a perturbação do agente, mas a motivação do facto.

Para Frederico Lacerda Costa Pinto, in RPCC 1998 citada, pág. 288, desespero corresponde a situação de facto em que o agente se encontra numa situação de pressão psicológica que lhe apresenta o crime como a única saída possível para a situação em que se encontra.

Segundo Leal Henriques - Simas Santos, Código Penal Anotado, II, pág.132, entende-se por desespero «o estado de alma em que se encontra quem já perdeu a esperança na obtenção de um bem desejado, de quem enfrenta uma grande contrariedade ou uma situação insuportável, enfim, de quem está sob a influência de um estado de aflição, desânimo, desalento, angústia ou ânsia» - assim no acórdão do STJ de 17-01-2008, processo n.º 607/07-5ª.

Amadeu Ferreira, Homicídio Privilegiado, págs. 68 a 71 refere: Embora muito próximo da emoção violenta, distingue-se dela porque coincide em geral, com situações que se arrastam no tempo, fruto de pequenos ou grandes conflitos que acabam por levar o agente a considerar-se numa situação sem saída, deixando de acreditar, de ter esperança, exigindo a lei não apenas que o agente esteja desesperado, mas que tal desespero diminua consideravelmente a sua culpa, o que só poderá entender-se se levarmos em conta os motivos do autor.

Se é certo que “o que identifica socialmente um homem desesperado não é o valor social ou ético dos seus motivos, mas a estrutura comportamental, independentemente das suas causas”, devemos realçar que não basta identificar o homem desesperado. É necessário que tal desespero diminua sensivelmente a culpa do agente.”

Para Teresa Quintela de Brito, loc. cit, pág. 923, o desespero só pode tornar menos exigível um comportamento conforme ao direito, em função (a) da não reprovabilidade ou, mesmo, da relevância humana, ética ou social dos motivos que orientam o agente e (b) da correspondência de tais motivos a um quadro de vida tão grave que ponha em causa a própria dignidade humana do autor.

Fernando Silva, loc. cit., pág. 113, refere que o desespero está associado a situações extremas, em que o agente foi suportando uma situação que sobre ele exerce grande pressão psicológica, vendo limitar-se as suas capacidades de resistir mais à situação, e mata como forma de libertação desse estado. Neste tipo de situações o decurso do tempo foi funcionando como agravante da situação do agente, que provavelmente em silêncio e sozinho foi interiorizando o seu sentimento, acabando por o exteriorizar. Todo o circunstancialismo foi desgastando o agente, que acaba por matar por força dessa mesma situação, não encontrando outra saída para o problema que o afecta.»

A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça elaborada sobre a figura do homicídio segue tendencialmente a doutrina de FIGUEIREDO DIAS, no sentido de que o fundamento do privilegiamento previsto no artigo 133.º, do Código Penal é a exigibilidade diminuída, considerando que o mesmo é comum a todas as circunstâncias aí previstas.

Assim, e como refere o citado acórdão de 29-10-2008: «O homicídio privilegiado assente numa cláusula de exigibilidade diminuída concretizada em certos “estados de afecto” vividos pelo agente, que diminuam sensivelmente a sua culpa».

Também o acórdão de 24-02-2016, proferido no processo n.º 1825/08.4PBSXL.E1.S1 – 3.ª Secção:

«Ao crime de homicídio privilegiado subjazem considerações atinentes à culpa, que se situam ao nível da exigibilidade. É a especial diminuição da culpa, em resultado de exigibilidade diminuída, que justifica e fundamenta o crime do art. 133.º, do CP».

Bem assim, o acórdão de 07-09-2016, proferido no processo n.º  405/14.0JACBR.C1 - 3.ª Secção:

«Subjacente à norma do art. 133.º, do CP, como elemento do tipo privilegiado, está um critério de menor exigibilidade relacionado com a sensível diminuição da culpa».

No mesmo sentido, e referindo-se expressamente ao facto de a exigibilidade diminuída ser fundamento comum às várias circunstâncias previstas no artigo 133.º, do Código Penal, veja-se o acórdão de 05-02-2015, proferido no processo n.º 160/13.0GBTMR.C1.S1 – 5.ª Secção:

«O privilegiamento do homicídio deriva de uma sensível diminuição da culpa, a qual constitui denominador comum às quatro circunstâncias enunciadas no art. 133.º, do CP, todas elas com o efeito de conformar uma exigibilidade diminuída de comportamento diferente».

Veja-se ainda o acórdão de 09-04-2015, proferido no processo n.º 353/13.0PAPNI.L1.S1 – 3.ª Secção:

«A compreensível emoção violenta, a compaixão, o desespero, ou um motivo de relevante valor social ou moral constituem cláusulas que apontam para a redução da culpa, ou cláusulas de privilegiamento, ou elementos privilegiadores, traduzindo estados de afecto vividos pelo agente, ou causas de atenuação especial da pena do homicídio».

Também no que diz respeito à delimitação das várias circunstâncias previstas no citado preceito, designadamente no que diz respeito ao facto de as mesmas terem de ser externas ao próprio agente, é a doutrina perfilhada por Figueiredo Dias que é seguida, manifestando-se a mesma sobretudo na referência (e exigência) da jurisprudência a uma relação de proporcionalidade “entre o facto injusto provocador e o facto ilícito provocado” – neste sentido vejam-se, a título exemplificativo, o acórdão do STJ de 12-03-2015, proferido no proc. n.º 40/11.4JAAVR.C2.S1, o acórdão do STJ de 29-05-2013, proferido no proc. n.º 1264/11.0PCSTB.E1.S1, e o acórdão do STJ de 20-06-2012, proc. n.º 416/10.4JACBR.C1.S1.

3.1.4. Como já se referiu e como salienta JAIME FREIRE, a condição substantiva do desespero não basta para o privilégio suceder. O desespero tem além disso de diminuir sensivelmente a culpa do autor, só se almejando tal indiciação conhecendo os motivos significantes, que têm de ser, como tais (no ordenamento), bons, não vis, ou vãos[23].

Sendo ao homem médio que a jurisprudência considera ser de recorrer para aferir da «diminuição sensível da culpa».

Como se considera no acórdão do STJ de 05-06-2014, proferido no proc. n.º 259/09.8JAPTM.E1.S1-5.ª,[24], a «menor exigibilidade tem de ser vista à luz do comportamento de uma pessoa normal, respeitadora das normas jurídicas, e não do particular ponto de vista do agente».

      3.1.5. Em breve síntese:

a) A exigibilidade diminuída constitui o fundamento do tipo privilegiado previsto no artigo 133.º, do Código Penal comum a todas as situações aí previstas – «compreensível emoção violenta», «compaixão», «desespero» e «motivo de relevante valor social ou moral».

b) A exigibilidade diminuída corresponde à «diminuição sensível da culpa» referida no artigo 133.º, do Código Penal. Uma vez que, para que possa estar em causa a prática por um agente do crime previsto no artigo 133.º, do Código Penal, este tem, previamente, que ser imputável (artigo 20.º, do Código Penal) e ter consciência da ilicitude (artigo 17.º, do Código Penal), a «diminuição sensível da culpa» tem de corresponder à sensibilidade que o homem normalmente fiel ao direito teria sentido ao conflito espiritual criado ao agente e que o afectou na sua decisão, no sentido de ter tolhido o normal cumprimento das suas intenções.

A «diminuição sensível da culpa» tem, assim, de se fundar numa situação ao mesmo tempo endógena e exógena ao agente: endógena na medida em que tem de corresponder a uma emoção sentida pelo mesmo, e exógena no sentido de que tem de ter um suporte externo e objectivo para ser atendível.

c) A «diminuição sensível da culpa» corresponde à sensibilidade do homem normalmente fiel ao direito ao conflito espiritual criado ao agente e que o afectou na sua decisão.

d) Tanto no que diz respeito à «compreensibilidade» da emoção violenta, como no que diz respeito à «diminuição sensível da culpa», é ao homem médio, colocado na situação do agente, que tem de se atender para se verificar da existência, no caso, das mesmas.

3.1.6. No caso sub judice, o acórdão recorrido não considerou reunidos os pressupostos do privilegiamento do crime de homicídio contemplado no artigo 133.º do Código Penal, referindo, como fundamento, que:

«Dispõe este artigo 133.º que: «Quem matar outra pessoa dominado por compreensível emoção violenta, compaixão, desespero ou motivo de relevante valor social ou moral, que diminuam sensivelmente a sua culpa, é punido com pena de prisão de um a cinco anos.»

São aqui previstos quatro conceitos-tipo que levam ao privilegiamento do homicídio, em função de uma cláusula de exigibilidade diminuída legalmente concretizada, sendo três de natureza emocional: a compreensível emoção violenta, a compaixão e o desespero; e um quarto de natureza ético-social: um motivo de relevante valor social ou moral.

Para além da verificação daqueles estados ou motivos, exige a lei que que o agente actue dominado por eles e que essa actuação diminua sensivelmente a sua culpa. Nas palavras de Figueiredo Dias [[25]]: «Os estados ou motivos assinalados pela lei não funcionam por si e em si mesmos (hoc sensu, automaticamente), mas só quando conexionados com uma concreta situação de exigibilidade diminuída por eles determinada; neste sentido é expressa a lei ao exigir que o agente actue “dominado” por aqueles estados ou motivos.»

É, pois, a especial diminuição da culpa, em resultado de exigibilidade diminuída, que justifica e fundamenta o privilegiamento do crime de homicídio, do artigo 133.º.

Seguindo o mesmo autor [[26]], compreensível emoção violenta «é um forte estado de afeto emocional provocado por uma situação pela qual o agente não pode ser censurado e à qual também o homem normalmente “fiel ao direito” não deixaria de ser sensível». Representando o requisito da compreensibilidade da emoção uma «exigência adicional relativamente ao critério de menor exigibilidade subjacente a todo o preceito».

A compaixão é um «estado de afeto ligado à solidariedade ou à comparticipação no sofrimento de outra pessoa».

O desespero, embora muito próximo da emoção violenta, distingue-se desta por coincidir, em geral, com situações que se arrastam no tempo, fruto de pequenos ou grandes conflitos, que provocam no agente a «estados de afeto ligados à angústia, à depressão ou à revolta».

Por sua vez, o motivo de relevante valor social ou moral terá de avaliar-se «à luz da ordem axiológica suposta pela ordem jurídica».

No caso vertente, é com base na interpretação da factualidade apurada como demonstradora de um estado emocional de desespero, recondutível ao conceito tipo do artigo 133.º do Código Penal, que a recorrente entende dever censurada pelo homicídio do filho.

E, realmente, daquela factualidade decorre que a recorrente vivenciava uma deterioração do relacionamento conjugal, iniciada a partir do nascimento do filho mais velho (a vítima), em 2009, com um progressivo afastamento do marido do contexto familiar, suspeitando ela que ele manteria uma relação extraconjugal. Por outro lado, o marido «repreendia frequentemente o filho mais velho, elevando o tom de voz, causando-lhe medo e insegurança»; o que desgostava a recorrente que «foi sempre dedicada aos filhos, revelando-se diligente nos cuidados que lhes dispensava e demonstrando afectividade».

Está também apurado que a arguida andava manifestamente ansiosa e perturbada; que contactou a sua médica de família pedindo-lhe uma consulta urgente, sendo medicada com um antidepressivo. Que 11 dias antes do homicídio do filho, inconformada com a sua situação familiar, a arguida já havia decidido por termo à sua própria vida e do filho mais velho, por se ter convencido que este iria sofrer muito com a sua ausência, tendo sido impedida de concretizar os seus intentos quando já estava na Ponte Medieval de Barcelos para se atirar ao rio juntamente com o filho.

Neste quadro fático, que se mantinha à data da prática do homicídio, é realmente indubitável que a recorrente vivenciava uma situação emocional caracterizada por um sentimento geral de impotência, de pendor depressivo, perante uma situação externa tida como existencialmente insuportável, que se arrastava já há algum tempo, da qual a arguida se pretendia libertar provocando a sua própria morte. Mas à concretização deste seu intento opunha-se a antevisão do que seria o futuro do filho mais velho, caso ela se suicidasse, futuro que previa ser de sofrimento, por estar convencida que este não suportaria a sua ausência [[27]].

Neste contexto, pode sem esforço caracterizar-se como de desespero a situação subjectivamente vivenciada pela arguida.

Contudo, como já se salientou, o privilegiamento do homicídio não ocorre automaticamente por ter sido praticado em estado de desespero, a lei não exige apenas que o agente esteja desesperado, mas que tal desespero diminua sensivelmente a sua culpa. Clarifica Figueiredo Dias que «O efeito diminuidor da culpa ficar-se-á a dever ao reconhecimento de que, naquela situação (endógena e exógena), também o agente normalmente “fiel ao direito” (“conformado com a ordem jurídico penal”) teria sido sensível ao conflito espiritual que lhe foi criado e por ele afectado na sua decisão, no sentido de lhe ter sido estorvado o normal cumprimento das suas intenções» [[28]].

Torna-se assim relevante avaliar os motivos do agente, que para preencherem o elemento típico do artigo 133.º têm de ser identificados como bons ou, pelo menos, como aceitáveis pelo ordenamento jurídico.

No caso em apreço, dúvidas não restam que a génese do desespero da recorrente era a degradação da sua relação conjugal, à qual era totalmente alheia o seu filho e que, a morte deste, era percepcionada como condição para que a arguida pudesse concretizar o suicídio, pois era-lhe insuportável que o filho ficasse em sofrimento pela sua morte.

Neste quadro, embora podendo haver quem encontre, no ato de matar o filho, ainda o amor maternal, subjectivamente entendido no âmbito da angústia existencial vivenciada pela mãe, o certo é que, ainda mais forte do que ele, a situação denuncia a vontade obstinada da arguida de libertação imediata de uma situação externa tida como existencialmente insuportável, a qualquer preço, mesmo que que essa libertação implicasse o sacrifício da vida do filho; e não obstante a morte deste não ser sequer representada como «a saída» para o estado de sofrimento em que ela se encontrava.

A morte do filho, embora determinada pelo estado de desespero da arguida, não surge como única forma de evitar o futuro sofrimento deste, sendo exigível à recorrente, suposta a sua fidelidade ao direito, que assumisse outro comportamento.

Tendo a arguida descartado todas as outras hipóteses válidas e ao seu alcance para evitar o sofrimento que antevia para o filho e optado por o matar, agiu num contexto de desespero, que sem dúvida lhe diminui a culpa, mas não lha diminuiu «sensivelmente», ao ponto de se vislumbrar a exigibilidade diminuída de comportamento diferente, ou seja, a culpa consideravelmente diminuída que é pressuposta pelo tipo de homicídio privilegiado.

Acresce ainda, no caso, que onze dias antes do homicídio a recorrente já se havia deslocado à Ponte Medieval em Barcelos, decidida a por termo à sua própria vida e à do filho, atirando-se juntamente com ele ao rio, sendo impedida de concretizar os seus intentos por familiares. De onde decorre a inevitável existência de uma reflexão prolongada sobre o crime, o que reforça a exigibilidade do seu não cometimento.

Não pode pois considerar-se que a conduta da arguida integra o tipo privilegiado do artigo 133.º do Código Penal, naufragando o recurso, também nesta parte».

Esta fundamentação merece a nossa total concordância e adesão.

Configurando-se o estado de desespero, uma situação já descrita, uma «situação que se arrasta no tempo, com origem em pequenos ou grandes conflitos que acabam por levar o agente a considerar-se numa situação sem saída, deixando de acreditar, de ter esperança, arrancando da limitação psicológica do agente desesperado, nele se englobando os casos de suicídios alargados ou de humilhações reiteradas» (acórdão do STJ de 03-03-2010, proferido no processo n.º 242/08.0GHSTC.S1 – 3.ª Secção), poderemos concluir, como se entendeu no acórdão recorrido, poder caracterizar-se como de desespero a situação subjectivamente vivenciada pela arguida.

Porém, que se admita, como se entendeu nas instâncias, a existência de um estado de «desespero» da arguida, é ainda necessário que tal estado diminua sensivelmente a culpa.

Ora, o estado «desespero» que dominou a arguida e que a levou a tomar a resolução criminosa que tomou, tal como se encontra configurado nos factos provados, não é de molde a diminuir sensivelmente a culpa.

Com efeito, relembramos que a «diminuição sensível da culpa» tem de se fundar numa situação ao mesmo tempo endógena e exógena ao agente e corresponde à sensibilidade do homem normalmente fiel ao direito ao conflito espiritual criado ao agente e que o afectou na sua decisão.

No caso sub judice, como bem se assinala no acórdão recorrido, a génese do desespero da arguida era a degradação da sua relação conjugal, à qual era totalmente alheio o seu filho e que, a morte deste, era percepcionada como condição para que ela pudesse concretizar o suicídio pois era-lhe insuportável que o filho ficasse em sofrimento pela sua morte.

Cremos que aquela situação exógena – a degradação da relação conjugal – esteve na génese e agravamento do estado de depressão da arguida, porém, afigura-se-nos pecar por alguma escassez o motivo apresentado para a situação em que ficaria o seu filho após a morte daquela. Note-se que, da factualidade provada não se retira que o marido da arguida maltratasse fisicamente o filho. O que sucedia era que o filho era frequentemente repreendido pelo pai, com elevação do tom de voz, o que causava na criança medo e insegurança, não decorrendo, no entanto, da matéria de facto provada quais os motivos dessas repreensões ou se elas se justificavam, ou não, no âmbito do exercício de eventual poder de correcção. Questionamo-nos quanto à atendibilidade desta situação e quanto à sua idoneidade para uma pretensa «libertação» do filho da arguida e para determinar a vontade da arguida em o «levar consigo» para a morte.

A morte do filho – afirma-se no acórdão recorrido – embora determinada pelo estado de desespero da arguida, não surge como única forma de evitar o futuro sofrimento da criança, sendo exigível à recorrente, suposta a sua fidelidade ao direito, que assumisse outro comportamento.

Sempre suposta a normal fidelidade ao direito, apanágio do «homem médio», a arguida não deveria ter descartado as hipóteses que se lhe deparavam para evitar o sofrimento que antevia para o seu filho, optando por matá-lo, sendo de assinalar, a tal propósito, como decorre dos factos provados, a existência de um correcto relacionamento da mesma, quer com a sua família, quer com a família do marido, no seio das quais a criança seguramente teria protecção.

Acresce ainda no caso, como o acórdão recorrido, põe em destaque, a circunstância de «onze dias antes do homicídio a recorrente já se havia deslocado à Ponte Medieval em Barcelos, decidida a por termo à sua própria vida e à do filho, atirando-se juntamente com ele ao rio, sendo impedida de concretizar os seus intentos por familiares». De onde decorre, como justamente se conclui - «a inevitável existência de uma reflexão prolongada sobre o crime, o que reforça a exigibilidade do seu não cometimento».

Acresce ainda a «encenação» que a arguida levou a cabo na data dos factos com a colocação sobre a cama do quarto de casal do seu vestido de casamento, da sua aliança, da caixa com os sapatos que usara no dia do casamento (facto 13.º) e todas as demais mensagens que deixou manuscritas, factos que objectivamente revelam uma actuação reflectida.

Perante todo o circunstancialismo fáctico assente, não se observa uma diminuição sensível da culpa da arguida, o que impossibilita a conclusão, como bem decidiram as instâncias, de que a mesma cometeu um crime de homicídio privilegiado,

Face aos factos provados, a arguida cometeu, pois, um crime de homicídio, p. e p. pelo artigo 131.º, do Código Penal, improcedendo, nesta parte, o recurso interposto.

3.2. Atenuação especial da pena

Estando assente que a arguida praticou um crime de homicídio, p. e p. pelo artigo 131.º, do Código Penal, cumpre analisar a segunda questão objecto do presente recurso, isto é, saber se deve ser aplicada a atenuação especial da pena, prevista nos artigos. 72.º e 73.º, do Código Penal.

3.2.1. Entende a recorrente que

«[…] Porque a morte do seu filho resultou de uma conduta da recorrente também destinada a pôr termo à sua própria vida, sempre será de concluir que as circunstâncias anteriores, posteriores e contemporâneas ao crime, diminuem de forma acentuada a culpa da recorrente e a necessidade da pena.

[…] Ainda que verdadeiramente “excepcional”, logo, reservada a casos distintos da generalidade, sempre tal atenuação é aplicável ao caso presente porquanto o mesmo trata de um filicídio mas contemporâneo a um suicídio falhado, sendo o acto causador da morte o mesmo com que pretendia a recorrente por termo à própria vida,

[…] Não estamos apenas perante a morte de um filho, mas sim perante a tentativa de alguém, num único acto, terminar com a sua vida e do seu filho, porque atendendo o seu estado psíquico vê aquela como a única solução viável.

[…] Porque pretendia a Recorrente, não a morte do seu filho, mas sim que ambos partissem conjuntamente deste mundo, claro se torna estarmos perante as denominadas circunstâncias que diminuem de forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente, bem como a necessidade da pena.

[…] A recorrente só agiu como provado porque numa situação de grave perturbação psicológica e fragilidade emocional, valorizando de forma exacerbada os seus problemas familiares, entendeu que o seu sofrimento permanente, bem como a sua responsabilidade na protecção do seu filho menor, só poderia terminar com aquela sua conduta.»

3.2.2. Também o Ministério Público considera que:

«Observada a factualidade, com o máximo rigor de que não se prescinde, temos por não excessiva a consideração da diminuição sensível da culpa da recorrente e de todo um quadro de confissão, arrependimento sincero e assunção íntima de castigo perpétuo que a recorrente denotou, sendo certo que ficou igualmente provada a circunstância de “no meio de residência da arguida, a situação ser conhecida, tendo sido acolhida com surpresa, embora sem sentimentos de rejeição expressos à sua presença, tanto mais a última quadra natalícia e o período do ano novo foram passados junto dos familiares de origem, sem incidentes” – cf. parte final do ponto 22 dos factos provados –, o que, em certa medida contraria o juízo do acórdão recorrido, no sentido de que a conduta vem “merecendo da comunidade frontal reprovação e forte censura” – cf. o último parágrafo de fls. 28 do acórdão.

O que se deixou referenciado suscita, positiva e confiadamente, alguma menor necessidade da pena e porventura a prevalência da faceta terapêutica que a pena propiciará, como se diz no dito aresto, numa atitude institucional de humanidade, mas não de impunidade.

Entende-se, pois, que a pena a aplicar à recorrente deverá ser de nível idêntico ao proposto em função do privilegiamento, embora, aliás em qualquer uma das hipóteses subsuntivas, face às suas especificidades, não suspensa na execução, tanto mais que o estado psíquico da mesma não permite a formulação do juízo de prognose positiva a que, por outro lado, acedeu este Tribunal no acórdão citado.»

Vejamos.

3.2.3. Cumpre, antes de mais, referir que o facto de se afastar a integração nos elementos constitutivos do crime de homicídio privilegiado não afasta a consideração sobre uma eventual aplicação do regime de atenuação especial.

Como se pode ler no acórdão do STJ de 13-10-2010 (proc. n.º 200/06.0JAAVR.C1.S1 – 3.ª Secção), «Como refere Figueiredo Dias a questão é ainda saber se, sempre que o juiz considere verificados os pressupostos de que depende o privilegiamento, deve necessariamente renunciar a uma atenuação especial da pena. O princípio geral de proibição de dupla valoração de que o disposto no proémio do art. 71,º, n.º 2 constitui apenas uma manifestação, proíbe que o mesmo substrato considerado para integração do art. 133.° seja de novo valorado para efeito de atenuação especial da pena. Mas é evidente que, para além dos elementos descritos no art. 133.°, podem no caso convergir outros e diferentes elementos relevantes para efeito dos arts. 71.° e 72.° (v. g., o do art. 72.°-2). Nada impede nestes casos que, determinada a medida da pena face ao art. 133.°, aquela seja depois especialmente atenuada face às regras especiais de determinação da pena contidas nos arts. 72.° e 73.°».

Também PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE considera que os estados de afecto referenciados no artigo 133.º «também podem ser considerados para efeitos de atenuação especial da pena quando se trate de uma situação de facto excepcional que diminua acentuadamente a culpa do agente»[29].

Perante este entendimento, adoptado num quadro de ponderação simultânea do crime privilegiado e da atenuação especial da pena, não se suscitarão dúvidas de que, a não verificação de factos configuradores do privilegiamento não impedirá que os factos provados possam apontar no sentido da atenuação especial, estando salvaguardado o respeito pelo princípio da proibição de dupla valoração consagrado no artigo 72.º, n.º 3, do Código Penal.

O instituto da atenuação especial da pena tem em vista casos especiais expressamente previstos na lei, bem como, em geral, situações em que ocorrem circunstâncias anteriores, contemporâneas ou posteriores ao crime que diminuem de forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade de pena (correspondendo a necessidade de pena a exigências de prevenção), conforme dispõe o artigo 72.º, n.º 1, do Código Penal.

Sendo seu princípio regulador a acentuada diminuição da ilicitude do facto, da culpa do agente ou da necessidade da pena, a atenuação especial da pena só pode ter lugar em casos extraordinários ou excepcionais, numa situação em que seja de concluir que a adequação à culpa e às necessidades de prevenção geral e especial não é possível dentro da moldura penal abstracta prevista para o tipo legal em causa.

O n.º 2 do artigo 72.º enumera algumas circunstâncias que podem ser consideradas para o efeito de diminuir de forma acentuada ou a ilicitude do facto, ou a culpa ou a necessidade da pena

Para a produção do benefício da atenuação especial da pena exige-se, referem M. MIGUEZ GARCIA e J. M. CASTELA RIO, «uma diminuição acentuada da ilicitude do facto, da culpa do agente ou da necessidade da pena (prevenção geral positiva ou de integração). Qualquer destas situações não tem valor atenuante especial de per si, na sua existência objectiva, mas tem sempre de ser conexionada com um certo preceito que terá de produzir: o de diminuir acentuadamente a ilicitude ou a culpa do agente (ACTAS, 1965, p. 129) ou a necessidade da pena»[30].

Convocando de novo o acórdão deste Supremo Tribunal de 24-02-2016, constitui pressuposto material da atenuação especial da pena «a ocorrência de acentuada diminuição da culpa ou das exigências de prevenção, sendo certo que tal só se deve ter por verificado quando a imagem global do facto, resultante das circunstâncias atenuantes, se apresente com uma gravidade tão diminuída que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em hipóteses tais quando estatuiu os limites normais da moldura cabida ao tipo de facto respectivo».

Como explana FIGUEIREDO DIAS, referindo-se às circunstâncias descritas nas diversas alíneas do artigo 72.º do Código Penal, «passa-se aqui algo de análogo – não de idêntico! - ao que vimos (…) suceder com os exemplos-padrão: por um lado, outras situações que não as descritas nas alíneas [do n.º 2 do art. 72.º] podem (e devem) ser tomadas em consideração, desde que possuam o efeito requerido de diminuir, por forma acentuada, a culpa do agente ou as exigências da prevenção; por outro lado, as próprias situações descritas nas alíneas do art. 73.º-2 não têm o efeito «automático» de atenuar especialmente a pena, mas só o possuirão se e na medida em que desencadeiem o efeito requerido»[31].

Assim, não tendo tais circunstâncias (ou outras que eventualmente sejam susceptíveis de integrar o n.º 1 do artigo 72.º, n.º 1, do Código Penal) o efeito automático de atenuar especialmente a pena, conclui-se que a acentuada diminuição da ilicitude, da culpa ou das exigências de prevenção constitui o autêntico pressuposto material da atenuação especial da pena.

Na síntese realizada no acórdão deste Supremo Tribunal 13-10-2010 (proc. n.º 200/06.0JAAVR.C1.S1 – 3.ª Secção), «a atenuação especial da pena só pode, pois, ser decretada (mas se puder deve sê-lo) quando a imagem global do facto revele que a dimensão da moldura da pena prevista para o tipo de crime não poderá realizar adequadamente a justiça do caso concreto, quer pela menor dimensão e expressão da ilicitude ou pela diminuição da culpa, com a consequente atenuação da necessidade da pena – vista a necessidade no contexto e na realização dos fins das penas».

            Como já se referiu, a arguida funda o pedido de atenuação especial da pena na perturbação psicológica que a afectava, pois se encontrava num estado de depressão e que «a morte do seu filho resultou de uma conduta da recorrente também destinada a pôr termo à sua própria vida».

            Alega ainda que pode contar com o apoio dos familiares.

Como já referido, a atenuação especial da pena só pode/deve ser decretada quando a imagem global do facto revele que a dimensão da moldura da pena prevista para o tipo de crime não poderá realizar adequadamente a justiça do caso concreto, quer pela menor dimensão e expressão da ilicitude ou pela diminuição da culpa, ou das necessidades da pena (necessidades de prevenção). Não é, pois, apenas a culpa o vector a ter em conta na análise a efectuar.

Ora, encontra-se provado que a arguida agiu num contexto e num condicionalismo muito específico e invulgar que é susceptível, quanto a nós, revelar uma forte diminuição da culpa. De uma culpa cuja intensidade não se considerou suficiente para o privilegiamento do crime mas que, aceitamo-lo, poderá justificar a atenuação especial da pena.

A este propósito, cumprirá referir que a diminuição da culpa no homicídio privilegiado tem de ser mais acentuada do que no âmbito da atenuação especial do artigo 72.º do Código Penal[32].

Com efeito, não obstante em termos de culpa e para efeitos do crime de homicídio privilegiado, não ser de atender ao facto da arguida, aquando do cometimento do crime, se encontrar perturbada psiquicamente em estado depressivo e de grande fragilidade emocional, tal circunstancialismo fáctico e condicionalismo que rodeou a prática do crime não podem ser ignorados, relevando para a constatação de uma diminuição acentuada da culpa no crime de homicídio executado pela arguida para efeitos da aplicação da atenuação especial.

Tal circunstancialismo, anterior à prática do crime, a que acresce a circunstância, igualmente anterior, de a arguida ter decidido matar o filho e suicidar-se devido ao pressentimento que a assolou relativamente ao subsequente sofrimento do seu filho, levam-nos a concluir, ao contrário do que fizeram as instâncias, pela existência de uma diminuição da culpa susceptível de suportar a atenuação especial da pena, nos termos do artigo 72.º, do Código Penal.

            Estamos perante uma situação com evidentes similitudes com a que foi apreciada e decidida no acórdão deste Supremo Tribunal de 28 de Junho de 2017, proferido no proc. n.º 557/09.0GEVNG.P3.S1 a que já se fez referência, sendo que caso presente foi detectada um concreto fundamento para o privilegiamento do crime, traduzido na constatação da situação de desespero que não funcionou integralmente por se ter descortinado o outro fundamento, consistente na diminuição sensível da culpa da arguida.

            No caso apreciado naquele acórdão, a afecção da aí arguida traduziu-se em perturbação de natureza mais difusa, sendo certo que, perante a factualidade aí provada, do seu comportamento homicida, concluiu-se que a mesma não actuou dominada por emoção violenta ou pelo desespero, os dois fundamentos privilegiadores que invocara.

            Assumiu aí especial relevância para a atenuação especial da pena razões ligadas a critérios de prevenção especial: o tempo decorrido desde a data do crime (quase oito anos), dilação para a qual a aí arguida em nada contribuiu, resultando dos factos provados que a mesma, que se tem mantido em liberdade, vinha beneficiando de apoio psiquiátrico, contando com o apoio do marido (com quem continua casada e de quem já teve nova filha), da irmã, da cunhada e de outros familiares, não possuía antecedentes criminais, encontrava-se a trabalhar. Constatou-se aí ainda que do conjunto da factualidade respeitante às suas condições económico-sociais, a ali arguida fizera um esforço sério e empenhado em refazer a sua vida e resolver o seu problema psiquiátrico/psicológico, merecendo aceitação no meio social onde residia, não se verificando indícios de rejeição, de hábitos ou de condutas anti-sociais, ou seja, não se verificando já qualquer “alvoroço social”.

            No caso aqui em apreço, não decorreu ainda muito tempo após o crime, não se verificando, assim, o efeito erosivo que foi considerado no mencionado acórdão.

            Porém, o estado de desespero que afectava a arguida aquando da prática dos factos revela uma densidade particularmente forte pelo que não deve ser ignorado. A arguida agiu num contexto muito específico e, muito embora ele não seja de molde a diminuir sensivelmente a culpa é, quanto a nós, susceptível de implicar uma acentuada diminuição da ilicitude e da própria culpa.

            A imagem global dos factos, atento o descrito quadro depressivo e de desespero que levou a arguida a suicidar-se «levando consigo» o seu filho, reflecte uma ilicitude e uma culpa acentuadamente diminuídas.

            A arguida, como se reconhece na decisão recorrida, «confessou e manifestou arrependimento sincero, declarando que sofre diariamente. Não tem antecedentes criminais. Beneficiando do apoio da família (pais e irmãos), que lhe prestam solidariedade e apoio apesar da consternação vivenciada com o presente processo. Não havendo sentimentos de rejeição expressos à sua presença no meio da residência».

Como judiciosamente pondera o Ex.mo Magistrado do Ministério Público no Tribunal da Relação:

            «Observada a factualidade, com o máximo rigor de que não se prescinde, temos por não excessiva a consideração da diminuição sensível da culpa da recorrente e de todo um quadro de confissão, arrependimento sincero e assunção íntima de castigo perpétuo que a recorrente denotou, sendo certo que ficou igualmente provada a circunstância de “no meio de residência da arguida, a situação ser conhecida, tendo sido acolhida com surpresa, embora sem sentimentos de rejeição expressos à sua presença, tanto mais a última quadra natalícia e o período do ano novo foram passados junto dos familiares de origem, sem incidentes” – cf. parte final do ponto 22 dos factos provados –, o que, em certa medida contraria o juízo do acórdão recorrido, no sentido de que a conduta vem “merecendo da comunidade frontal reprovação e forte censura” – cf. o último parágrafo de fls. 28 do acórdão.

O que se deixou referenciado suscita, positiva e confiadamente, alguma menor necessidade da pena e porventura a prevalência da faceta terapêutica que a pena propiciará, como se diz no dito aresto, numa atitude institucional de humanidade, mas não de impunidade.»

Perante o exposto, consideramos ser de deferir a pretensão da arguida no sentido da aplicação do instituto da atenuação especial da pena, resultando prejudicada, nos termos dos artigos 608.º, n.º 2 e 130.º, ambos do Código de Processo Civil, ex vi do artigo 4.º, do CPP, a apreciação da inconstitucionalidade invocada pela recorrente (conclusões 32, 33 e 34), relativamente à interpretação da norma contida no artigo 72.º do Código Penal realizada no acórdão recorrido.

3.4. Medida da pena

3.4.1. A nova moldura do crime de homicídio praticado pela arguida-recorrente, p. e p. pelo artigo 131.º, do Código Penal, determinada pela atenuação especial, nos termos do artigo 73.º, n.º 1, alíneas a) e b), do Código Penal, será, assim, de 1 ano, 7 meses e 6 dias de prisão (limite mínimo) a 10 anos e 8 meses de prisão (limite máximo).

De acordo com o disposto no artigo 40.º do Código penal, a aplicação da pena visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, não podendo, em caso algum, a pena ultrapassar a medida da culpa. Nos termos do artigo 71.º, n.º 1, do mesmo Código, a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.

Convocando o que se consignou no acórdão de 09-03-2016, proferido no processo n.º 26/14.7GAAMR - 3ª Secção, relatado pelo ora relator, na determinação concreta da pena há que atender às circunstâncias do facto, que deponham a favor ou contra o agente, nomeadamente ao grau de ilicitude, e a outros factores ligados à execução do crime, à intensidade do dolo, aos sentimentos manifestados no cometimento do crime e aos fins e motivos que o determinaram, às condições pessoais do agente, à sua conduta anterior e posterior ao crime (artigo 71.º, n.º 2, do Código Penal).

Sobre a determinação da pena, em razão da culpa do agente e das exigências de prevenção, lê-se no acórdão deste Supremo Tribunal, de 15-12-2011 (proc. n.º 706/10.6PHLSB.S1 - 5.ª Secção), também convocado no acórdão de 27-05-2015 (proc. n.º 445/12.3PBEVR.E1.S1 - 3.ª Secção), e no citado acórdão de 28-06-2017:

«Ao elemento prevenção, no sentido de prevenção geral positiva ou de integração, vai-se buscar o objectivo de tutela dos bens jurídicos, erigido como finalidade primeira da aplicação de qualquer pena, na esteira de opções hoje prevalecentes a nível de política criminal e plasmadas na lei, mas sem esquecer também a vertente da prevenção especial ou de socialização, ou, segundo os termos legais: a reintegração do agente na sociedade (art. 40.º n.º 1 do CP).

Ao elemento culpa, enquanto traduzindo a vertente pessoal do crime, a marca, documentada no facto, da singular personalidade do agente (com a sua autonomia volitiva e a sua radical liberdade de fazer opções e de escolher determinados caminhos) pede-se que imponha um limite às exigências, porventura expansivas em demasia, de prevenção geral, sob pena de o condenado servir de instrumento a tais exigências.

Neste sentido é que se diz que a medida da tutela dos bens jurídicos, como finalidade primeira da aplicação da pena, é referenciada por um ponto óptimo, consentido pela culpa, e por um ponto mínimo que ainda seja suportável pela necessidade comunitária de afirmar a validade da norma ou a valência dos bens jurídicos violados com a prática do crime. Entre esses limites devem satisfazer-se, quanto possível, as necessidades de prevenção especial positiva ou de socialização (Cf. FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas Do Crime, Editorial de Notícias, pp. 227 e ss.).

Quer isto dizer que as exigências de prevenção traçam, entre aqueles limites óptimo e mínimo, uma submoldura que se inscreve na moldura abstracta correspondente ao tipo legal de crime e que é definida a partir das circunstâncias relevantes para tal efeito e encontrando na culpa uma função limitadora do máximo de pena. Entre tais limites é que vão actuar, justamente, as necessidades de prevenção especial positiva ou de socialização, cabendo a esta determinar em último termo a medida da pena, evitando, em toda a extensão possível (...) a quebra da inserção social do agente e dando azo à sua reintegração na sociedade (FIGUEIREDO DIAS, ob. cit., p. 231).

Ora, os factores a que a lei manda atender para a determinação concreta da pena são os que vêm indicados no referido n.º 2 do art. 71.º do CP e (visto que tal enumeração não é exaustiva) outros que sejam relevantes do ponto de vista da prevenção e da culpa, mas que não façam parte do tipo legal de crime, sob pena de infracção do princípio da proibição da dupla valoração.»

Como sempre se tem assinalado, a defesa da ordem jurídico-penal, tal como é interiorizada pela consciência colectiva (prevenção geral positiva ou de integração), é a finalidade primeira, que se prossegue, no quadro da moldura penal abstracta, entre o mínimo, em concreto, imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada, e o máximo, que a culpa do agente consente; entre estes limites, satisfazem-se quando possível, as necessidades de prevenção especial positiva ou de socialização.

Como justamente refere MARIA JOÃO ANTUNES, «[s]e a medida da pena é a protecção de bens jurídicos e, na medida do possível, a reintegração do agente na sociedade, e se a pena não pode ultrapassar, em caso algum, a medida da culpa (artigo 40.º, n.os 1 e 2, do CP), então a medida da pena há-de ser dada pela medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos, sem ultrapassar a medida da culpa, actuando os pontos de vista de prevenção especial de socialização entre o ponto óptimo e o ponto ainda comunitariamente suportável de tutela de tais bens»[33].

A medida da pena, considera a mesma autora, «há-de ser dada pela medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos, face ao caso concreto, num sentido prospectivo de tutela das expectativas da comunidade na manutenção (ou mesmo no reforço) da vigência da norma infringida»[34].

A prevenção geral positiva ou de integração significa, pois, sublinha-o AMÉRICO TAIPA DE CARVALHO, que a pena é um meio de interpelar, a sociedade e cada um dos seus membros, para a relevância social e individual do respectivo bem jurídico tutelado penalmente. A pena serve a função positiva de interiorização ou aprofundamento dessa interiorização dos bens jurídico-penais.

A prevenção geral positiva tem ainda, considera o mesmo autor, a dimensão ou objectivo da pacificação social ou, por outras palavras, do restabelecimento ou revigoramento da confiança da comunidade na efectiva tutela penal estatal dos bens jurídicos fundamentais à vida colectiva e individual. Esta mensagem de confiança e de pacificação social é dada, especialmente, através da condenação penal, enquanto reafirmação efectiva da importância do bem jurídico lesado[35].

Assim, a pena a aplicar deverá satisfazer as exigências de prevenção que a comunidade reclama e ser adequada à culpabilidade, isto é, consonante com a culpa revelada. A pena deve corresponder à sanção que a arguida merece pela prática do crime, ou seja, deve corresponder à gravidade do mesmo.

3.4.2. No caso em apreço, relevam as exigências de prevenção geral expressas na perturbação provocada na comunidade pelo crime de homicídio competido pela arguida. Está em causa o bem mais valioso concebível: a vida humana. E, para mais, a vida do próprio filho.

Ponderando todas as circunstâncias que rodearam a prática do crime e todos os factores de ponderação que militam contra e a favor da arguida, já enunciados, consideramos que a pena concreta, respeitando a moldura decorrente da atenuação especial, deve fixar-se numa dimensão que traduza devidamente a censura devida pelo crime praticado e que satisfaça as exigências de prevenção geral e especial aqui bem vincadas.

Em face dos elementos expostos, consideramos adequada e justa a aplicação à arguida de uma pena de 7 (sete) anos de prisão, sujeita ao regime de execução definido nas decisões proferidas nas instâncias: internamento em estabelecimento destinado a inimputáveis pelo tempo correspondente a esta pena e enquanto durar a causa determinante deste internamento».

III – DECISÃO

Em face do exposto, acordam no Supremo Tribunal de Justiça em:

1 – Negar provimento ao recurso interposto pela arguida AA no que respeita à pretendida convolação para o crime de homicídio privilegiado, mantendo-se a subsunção efectuada no acórdão recorrido ao homicídio p. e p. pelo artigo 131.º do Código Penal;

2 - Conceder provimento ao recurso interposto pela mesma arguida no que respeita à atenuação especial da pena e, em consequência:

- Fixar a pena de 7 (sete) anos de prisão pela prática do crime de homicídio p. e p. pelo artigo 131.º do Código Penal, especialmente atenuada, nos termos dos artigos 72.º e 73.º, n.º 1, alíneas a) e b), do Código Penal, a executar em regime de internamento em estabelecimento destinado a inimputáveis pelo tempo correspondente a esta pena e enquanto durar a causa determinante deste internamento

Sem custas (artigo 513.º, n.º 1, do CPP)

(Consigna-se que foi observado o disposto no artigo 94.º, n.º 2, do CPP)

Supremo Tribunal de Justiça, 18 de Setembro de 2017

Manuel Augusto de Matos (Relator)

Lopes da Mota

_______________


[1] Reproduzem-se os trechos destacados no original.
[2] Trechos destacados no original.
[3] Disponível nas Bases Jurídico-Documentais do IGFEJ, em www.dgsi.pt, como os demais que forem citados sem outra menção.
[4] Homicídio Privilegiado, Almedina, 1996 (reimpressão), p. 13.
[5] TERESA SERRA, “Homicídios em Série”, in Jornadas de Direito Criminal – Revisão do Código Penal – Alterações ao Sistema Sancionatório e Parte Especial, CEJ, 1998, p. 158.
[6] TERESA SERRA, ob. cit, p. 159.
[7] Direito Penal Especial – Os Crimes contra as Pessoas, 4.ª Edição, QJ – Quid Juris Sociedade Editora, Lisboa, 2017, p. 99.
[8] Ob. cit., pp. 99-100.
[9] “O Homicídio Privilegiado: Algumas Notas”, in Direito Penal – Parte Especial: Lições, Estudos e Casos, Coimbra Editora, 2007, pp. 316 e segs.
[10] Direito Penal – Parte Especial – Crimes contra as Pessoas, AAFDL, Lisboa, 1983.
[11] “Crime de Homicídio Privilegiado – Acórdão da Relação de Évora de 4 de Fevereiro de 1997”, RPCC, 8, 1998.
[12] Ob. cit. p. 143.
[13] “Um caso de homicídio privilegiado”, in Direito Penal II, AAFDL, 1984.
[14] Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo I, Coimbra Editora, 1999.
[15] Ob. cit.                                         
[16]“O Homicídio Privilegiado na Doutrina e na Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça”, RPCC, 11, 2001.
[17] FIGUEIREDO DIAS, Comentário…, cit., p.48.
[18] Código Penal – Parte Geral e Especial, 2015 – 2.ª Edição, Almedina, p. 541.
[19] Ob. cit., p. 546.
[20] Ob. cit., p. 44.
[21] Comentário do Código Penal, 3.ª Edição Actualizada, Universidade Católica Editora, p. 523.
[22] “O desespero em Direito Penal (tentativa de pré-compreensão de um conceito letal)”, Julgar on-line – 2014, p. 2.
[23] Ob. e loc., cits.
[24] Sumários de Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça – Secções Criminais, em http://www.stj.pt/index.php/jurisprudencia-42213/sumarios.
[25] Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, tomo I, Coimbra Editora, 2.ª ed., p. 83.
[26] Op. Citada, p. 85 a 90.
[27] Cfr. ponto 15 dos Factos Provados.
[28] Op. citada, p. 83.
[29] Comentário do Código Penal, cit., p. 367.
[30] Ob. cit., p. 394.
[31] As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, Editorial Notícias, p. 306.
[32] V. AUGUSTO SILVA DIAS, ob. cit., p. 37.
[33] Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, p. 44.
[34] Idem, ibidem.

[35] Direito Penal – Parte Geral, 2.ª Edição, Coimbra Editora, pp. 65- 66.