Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2879/22.6T8LRA-A.C1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: MARIA DA GRAÇA TRIGO
Descritores: RECURSO DE APELAÇÃO
ADMISSIBILIDADE
DECISÃO INTERLOCUTÓRIA
PERÍCIA
REJEIÇÃO
MEIOS DE PROVA
NOVOS MEIOS DE PROVA
INCIDENTE
PROVA PERICIAL
VALOR PROBATÓRIO
LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
RECURSO PARA O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
OPOSIÇÃO DE JULGADOS
Data do Acordão: 11/06/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: - DEFERIDA A RECLAMAÇÃO
- NEGADA A REVISTA
Sumário :
O despacho que admite ou rejeita a segunda perícia consiste em despacho que admite ou rejeita meio de prova, inserindo-se no âmbito de previsão da alínea d) do n.º 2 do art.º 644.º do CPC e sendo, assim, susceptível de recurso autónomo de apelação.
Decisão Texto Integral:

Acordam em conferência no Supremo Tribunal de Justiça


I – Relatório

1. No âmbito da acção instaurada por Agospan – Padaria e Pastelaria, Lda. contra Vertipilar - Imobiliária e Construção S.A., Larisil – Construções, Lda. e Fidelidade - Companhia de Seguros, S.A., e após realização de uma perícia oportunamente requerida e deferida, veio a autora requerer a realização de segunda perícia o que foi indeferido por despacho de 13/06/2024.

2. A autora interpôs recurso desse despacho, invocando o disposto no art. 644.º, n.º 2, alíneas d) e h), do CPC.

3. Tal recurso não foi admitido por despacho do Juiz da 1.ª instância de 03/10/2024, considerando-se que o despacho não havia rejeitado qualquer meio de prova e que não estava em causa uma decisão cuja impugnação com o recurso da decisão final se tornasse absolutamente inútil.

4. A autora reclamou para o Tribunal da Relação de Coimbra, ao abrigo do art. 643.º do CPC, reclamação que veio a ser atendida – com a consequente admissão do recurso – por decisão da relatora, confirmada pelo acórdão da conferência, que, com voto de vencido, indeferiu a reclamação.

5. Inconformada, interpôs a ré Fidelidade recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, formulando as seguintes conclusões:

“I - O presente recurso de Revista é admissível à luz do que dispõem conjuntamente o artigo 671º/2 a) e artigo 629º/2 d) ambos do CPC, porque o acórdão sob recurso está em contradição com o Ac. do TRC de 13.12.2023 in Proc. 3181/29.6T8LRA-A. C1, abrindo-se assim no ver e dizer do Sr. Juiz Conselheiro António Santos Abrantes Geraldes – Edição 2013, pág. 281 “uma via excecional que permite que questões emergentes de decisões interlocutórias escapem ao duplo grau de jurisdição e possam ser apreciadas pelo STJ”.

II - Na presente ação e na PI, a Autora reporta danos no imóvel, mas omite eventuais danos no recheio do estabelecimento, e quanto a estes não articula quaisquer factos (artigo 552º/1 alínea d) do CPC) e a estabilidade da instância, quanto às pessoas, pedido e causa de pedir, é um princípio basilar (artigo 260º do CPC).

III - Só os factos articulados é que podem ser objeto de perícia (artigo 457º/2 do CPC) e a Autora anteviu no pedido de 2ª perícia, uma forma de abordagem enviesada de factos não alegados e relacionados com eventuais danos no recheio e equipamento do estabelecimento comercial instalado no imóvel.

IV - O despacho que indeferiu a realização de segunda perícia, não consubstancia uma rejeição de um meio de prova, e ou uma decisão cuja impugnação com eventual recurso de sentença final, possa ser absolutamente inútil, e a justificar recurso de apelação autónoma, tal como respetivamente facultado pelo artigo 644º/2 alínea d) e artigo 644º/2 alínea h) do CPC.

V - O acórdão que vem proferido, reconhece que a temática em discussão assume controvérsia no seio da jurisprudência, mas perfilha entendimento no sentido de que no caso, o despacho que indeferiu a realização de segunda perícia, contende com a rejeição dum meio de prova autónomo, embora tenha sido tirado/obtido com um voto de vencido.

VI - No caso dos autos, o despacho que indeferiu a realização de segunda perícia, não consubstancia a rejeição dum meio de prova, porque a prova pericial tal como prevista nos artigos 467º e seguintes do CPC, foi admitida e realizada, e quer as reclamações contra o relatório da 1ª perícia, quer o requerimento de 2ª perícia, são vicissitudes do meio de prova pericial específico e esse foi concedido, e a segunda perícia não é um novo e outro meio de prova.

VII - O tema em causa é tão controverso que esse Tribunal da Relação de Coimbra proferiu recentemente aos 09.01.2024, o Ac. in proc. 58/19.9T8GRD-A.C1, com orientação no sentido de que da decisão de indeferimento de requerimento de segunda perícia não cabe recurso de apelação autónoma, apenas sendo admissível recurso ao abrigo do disposto no artigo 644º/3 e 4 do CPC, mas ainda assim com um voto de vencido.

VIII - O douto acórdão que foi proferido e sob Revista e obtido com voto de vencido está em frontal oposição e total contradição com o também douto acórdão proferido por esse mesmo TRC aos 13.12.2023 in Proc. 3181/19.6T8LRA- A. C1 transitado em julgado e cuja cópia vai junta e cujo conteúdo aqui se reproduz.

IX - Enquanto que o acórdão sob Revista considera e decide que o despacho que admita ou rejeite a segunda perícia, corresponde a despacho que admite ou rejeita meio de prova, nessa medida se inserindo no âmbito da previsão da alínea d) do nº2 do artigo 644º do CPC, sendo por isso suscetível de recurso autónomo, o citado aresto também do TRC e obtido por unanimidade e aos 13.12.2013 in Proc. 3181/19.6T8LRA-A. C1 e transitado, consigna ao invés, que o requerimento de 2ª perícia – rejeitado na 1ª instância – constitui um incidente no quadro da prova pericial anterior (1ª perícia) já admitida e realizada (mas a ser prolongada, sobre os mesmos factos com vista a infirmar os dados periciais já obtidos) visando-se funcionalmente abalar/controlar o seu valor probatório e não um novo/autónomo meio de prova pericial e que por isso, da decisão de indeferimento de requerimento de 2ª perícia, não cabe recurso de apelação autónomo, apenas sendo admissível recurso póstumo ‘nos moldes do artigo 644º/3 e 4 do CPC.

X - Este acórdão de 13.12.2023 perfilha o entendimento que a recorrente traz ao recurso de Revista, no sentido de que a 2ª perícia não é uma nova perícia, mas a repetição da 1ª perícia, não constituindo um novo e diverso meio de prova, mas apenas o prolongamento incidental do meio de prova requerido, deferido, iniciado e produzido e o indeferimento de 2ª perícia nunca pode consubstanciar a rejeição de um autónomo meio de prova e daqui decorre, inapelavelmente, a sua irrecorribilidade em sede autónoma, sem prejuízo de ulterior e póstuma recorribilidade, a par da sentença que vier a ser proferida e nos termos do artigo 644º do CPC.

Legislação

O douto acórdão proferido fez incorreta interpretação e aplicação do que dispõem os artigos 644º/2 d) do CPC e 644º/3 também do CPC, e ainda do que dispõem os artigos 552º/1 d) do CPC, artigo 475/2 do CPC; artigo 552/1 alínea d) do CPC; artigo 260º do CPC; artigo 644/1 e 2 do CPC; artigo 644/2 alíneas d) e h) do CPC; artigos 467 e seguintes do CPC; artigo 487/3 do CPC; artigo 644/2 alínea h) do CPC; artigo 644º/3 e 4 do CPC e a correta interpretação e aplicação destes normativos impõem decisão que rejeite por legalmente inadmissível o recurso de Apelação autónoma do despacho de indeferimento do pedido de 2ª perícia e tudo sob as legais consequências.”.

Termina pedindo a “revogação da decisão proferida no acórdão recorrido, substituindo-a por outra que defira a reclamação e rejeite o recurso interposto pela A de indeferimento do pedido de segunda perícia e tudo sob as legais consequências.”.

7. A recorrente juntou aos autos certidão, com nota de trânsito em julgado, do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 13/12/2023, proferido no Processo n.º 3181/19.6T8LRA-A.C1.

8. Não foi apresentada resposta.

9. Recebido o recurso neste Supremo Tribunal veio a ser proferida decisão do seguinte teor:

“Nos presentes autos, veio a ré interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão da conferência do Tribunal da Relação que, confirmando a decisão da relatora de deferimento de reclamação apresentada ao abrigo do art. 643.º do CPC, decidiu admitir o recurso de apelação interposto pela autora relativamente ao despacho da 1.ª instância que indeferiu o pedido de realização de segunda perícia.

Conforme sumariado no acórdão deste Supremo Tribunal de 19.12.2023 (proc. n.º 1506/12.4TYLSB-K.L1.S1), disponível em www.dgsi.pt, “[o] acórdão do Tribunal da Relação que se pronuncia em Conferência sobre a admissibilidade do recurso de Apelação, no âmbito do incidente de reclamação do despacho do juiz da 1.ª instância que não admitiu o recurso interposto (art. 643º, 4, 2.ª parte, 652º, 3, do CPC), julga em definitivo a questão da inadmissibilidade ou da subida do recurso de Apelação (únicos resultados decisórios admitidos pelo art. 643º, 4, 1.ª parte, do CPC), sem que para contrariar essa definitividade decisória possa ser usada a faculdade admitida pelo art. 652º, 5, b), na relação com os arts. 671º, 1 e 2 (revista normal), 672º, 1 e 2 (revista excepcional), e 629º, 2 (revista extraordinária, em conjugação com os requisitos de admissibilidade da revista contemplados no art. 671º, 1 e 2, a)), do CPC.”.

Nos termos do art. 655.º do CPC, notifique as partes para, querendo, se pronunciarem no prazo único de cinco dias, sobre a possibilidade de não conhecimento do recurso em função deste entendimento.”.

10. Não se tendo as partes pronunciado, veio a ser proferida decisão de não admissão do recurso “pelas razões constantes do despacho supra”.

11. Desta decisão vem a recorrente impugnar para a conferência alegando o seguinte:

“1. A decisão singular reclamada incorre em erro de direito ao julgar inadmissível o recurso de Revista, afastando-se do “ratio” do NCPC que privilegia o mérito sobre a forma.

2. O acórdão recorrido do TRC encontra-se em contradição frontal com outros acórdãos do mesmo Tribunal (13.12.2023 e 09.01.2024) e com jurisprudência do STJ (18.06.2019), que reiteradamente afirmaram a inadmissibilidade de recurso autónomo do despacho que indefere a segunda perícia.

3. Nos termos conjugados dos artigos 671.º, n.º 2, al. a), e 629.º, n.º 2, al. d), do CPC, é sempre admissível recurso de Revista quando se verifique contradição jurisprudencial relevante.

4. A interpretação sufragada na decisão singular restringe de forma ilegítima o acesso ao terceiro grau de jurisdição, em violação da função uniformizadora do STJ e da necessidade de coerência jurisprudencial.

5. A prevalência do mérito sobre a forma, princípio estruturante do NCPC, impõe que não se inviabilize a apreciação de uma questão que tem impacto direto na justa composição do litígio.

6. A existência de voto de vencido no acórdão recorrido reforça a relevância e atualidade da divergência, justificando a intervenção do Supremo para assegurar a uniformização da jurisprudência.

7. Impõe-se, por isso, que a conferência revogue a decisão singular reclamada e admita o recurso de Revista interposto pela ora reclamante uma vez que as normas vindas de citar na 3ª conclusão e no texto da reclamação bem como os princípios chamados à colação vêm infringidos.”.

Termina pedindo a reapreciação da decisão singular, “julgando[-se] admissível o recurso de revista e fazendo recair acórdão sobre o mesmo conferindo-lhe inteiro provimento.”.

II – Apreciação da reclamação

1. Analisadas as conclusões de recurso, constata-se que, efectivamente, a recorrente invocou a contradição de julgados entre o acórdão recorrido e o acórdão da Relação de Coimbra de 13/12/2023, proferido no Processo n.º 3181/19.6T8LRA-A.C1 de que juntou certidão com nota de trânsito em julgado.

Vejamos se se impõe apreciar este fundamento de admissibilidade que não foi ponderado na decisão singular reclamada.

O acórdão recorrido é um acórdão da Relação que, confirmando a decisão da relatora, deferiu a reclamação apresentada ao abrigo do art. 643.º do CPC, revogando a decisão do Juiz da 1.ª instância de não admissão de apelação autónoma.

Não cabe assim no âmbito da regra geral de admissibilidade da revista prevista no n.º 1 do art. 671.º do CPC, razão pela qual, diversamente do alegado pela recorrente, se mostra irrelevante que o acórdão tenha sido proferido com um voto de vencido, uma vez que este relevaria apenas para efeitos de afastamento do obstáculo da dupla conforme que apenas se aplicaria se o recurso se inserisse na previsão do referido n.º 1 do art. 671.º.

O acórdão recorrido não cabe também no n.º 2 do art. 671.º do CPC, uma vez que não é acórdão que aprecie decisão interlocutória da 1.ª instância que recaia unicamente sobre a relação processual.

Afigura-se, porém, que o acórdão recorrido é acórdão da Relação do qual não cabe recurso ordinário por motivo estranho à alçada do Tribunal da Relação pelo que, tendo a recorrente invocado a contradição de julgados, cabe apreciar se o recurso é admissível ao abrigo do disposto no 629.º, n.º 2, alínea d), do CPC:

“(…) é sempre admissível recurso:

d) Do acórdão da Relação que esteja em contradição com outro, dessa ou de diferente Relação, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, e do qual não caiba recurso ordinário por motivo estranho à alçada do tribunal, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme.”.

Esclareça-se que, apesar de a recorrente ter indicado outros acórdãos dos Tribunais da Relação alegando que o acórdão recorrido com eles se encontra em contradição, de acordo com a interpretação constante deste Supremo Tribunal apenas cabe apreciar da contradição com um único acórdão-fundamento que, no caso, não oferece dúvidas ser o acima referido acórdão da Relação de Coimbra de 13/12/2023 por ser aquele de que a recorrente juntou certidão.

Cumpre assim apreciar da ocorrência da invocada contradição de julgados como fundamento de admissibilidade.

2. De acordo com a jurisprudência consolidada deste Supremo Tribunal, os pressupostos legais da contradição de julgados previstos no art. 629.º, n.º 2, alínea d), do CPC, são os seguintes: (i) identidade da questão fundamental de direito decidida de forma divergente, o que implica a identidade substancial do núcleo essencial da matéria litigiosa subjacente a cada uma das decisões em confronto; (ii) identidade do regime normativo aplicável; (iii) essencialidade da divergência para o desfecho de cada uma das causas.

Vejamos.

A respeito da admissibilidade de apelação autónoma da decisão de rejeição de segunda perícia, o acórdão recorrido pronunciou-se nos seguintes termos:

“[C]oloca-se na presente reclamação a questão de saber se o despacho sobre o qual incidiu o recurso (cuja admissibilidade está aqui em causa) se insere (ou não) no âmbito de previsão da alínea d) ou h) do n.º 2 do art.º 644.º do CPC, o que, no caso, equivale a saber se o despacho em questão pode (ou não) ser configurado como um despacho que tenha rejeitado um meio de prova ou como decisão cuja impugnação com o recurso da decisão final se tornasse absolutamente inútil.

Adiantando a resposta e ainda que a questão seja controvertida na jurisprudência, entendo que o despacho em causa – que indefere a realização de segunda perícia – corresponde a despacho que rejeita meio de prova, sendo, por isso, susceptível de recurso ao abrigo da citada disposição legal.”.

Por sua vez, acerca dessa questão, o acórdão fundamento que expressamente adere à fundamentação da decisão da relatora na qual se afirma o seguinte:

“[A] pretensão probatória de realização de 2.ª perícia não é dotada de autonomia perante a prova pericial já admitida e em curso, razão pela qual não pode falar-se de rejeição de um autónomo meio de prova.

Não se trata – reitera-se – de autónomo meio de prova, cuja rejeição desencadeasse a aplicação do preceito da al.ª d) do n.º 2 do art.º 644.º do NCPCiv., mas ainda de “incidente suscitado no âmbito da produção da prova” já produzida ou em produção, nos antípodas, pois, da rejeição do meio de prova (a prova pericial que havia sido requerida, admitida e produzida).”.

Constata-se, assim, que, na interpretação do mesmo regime normativo (o art. 644.º, n.º 2, alínea d), do CPC) se verifica divergência na apreciação da mesma questão fundamental de direito (admissibilidade da apelação autónoma da decisão de rejeição de segunda perícia), sendo tal divergência essencial para o resultado de cada uma dos acórdãos em confronto.

3. Concluindo-se pela verificação da invocada contradição de julgados, defere-se a reclamação para a conferência, admitindo-se o recurso.

Nos termos do art. 654.º, n.º 4, primeira parte, do CPC, passa-se de imediato a conhecer do objecto do recurso que se circunscreve unicamente à questão de saber se é admissível apelação autónoma da decisão de admissão ou rejeição de segunda perícia

III – Fundamentação de facto

Releva a factualidade constante do relatório do presente acórdão.

IV – Fundamentação de direito

1. No que ora importa, e sob a epígrafe “Apelações autónomas” dispõe o art. 644.º do CPC:

“(…)

2 - Cabe ainda recurso de apelação das seguintes decisões do tribunal de 1.ª instância:

(…)

d) Do despacho de admissão ou rejeição de algum articulado ou meio de prova;

(…)

h) Das decisões cuja impugnação com o recurso da decisão final seria absolutamente inútil;

i) Nos demais casos especialmente previstos na lei.

3 - As restantes decisões proferidas pelo tribunal de 1.ª instância podem ser impugnadas no recurso que venha a ser interposto das decisões previstas no n.º 1.

4 - Se não houver recurso da decisão final, as decisões interlocutórias que tenham interesse para o apelante independentemente daquela decisão podem ser impugnadas num recurso único, a interpor após o trânsito da referida decisão.”.

Acerca da previsão do n.º 2, alínea d), afirmam Lebre de Freitas/Ribeiro Mendes/Isabel Alexandre (Código de Processo Civil Anotado, 3ª ed., Almedina, Coimbra, 2023, pág. 121):

“A alínea d) estatui que também se faça por apelação autónoma a impugnação do despacho de admissão ou rejeição de um articulado (…) ou de um meio de prova. (…).

Constituem decisões sobre admissão ou rejeição de meios de prova, por exemplo, os despachos em que o juiz admita ou rejeita um rol de testemunhas, autoriza o aditamento do rol ou a substituição de testemunhas, toma posição sobre o pedido de realização de perícia ou inspeção judicial, defere ou não o requerimento do depoimento de parte ou das declarações de parte. Com a subida imediata destas impugnações, em separado (art. 645-2), atenua-se o risco da ulterior anulação do processado, ‘maxime’ da decisão final.”. [bold nosso]

Sobre a origem e razão de ser deste regime pronuncia-se Abrantes Geraldes (Recursos no Novo Código de Processo Civil, 4ª ed., Almedina, Coimbra, 2017, págs. 198-199):

“O art. 691.º, n.º 2, al. i), do CPC de 1961, já possibilitava a apelação autónoma de despacho de admissão ou de rejeição de ‘meios de prova’, englobando, por exemplo, os casos em que o juiz admitia ou rejeitava um rol de testemunhas ou o aditamento ou substituição desse rol, deferia ou indeferia a realização de um a perícia ou inspecção judicial, admitida ou mandava desentranhar determinados documentos ou deferia ou indeferia a requisição de documentos ou a obtenção de informações em poder da outra parte ou de terceiros.

Tal regime foi alargado, por razões facilmente compreensíveis, às decisões que admitam ou rejeitem algum ‘articulado’, atenta a necessidade de atenuar os riscos da eventual inutilização do processado.

Considerando a abolição do recurso de agravo que, ao abrigo do regime anterior à reforma de 2007, cobria este tipo de situações, a opção pela admissão de recurso imediato visou atenuar os ‘efeitos negativos’ que poderiam produzir-se ao nível da tramitação processual ou da estabilidade das decisões que põem termo ao processo. Com efeito, a sujeição de tais decisões a impugnação diferida para o recurso da decisão final, nos termos do n.º 3, potenciaria o risco de anulação do processado, para ponderação ou desconsideração dos meios de prova ou do articulado rejeitado ou admitido. Pode ver-se nesta opção uma melhoria relativamente à situação anterior em que, apesar da generalizada admissibilidade do recurso de agravo em relação a tais despachos, este não tinha subida imediata, nem sequer quando o seu eventual provimento pudesse determinar a invalidação de uma parte do processado.”. [bold nosso]

2. O acórdão recorrido, secundando a decisão da relatora, apreciou e decidiu a questão objecto do presente recurso de saber se é admissível apelação autónoma da decisão de rejeição de segunda perícia, respondendo afirmativamente a esta questão.

A posição favorável à admissibilidade assenta essencialmente no entendimento de que o despacho da 1.ª instância que, nestes autos, indeferiu requerimento de realização de segunda perícia, se enquadra (também) no âmbito do art. 644.º, n.º 2, alínea d), do CPC (Cabe ainda recurso de apelação das seguintes decisões do tribunal de 1.ª instância: (…) d) Do despacho de admissão ou rejeição de algum articulado ou meio de prova”), em função da caracterização normativa da “segunda perícia”:

“[A] segunda perícia não pode ser vista como mero incidente ou vicissitude no contexto da prova pericial previamente admitida e realizada, mas sim como um novo e diferente meio de prova que, não obstante a sua ligação à 1.ª perícia (na medida em que pressupõe a prévia realização desta e tem como objectivo a correcção da eventual inexactidão dos seus resultados), tem total autonomia como meio probatório, possuindo total aptidão para, só por si ou em conjunto com outros elementos probatórios, poder vir a fundar a convicção do tribunal. Ainda que a segunda perícia tenha por objecto os mesmos factos sobre as quais incidiu a primeira (cfr. art.º 487.º, n.º 3, do CPC), ela pode conduzir a resultados/conclusões coincidentes ou divergentes dos resultados da primeira e, nessa medida, cada uma delas tem que ser valorada pelo julgador de forma autónoma no juízo que lhe cabe fazer, de acordo com a livre apreciação a que cada uma delas fica submetida (cfr. art.º 489.º), com vista à decisão a proferir. E tanto basta, a meu ver, para que possam e devam ser consideradas como meios probatórios autónomos.”.

3. Em sentido divergente se pronunciou o acórdão fundamento, aderindo à fundamentação da decisão do relator no sentido da não admissão da apelação autónoma de despacho que rejeite a realização de segunda perícia.

Tal posição assenta num diferente entendimento acerca da natureza da segunda perícia:

- “[A] 2.ª perícia «não é uma nova perícia», mas, por averiguar «dos mesmos factos» e se destinar à «correcção da eventual inexactidão dos resultados» da primeira, «é, simplesmente, a repetição» desta, não poderá dizer-se que estejamos perante um diverso meio de prova, mas - apenas - perante o prolongamento/prosseguimento, incidental, da prova pericial já iniciada e produzida”;

- “[O] meio probatório - prova pericial sobre aqueles concretos factos - já foi objeto de admissão, estando apenas agora em causa, dentro do mesmo objeto probatório, a rejeição de um seu incidente/prolongamento”;

- “[A] pretensão probatória de realização de 2.ª perícia não é dotada de autonomia perante a prova pericial já admitida e em curso, razão pela qual não pode falar-se de rejeição de um autónomo meio de prova.”.

Quid iuris?

4. Sob a epígrafe Segunda perícia, a Secção IV do Capítulo IV (Prova pericial) do Título V (Da instrução do processo) do Código de Processo Civil, estabelece o seguinte regime:

“Artigo 487.º

Realização de segunda perícia

1 - Qualquer das partes pode requerer que se proceda a segunda perícia, no prazo de 10 dias a contar do conhecimento do resultado da primeira, alegando fundadamente as razões da sua discordância relativamente ao relatório pericial apresentado.

2 - O tribunal pode ordenar oficiosamente e a todo o tempo a realização de segunda perícia, desde que a julgue necessária ao apuramento da verdade.

3 - A segunda perícia tem por objeto a averiguação dos mesmos factos sobre que incidiu a primeira e destina-se a corrigir a eventual inexatidão dos resultados desta.

Artigo 488.º

Regime da segunda perícia

A segunda perícia rege-se pelas disposições aplicáveis à primeira, com as ressalvas seguintes:

a) Não pode intervir na segunda perícia perito que tenha participado na primeira;

b) Quando a primeira o tenha sido, a segunda perícia será colegial, tendo o mesmo número de peritos daquela.

Artigo 489.º

Valor da segunda perícia

A segunda perícia não invalida a primeira, sendo uma e outra livremente apreciadas pelo tribunal.”.

A respeito do valor probatório da segunda perícia afirmam Lebre de Freitas/Isabel Alexandre, (Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2.º, 4ª ed., Almedina, Coimbra, 2019, pág. 345):

“A prova pericial é sempre livremente apreciada pelo tribunal, juntamente com as restantes provas que forem produzidas sobre os factos que dela são objeto (art. 389 CC).

Não tem, inclusivamente, de haver qualquer prevalência dos resultados da segunda perícia sobre os da primeira e, embora aquela se destine a corrigir a eventual inexatidão dos resultados desta (art. 487-3), os resultados de ambas são valorados segundo a ‘livre convicção do julgador’.

A segunda perícia não tem o carácter de recurso da primeira. Uma e outra fornecem ao juiz elementos de prova que ele aprecia livremente, tido em conta o conjunto das restantes provas destinadas a formar a sua convicção. Como se dizia no CPC de 1939, o tribunal atenderá, para tanto, às circunstâncias e às demais provas que se produzirem.

Não havendo hierarquia entre o resultado das duas perícias, o juiz pode preferir, de acordo com a convicção formada, o resultado da primeira, tal como pode acabar por decidir de acordo com a averiguação e a apreciação dos factos feitas por um perito que, numa ou noutra das perícias, tenha emitido isoladamente as suas conclusões. Pode igualmente o tribunal decidir sobre a matéria de facto de modo diferente do inculcado pelo relatório unânime dos peritos, por mais qualificados que estes sejam.”. [bold nosso]

Deste modo, atendendo ao facto de o valor probatório da segunda perícia ser equivalente ao da primeira perícia – e não obstante se reconhecer que a questão não é isenta de dificuldades –, acompanha-se o entendimento do acórdão ora recorrido, segundo o qual:

- “Ainda que a segunda perícia tenha por objecto os mesmos factos sobre as quais incidiu a primeira (cfr. art.º 487.º, n.º 3, do CPC), ela pode conduzir a resultados/conclusões coincidentes ou divergentes dos resultados da primeira e, nessa medida, cada uma delas tem que ser valorada pelo julgador de forma autónoma no juízo que lhe cabe fazer, de acordo com a livre apreciação a que cada uma delas fica submetida (cfr. art.º 489.º), com vista à decisão a proferir. E tanto basta, a meu ver, para que possam e devam ser consideradas como meios probatórios autónomos”;

- “Para os efeitos previstos na alínea d) do n.º 2 do citado art.º 644.º, os meios de prova aí mencionados não podem ser vistos em abstracto ou “em bloco” de acordo com a categoria da prova em questão (prova testemunhal, prova documental ou prova pericial), mas sim em concreto (…). Ou seja, o despacho que admite/rejeita meio de prova para os efeitos ali previstos não é apenas o despacho que admite/rejeita em bloco a produção de prova testemunhal, documental ou pericial, mas também o despacho que admite/rejeita a admissão de determinada testemunha, ou o despacho que admite/rejeita a admissão de determinado documento, na medida em que, não obstante possam incidir sobre os mesmos factos, cada uma das testemunhas ou cada um dos documentos corresponde a concreto meio de prova com total autonomia. E, nos mesmos termos em que o depoimento de cada uma das testemunhas corresponde a meio de prova autónomo e independente que, como tal, deve ser valorado pelo julgador (ainda que todos os depoimentos se insiram no âmbito da prova testemunhal) e nos mesmos termos em cada um dos documentos corresponde a meio de prova autónomo e independente (ainda que todos os documentos apresentados se incluam no âmbito da prova documental), também a primeira e a segunda perícia correspondem a meios de prova autónomos (não obstante se insiram ambas no âmbito da prova pericial), na medida em que também estas – à semelhança do que acontece com os outros meios de prova – podem conduzir a resultados coincidentes ou diferentes, podendo e devendo ser objecto de valoração autónoma pelo julgador no processo de formação da sua convicção.”.

Com efeito, quando a lei (tanto o Código Civil como o Código Processo Civil) se refere à prova pericial, como meio de prova, tem em vista o relatório pericial (cfr. art. 484.º do CPC). Daí que o art. 389.º do Código Civil se reporte à força probatória das respostas dos peritos. Pelo que, quando se rejeita a segunda perícia, rejeita-se um segundo relatório pericial. Sendo a função das provas, enunciada no art. 341.º do CC, demonstrar a realidade dos factos, dúvidas não oferece que o segundo relatório pericial é, também ele, um meio que visa demonstrar a realidade dos factos.

Acresce uma razão de ordem sistemática: quando as disposições do Código de Processo Civil sobre a instrução do processo se referem a “provas” (cfr. arts. 413.º, 415.º, 421.º) não têm em vista, no caso da prova pericial, apenas a primeira perícia. O sistema considera meio de prova pericial, tanto a primeira como a segunda perícia. Daí que, observando uma interpretação de acordo com a unidade da ordem jurídica, se deva entende que o legislador utilizou, na alínea d) do n.º 2 do artigo 644.º do CPC. o conceito de meio de prova que utilizou nas restantes disposições do mesmo Código sobre meio de prova.

A admissibilidade de apelação autónoma da decisão que admite ou rejeite a realização da segunda perícia afigura-se, ademais, a solução mais adequada para a concretização das finalidades prosseguidas com o actual regime do art. 644.º, n.º 2, alínea d), do CPC; que, nas palavras supra referidas de Abrantes Geraldes se destina a “atenuar os ‘efeitos negativos’ que poderiam produzir-se ao nível da tramitação processual ou da estabilidade das decisões que põem termo ao processo. Com efeito, a sujeição de tais decisões a impugnação diferida para o recurso da decisão final, nos termos do n.º 3, potenciaria o risco de anulação do processado, para ponderação ou desconsideração dos meios de prova ou do articulado rejeitado ou admitido.”.

A terminar assinale-se apenas que, tanto quanto foi possível apurar, este Supremo Tribunal tomou posição sobre a questão em causa no acórdão de 01/10/2024 (proc. n.º 1607/21.8T8GRD.C1.S1), disponível em www.dgsi.pt, pronunciando-se (em obter dictum) no sentido ora acolhido. Quanto ao invocado acórdão de 18.06.2019 (cfr. alegações da recorrente), dada a incompletude da identificação, não foi possível confirmar a sua existência.

V – Decisão

Pelo exposto, decide-se:

a. Deferir a reclamação para a conferência, admitindo-se o recurso;

b. Julgar o recurso improcedente, confirmando-se a decisão do acórdão recorrido.

Custas pela recorrente.

Lisboa, 27 de Novembro de 2025

Maria da Graça Trigo (relatora)

Ana Paula Lobo

Orlando Nascimento