Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
4583/21.3T8VNF-B.G1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: ANTÓNIO BARATEIRO MARTINS
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAL COMPETENTE
TRIBUNAL DE COMÉRCIO
TRIBUNAL COMUM
DIREITOS DOS SÓCIOS
SOCIEDADE COMERCIAL
DESTITUIÇÃO DE GERENTE
JUSTA CAUSA
Data do Acordão: 10/26/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA (COMÉRCIO)
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :
I – A expressão “direitos sociais” (constante da alínea c) do art. 128.º/1 da LOSJ) não equivale ou corresponde a “direitos dos sócios”, devendo entender-se que, quando em tal alínea se fala em “ações relativas ao exercício de direitos sociais”, se está a pensar e a referir às ações que emergem do regime jurídico das sociedades comerciais, se está a pensar e a referir às ações em que estão em causa e são invocados os direitos sociais emergentes de tal regime jurídico, sendo que podem ser titulares de tais direitos sociais quer os sócios, quer a sociedade, quer os credores sociais quer mesmo terceiros.
II – É o caso da ação/pedido indemnizatório de administrador por a sua destituição não se fundar em justa causa, ação/pedido para o qual são materialmente competentes os tribunais de comércio.
Decisão Texto Integral:




Processo: 4583/21.3T8VNF-B.G1.S1
6.ª Secção

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

I – Relatório
AA, residente na rua ..., ..., ..., intentou, na Instância Central da Comarca de Braga, mais exatamente na Seção Especializada do Juízo de Comércio ..., ação declarativa contra Seara, SA, com sede na rua ..., ..., ..., ..., pedindo que:
a) Seja declarada a invalidade da deliberação social tomada na assembleia de 15 de julho de 2021 e, em consequência, ordenado o cancelamento da respetiva inscrição na Conservatória do Registo Comercial;
b) Sem prescindir, caso assim não se entenda, deverá ser a R. condenada a pagar ao A. a quantia global de € 435.266,24, a título de indemnização em virtude da inexistência de justa causa para a destituição, nos termos do n.º 5 do artigo 403º CSC.
Alegou (no que interessa para o objeto da presente revista) que, caso a deliberação social impugnada (que o destitui de vogal do Conselho de Administração da R.) não seja declarada inválida, inexiste qualquer justa causa para a sua destituição, razão por que lhe assiste e formulou, subsidiariamente, o pedido indemnizatório de € 435.266,24.
A R. contestou, articulado em que pugnou pela validade da deliberação tomada na AG de 15 de julho de 2021 e em que, sem prejuízo de invocar a incompetência material dos Juízos de Comércio, sustentou existir justa causa na destituição do A., não havendo por isso lugar a qualquer indemnização.
Finda a fase dos articulados, foi realizada audiência prévia, na qual as partes foram notificadas de que o Tribunal pretendia conhecer, de imediato, da exceção de incompetência material dos Juízos do Comércio para conhecer do pedido de indemnização formulado.

Nesse seguimento, foi proferido, em 13/12/2021, despacho saneador que conheceu de tal questão da incompetência em razão da matéria, tendo sido proferida a seguinte decisão:
“ (…) com os fundamentos expostos, julgo procedente, por provada, a ajuizada exceção da cumulação ilegal de pedidos decorrente da incompetência em razão da matéria deste Juízo do Comércio para conhecer do pedido subsidiário relativo à destituição com/sem justa causa do Autor e ao apuramento e fixação de indemnização a que alude o artigo 257.º do CSC e, em consequência, absolvo da instância, quanto a ele, a Ré”[1] .
Não se conformando com tal decisão[2], apresentou o A. recurso de apelação, tendo a Relação de Guimarães, por acórdão de 05/05/2022, revogado a decisão recorrida na parte em que julgou verificada a incompetência em razão da matéria do Juízo de Comércio para apreciar o pedido subsidiário – de condenação da Ré a pagar ao A. a quantia global de € 435.266,24, a título de indemnização em virtude da inexistência de justa causa para a destituição, nos termos do n.º 5 do artigo 403º CSC – que se substituiu por outra que julgou competente o Juízo de Comércio para apreciar o referido pedido subsidiário e em consequência determina-se o prosseguimento dos autos quanto ao mesmo[3].

Agora inconformada a R., interpõe o presente recurso de revista, visando a revogação do Acórdão da Relação e a sua substituição por decisão que julgue procedente a exceção de incompetência em razão da matéria do Juízo de Comércio ... para conhecer do pedido subsidiário de indemnização por destituição do recorrido, assim se repristinando o decidido na sentença da 1.ª Instância.
Terminou a sua alegação com as seguintes conclusões:
A. O presente recurso recai sobre a decisão vertida na alínea a) do trecho decisório do Acórdão proferido pelo Tribunal a quo, que revogou a decisão proferida pelo Tribunal de 1.ª instância e que substituiu por outra que julga o Juízo de Comércio competente para apreciar o pedido subsidiário de indemnização em virtude de (alegada) destituição sem causa do Recorrido e, em consequência, determina o prosseguimento dos autos quanto ao mesmo.
B. O presente recurso de revista deve ser admitido ao abrigo dos artigos 629º, n.º 2, alínea a), e 671º, n.º 2, alínea a), ambos do CPC.
C. O Tribunal a quo afastou erradamente e por equívoco a exceção de incompetência material do Juízo de Comércio, interpretando erradamente o art. 128.º da LOSJ e não mobilizando os cânones interpretativos postulados pelo art. 9.º do CC para a interpretação desta norma, que assim vai violado, ele próprio mal interpretado e aplicado.
D. O Tribunal a quo principia a sua interpretação partindo do elemento histórico da norma – e não do elemento literal, como dita o art. 9.º do CC – e interpreta este elemento erradamente e como se do único elemento interpretativo mobilizável se tratasse.
E. A Proposta de Lei n.º 182/VII/3, que originou a Lei n.º 3/99, de 13 de janeiro (LOFTJ), ao referir que os tribunais de comércio passam a ser competentes “para as ações relativas ao contencioso das sociedades comerciais” não pretendia imputar o “contencioso das sociedades comerciais” à previsão normativa relativa às “ações relativas ao exercício de direitos sociais”.
F. Com efeito, e conforme melhor e mais pormenorizadamente desenvolvido no corpo das alegações, tanto no art. 89.º da LOFTJ como no atual art. 128.º da LOSJ são incluídos na competência dos tribunais de comércio vários tipo de ações relacionados com o contencioso das sociedades comerciais, mas que não se subsumem na previsão de exercício de direitos sociais (a saber, o previsto nos art. 89.º, n.º 1, al. b), d) e e) da LOFTJ e art. 128.º, n.º1, al. b), d), e), f) e g) da LOSJ).
G. Assim, o Tribunal a quo interpretou erradamente o elemento histórico (e, simultaneamente, o elemento sistemático) da norma, porquanto o legislador, quando se referia ao “contencioso das sociedades comerciais” referia-se a todas as ações previstas no art. 89.º da LOFTJ (e, bem assim, hoje, no art. 128.º da LOSJ) e não apenas às ações de exercício de direitos sociais. Por este motivo, a atribuição de competência aos Juízos de Comércio para conhecer de ações relativas ao exercício de direitos sociais não pode ser lida como uma cláusula de atribuição de competência material geral relativa às sociedades comerciais (contrariamente ao que entende o Tribunal recorrido).
H. Quanto ao elemento teleológico da norma, é necessário ter em consideração que o legislador não pretendeu que os juízos de comércio passassem a conhecer de todo o contencioso das sociedades comerciais, mas apenas das ações discriminadas no art. 128.º da LOSJ (anterior art. 89.º da ROFTJ), enquanto norma especial de atribuição de competência.
I. Os juízos de competência especializada apenas detêm competência para conhecer das matérias fixadas (no caso, das matérias previstas no art. 128.º da LOSJ e, anteriormente, no art. 89.º da LOFTJ).
J. O Tribunal a quo, ao invés de partir do elemento literal da norma (como prescreve o art. 9.º do CC), baseou-seno seu elemento histórico. Este errado ponto departida determinou que toda a operação interpretativa levada a cabo tenha conduzido a resultados contrários à lei.
K. O conceito de “direitos sociais” constitui, simultaneamente, o ponto de partida da interpretação a realizar e o seu limite, devendo existir correspondência entre o pensamento legislativo e a letra da lei.
L. Ora, os direitos sociais são todos aqueles que os sócios de uma determinada sociedade têm pelo facto de o serem, enquanto titulares dessa mesma qualidade jurídica, dirigidos à proteção dos seus interesses sociais, ou seja, são direitos que nascem na esfera jurídica do sócio, enquanto tal, por força do contrato de sociedade, baseados nessa particular titularidade. Encontram-se excluídos do conceito todos aqueles direitos que os sócios são igualmente titulares, independentemente da sua qualidade de sócios, aqueles em que essa qualidade não releva para o exercício do direito.
M. No caso que nos ocupa, e analisando o pedido subsidiário formulado pelo Recorrido, verifica-se que este visa, apenas e tão-só, o arbitramento de uma indemnização pelos danos sofridos originados pela destituição (no seu entendimento) sem justa causa para o efeito, não colocando em causa a deliberação tomada.
N. O pedido de arbitramento de uma indemnização por força da destituição de administrador não constitui o exercício de um direito social (dado que este pedido em nada se relaciona com o estatuto de sócio, nascendo independentemente da posição social do administrador destituído), mas sim um direito de crédito.
O. A indemnização peticionada é independente do estatuto de sócio e trata-se de um direito de crédito, extrassocial, para o conhecimento da qual não são competentes os Juízos deComércio, mas sim os tribunais cíveis (art. 128.º, n. 1, al. d), daLOSJ, a contrario).
P. Assim sendo, atentando no modo como o ora Recorrido configurou a relação material controvertida subjacente ao pedido subsidiário formulado (não colocando em causa, neste pedido, a validade da deliberação), e atenta a matéria peticionada (eventual indemnização por responsabilidade civil da sociedade), conclui-se pela incompetência absoluta do Juízo do Comércio para dirimir a dita questão.
Q. A interpretação do art. 128.º, n.º 1, al. c), da LOSJ, de acordo com os cânones previstos no art. 9.º do CC, determina, assim, que o Juízo de Comércio ... deva ser declarado incompetente para conhecer do pedido subsidiário de indemnização por destituição do Recorrido, na medida em que não está em causa o exercício de um direito social e, portanto, tal ação não compete ao Juízo de Comércio, e, bem assim, deve ser revogado o Acórdão proferido quanto a esta decisão – o que expressamente se requer.

O A. respondeu, sustentando, em síntese, que o Acórdão recorrido não violou qualquer norma, pelo que deve ser mantido nos seus precisos termos.
Obtidos os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.
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II. Fundamentação de facto
II – A – Os elementos factuais relevantes são os que já constam/resultam do relatório.
II – B – Fundamentação de Direito
A única questão a que importa dar solução diz respeito à competência material, ou seja, diz respeito à questão de saber qual é o tribunal materialmente competente – se o tribunal de competência especializada de comércio (o tribunal/juízo de comércio), por estar em causa ação que visa o exercício de direitos sociais (nos termos do art. 128°/l/c) da LOSJ), ou se o tribunal (de competência genérica ou outro tribunal especializado que não o de comércio) a que “residualmente” caiba tal competência – para a apreciação do mérito do pedido subsidiário de indeminização formulado pelo A. (por, segundo ele, haver sido destituído sem justa causa de vogal do Conselho de Administração da R.).
Como é sabido, o poder jurisdicional está dividido por diferentes espécies ou categorias de tribunais, de acordo com a natureza das matérias das causas que sejam intentadas, sendo que a “natureza das matérias”, definidora da competência dum tribunal, se determina em face da causa de pedir e do pedido formulado na causa intentada.
No caso, é pois a partir da pretensão indemnizatória do A. com fundamento em haver sido destituído sem justa causa do CA da R. e em o art. 403.º/5 do CSC conferir um direito indemnizatório ao administrador destituído sem justa causa, que se define a “natureza da matéria” e que, em função disso, se determina qual é o tribunal materialmente competente para apreciar tal pretensão do A..
E tal “matéria” – não suscita qualquer dúvida ou discussão – é da competência dos tribunais judiciais (cfr. art. 64.º do CPC e 40.º da LOSJ); assim como não suscita qualquer dúvida ou discussão que um tal objeto processual, dentro dos tribunais judiciais, caberá à “competência genérica”[4], caso não caiba na competência especializada de comércio (cfr art.65.º do CPC e 40.º/2, 79.º, 80.º, 81.º e 128.º da LOSJ).
Daí que tenhamos começado por dizer que a questão que preenche o objeto da revista está em saber se é materialmente competente o tribunal de competência especializada de comércio ou o tribunal a que “residualmente” caiba tal competência, o que significa que a questão estará apenas em saber se é materialmente competente, para o referido objeto processual, o tribunal de competência especializada de comércio (uma vez que, esta estabelecida, fica arredada a residual; e, na hipótese contrária, passará a funcionar a residual).
E circunscrevendo ainda um pouco mais a questão, temos que o tribunal de competência especializada de comércio, para ser materialmente competente, só o poderá ser nos termos e ao abrigo do art. 128.º/1/c) da LOSJ, alínea segundo o qual “compete às seções de comércio preparar e julgar (…) as ações relativas ao exercício de direitos sociais”; pelo que – é onde se pretende chegar – a essência da questão sob revista está em saber/dizer o que se deve entender, para efeitos da alínea c) do art. 128.º/1 da LOSJ, por “direitos sociais” (é aliás sobre tal questão que incide o foco do acórdão recorrido e das alegações recursivas).
Explicado onde se situa o fulcro da questão que preenche o objeto da revista, debrucemo-nos pois sobre ele, ou seja, sobre o que se deve entender por “direitos sociais” (para efeitos da alínea c) do art. 128.º/1 da LOSJ).
Sustenta a recorrente[5] que a lei (na alínea c) do art. 128.º/1 da LOSJ), ao falar em “direitos sociais”, está a referir-se aos “direitos dos sócios” e, por conseguinte, está a referir-se a todos aqueles direitos “que os sócios de uma determinada sociedade têm pelo facto de o serem, ou seja, são direitos que nascem na esfera jurídica do sócio, enquanto tal, por força do contrato de sociedade, baseados nessa particular titularidade, encontrando-se excluídos do conceito todos aqueles direitos de que os sócios são igualmente titulares, independentemente da sua qualidade de sócios, todos aqueles direitos em que essa qualidade não releva para o exercício do direito”.
Entendimento este – que faz corresponder a expressão “direitos sociais” a “direitos dos sócios” – que marca o trajeto que vem sendo percorrido na interpretação de tal alínea c).
Correspondência que suscita a seguinte constatação: se pela alínea em causa apenas for conferida competência material (aos tribunais de comércio) para o exercício dos direitos que nascem na esfera jurídica do sócio enquanto tal (sejam eles os direitos gerais dos sócios indicados quer nos artigos 21.º do CSC quer em diversas disposições esparsas do CSC, como, v. g., nos arts 59.º, 67.º, 77.º, 266.º, 458, 156.º, etc.; sejam eles os direitos especiais dos sócios resultantes do contrato de sociedade), restritas serão as ações, dentre a panóplia de possíveis ações decorrentes da estrita aplicação das regras societárias, que serão da competência material dos tribunais do comércio.
Daí que, num segundo momento, sem romper com a referida correspondência entre “direitos sociais” e “direitos dos sócios”, se haja procurado delinear um conceito amplo do que se deve entender por “direitos dos sócios”, aqui se incluindo todas aquelas situações em que o fim social está presente no comportamento do sócio (como sucede no contrato de suprimento e nas ações fundadas em suprimentos de um sócio à sociedade – cfr., v. g., Ac. do STJ de 07/06/2011, Processo 612/08).
Porém, não se descortinando razões, em termos teleológicos, para só atribuir competência (aos tribunais do comércio) para as ações respeitantes aos direitos dos sócios, passou a jurisprudência deste Supremo[6] a “quebrar” a referida correspondência (cfr. Ac deste STJ de 08/05/2013, processo 5737/09; de 11/01/2011, processo 1032/08; de 17-09-2009, processo 94/07; de 15-09-2011, processo 5578/09; e de 18/12/2008, processo 09B3907, todos disponíveis em www.dgsi.pt[7]), passando a sustentar-se que os “direitos sociais” (a que se refere a alínea sob apreciação) não são apenas aqueles de que são titulares os sócios, podendo ser titulares de direitos sociais quer os sócios, quer a sociedade, quer os credores sociais, quer mesmo terceiros, desde que, já se vê, tais direitos sejam expressamente conferidos pela lei societária (ou pelo contrato de sociedade); ou, dito de outra forma, que “a expressão exercício de direitos sociais, utilizada pelo legislador na alínea c), do n.º 1, do artigo 128.º, da LOSJ, para delimitar a competência dos tribunais de comércio, não deve ser equiparada a direitos dos sócios, mas sim a direitos específicos do regime do direito das sociedades, competindo àqueles tribunais decidir os litígios emergentes de relações jurídicas conformadas pela legislação que especificamente rege as sociedades comerciais, designadamente o Código das Sociedades Comerciais.” (cfr. Ac. deste STJ de 24/02/2022, proc. 1044/21, também disponível www.dgsi.pt).
É este também – desde já se antecipa – o nosso entendimento: a expressão “direitos sociais” (constante da alínea c) do art. 128.º/1 da LOSJ) não significa “direitos dos sócios”; quando a lei fala em tal alínea em “ações relativas ao exercício de direitos sociais”, deve entender-se que está a querer referir-se às ações que emergem do regime jurídico das sociedades comerciais, que está a querer referir-se às ações em que estão em causa e são invocados os direitos sociais emergentes de tal regime jurídico, sendo que podem ser titulares de tais direitos sociais quer os sócios, quer a sociedade, quer os credores sociais quer mesmo terceiros (cfr., v. g., arts. 78.º e 79.º do CSC).
Pelo seguinte:
A expressão “direitos sociais” surge, pela primeira vez, numa Lei de Organização Judiciária (LOFTJ), na alínea c) do art. 89.º/1 (alínea que o atual art. 128.º/1/c) da LOSJ reproduz) da Lei 3/99, de 13-01, mas não era, importa sublinhá-lo, uma expressão desconhecida do legislador adjetivo e/ou que este haja então “cunhado” ex novo (e porventura sem o devido cuidado e rigor).
Desde 1939 (pelo menos) que entre os processos de jurisdição voluntária do CPC (atualmente, nos artigos 1048.º a 1071.º do CPC) se contam os respeitantes ao “exercício de direitos sociais”, sendo certo – é o aspeto que aqui cumpre salientar – que entre os direitos exercitáveis através de tais processos de jurisdição voluntária se contam, ao lado de direitos dos sócios (como é claramente o caso do direito de pedir inquérito judicial à sociedade, exercitável pelo processo previsto no art. 1048.º), direitos dos credores (como é o caso do direito de oposição à distribuição de reservas ou lucros ou de oposição à fusão e cisão de sociedade, exercitáveis pelos processos previstos pelos artigos 1058.º e 1059.º) e/ou de terceiros (como é o caso do direito à liquidação de participação social, exercitável pelo processo previsto no art. 1068.º), o que muito claramente significa que o legislador (do CPC) englobou no conceito/expressão “direitos sociais” outros direitos para além dos direitos dos sócios, tendo, porém, todos eles (tais “direitos sociais” exercitáveis por tais processos de jurisdição voluntária) como ponto comum serem direitos que emergem do regime jurídico das sociedade comerciais[8].
Em todo caso, há que admitir – até por a noção jurídica societária de direitos sociais surgir, por vezes, no direito substantivo, reportada e associada aos direitos dos sócios – que, por interpretação, se possa concluir que o legislador de 99 se equivocou, que ignorava que ele próprio já utilizava o conceito/expressão com um significado diferente de “direitos dos sócios” e que, por isso, não soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.
Sucede que nada disto se verifica.
A expressão “direitos sociais” (utilizada no art. 89.º/1/c) da LOFTJ e reproduzida no art. 128.º/1/c) da LOSJ), com o sentido subjacente ao atual Capítulo XIV do CPC, é totalmente (e até a mais) congruente com o confessado pensamento legislativo de 99: exprime acertada e adequadamente a solução decorrente do pensamento legislativo explicitamente manifestado na LOFTJ.
Efetivamente, a alínea c) do n.º 1 do art.º 89º da Lei n.º 3/99 teve origem na Proposta de Lei n.º 182/VII/3, na qual se consignava:
“(…) A criação, por iniciativa do XIII Governo, dos tribunais de recuperação da empresa e de falência, por ora territorialmente competentes nas áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto, tem-se revelado positiva, na prática. É altura de lhes ampliar prudentemente a competência em razão da matéria, não para se reatar o antigo modelo dos clássicos tribunais de comércio, mas fazendo-os atuar em questões para que se requer especial preparação técnica e sensibilidade. Assim, os tribunais de recuperação da empresa e de falência, que passam a designar-se por tribunais de comércio, serão competentes para as ações relativas ao contencioso das sociedades comerciais, ao contencioso da propriedade industrial, às ações e aos recursos previstos no Código de Registo Comercial, aos recursos das decisões em processo de contra-ordenação no âmbito da defesa e promoção da concorrência. (…)”
Ou seja, o pensamento legislativo (que presidiu à redação do texto da alínea c) sob apreciação), claramente revelado e manifestado, era o de conferir competência aos tribunais de comércio para as “ações relativas ao contencioso das sociedade comerciais”, pelo que, sendo o legislador fiel a tal pensamento legislativo, não era expetável que, na letra da lei, viesse dizer que são da competência dos tribunais de comércio apenas as ações relativas ao exercício dos direitos dos sócios, na medida em que, assim, deixava de fora uma parte significativa do contencioso societário (ao arrepio do que antes havia dito sobre a competência que pretendia atribuir aos tribunais do comércio)[9].
Mais, a teleologia de conceder competência aos tribunais de comércio para as ações relativas ao contencioso das sociedade comerciais – fazê-los atuar em questões para que se requer especial preparação técnica e sensibilidade – vale e é identicamente aplicável quer para os “direitos sociais” de que são titulares os sócios, quer para os direitos de que forem titulares a sociedade, os credores sociais ou mesmo terceiros, desde que, como é evidente, tais direitos resultem e sejam conferidos a todos eles pela lei societária (ou pelo contrato de sociedade).
A criação dos juízos do comércio foi orientada pelo objetivo de melhorar a administração da justiça quando os conflitos emergem de aspetos específicos do direito comercial (aqui se incluindo o direito das sociedades comerciais): deu-se por adquirido que a especialização (decorrente da criação de juízos com competência especializada) se estende aos juízes que procedem à composição dos correspondentes conflitos de interesses e que assim se criam as sinergias que permitam uma melhor aplicação da lei e uma resolução mais célere dos litígios.
Não se vislumbrando quaisquer razões que justifiquem que apenas os direitos dos sócios e não também outros direitos sociais (com o sentido de direitos que emergem da aplicação de normas que regem especificamente as sociedades comerciais) possam beneficiar de tal apreciação e tratamento tecnicamente especializado; pelo que, atribuir aos tribunais especializados para apreciar as questões comerciais competência para julgar exclusivamente as ações onde estejam em discussão direitos dos sócios, excluindo os demais ações que tenham por tema o regime das sociedades comerciais, “seria traçar uma linha de fronteira artificial, não havendo razões para imputar o desenho dessa linha ao legislador, uma vez que é indiferente na execução de uma política de justiça, a relação da distribuição dos processos judiciais entre tribunais pertencentes á mesma ordem jurisdicional, como são os tribunais cíveis e os tribunais de comércio” (cfr. Ac. deste STJ de 24/02/2022, já citado).
Em resumo (e seguindo os cânones interpretativos do art. 9.º do C. Civil):
A letra da lei fala em “direitos sociais” e não em “direitos dos sócios”, sendo que, caso o legislador pretendesse limitar a competência (dos tribunais de comércio) ao “exercício do direito dos sócios”, ter-lhe-ia sido fácil, dizendo isso mesmo, exprimir tal intenção.
Letra da lei essa – falar em “direitos sociais” e não em “direitos dos sócios” – que corresponde ao que, em termos preambulares, foi revelado sobre o pensamento legislativo que presidiu à letra de tal lei: conferir competência aos tribunais de comércio para as “ações relativas ao contencioso das sociedades comerciais”.
Letra da lei – a maior amplitude da expressão utilizada – que é a mais adequada e concordante com a intenção/finalidade também expressa pelo legislador de fazer “atuar os tribunais de comércio em questões para que se requer especial preparação técnica e sensibilidade”, sendo, como é evidente, que tal “especial preparação técnica e sensibilidade” é identicamente indispensável quando são os sócios a exercitar os seus direitos sociais e quando se está perante o exercício de direitos sociais por parte da sociedade, credores ou terceiros.
Enfim, a nosso ver, como se antecipou, a expressão “direitos sociais” (constante da alínea c) do art. 128.º/1 da LOSJ) não equivale ou corresponde a “direitos dos sócios”, devendo entender-se que, quando em tal alínea se fala em “ações relativas ao exercício de direitos sociais”, se está a pensar e a referir às ações que emergem do regime jurídico das sociedades comerciais, se está a pensar e a referir às ações em que estão em causa e são invocados os direitos sociais emergentes de tal regime jurídico, sendo que podem ser titulares de tais direitos sociais quer os sócios, quer a sociedade, quer os credores sociais quer mesmo terceiros.
O que não significa que não possa haver situações em que a aplicação de tal interpretação não suscite dúvidas: inevitavelmente, tal poderá acontecer se o tema da ação não convocar e não se estribar exclusiva ou essencialmente nas normas e especialidades próprias do direito societário.
Não é, porém, o caso dos autos.
Como apropriadamente se observou no acórdão recorrido:
“(…) o direito à indemnização emerge de um cargo social – o cargo de vogal do CA – e de norma do CSC – art.º 403º n.º 5 do CSC.
O facto de estar em causa um direito de crédito (indemnizatório) não constitui razão para afastar a competência do juízo de comércio, pois quando o sócio exige à sociedade os suprimentos que fez também está em causa um direito de crédito e nem por isso se questiona que é um direito social.
Além disso, a apreciação da justa causa da destituição, independentemente de questões de forma, convoca normas de direito societário, como seja o disposto no art.º 64º do CSC, relativa aos deveres fundamentais dos gerentes ou administradores da sociedade (deveres de cuidado, de diligência e de lealdade), cuja aplicação em concreto pode requerer uma especial preparação técnica e sensibilidade. (…)
Se a justificação da existência dos tribunais de comércio reside na necessidade de cultivar uma mais fina e depurada sensibilidade jurídica e uma preparação técnica mais especializada para as matérias comerciais/societárias e se com isso se pretende obter ganhos, nomeadamente de eficácia e estabilidade da jurisprudência, com a experiência desenvolvida no julgamento constante dos casos com aquelas relacionados e se, apesar de no pedido de indemnização por destituição sem justa causa está em causa em "direito de crédito", este radica na vida societária e, nessa medida, tal pedido deve ter-se como conexionado com o "contencioso" das sociedades e desta forma com a competência dos juízos de comércio. (…)”.
Em conclusão, a aplicação do disposto no art. 403.º/1 do CSC – ou seja, o exercício do direito indemnizatório (de administrador destituído sem justa causa) invocado pelo A. – acabará por se traduzir na discussão sobre a existência ou não de justa causa, a qual está definida no art. 403.º/4 do CSC como “a violação grave dos deveres de administrador”, sendo que os deveres de administrador (quer os deveres legais gerais constantes do art. 64.º do CSC, quer os deveres legais específicos constantes de disposições esparsas do CSC) constitui matéria própria/exclusiva do regime jurídico societário[10] – o mesmo é dizer, é no campo das regras jurídicas próprias do CSC que o pedido/direito indemnizatório do A. se baseia e é também no campo próprio das regras jurídicas do CSC que tal pedido/direito pode ser afastado – pelo que a atribuição de competência aos tribunais de comércio (para conhecer dum tal pedido indemnizatório) é chamá-los a apreciar e decidir questões para que têm a tal “especial preparação técnica e sensibilidade” que esteve na base do supra referido pensamento legislativo.
É quanto basta para julgar improcedentes as alegações da R/recorrente.
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III - Decisão
Nos termos expostos, decide-se negar a revista.
Custas desta revista pela R./recorrente.
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Lisboa, 26/10/2022

António Barateiro Martins (Relator)

Luís Espírito Santo

Ana Resende

Sumário (art. 663º, nº 7, do CPC).

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[1] Em tal decisão, foi também considerado que “os autos permitem conhecer, desde já, de parte do seu mérito” e consignou-se: “O objeto do litígio centra-se na verificação dos pressupostos legais que permitiriam a declaração de nulidade das deliberações tomadas na assembleia geral da sociedade datada de 17/7/2021, fruto da pretensa falta de convocatória ou da sua anulabilidade”, tendo-se neste âmbito decidido: “Nestes termos e pelos fundamentos expostos, julgo, desde já, improcedente a presente ação quanto à pretensa nulidade/anulabilidade da deliberação decorrente da falta/irregularidade da convocação da assembleia geral.”
[2] Assim como com a decisão referida na nota anterior.
[3] Tendo, no mais (a propósito do referido nas notas 1 e 2) julgado “improcedente o recurso, prosseguindo os autos os seus termos para conhecimento da questão da irregular representação dos acionistas maioritários, definindo-se a final o direito aplicável aos factos apurados.”
[4] A expressão não será totalmente exata, uma vez que, face ao valor do pedido, a “competência genérica” será/ia no caso a competência especializada cível da instância central (cfr. art. 117.º/1/a) da LOSJ).
[5] Em linha como o defendido, na doutrina, por Paulo Olavo Cunha, in Lições de Direito Comercial, 149-150.
[6] Assim como, na doutrina, Joaquim Taveira da Fonseca, in Suspensão e destituição dos membros dos órgãos de administração das sociedades por quotas e anónimas, V Congresso Direito das Sociedades em Revista, Separata, 2018, pág. 244.
[7] Acórdãos tirados em ações de indemnização contra os gerentes/administradores.
[8] Não havendo razão, salvo o devido respeito, para restringir tal conceito/expressão “direitos sociais” apenas aos direitos exercitáveis através de tais processos de jurisdição voluntária, ou seja, concorda-se com BB (em Do tribunal competente para a ação de responsabilidade do gerente ou administrador, em “.... Doutor CC”, vol. III, Universidade Católica Editora, 2011, pág. 311 e ss.) quando o mesmo refere que a alínea c) sob interpretação dá competência aos tribunais de comércio para julgar as ações com processo especial de jurisdição voluntária reguladas em tais artigos 1048º e seguintes do CPC, mas já não se concorda quando o mesmo sustenta que tal alínea c) apenas atribui competência para julgar as ações dos art. 1048.º e ss. do CPC: “direitos sociais” não são apenas os adjetivados em tais artigos 1048.º e ss. do CPC (como é muito evidente em relação aos sócios, cujos “direitos sociais” vão muito para além dos direitos adjetivados em tais artigos 1048.º e ss do CPC).
[9] E não é o facto de nas alíneas seguintes (do então art. 89.º da LOFTJ e do atual art. 128.º da LOSJ) se fazer referência a vários tipos de ações relacionados com o contencioso das sociedades comerciais que deve levar a concluir que a tais ações (e ao exercício de direitos dos sócios) se circunscreve o contencioso das sociedades comerciais que o legislador pretendeu atribuir aos tribunais de comércio.
[10] Aliás, é exatamente esta mesma matéria (própria/exclusiva do regime jurídico societário) que se aprecia nas ações dos artigos 72.º, 76.º, 77.º e 78.º do CSC: nestas ações, para responsabilizar civilmente os gerentes ou administradores; aqui, na presente ação, para concluir que as suas destituições foram com justa causa.