Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3346/22.3T8LRA-A.L1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: FERREIRA LOPES
Descritores: REVISTA EXCECIONAL
PRESSUPOSTOS
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
CAUÇÃO
GARANTIA
DIREITO DE CRÉDITO
EFEITO SUSPENSIVO
REJEIÇÃO DE RECURSO
Data do Acordão: 03/27/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: INDEFERIDA A RECLAMAÇÃO
Sumário :
Não admite revista excepcional o acórdão da Relação, confirmatória da decisão de 1ª instância que julgou inidónea a caução apresentada pelo recorrente para conseguir o efeito suspensivo no recurso de apelação.
Decisão Texto Integral:

Acordam em conferência no Supremo Tribunal de Justiça


VEYEL, CONSTRUÇÕES, LDA, intentou ação comum de declaração contra AA, pedindo a condenação deste no pagamento:

- da quantia de €104.483,23, acrescida de juros vencidos e vincendos, conforme contrato celebrado entre as partes.

- dos trabalhos a mais executados e bens fornecidos, a liquidar em execução de sentença.

Por decisão de 29.03.2023, a ação foi julgada procedente e o R. foi condenado conforme peticionado pela A.

Inconformado, em 15.05.2023 o R. recorreu daquela decisão, pedindo, além do mais, que o recurso seja recebido com efeito suspensivo, «mediante a prestação de caução em prazo a fixar» pelo «Tribunal, considerando que a imediata execução da decisão de que se recorre, causará ao Apelante prejuízo grave».

Na mesma data, em 15.05.2023, o R. suscitou o «incidente de nulidade por falta de citação».

Por decisão de 28.09.2023 tal incidente foi julgado improcedente.

Inconformado com aquela decisão, em 30.10.2023 o R. dela recorreu, pedindo que o recurso seja recebido com efeito suspensivo, «mediante a prestação de caução em prazo a fixar» pelo «Tribunal, considerando que a imediata execução da decisão de que se recorre, causará ao Apelante prejuízo grave».

Tal requerimento de interposição de recurso foi autuado como apenso de prestação de caução (Apenso A).

Em 06.12.2023, foi proferida decisão nos seguintes termos:

«(…)

O pedido formulado pelo aqui Recorrente, aquando da apresentação das suas alegações recursivas, provém de quem tem legitimidade para o efeito, é idóneo para o efeito pretendido e foi tempestivamente apresentado.

Destarte, admite-se o pedido para prestação de caução e, em consequência, determina-se que a Secção calcule o valor provável em dívida, correspondente ao montante em que foi sancionado na Sentença, acrescido de juros e das custas processuais.

(…)».

Em 15.03.2024 a Secção emitiu guia para pagamento pelo R. da quantia de €104.534,23.

Em 05.04.2024 o R. requereu a retificação daquela guia por forma que a mesma contemplasse igualmente o montante devido a título de juros.

Em 09.05.2023 foi proferida a seguinte decisão:

«O pedido formulado pelo requerente da caução, que faz fs. 25/26, não foi objecto de qualquer pronúncia por parte da Requerida, na esteira do despacho que faz fs. 27.

Sendo assim, mantém-se o valor calculado pela Secção e de que aquele foi, há muito, notificado.

Prazo improrrogável para a prestação de caução: dez dias»

A Secção emitiu nova guia para pagamento pelo R. da referida quantia de €104.534,23.

Notificado do indicado despacho de 09.05.2024 e daquela guia, o R. veio, além do mais, requerer a prolação de novo despacho «que fixe o valor provável da dívida que incluía o montante líquido da condenação e o cálculo provável da condenação ilíquida (juros de mora), e ordene a notificação do Apelante para que venha indicar aos autos a forma como pretende prestar a caução, seguindo-se os demais termos até final».

Cumprido o contraditório, em 06.06.2024 foi proferida decisão nos seguintes termos:

«(…)

No que tange à fixação do valor provável em dívida, trata-se de uma repetição de anterior requerimento por si formulado, inserto a fs. 25/26, sobre o qual foi exercido o contraditório, tendo recaído o despacho que faz fs. 28, pelo que, neste conspecto, nada mais há a acrescentar.

(…)

Defere-se ao pedido do requerente de, em dez dias, indicar o modo como pretende prestá-la [a caução], devendo a contraparte pronunciar-se sobre eventual aceitação do modo oferecido».

Em 20.09.2024 o R. veio requerer que:

«(…) seja admitido como meio idóneo de prestação de caução o crédito litigioso reclamado pelo Recorrente no âmbito do processo n.º 25552/22.0..., o qual corre termos no Juízo Central Cível de ...- Juiz ..., no montante global de 142.049,52€ (cento e quarenta e dois e mil e quarenta e nove euros e cinquenta e dois cêntimos), seguindo-se os demais termos, nomeadamente, o proferimento de despacho de admissão do recurso nos autos principais, com subida imediata e efeito suspensivo».

Em 11.07.2024 o Juízo Central Cível de ... proferiu a seguinte decisão:

«(…)

A prestação de caução destina-se a garantir o cumprimento da obrigação reconhecida em sentença, ainda que não exequível, por não ter transitado em julgado, e ao mesmo tempo, acautelar um determinado efeito que se pretende que a instância recursiva passa a ter, e que de outra forma não teria: o efeito suspensivo.

A forma de a prestar oferecida pelo Requerente, e à qual objectou a Requerida, não se afigura idónea, exactamente por se tratar de um crédito litigioso, o qual (ainda) não assegura o cumprimento da obrigação pecuniária que a sentença entendeu existir na esfera jurídica da contraparte.

Indefere-se, desta forma, a pretensão formulada».

Inconformado com tal decisão, dela recorreu o Réu.

Por acórdão da Relação de Lisboa de 26.11.2024, foi o recurso julgado improcedente e confirmada a decisão recorrida “nos seus precisos termos.”

Inconformado com o assim decidido, o Réu interpôs recurso de revista no qual formula as seguintes conclusões:

1 - O presente recurso de revista é legalmente admissível através da conjugação dos artigos 671, n.º 2, alínea b) e 629, n.º 2, alínea b) do CPC, uma vez que o recurso incide sobre o douto acórdão que confirmou a sentença de indeferimento do modo de prestação de caução, no âmbito do incidente autuado por apenso ao processo principal n.º 3346/22.3T8LRA e o valor do mesmo fixa-se em 104.483,23€, excedendo o valor da Alçada do Tribunal da Relação de Lisboa;

2 - Caso o presente recurso não seja admitido como revista normal, deverá assumir a natureza de revista excecional, por se mostrar preenchido o requisito previsto na alínea a)do n.º1 do artigo 672.º do CPC;

3- Na verdade, o crédito litigioso como modo de prestação de caução não se encontra previsto nos artigos 647, n.º 4 e 650.º, n.º 3 do CPC e nem no artigo 623.º do Código Civil, sendo que o elenco aí previsto não é taxativo;

4- Quanto aos requisitos de idoneidade, é de salientar que o artigo 623.º, n.º 3 do Código Civil não prevê a definição e quais os requisitos que são necessários observar para o seu preenchimento, pelo que, a sua concretização tem sido feita pela jurisprudência e pela doutrina;

5.Apossibilidadedeoferecimentocomocauçãodeumcréditolitigiosonãosemostra legalmente excluída e da pesquisa realizada na jurisprudência, esta questão não surge como objeto e fundamento de recurso, pelo que assume novidade suficiente para criar divergências jurisprudenciais, que justifiquem a apreciação por parte do Supremo Tribunal de Justiça para uma melhor aplicação de Direito;

6- No âmbito do incidente autuado por apenso sob o número 3346/22.3T8LRA-A, e na sequência da notificação para indicação do modo de prestação de caução, o Recorrente, ofereceu o crédito existente a seu favor no âmbito do processo n.º 25552/22.0..., o qual corre termos no Juízo Central Cível de ...- Juiz ..., em que é Autor AA e Ré Veyelcons, Lda.;

7. Nesse processo,o Requerente é credor do montante 142.049,52€ respeitante ao excesso de pagamento feito pelo mesmo, relativamente aos trabalhos executados no âmbito do contrato de empreitada, justificadamente resolvido com efeitos a partir de 19/09/2022;

8- Por ter sido um direito contestado em juízo contencioso pela empreiteira, o valor consubstancia um crédito litigioso nos termos do artigo579.º, n.º 3 do Código Civil, sendo que tal não afeta, do ponto de vista material, a sua existência e exigibilidade perante o empreiteiro;

9- Quanto à suficiência do modo de prestação de caução, o crédito do Recorrente (AA) é de montante superior ao crédito da Recorrida(Veyelcons,Lda.),soboqualfoiproferidadecisãocondenatórianoâmbitodosautos principais (3346/22.3T8LRA), sendo assim apto a cobrir o crédito da Recorrida, bem como, juros de moras e demais encargos;

10- Este requisito estaria sempre preenchido, uma vez que nesse processo n.º 2552/22.0..., o Recorrente peticiona também o valor de 52.275,00€ (cinquenta e dois mil duzentos e setenta e cinco euros) atítulo de indemnização por incumprimento definitivo do contrato, correspondente ao acréscimo de despesas necessárias à conclusão da obra e 237.600,00€, nos termos previstos na cláusula 7.ª, n.º 5 do Contrato de Empreitada, acrescidos, acrescidas acrescidos de juros demora à taxa legal em vigor, desde a citação até efetivo e integral pagamento, totalizando 431.924,52€;

11- O crédito litigioso é assim, legalmente admissível como meio de prestação de caução, uma vez que o elenco previsto no artigo 650.º, n.º 3 do CPC não é taxativo;

12 - O artigo 623.º, n.º 3 do Código Civil não prevê a definição de idoneidade e quais os requisitos que são necessários observar para o seu preenchimento pelo que a sua concretização tem sido feita pela jurisprudência e pela doutrina, considerando a mesma que a caução é idónea quando assegura o cumprimento da obrigação que cauciona;

13- O facto do crédito litigioso não ter sido ainda reconhecido judicialmente com força executiva, tal não constituir e quisito determinante para aferição da sua idoneidade;

14- Exemplo disso e conforme previsto no artigo 773.º e seguintes do CPC, são os créditos que os executados detêm sobre terceiros, que após penhora são suscetíveis de ser considerados litigiosos e objeto de adjudicação ou transmissão ao exequente;

15- Deste regime legal resulta que, apesar do crédito ser considerado litigioso, tal não impede que o mesmo seja adjudicado ou transmitido ao exequente, ficando o mesmo com ónus de obter o reconhecimento do mesmo por via declarativa, se não existir título executivo, ou em caso positivo avançar com a ação executiva;

16- Atendendo à redação do artigo 751.º, n.º 1 do CPC, que prevê que a penhora deverá começar pelos bens “cujo valor pecuniário seja de mais fácil realização e se mostrem adequados ao montante do crédito do exequente”, a penhora daqueles créditos sobre terceiros, atento o risco de impugnação dos devedores, assumem uma natureza equiparada àde garantia patrimonial dos créditos dos exequentes;

17- Nessa medida, se em fase executiva é admissível a penhora e adjudicação de créditos litigiosos ao exequente, por maioria de razão e em fase declarativa, tal também seria admissível para efeitos de prestação de caução, nomeadamente, no recurso;

18. Apesar de estarmos em fases processuais distintas, a verdade é que esse regime de penhora de créditos litigiosos assume uma natureza e função similares à da caução em fase declarativa, o que conduz à semelhança das situações e atendendo ao princípio da igualdade, impõe a aplicação por analogia desse regime nos termos do artigo 10.º, n.º 2 do Código Civil

19- Mesmo que não se considere os créditos litigiosos como modo de prestação de caução idóneo pela aplicação conjugada dos arts. 647º/4, 650/3,e623.º,n.º3doCódigoCivil,sempresediráqueexisteumalacunalegalquedeverá ser preenchida por via de aplicação analógica do regime previsto para a penhora de créditos previsto no artigo 773.º, n.º 1 e775.º do CPC;

20- Saliente-se que essa aplicação analógica teria que ser sempre adaptada à situação concreta da caução, não sendo aquele regime aplicável de forma directa ainda que por via analógica.

21- O douto acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa ao considerar que o modo de prestação de caução apresentado pelo Recorrente não assegurava o cumprimento da obrigação pecuniária, não sendo assim idóneo, com a consequente confirmação da douta decisão proferida na 1.ª Instância, violou os artigos 647.º, n.º 4, 650.º, n.º 3 do CPC e 623.º, n.º 3 do Código Civil, por erro na interpretação e aplicação das mesmas;

22- As normas constantes dos artigos 647.º, n.º 4, 650.º, n.º 3 do CPC e 623.º, n.º 3 do Código Civil deverão ser interpretadas e aplicadas no sentido de incluir o crédito litigioso supra descrito nos meios legalmente admissíveis para prestação de caução e considerá-lo idóneo para o fim previsto no artigo 647.º. 4 do CPC;

23- Caso assim não se entenda, sempre se dirá que o crédito litigioso deverá ser considerado como meio idóneo para prestação de caução através da aplicação analógica do regime previsto nos artigos 773.º,n.º1 e775.ºdo CPC, por via do artigo 10.º, n.º 2 do Código Civil;

24- Saliente-se ainda que, atendendo à redação do artigo 647.º, n.º 4 do CPC, a atribuição do efeito suspensivo por via de prestação de caução, não acautela só o interesse do credor, mas também o do devedor, o qual se materializa em evitar os prejuízos decorrentes da execução da decisão proferida nos autos principais e também do facto do recurso não ser admitido e apreciado com a maior brevidade possível, o qual tem reflexo direto no processo n.º 25552/22.0..., cuja instância está suspensa a aguardar o trânsito em julgado da decisão que vier a ser proferida nos presentes autos (principais);

25- É de salientar que a sentença condenatória proferida no âmbito dos autos principais, não resultou de uma apreciação de factos controvertidos baseada no exercício do contraditório por parte do Réu, ora Recorrente e nem de produção de prova em sede de julgamento, mas sim, de uma situação de revelia operante, pelo facto ter sido considerado que o Réu foi regularmente citado e não contestou;

26.Todavia,oRecorrenteapenasteveconhecimentodaexistênciadoprocessojudicial aquando da notificação da sentença;

27- Na sequência da realização do incidente de nulidade citação deduzido pelo Recorrente e não obstante o douto Tribunal ter considerado que a citação foi regular, a verdade é que das contradições existentes na prova testemunhal produzida, resultou provado que a citação foi rececionada no domicílio profissional do Recorrente, mas nunca chegou ao seu conhecimento, considerando assim ilidida a presunção legal;

28.Aliás,nãoéconcebível,mesmoparaocidadãocomum,queoRecorrente,advogado de profissão, tendo conhecimento da propositura de uma ação judicial contra si e com um valor considerável, simplesmente, não exercesse o seu direito de defesa e corresse o risco de ser condenado;

29- Acresce que, o facto de a revelia ter sido considerada como operante, tal não conduz, de forma automática, a uma decisão condenatória;

30- Da análise da prova documental junta pelo Autor com a sua petição inicial verifica- se que o mesmo não junto os autos de mediação que deram origem às faturas cujo pagamento reclama;

31- Assim, as faturas não poderiam ser consideradas, por si só, como elemento de prova suficiente para demonstrar que os valores faturados correspondiam efetivamente aos trabalhos realizados e que eram devidos;

32- E também não poderia ter considerado como provado que o Réu não tinha reclamado dos autos sem saber concretamente quais eram

33- Pelo que, não deveria ter o douto Tribunal a quo considerado como provado o incumprimento contratual no âmbito do regime jurídico da empreitada, o que importaria a absolvição do Réu;

34- A condenação do Recorrente nos autos principais consubstancia assim uma situação de manifesta injustiça!

35.Anãoadmissãodomododeprestaçãodecauçãooferecidoeaadmissãodorecurso nos autos principais com efeito meramente devolutivo, prejudica duplamente o Recorrente, uma vez que, após o proferimento desse despacho a Recorrida poderá executar a sentença, mas o processo n.º 2552/22.0... manter-se-á suspenso, não podendo aquele recuperar o seu crédito;

36- Atenta a particular relação existente entre os dois processos judiciais, em que o objeto do litígio, nomeadamente, o contrato de empreitada e as suas vicissitudes é comum a ambos, mostra-se essencial para o interesse do ora Recorrente, que ambos os processos avancem com a maior brevidade possível;

37- Só assim serão cumpridos os princípios de economia e celeridade processual, bem como de salvaguarda dos interesses legítimos das partes processuais e da igualdade, constantesdosartigos2.º, 4.º 6.º e7.º do CPC;

38- E, última instância assim se realizando a justiça material, na qual será possível concluir dois processos interligados, com os mesmos sujeitos processuais deforma célere e eficiente.

Na resposta, a Recorrida pugna pela rejeição da revista, por ser inadmissível; assim não se entendendo, deve o recurso improceder.

O recurso foi admitido na Relação como revista excepcional, conforme os arts. 638º, nº1, e 672º, nº1, a) do CPC, por “o caso não integrar as situações aludidas na alínea b) do n.º 2 do artigo 629.º e na alínea b) do n.º 2 do artigo 671.º, ambos do CPCivil”.

Na Relação, foram indeferidas as nulidades arguidas.


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O Recorrente foi notificado nos termos e para os efeitos do art. 655º do CPC..

Pelo relator foi proferida o seguinte despacho:

A decisão que admite o recurso, fixe a sua espécie e determine o efeito não vincula o tribunal superior (art. 641º, nº5, do CPC).

A revista excepcional destina-se a possibilitar o recurso de revista nos casos em que por força da regra da dupla conforme (art. 671º, nº3), tal acesso estaria vedado.

Em anotação ao art. 672º do CPC, escrevem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil anotado, I, pag. 812), que “a revista excepcional está prevista para situações de dupla conforme, nos termos em que esta é delimitada pelo nº3 do art. 671º (sem prejuízo dos casos em que a revista é sempre admissível) desde que se verifiquem também os pressupostos gerais de acesso ao terceiro grau de jurisdição. (…)

O acesso à revista excepcional depende naturalmente da verificação dos pressupostos gerais de revista, designadamente os que respeitam à natureza ou conteúdo da decisão, em face do art. 671º, nº1, ao valor do processo e da sucumbência (art. 629º, nº1) ou à legitimidade (art. 631º).”

Constitui jurisprudência pacífica neste STJ que:

“Sem admissibilidade da revista em termos gerais, não é admissível a revista excepcional”, (acórdãos de 29.10.2020, P. 1387/17, e de 29.09.2022, P. 1070/20).

“A revista excepcional prevista no art. 672º só pode incidir sobre decisões finais e não sobre decisões interlocutórias, de natureza estritamente processual”. (acórdão de 31.01.2023. P. 4183/16).

No caso, a revista incide sobre o acórdão que julgou inidónea a caução apresentada pelo Recorrente para que a apelação tenha efeito suspensivo (art. 647º, nº4, do CPC).

A decisão impugnada não conheceu do mérito da causa nem pôs termo ao processo, não sendo, pois, decisão que caiba na previsão do nº1 do art. 671º do CPC, e só das decisões ali previstas cabe revista normal.

E não sendo a decisão impugnada passível de revista normal, não é admissível revista excepcional. (Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, II, p. 545).

Decisão

Termos em que se decide rejeitar o recurso por a decisão recorrida não admitir revista excepcional.

Custas pelo Recorrente.”


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Reclamação para a conferência.

O Recorrente reclama para a conferência, nos termos do disposto no art. 652º, nº3 do CPC, no sentido de ser revertida a decisão singular e fixado efeito suspensivo ao recurso, aduzindo o seguinte:

“No despacho proferido pelo Exmo. Juiz Relator do Tribunal da Relação de Lisboa, é possível verificar que o recurso foi admitido enquanto revista excecional, nos termos dos arts. 638º, nº1 e 672º, nº1, alínea a) do CPC.

Ou seja, sem prejuízo do Venerando Juiz Conselheiro na qualidade de relator e ao abrigo do previsto nos artigos, 641.º, n.º 5 e 652.º, n.º 1, alínea b), ex vi artigo 679.º do CPC, não estar vinculado à decisão do Tribunal de onde se recorre, a verdade é que não podemos ignorar a posição assumida no sentido de admitir o recurso.

Considerando que o recurso de revista deverá ser admitido como excecional, significa que o mesmo enquadra-se necessariamente na previsão do art. 671º, nº1 do CPC, nomeadamente se existe um acórdão do Tribunal da Relação que foi proferido sobre decisão da 1ª instância que conheceu do mérito da causa ou que pôs termo ao processo.

E que, devido à existência de uma situação de dupla conforme (cfr. Artigo 671.º, n.º 3 do CPC), o recurso só será admissível como revista excecional.

Pelo que, a questão que importa aqui verificar é se uma decisão de indeferimento de prestação de caução em incidente processado por apenso, poderá ser considerada como uma decisão que conhece do mérito da causa ou que põe termo ao processo e,consequentemente, ser enquadrada na previsão legal do artigo 671.º,n.º 1 do CPC.

Entende a Recorrente que sim.

Ora, prevê o artigo o 644.º, n.º1, alínea a) do CPC, que cabe recurso de apelação da decisão proferida em 1.ª instância que ponha termo à causa ou a procedimento cautelar ou incidente processado autonomamente. (negrito nosso)

Um incidente processado autonomamente corresponde a um incidente de instância.

Um incidente de instância corresponderá, em termos processuais, a toda e qualquer questão que poderá ser levantada pelo Autor ou pelo Réu e que poderá alterar ou ser suscetível de alterar a anormal marchado processo.

É o caso da prestação de caução que constitui, em termos processuais, um incidente nominado, previsto nosartigos906.º a916.ºdo CPC.

Nesse sentido veja-se o sumário do douto acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido em 24/02/2022, no âmbito do processo n.º 515/14.3TBLRA-B.L1-2., disponível para consulta em www.dgsi.pt:

“1.Aprestaçãodecauçãoparafixaçãodeefeitosuspensivoaorecurso,previstanon.º4,do art.º 647.º, do C. P. Civil, configura-se como um verdadeiro incidente, com valor próprio, como dispõe o n.º 2, do art.º 304.º, do C. P. Civil, que é processado por apenso, como dispõe o n.º 1, do art.º 915.º, do C. P. Civil, se necessário com a extração de traslado, como dispõe o n.º 2, do art. 650.º, do C. P. Civil, devendo separar-se a prestação de caução (no apenso) da fixação de efeito ao recurso (no processo principal).”

E este incidente da instância permite alterar a marcha normal do processo, uma vez que a tramitação do pedido de prestação de caução por incidente processado de forma autónoma, suspende a tramitação do recurso de apelação no processo principal, nomeadamente, a decisão sobre a determinação do efeito do recurso no processo principal, nos termos conjugados dos artigos 641.º,n.º 5 e 647.º, n.º 3, alínea c) do CPC.

Prevê o artigo 671.º, n.º 1 que “Cabe revista para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão da Relação, proferido sobre a decisão da 1.ª instância, que conheça do mérito da causa ou que ponha termo ao processo, absolvendo da instância o réu ou algum dos réus quanto a pedido de reconvenção deduzidos.

Deacordocomoentendimentoplasmadonodoutodespachoqueantecede,tratando-sede decisão proferida no âmbito do incidente, a mesma não conhece do mérito da causa ou que ponha termo ao processo, ou seja, do processo principal.

No entanto e salvo o devido o respeito, a interpretação a realizar desta norma processual deverá ser realizada num sentido mais lato

Ou seja, estamos na presença de um acórdão do Tribunal da Relação, proferido sobre decisão da 1ª instância que conheceu do mérito da instância do incidente processado por apenso.

Verifica-se assim, que o douto acórdão do Tribunal da Relação proferido no âmbito do apenso, do qual se recorre e que confirmou a decisão de 1ª instância de indeferimento de prestação de caução, consubstancia uma decisão processualmente final para efeitos do nº1 do art. 671º do CPC.

Nesse sentido, veja-se o douto acórdão proferido pelo STJ no âmbito do processo n.º 1584/20.2T8CSC-M.L1.S.1 em 28/10/2021e disponível para consulta em www.dgsi.pt:

“(…)5. Estando em causa, como está, a admissibilidade da revista, cujo objeto contende, aliás, referenciado pela Recorrente/Requerente/Associação Humanitária de Bombeiros de ... “...” sobre um acórdão proferido posteriormente à decisão singular que não admitiu a apelação interposta, importa reconhecer que os acórdãos proferidos pela Relação podem encerrar decisões que são material ou processualmente finais, a par daqueloutros que apreciam decisões que, não tendo recaído sobre a relação controvertida, recai unicamente sobre a relação processual.

6. Assim, e para o que aqui interessa (conhecimento da admissibilidade da revista), impõe se distinguir, por um lado, se o acórdão de que se recorre de revista,conheceudoméritodacausaou teve por objeto questão processual que absolveu da instância os réus, enquanto decisão formalmente final para efeitos do nº1 do art. 671º do CPC, por outro lado, se o acórdão sob escrutínio apreciou decisão interlocutória da Instância, necessariamente não decidida nos termos finais a que se refere o mencionado art.º 671º n.º 1 do Código Processo Civil, e, dentro desta decisão interlocutória da Instância, precisar se está em causa a ponderação de uma intercorrência processual conhecida em 1ª instância, ou se apreciou decisão interlocutória da própria Relação, anotando-se que no primeiro caso, a Relação conheceu de uma questão que já fora julgada pela 1ª Instância, enquanto que no segundo caso conheceu de uma questão nova naquele processo, o que de resto, a Doutrina e a Jurisprudência apelidam de decisão interlocutória velha e decisão interlocutória nova, respectivamente.”

Assim sendo, entende o Recorrente que se verifica o preenchimento concreto do requisito previsto no nº1 do art. 671º do CPC, nomeadamente, que estamos em presença de decisão que conhece do mérito da causa, a qual se prende com a idoneidade e admissibilidade em termos substantivo se formais do modo de caução prestado pelo Recorrente.

E, verificando-se uma situação de dupla conforme nos termos do n.º 3 do artigo 671.º, o recurso de revista deverá ser admitido como revista excecional nos termos do artigo 672.º, n.º1, alínea a) do CPC, conforme alegado e peticionado nas alegações e admitido no douto despacho do juiz relator do Tribunal da Relação de Lisboa.

Em suma e em face do supra exposto, deverá ser admitido o presente recurso de revista a título excepcional.”

Cumpre decidir.

A questão que cumpre decidir é a de saber se é admissível recurso de revista excepcional do acórdão da Relação, confirmatório da decisão de 1ª instância, que julgou inidónea a caução apresentada pelo Recorrente para que o recurso de apelação que interpôs da sentença que o condenou tenha efeito suspensivo (art. 647º, nº4 do CPC).

Na decisão singular entendeu-se que a revista não é admissível por a decisão impugnada não caber na previsão do nº1 do art. 671º, do CPC – “cabe revista do acórdão da Relação, proferido sobre decisão de 1ª instância, que conheça do mérito da causa ou que ponha termo ao processo” - e só destas decisões é possível recorrer a título excepcional, em caso de dupla conforme – mas o Recorrente insiste que a decisão impugnada também é de considerar como que “conhece do mérito da causa.”

Mas sem razão, com o devido respeito.

O acórdão incidiu sobre a decisão da 1ª instância, proferida no apenso de prestação de caução, que julgou inidónea a caução que o Recorrente apresentou com vista a obter efeito suspensivo no recurso de apelação.

Está em causa, pois, uma decisão proferida num incidente de prestação de caução (art. 915º do CPC).

Um incidente processual, como referido no referido no acórdão deste STJ de 16.06.2015, CJ/STJ, II, pag. 123/124, “ consiste numa ocorrência estranha, extraordinária ou acidental, que surge acrescentada ao desenvolvimento normal da relação jurídica processual, originando um processado próprio, umas vezes integrado no processo da acção, outras vezes formando um processo apenso, mas sempre distinto da acção principal, e sempre dotado de um mínimo de autonomia, pressupondo a existência de uma questão acessória ou secundária relativamente ao objecto de tal acção e originando a prática de actos processuais, específicos, diferentes dos que sejam normalmente determinados pela regulamentação processual da mesma acção.”

Por conseguinte, no incidente decide-se uma questão processual, acessória ou secundária, que não se confunde com o mérito da acção.

Ora, o recurso de revista excepcional do art. 672º do CPC pressupõe o preenchimento dos requisitos gerais de admissibilidade do recurso de revista, designadamente dos requisitos relacionados com o conteúdo da decisão recorrida – art. 671º, nº1 – com a alçada e com a sucumbência – art. 629º, nº1 – com a legitimidade – art. 631º - e com a tempestividade do recurso – art. 638º do CPCivil. (Acórdão do STJ de 10.11.2022, P. 6798/16).

Daí que para se determinar se é, no caso, de admitir a revista excepcional, deve começar por se apurar se, no caso concreto, estão preenchidos os requisitos gerais de admissibilidade da revista, rejeitando logo o recurso, sem necessidade de apreciação dos requisitos específicos, se se concluir que não se mostram verificados tais requisitos.

Ora, no caso sub judice, não está preenchido o requisito do nº1 do art. 671º, relacionado com o conteúdo da decisão recorrida: não conheceu do mérito da causa – “uma decisão conhece do mérito da causa quando “aprecia total ou parcialmente o pedido ou pedidos formulados ou conheceu, no sentido da procedência ou improcedência, alguma excepção peremptória” (Abrantes Geraldes e outros, obra citada, pag. 807) – nem pôs termo ao processo, aqui entendido como acção principal, não um procedimento incidental no sentido atrás exposto.

Acresce ainda,

O Recorrente interpôs a revista excepcional ao abrigo da alínea a) do nº1 do art. 672º, segundo a qual “ (…) cabe recurso de revista do acórdão da Relação, referido no nº3 do artigo anterior, quando esteja em causa uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.

Estatui o nº2 do art. 672º, “o recorrente deve indicar, na sua alegação, sob pena de rejeição, as razões pelas quais a apreciação da questão é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito (a).

No caso, o Recorrente alegou apenas no ponto 5 das conclusões:

“Apossibilidadedeoferecimentocomocauçãodeumcréditolitigiosonãosemostra legalmente excluída e da pesquisa realizada na jurisprudência, esta questão não surge como objeto e fundamento de recurso, pelo que assume novidade suficiente para criar divergências jurisprudenciais, que justifiquem a apreciação por parte do Supremo Tribunal de Justiça para uma melhor aplicação de Direito.”

Esta alegação não cumpre a exigência que resulta do nº2, alínea a) do art. 672º, pelo que o recurso sempre seria de rejeitar.

Decisão.

Termos em que se indefere a reclamação e se confirma a decisão singular de rejeição do recurso.

Custas pelo Recorrente, fixando-se em 3 UC a taxa de justiça.

Lisboa, 27.03.2025

Ferreira Lopes (relator)

Fátima Gomes

Maria de Deus Correia