Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
629/23.9T8PRT.P1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: EMIDIO FRANCISCO SANTOS
Descritores: ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
CAUSA JUSTIFICATIVA
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
ÓNUS DA PROVA
RESTITUIÇÃO
FACTO CONSTITUTIVO
LIBERALIDADE
DOAÇÃO
CONTRATO DE MÚTUO
Data do Acordão: 10/23/2025
Nº Único do Processo:
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
I – Cabe à parte que pretende prevalecer-se da obrigação de restituição fundada na proibição de enriquecimento sem causa o ónus de alegar e provar a falta de causa justificativa do enriquecimento.

II - A prova de que o enriquecimento não teve causa só é de afirmar quando se demonstra a falta de causa justificativa do enriquecimento.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 2.ª secção cível do Supremo Tribunal de Justiça


AA, residente na Rua 1, propôs a presente acção declarativa com processo comum contra BB e CC, ambas residentes na Rua 2 º, ......, pedindo a condenação das rés:

a. A reconhecerem que o pagamento do bem imóvel descrito na petição inicial foi efectuado por ele, autor;

b. A reconhecerem que celebraram com ele, autor, o contrato de mútuo pelo qual aquele emprestou às rés a quantia de €120.000,00, com vista à aquisição do imóvel descrito no artigo 1. da petição inicial;

c. 1) a restituírem-lhe a ela, autora, a quantia de €120.000,00 por força do cumprimento do contrato de mútuo celebrado; ou 2) em caso de nulidade do mútuo por falta de forma, a restituírem-lhe tudo quanto hajam recebido dele, na mesma quantia de €120.000,00, em qualquer dos casos acrescida de juros à taxa legal desde a data da citação da presente ação até integral pagamento;

De forma subsidiária e ao abrigo do instituto do enriquecimento sem causa

1. A reconhecerem que, ao lhe não pagarem a quantia de € 120.000,00, relativa ao preço do imóvel por este pago, obtiveram, de forma consciente, ilegítima e sem qualquer causa justificativa, um enriquecimento do seu património, através do ingresso neste da fração referida na petição inicial, à custa do empobrecimento do património da A., nesse exato valor;

2. A restituírem-lhe a ele, autor, a título de enriquecimento sem causa, o valor que este pagou para a aquisição do imóvel, ou seja, €120.000,00, acrescidos de juros à taxa legal desde a data da citação da presente ação até integral pagamento.

Para o efeito alegou em síntese:

• Que, por escritura celebrada a 4 de Dezembro de 2020, no Cartório Notarial sito na Rotunda 1, no concelho de Valongo, o aqui autor comprou, conjuntamente com as rés em comum e partes iguais, uma fracção autónoma pelo preço de 120 mil euros;

• Que o pagamento do preço foi efectuado integralmente pelo autor;

• Que as rés asseguraram ao autor que, a partir de Janeiro de 2021, cada uma delas lhe pagaria uma importância mensal de 300 euros até perfazer a quantia de 80 000 euros correspondente ao preço devido pela aquisição de 2/3 da fracção;

• Que após o pagamento do referido montante, o autor venderia às rés a quota-parte que detinha na fracção, pelo exacto montante que a havia adquirido;

• Que as rés nada pagaram ao autor;

• Que as rés, alegando que tinham a intenção de constituir um mútuo bancário sobre a totalidade da fracção e que, beneficiando de maior dilação temporal para o pagamento das mensalidades, liquidariam com esse montante a importância em dívida ao autor (80.000,00€) bem como comprariam a quota parte deste, pelo valor de 40.000,00€, disseram-lhe que seria imprescindível que a fracção urbana pertencesse integralmente às rés, dado que seria a única forma de o crédito bancário ser aprovado;

• Que, assim, em 25 de Maio de 2021, no Cartório Notarial de Valongo acima identificado, o aqui autor doou às aqui rés em comum e partes iguais, o direito a um terço indiviso de que era titular no imóvel supra identificado, tendo as RR. aceitado a referida doação;

• Que as rés nada lhe pagaram e desconhece se se solicitaram algum crédito bancário;

• Que o autor adquiriu a fracção conjuntamente com as rés, e pagou (só ele) integralmente o preço, no pressuposto de que estas viessem a liquidar os valores por ele despendidos com a aquisição da mesma.

• Que tais montantes configurariam um empréstimo conferido pelo autor às rés sem qualquer convenção de pagamento de juros.

As rés contestaram, pedindo se julgasse improcedente a acção. Na sua defesa reconheceram que o preço do imóvel foi pago integralmente pelo autor, mas alegaram que com tal pagamento, pretendeu o autor mostrar reconhecimento e remunerar a atenção, afecto, amor, cuidados e auxílio que lhe eram prestados pelas rés. Em relação à doação, alegou que o autor, receando que o facto de ter adquirido para si 1/3 do imóvel poderia, aquando do seu falecimento, ser motivo de problemas com as rés e criar dificuldades na partilha dos bens a realizar, decidiu doar-lhe esse 1/3.

O processo prosseguiu os seus termos e após a audiência final foi proferida sentença que, julgando parcialmente procedente a acção, decidiu:

1. Condenar as rés a reconhecerem que, ao não pagarem ao autor a quantia de € 80 000,00, relativa a 2/3 do preço do imóvel por este pago, obtiveram, de forma consciente, ilegítima e sem qualquer causa justificativa, um enriquecimento do seu património, através do ingresso neste da fracção referida na petição inicial, à custa do empobrecimento do património do autor, nesse exacto valor;

2. Condenar as rés a restituírem ao autor, a título de enriquecimento sem causa, o valor de oitenta mil euros (€ 80 000,00), acrescido de juros à taxa legal desde a data da citação da presente acção até integral pagamento.

Apelação

As rés não se conformaram com a sentença e interpuseram recurso de apelação, pedindo se revogasse a decisão recorrida.

O Tribunal da Relação do Porto, por acórdão proferido em 4-06-2025, julgou procedente o recurso e, em consequência, revogou a sentença recorrida e absolveu as rés da condenação ali proferida.

Revista:

O autor não se conformou com a decisão e interpôs recurso de revista, pedindo se revogasse o acórdão recorrido e se repristinasse a decisão da primeira instância, com a condenação das rés na restituição ao autor da quantia de €80.000,00, acrescida de juros legais.

Os fundamentos do recurso expostos nas conclusões foram os seguintes:

1. O presente recurso tem por objecto o douto Acórdão do Tribunal da Relação do Porto que, revogando a sentença proferida em primeira instância, absolveu as Rés da condenação na restituição da quantia de €80.000,00, peticionada a título de enriquecimento sem causa.

2. Sem prejuízo de a decisão recorrida enunciar correctamente o regime jurídico aplicável, designadamente quanto ao ónus da prova da ausência de causa justificativa nos termos do artigo 342.º, n.º 1 do CC, incorreu em manifesto erro de subsunção dos factos apurados à norma jurídica, com violação dos artigos 342.º, 349.º, 473.º, n.ºs 1 e 2, e 474.º, todos do CC.

3. O Autor intentou a presente acção requerendo a condenação das Rés na restituição da quantia de €120.000,00, com fundamento principal em contrato de mútuo, e, subsidiariamente, no instituto do enriquecimento sem causa.

4. Alegou que, não obstante a aquisição do imóvel ter sido formalmente efectuada em comum com as Rés, suportou integralmente o preço de aquisição, no valor de €120.000,00, sendo que €80.000,00 corresponderiam à quota-parte das Rés, assumida por estas com base em mútuo verbal.

5. A primeira instância, não tendo julgado provado o mútuo, julgou procedente o pedido subsidiário, condenando as Rés a restituir €80.000,00, valor esse que representa, inequivocamente, uma deslocação patrimonial a favor das Rés, sem causa justificativa apurada.

6. O Tribunal da Relação do Porto, revogando tal decisão, absolveu as Rés, por entender que o Autor não logrou provar a inexistência de causa justificativa para a deslocação patrimonial, exigência essa que, na perspectiva do Tribunal, não se satisfaz com a simples ausência de prova de uma causa, mas sim com a demonstração positiva da sua inexistência.

7. O enriquecimento sem causa constitui fonte autónoma de obrigações e pressupõe: i) um enriquecimento; ii) um empobrecimento correspondente à custa de outrem; iii) a ausência de causa justificativa para essa deslocação patrimonial.

8. É igualmente pacífico que tal instituto tem natureza subsidiária, só sendo accionável quando inexista outro meio jurídico de obter a restituição – art.º 474.º, CC.

9. Quanto ao ónus da prova, nos termos do artigo 342.º, n.º 1, CC, recai sobre o Autor a prova dos factos constitutivos do seu direito, incluindo a verificação da falta de causa justificativa.

10. No entanto, tal ónus não deve ser interpretado no sentido de exigir a demonstração da inexistência absoluta de qualquer causa – o que configuraria uma probatio diabólica, materialmente impossível.

11. No caso sub judice, as Rés invocaram, em sede de contestação, uma causa justificativa concreta: a liberalidade do Autor em reconhecimento dos cuidados prestados.

12. Sucede que tal causa foi cabalmente afastada pela matéria dada como não provada, tendo resultado como não provado que o Autor tivesse intenção de residir com as Rés, que tivesse adquirido o imóvel com tal propósito, ou que tenha pretendido retribuir os alegados cuidados das Rés mediante liberalidade.

13. Estando a única causa positiva alegada pelas Rés arredada pela decisão de facto, impõe- se concluir que a prova da ausência de causa se encontra preenchida, nos precisos termos do que foi decidido pelo tribunal de primeira instância.

14. Ao entender o contrário, e ao desconsiderar que a prova negativa da causa alegada pelas Rés satisfaz o requisito da “falta de causa”, o Tribunal da Relação fez incidir sobre o Autor um ónus de prova manifestamente excessivo, violando os artigos 342.º, 473.º e 474.º do CC.

15. Acresce que a ausência de diligência probatória por parte das Rés – que, embora alegando uma causa justificativa, não lograram prová-la – não pode operar em seu benefício nem inverter o resultado processual, quando inexiste nos autos qualquer facto que permita imputar ao Autor um acto de liberalidade ou justificar o locupletamento das Rés à sua custa.

16. Destarte, estando demonstrados os demais requisitos do enriquecimento sem causa – enriquecimento das Rés no montante de €80.000,00, empobrecimento do Autor em valor correspondente, e falta de causa justificativa – impunha-se a manutenção da decisão de primeira instância, sob pena de violação do princípio da justiça material e do equilíbrio patrimonial subjacente ao instituto do enriquecimento sem causa.

As rés responderam, sustentando a manutenção da decisão recorrida.

Para o efeito alegaram:

1. O enriquecimento sem causa exige quatro requisitos cumulativos: enriquecimento, empobrecimento correlativo, nexo de causalidade e ausência de causa justificativa (art.º 473.º CC).

2. O instituto só atua quando não exista outro meio legal de tutela (art.º 474.º CC).

3. A falta de causa justificativa é facto constitutivo do direito; o ónus da sua prova recai sobre o autor (art.º 342.º CC).

4. O STJ tem reiterado (2017, 2019, 2022) que não basta alegar ausência de causa; é indispensável provar positivamente a sua inexistência.

5. Acórdãos de 2024 e 2025 (STJ e TRP, TRE) reafirmam que a não prova da causa invocada não equivale à prova da inexistência de causa justificativa.

6. A “falta de causa” não significa ausência absoluta: a causa existe sempre, mas pode ser juridicamente inidónea (ex.: pagamento indevido, causa extinta ou resultado não verificado).

7. Ficou apenas provado que o autor pagou integralmente o preço e doou 1/3 às rés.

8. Não se demonstrou a existência de mútuo, convenção de restituição ou que os 2/3 restantes fossem sem causa justificativa.

9. A 1.ª instância errou ao presumir a falta de causa, invertendo indevidamente o ónus da prova.

10. A Relação aplicou corretamente a lei e a jurisprudência: a ausência de prova do mútuo ou da liberalidade não basta para afirmar a falta de causa justificativa.

Síntese das questões suscitadas pelo recurso:

Saber se o acórdão recorrido, ao revogar a sentença proferida na 1.ª instância e ao absolver as rés do pedido, violou os artigos 342.º, 473.º e 474.º, todos do Código Civil.


*


Factos considerados provados e não provados:

Provados

1. Por escritura celebrada a 4 de Dezembro de 2020 no Cartório Notarial sito na Rotunda 1, no concelho de Valongo, o aqui autor comprou, conjuntamente com as rés em comum e partes iguais, a fração autónoma designada pelas letras “AV”, composta por uma habitação no segundo andar direito, com entrada pelo n.º 886 da Rua 2, com um lugar de garagem com entrada pelo n.º 876 da mesma rua, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal descrito na Conservatória do Registo Predial de Gondomar sob o número .16, e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ...66.

2. O valor de aquisição da referida fração urbana cifrou-se em 120.000,00€ (cento e vinte mil euros).

3. O pagamento do preço foi efetuado através da entrega de dois cheques, designadamente, o cheque sacado sobre o “Banco BPI, S.A.” com o número ........14, no valor de 10.000,00€, entregue aquando da celebração do contrato-promessa de compra e venda da fração autónoma, na data de 24 de novembro de 2020, e o remanescente, no valor de 110.000,00€, através do cheque sacado sobre o referido “Banco BPI, S.A.” com o número ........76 na data de celebração da escritura, a 4 de dezembro de 2020.

4. Tendo o autor assumido integralmente o pagamento do referido preço, porquanto os referidos cheques foram sacados na conta BPI nº ...............01 titulada pelo A., após resgate de PPR por si também titulados.

5. As rés são filhas de DD.

6. A 25 de Maio de 2021, no Cartório Notarial de Valongo acima identificado, o autor doou às rés em comum e partes iguais, o direito a um terço indiviso de que era titular no imóvel supra identificado, tendo as RR. aceitado a referida doação.

7. A referida DD prestou serviços ao autor, como cuidadora ao autor e à sua falecida esposa, D. EE, tendo prestado tais serviços a esta de forma continuada e ininterrupta, de 2014 a 31/01/2018.

8. Após julho de 2020, a mãe das rés passou a prestar os mesmos serviços ao autor, tendo-o feito, de forma continuada e ininterrupta.

9. A relação contratual existente entre o autor e DD cessou a 22 de Novembro de 2021.

10. A relação estabelecida entre o autor e a mãe das rés evoluiu para uma forte relação de amizade.

11. Desde 14/10/2021 até à presente data o autor encontra-se internado no Lar “...”, em ....

12. A mãe das RR. tentou visitar o A., no Lar, mas não lhe foi permitido por não estar autorizada pelos filhos.

Não provados:

1. Sob o pretexto de que as suas filhas não tinham uma habitação condigna, fruto dos rendimentos que auferiam, de não terem possibilidade de recorrer a crédito, e não disporem de qualquer soma para darem entrada para aquisição de uma habitação, a referida DD, aproveitando-se da especial posição que ocupava, e do ascendente que detinha sobre o autor, logrou convencer este último a adquirir a referida fração urbana conjuntamente com as suas filhas, aqui rés.

2. Asseguraram as aqui rés, que, a partir de janeiro de 2021, pagariam cada uma ao autor. a importância mensal de 300,00€, no valor global mensal de 600,00€, até perfazer a quantia de 80.000,00€, correspondente à quota parte das aqui rés do preço pago pela fração urbana acima identificada.

3. Após o pagamento do referido montante, o autor venderia às aqui rés a quota parte que detinha da referida fração, pelo exato montante que a havia adquirido, ou seja, 40.000,00€, estabelecendo, nesse momento, e de acordo com a capacidade das rés., a forma de pagamento do valor remanescente.

4. Chegados a Janeiro de 2021, as aqui rés nada pagaram.

5. Situação que se manteve nos meses subsequentes.

6. Após várias interpelações para que procedessem ao pagamento dos montantes em dívida, as aqui rés, conjuntamente com a suprarreferida DD, veicularam ao autor que não conseguiriam fazer face ao acordo efetuado, quanto ao pagamento do montante em dívida, atento o valor elevado da prestação mensal.

7. As rés tinham intenção de constituir um mútuo bancário sobre a totalidade do valor de aquisição da fração urbana acima identificada, de 120.000,00€, beneficiando de maior dilação temporal para o pagamento das mensalidades, liquidando com esse montante a importância em dívida ao autor – 80.000,00€, bem como comprariam a quota parte deste pelo valor de 40.000,00€.

8. Para o efeito, seria imprescindível que a fração urbana pertencesse integralmente às rés, dado que, segundo afirmaram perante o autor era a única forma de o crédito bancário ser aprovado.

9. Até à presente data, as rés nada pagaram, pese embora as várias interpelações do autor.

10. O autor adquiriu a fração conjuntamente com as rés e pagou (só ele) integralmente o preço, no pressuposto de que estas viessem a liquidar os valores por ele despendidos com a aquisição da mesma.

11. Na sequência das inúmeras solicitações efetuadas pelo autor às rés para que pagassem o montante em dívida, o autor e DD incompatibilizaram-se, o que determinou a cessação contratual existente entre ambos.

12. Tendo-se o autor apercebido, nesse momento, que se tratou apenas de um conluio das rés (e sua mãe) para, de forma consciente, se aproveitarem da posição daquela como cuidadora, e do seu ascendente sobre o autor, que vivia sozinho e necessitava de cuidados

13. O autor doou às rés o terço indiviso de que era proprietário na fração acima identificada na estrita convicção de que tal seria condição imprescindível para que as rés obtivessem mútuo bancário sobre a totalidade do valor de aquisição da fração urbana acima identificada.

14. O autor passou a frequentar a residência das rés e da mãe destas, convivendo com estas.

15. Passeava com as rés e a mãe destas;

16. Passava com estas as festividades, como o Natal, Passagem de Ano, Páscoa;

17. Celebrava com estas o seu aniversário bem como os aniversários das rés e da sua mãe;

18. Tratava e considerava as rés como suas netas,

19. E estas consideravam o autor como seu avô.

20. Apesar de o autor ter vários filhos, estes não o visitavam, não o contactavam, não lhe prestavam qualquer cuidado ou auxílio, não lhe manifestavam qualquer afeto.

21. Ignoravam-no completamente.

22. O autor pretendia passar a residir com as rés e a mãe destas, pois não queria acabar os seus dias sozinho ou num lar.

23. Por iniciativa do autor, o autor e as rés procuraram uma habitação para concretizar essa pretensão.

24. Com esse intuito, o autor e as rés vieram a adquirir a fração identificada na p.i.

25. O autor pretendeu mostrar reconhecimento e remunerar toda a atenção, afeto, amor, cuidados e auxílio que lhe eram prestados pelas rés.

26. Algum tempo após o autor, receando que o facto de ter adquirido para si 1/3 do referido imóvel poderia, aquando do seu falecimento, ser motivo de problemas para as rés e criar dificuldades na partilha de bens a realizar, decidiu doar-lhes esse 1/3, o que fez através de escritura.


*


Descritos os factos provados e não provados, passemos à resolução da questão acima enunciada.

Antes de apreciarmos os fundamentos do recurso e de respondermos à questão suscitada por ele, importa destacar os seguintes antecedentes da decisão recorrida.

O autor, ora recorrente, deduziu 3 pedidos, um a título principal e dois a título subsidiário. Apesar de, com todos eles, visar a condenação das rés no pagamento do montante de 120 mil euros, os fundamentos deles foram diferentes. O pedido principal e o 1.º pedido subsidiário assentaram na alegação de que o autor emprestou às rés 120 mil euros. Segundo o autor, esse empréstimo revestiu a seguinte configuração: o réu assumiu o pagamento do preço de uma fracção autónoma (120 mil euros) que foi comprada por ele e pelas rés em conjunto e partes iguais (1/3 para o autor e 1/3 para cada uma das rés). Mais tarde, o autor doou o seu 1/3 indiviso às rés, que assim se tornaram comproprietárias da fracção.

Em sede de fundamentação destes dois pedidos há, no entanto, a seguinte diferença. Enquanto o pedido principal assentou no pressuposto de que o mútuo foi válido, o primeiro pedido subsidiário laborou na hipótese de tal empréstimo ser nulo por falta de forma. Em consequência, o autor reclamou a restituição do que emprestou (120 000 euros) não em cumprimento do mútuo, mas como um efeito da nulidade deste contrato (n.º 1 do artigo 289.º do CC).

O segundo pedido subsidiário, embora continue a assentar no pressuposto de que ele, autor, assumiu o pagamento da totalidade do preço devido pela compra da fracção, labora no pressuposto de se julgar não provado o alegado contrato de mútuo. Nesta hipótese, alega o autor, estar-se-ia perante uma “deslocação patrimonial” a favor das rés (ingresso da fracção autónoma no seu património, sem que que para tal tenham tido qualquer dispêndio ou despesa) sem causa. Pediu, em consequência, a restituição do montante de 120 000 euros ao abrigo do princípio da proibição do enriquecimento sem causa.

A 1.ª instância julgou improcedentes o pedido principal e o 1.º pedido subsidiário por falta de prova dos factos onde o autor via um mútuo entre ele e as rés. Julgou, no entanto, parcialmente procedente o 2.º pedido subsidiário. Para tanto entendeu que “a importância de 80.000,00€ paga pelo aqui A, correspondente a dois terços do valor por este pago para aquisição da referida fracção, é uma vantagem patrimonial significativa para as rés, a expensas do autor e do seu directo empobrecimento, sem que exista uma causa justificativa apurada, nomeadamente uma doação”.

O acórdão da Relação revogou a sentença proferida na 1.ª instância.

Os fundamentos da decisão foram em síntese os seguintes:

• Eram requisitos da obrigação de restituir fundada no enriquecimento sem causa: um enriquecimento de alguém; que o enriquecimento carecesse de causa justificativa; e que ele tenha sido obtido à custa de quem requer a restituição;

• O ónus da prova de tais requisitos recai sobre quem requer a restituição;

• Em relação à prova da falta de causa justificativa do enriquecimento, ela não se basta com a falta de prova de uma causa de atribuição, é preciso provar-se a falta de causa dessa atribuição;

• O autor não fez prova da falta de causa justificativa para a deslocação patrimonial ocorrida, não se podendo dar como verificado o enriquecimento sem causa das rés;

• A circunstância de não se ter provado o mútuo invocado pelo autor para explicar a transferência patrimonial não era suficiente para demonstrar que não havia causa justificativa para o pagamento do preço que era devido pelas rés. Da ausência de prova do mútuo apenas decorria que não se fez prova que a deslocação patrimonial o teve como causa, mas daí não decorria a prova da inexistência de causa para tal deslocação.

O recorrente não põe em causa que a obrigação de restituir fundada no enriquecimento sem causa depende da verificação dos requisitos enunciados no acórdão. Com o que ele não concorda é com o entendimento sobre o ónus da prova da falta de causa justificativa para o enriquecimento. No seu entender, embora resultasse do n.º 1 do artigo 342.º do Código Civil, que o ónus de provar a falta de causa justificativa do enriquecimento recaía sobre quem invocasse a falta de causa, este ónus não significava que lhe coubesse demonstrar a inexistência absoluta de qualquer causa, pois isso configuraria uma probatio diabólica, manifestamente impossível. Numa situação como a dos autos em que as rés invocaram uma causa justificativa para o pagamento do preço – liberalidade do autor –, a circunstância de elas não terem provado a sua alegação impunha que se concluísse no sentido de que o enriquecimento das rés não teve causa justificativa. Remata a sua argumentação dizendo que, ao entender o contrário, o tribunal da Relação fez incidir um ónus da prova manifestamente excessivo, violando os artigos 342.º, 473.º e 474.º, todos do Código Civil.

Apreciação do tribunal:

O recurso é de julgar improcedente, sendo, em consequência, de manter o acórdão recorrido.

Como se escreveu na decisão sob recurso, decorre do n.º 1 do artigo 473.º do Código Civil que um dos pressupostos da obrigação de restituir fundada no enriquecimento sem causa é a inexistência de causa justificativa para o enriquecimento. Demonstra-o inequivocamente a seguinte passagem do preceito: “aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem…”.

Também como se escreveu no acórdão sob recurso, com citação de jurisprudência e de doutrina pertinentes, é sobre a parte que pretende prevalecer-se da obrigação de restituição fundada na proibição de enriquecimento sem causa que recai o ónus de alegar e provar a falta de causa justificativa do enriquecimento. Com efeito, por um lado, decorre do n.º 1 do artigo 473.º do CC que a inexistência de causa justificativa é facto constitutivo do direito à restituição fundada no enriquecimento sem causa e, por outro, segundo o n.º 1 do artigo 342.º do Código Civil, a prova dos factos constitutivos de um direito cabe àquele que o invocar. Só assim não seria se as disposições relativas ao enriquecimento sem causa (artigos 473.º a 482.º do Código Civil) ou as atinentes ao ónus da prova dispusessem em sentido diverso, o que não sucede.

Ainda como bem precisou o acórdão sob recurso, a prova de que o enriquecimento não teve causa justificativa não é sinónimo de falta de prova da causa da atribuição patrimonial que tenha sido alegada. A prova de que o enriquecimento não teve causa só é de afirmar quando se demonstrar a falta de causa justificativa do enriquecimento. Deste modo, a dúvida quanto à causa justificativa do enriquecimento não vale, para efeitos do n.º 1 do artigo 473.º do Código Civil, como enriquecimento sem causa. O que se acaba de afirmar corresponde a entendimento afirmado de modo constante pela jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça. Além dos acórdãos citados no acórdão recorrido (acórdão do STJ de 24-03-2017, processo n.º 1769/12.5TBCTX.E1.S1, acórdão do STJ proferido em 4-07-2019, no processo n.º 2048/15.1T8STS.P1.S1,, acórdão do STJ proferido em 11-10-2022, no processo n.º 2330/20.6T8PRT.P1.S1., todos publicados em www.dgsi.pt), podemos indicar, em abono do mencionado entendimento os seguintes acórdãos:

• Acórdão do STJ proferido em 14 de Maio de 1996, publicado na Colectânea de Jurisprudência, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Ano IV, Tomo II – 1996, páginas 70 a 73;

• Acórdão do STJ proferido em 19-02-2013, no processo n.º 2777/10.6TBPTM.E1.S1;

• Acórdão do STJ proferido em 3 de Maio de 2018, no processo n.º 175/05.2TBALR.E1.S1;

• Acórdão do STJ proferido em 4-07-2019, processo n.º 2048/15.1T8SRS.P1.S1

• Acórdão do STJ de 27-02-2025, processo n.º 3549/16.0T8CSC.L2.S1, todos publicados em www.dgsi.pt.

Interpretando o n.º 1 do artigo 473.º do Código Civil, combinado com o n.º 1 do artigo 342.º do mesmo diploma, sobre o ónus da prova da falta de causa justificativa do enriquecimento, é de afirmar que não valem contra o acórdão recorrido as alegações do recorrente.

Em primeiro lugar, não é pertinente como fundamento do recurso a alegação de que o ónus da prova da falta de causa do enriquecimento não deve ser interpretado no sentido de exigir a demonstração da inexistência absoluta de qualquer causa. Na verdade, não foi com este sentido que o acórdão interpretou o ónus da prova, como o atesta a seguinte passagem do acórdão: “Assim, para a prova da referida inexistência de causa, legitimadora da obrigação de restituir, o autor tinha que provar que não houve causa para aquela deslocação ou que, tendo-a havido, a mesma deixou, entretanto, de existir (por exemplo, que teria pago pelas rés aquela quantia em dinheiro em vista de lhes pagar um eventual débito seu para com elas que afinal se verificou que não existia, que pagou por elas aquela quantia em dinheiro por determinada causa que deixou de existir ou que pagou por elas aquele dinheiro em vista de algo que se previa ocorrer mais tarde e que acabou por não vir a ocorrer, exemplos estes que mais não são que os casos típicos especialmente previstos no nº2 do art. 473º do C. Civil)”.

Observe-se que o que se acaba de afirmar não é contraditório com o acórdão do STJ proferido em 20-02-2020, no processo n.º 4955/18.0T8GMR.G1.S1. publicado em https://juris.stj.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2020:4955.18.0T8GMR.G1.S1 onde se afirmou também que não era exigível ao autor a prova da inexistência de uma infinitude de causas. Sucede que em tal decisão, contrariamente ao que sucede no caso, o tribunal conclui que havia ficado demonstrada a falta de causa justificativa para a deslocação em causa no processo”.

Em segundo lugar, também não vale a alegação de que, tendo as rés, ora recorridas, alegado que o autor, ora recorrente, pagou a parte do preço que lhes cabia na compra e venda da fracção autónoma, por espírito de liberalidade, e não tendo elas provado a sua alegação, impunha-se concluir pela prova de ausência de causa do enriquecimento das rés. Com efeito, se seguíssemos esta lógica argumentativa, não era sobre o autor, ou seja, sobre aquele que pretende prevalecer-se da restituição fundada no enriquecimento sem causa, que faríamos recair o ónus de provar a falta de causa do enriquecimento e as consequências da falta de cumprimento de tal ónus, mas, sim, sobre aqueles a quem é exigida a restituição, o que não tem apoio no n.º 1 do artigo 473.º do CC, combinado com o n.º 1 do artigo 342.º do mesmo diploma, tal como foram acima interpretados.

Em terceiro lugar, o resultado da prova produzida sobre a razão pela qual o autor assumiu a obrigação de pagar a parte do preço da fracção que era devida pelas rés, não é a de que não existiu causa para a assunção de tal obrigação. O resultado dessa prova é o de dúvida quanto à inexistência de razão ou causa da assunção de tal obrigação. Ora, na dúvida sobre um determinado facto, o tribunal decide contra a parte onerada com a prova desse facto. É o que resulta da parte final do artigo 346.º do Código Civil e do artigo 414.º do CPC. No caso, como se escreveu mais acima, o facto relevante era a inexistência de causa justificativa da deslocação patrimonial e a parte onerada com a prova dele era o autor. Logo era sobre ele que recaíam as consequências da falta de prova.

Por último cabe dizer o seguinte contra a pretensão do recorrente.

Como resulta do já exposto, para fundamentar o pedido de condenação das rés no pagamento de 120 000 euros, o autor, ora recorrente, começou por invocar um contrato de mútuo. Para a hipótese de não se demonstrar a existência deste contrato, pediu a restituição do montante de 120 000 euros com a alegação de que se estaria “sempre perante uma deslocação patrimonial sem causa”.

Isto é, segundo o autor, em função da prova produzida, a mesma realidade (o pagamento do preço da fracção que competia às rés suportar) tanto poderia configurar uma deslocação patrimonial com causa justificativa (empréstimo às rés) como uma deslocação patrimonial em benefício delas, mas sem causa justificativa.

Pode, assim, dizer-se que o pedido subsidiário fundado no enriquecimento sem causa radicou não no pressuposto da falta de causa justificativa da deslocação patrimonial, mas no pressuposto da falta de prova da causa justificativa alegada. Ora, a acção baseada no enriquecimento sem causa não serve para contornar o fracasso na prova da causa justificativa da deslocação patrimonial.

Por todo o exposto, ao revogar a sentença proferida na 1.ª instância e ao absolver as rés do pedido, o acórdão sob recurso não violou as disposições indicadas pelo recorrente. Em consequência é de manter a decisão.

Decisão:

Nega-se a revista e, em consequência, mantém-se o acórdão recorrido.

Responsabilidade quanto a custas:

Considerando a 1.ª parte do n.º 1 do artigo 527.º do CPC e o n.º 2 do mesmo preceito e a circunstância de o recorrente ter ficado vencido no recurso, condena-se o mesmo nas respectivas custas.

Lisboa, 23 de Outubro de 2025

Relator: Emídio Santos

1.ª Adjunta: Ana Paula Lobo;

2.ª Adjunta: Maria da Graça Trigo.