Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2318/23.5PBOER.L1-C.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: ANTÓNIO AUGUSTO MANSO
Descritores: ESCUSA
JUÍZ DESEMBARGADOR
IMPARCIALIDADE
PROCESSO
Data do Acordão: 06/18/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: ESCUSA/RECUSA
Decisão: PROVIDO
Sumário :
I- Pode constituir fundamento de recusa, e por isso de escusa, nos termos do n.º 1, do art.º 43º, a intervenção do juiz noutro processo ou em fases anteriores do mesmo processo fora dos casos do art.º 40º - art.º 43º, n.º 2, do Código de Processo Penal -, com o que se pretendendo acautelar a natural tendência a manter um juízo já expresso ou uma atitude já assumida noutros momentos decisórios no mesmo procedimento.

II-Nestes casos, para apreciar da eventual existência de motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade, é fundamental verificar, concretamente, do objecto do processo em ambas as intervenções processuais do juiz requerente de escusa; aquela em que interveio e aquela em que vai intervir.

III-Os requerentes, como juízes desembargadores no Tribunal da Relação, decidiram confirmar o Despacho que indeferindo requerimento dos arguidos onde pediam a alteração da medida de coação de prisão preventiva por outra menos restritiva da liberdade e manteve a medida de coação de prisão preventiva,

IV-Agora na mesma qualidade e Tribunal teriam de decidir pela confirmação da decisão absolutória da 1ª instância, ou pela sua eventual reversão e eventual condenação dos arguidos nos termos do recurso do Ministério Público.

V-Assim, objectivamente, para os arguidos e para um terceiro, colocado numa posição independente, esta situação legitimamente pode gerar suspeita sobre os factos e as pessoas que neles intervêm, sobre a sua imparcialidade e isenção, atento o pré-juízo já formulado, em fase anterior do processo que pode limitar a sua reapreciação, o que se visa acautelar, justificando-se o pedido de escusa nos termos requeridos.

Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça, 3ª secção,

I-Relatório:

1. Os Ex.mos Desembargadores AA e BB, a exercer funções no Tribunal da Relação de Lisboa, 5ª Secção, vêm requerer a sua escusa de intervir no proc. n.º 2318/23.5PBOER.L1-C.S1, ao abrigo do disposto nos artigos 43.º, n.ºs ,1, 2 e 4, do Código de Processo Penal, apresentando para o efeito requerimento datado de 05.06.2025, com o seguinte teor (transcrição):

“AA e BB, Juízes Desembargadores da 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, vêm, pelo presente e ao abrigo do art.º 43.º, n.ºs 1, 2 e 4, do Código de Processo Penal, pedir escusa de intervir neste recurso com os seguintes fundamentos:

Os ora Requerentes intervieram, como Adjunta e como Relator, nos autos de recurso com o nº 2318/23.5PBOER-A.L1. Um apenso dos presentes autos.

O objecto do recurso foi então o despacho de 25.07.2024 proferido no Juiz ...do Juízo de Instrução Criminal de ..., Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, em que foi determinada a manutenção da prisão preventiva dos arguidos CC e de DD.

Mediante acórdão de 22.10.2024, o recurso foi julgado improcedente, mantendo-se a prisão preventiva dos arguidos.

O despacho então recorrido não tinha decretado ab initio a prisão preventiva dos arguidos. Manteve esta medida de coacção em apreciação de um requerimento em que ambos os arguidos pediam a alteração da medida de coacção de prisão preventiva, por uma medida menos restritiva da sua liberdade, como a obrigação de permanência na habitação, nos termos dos arts. 212º e 213º do Cód. de Processo Penal.

O acórdão do Tribunal ad quem não se limitou a aplicar a condição rebus sic stantibus.

Vejamos as seguintes passagens:

“A existência ou não de fortes indícios e dos restantes fundamentos para aplicação da prisão preventiva já se verificavam no despacho que sujeitou os arguidos a prisão preventiva. E foi reforçada com a dedução de acusação

Sobre os arguidos é que recaem fortes indícios de terem praticado o crime e, em consequência da sua atuação fortemente indiciada, terem ocasionado o afastamento da vítima, sua mãe, da casa onde esta vivia, por direito próprio, não devendo prevalecer-se das consequências das suas condutas fortemente indiciadas, para afastar o perigo de continuação da atividade criminosa que determinou o afastamento da vítima. Decai este argumento”.

Há uma clara tomada de posição sobre a existência de fortes indícios dos arguidos, reforçada com a dedução da acusação.

Os arguidos foram absolvidos em primeira instância. Não porque se tenha alterado significativamente a prova produzida – por exemplo, a vítima nunca prestou declarações nos autos – mas porque a convicção do Tribunal a quo foi no sentido da falta de prova dos factos.

O Ministério Público recorreu da absolvição, impugnando amplamente a decisão sobre a matéria de facto, o que significa que o Tribunal ad quem vai cavar a fundo na prova.

Claro que agora não há indícios, mas prova, que provém da imediação e oralidade. Compete a este Tribunal ad quem ouvir a prova documentada e apreciar se a factualidade foi ou não bem apreciada.

É o último grau de recurso.

Os arguidos vão ter no Tribunal de recurso dois Juízes Desembargadores que há poucos meses disseram que havia fortes indícios da prática dos factos. Sendo dois Juízes fazem maioria no Tribunal ad quem.

No acórdão em que intervieram, mantendo a prisão preventiva, os ora requerentes não puderam deixar de apreciar os juízos indiciários sobre a factualidade imputada aos arguidos.

O que não impedirá, certamente, até pela experiência de ambos na judicatura, que consigam ser independentes na apreciação do recurso da sentença recorrida face aos fundamentos do Tribunal a quo na sua convicção absolutória.

Não obstante, é sempre possível que a sentença seja revertida, que o recurso do Ministério Público seja provido e os arguidos condenados.

A situação exposta não é fundamento de impedimento (art.º 40.º, do CPP).

Não obstante, a intervenção deste Juízes Desembargadores poderá ser considerada suspeita, invocando-se prévio juízo formado sobre a factualidade, gerando nos arguidos desconfiança sobre a imparcialidade dos Juízes na apreciação do recurso.

Nestes termos, ao abrigo dos art.º 43.º, n.º 1 e 2, do CPP, os Juízes Desembargadores AA e BB pedem escusa para intervir no recurso da sentença final.”

(…)

2. Foram juntas certidões, com cópia dos elementos comprovativos dos fundamentos do presente pedido de escusa (art.º 45.º, n.º 1 do CPP), ou seja:

2.1.despacho de determinou a manutenção da prisão preventiva, de CC e de DD de 25.07.2024 (ref.ª .......34);

2.2.acórdão do TRL de 22.10.2024, 5ª secção, proferido neste processo, de 22.10.2024 (ref.ª ......22)(apenso A);

2.3.sentença proferida neste processo a 22.01.2025, no Juizo Local Criminal de ...-J..., (ref.ª .......34):

2.4.recurso interposto pelo Ministério Público, a 18.02.2025 (ref.ª ...33);

2.5.despacho dos requerentes de 05.06.2025, onde pedem escusa e determinam a extracção de certidão para o efeito, (ref.ª .......34).

Foi o processo aos vistos e à conferência,

Decidindo,

II-Fundamentação:

3. Factos constantes do processo

3.1.A 25.07.2024, no presente processo supra identificado, foi proferido despacho que indeferiu o requerimento dos arguidos CC e DD, e manteve a medida de coação de prisão preventiva;

3.2.Interposto recurso pelos arguidos, por Acórdão da Relação de Lisboa, de 22.10.2024, em que foi relator o requerente BB e Adjunta AA, foi mantido o despacho recorrido e a medida de coação de prisão preventiva;

3.3.A 22.01.2025, no Juízo Local Criminal de ...-J..., foi proferida sentença que absolveu os arguidos;

3.4.A 18.02.2025, o Ministério Publico interpôs recurso desta sentença, para o Tribunal da Relação de Lisboa, onde são Juízes Desembargadores os ora requerentes;

3.5.Distribuído o processo, fazem parte do tribunal colectivo os ora requerentes BB e AA.

3.6.Processo onde, a 05.06.2025, por esta razão, elaboraram despacho pedindo escusa.

4. Direito

4.1.A independência dos tribunais está consagrada constitucionalmente, nos termos do artigo 203º da Constituição da Republica Portuguesa – CRP -, que, sob a epigrafe “independência”, dispõe que “os tribunais são independentes e apenas estão sujeitos à lei”, sendo, esta, complementada, com a necessária independência e imparcialidade dos juízes.

Dispõe, ainda, o artigo 32º, n.º 9 da CRP, aliás, em consonância com outros instrumentos jurídicos internacionais, como o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (PIDCP)1, a Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH)2, aplicável na nossa ordem interna por força do art.º 8.º da Constituição da República Portuguesa, e a Jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH)3 que “nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior – n.º 9.”

A determinação do tribunal competente, a sua composição (singular, colectivo ou de júri) e o juiz ou juízes que o compõem, que intervêm no processo e no julgamento, - o “juiz natural” ou “juiz legal” - deverá ser feita por normas gerais e abstratas, pré-existentes constantes das leis de organização judiciária e das leis processuais penais que a pré-determinam4, e que são vertidas no sentido de “obter as máximas garantias de objectiva imparcialidade de jurisdição”5.

4.2.Densificando as garantias de imparcialidade do juiz, em matéria criminal, no capítulo VI, do Título I “do juiz e do tribunal”, do Livro I, “dos sujeitos processuais”, do Código de Processo Penal – artigos 39º a 47º - vêm previstas situações de impedimentos, recusas e escusas, capazes de alterar e modificar as regras essenciais do processo.

Impedimentos correspondem a situações de facto tão objectivas e comprometedoras da imparcialidade do juiz que só o seu afastamento permite manter a confiança na jurisdição e no processo em particular6, e uma vez verificados os impedimentos legalmente elencados devem ser, necessária e imediatamente, declarados pelo próprio juiz inábil, independentemente de qualquer iniciativa ou objeção dos sujeitos processuais7.

Fora destas situações, a tutela da imparcialidade pode ser suscitada por recurso aos instrumentos processuais de recusa e escusa.

A recusa permite aos sujeitos processuais que a podem requerer, Ministério Público, arguido, assistente e partes civis, fazer cessar uma imputada situação de imparcialidade do juiz no concreto processo determinada por motivos sérios e graves adequados a gerar desconfiança sobre a sua parcialidade.

A escusa corresponde ao pedido onde o juiz informa que se encontra numa qualquer situação de eventual pedido de recusa do exercício das suas funções, naquele identificado processo, em relação àquele caso concreto.

Nestas hipóteses, deve o juiz afastar-se (i)declarando-se impedido (nos termos dos art.ºs 39º e 40º do CPP) ou pode afastar-se, (ii)pedindo escusa de intervenção, (nos termos do art.º 43º, 4, do CPP) (judex inhabilis), concretizando e cumprindo, deste modo, o seu dever de imparcialidade, ou ser afastado, se for requerida a recusa, por a sua intervenção colocar em causa, de forma grave e séria, a isenção e imparcialidade exigidas para julgamento (judex suspectus).

As suspeições, … “baseiam-se em factos menos nítidos em que não se revela tão forte a ligação do resultado do processo com o interesse pessoal do juiz, e por isso a capacidade subjectiva deste não é necessariamente excluída.

… … …

Não importa, que na realidade das coisas, o juiz permaneça imparcial; interessa sobretudo considerar se em relação com o processo poderá ser reputado imparcial, em razão dos fundamentos da suspeição verificados. É este também o ponto de vista que o próprio juiz deve adotar para voluntariamente declarar a sua suspeição8.

4.3.No que aqui releva – escusa - nos termos do art.º 43º, n.º 4, do CPP, não pode o juiz declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir ao tribunal competente que o escuse de intervir quando se verificarem as condições dos n.ºs 1 e 2.

Diz o n.º 1 que, “A intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.

E dispõe o n.º 2, que “Pode constituir fundamento de recusa, nos termos do n.º 1, a intervenção do juiz noutro processo ou em fases anteriores do mesmo processo fora dos casos do art.º 40º.

Assim, só deverá ser invocada a questão da imparcialidade, tanto na recusa como na escusa, quando se verifiquem factos graves e sérios, factos com potencial para colidir com o comportamento isento e independente do julgador, na medida em que podem modificar as regras essenciais do processo, máxime o princípio do juiz natural9, como garantia do processo penal, proibindo-se o desaforamento das causas criminais como forma de garantir isenção e imparcialidade.

No mesmo sentido decidiram os Acs. do STJ de 17-04-2008 e 13.04.201610, lendo-se naquele que “o art.º 43.°, n.º 1, do CPP não se contenta com um «qualquer motivo»; ao invés, exige que o motivo seja duplamente qualificado, o que não pode deixar de significar que a suspeição só se deve ter por verificada perante circunstâncias concretas e precisas, consistentes, tidas por sérias e graves, irrefutavelmente reveladoras de que o juiz deixou de oferecer garantias de imparcialidade e isenção”.

A seriedade e a gravidade do motivo ou motivos causadores do sentimento de desconfiança sobre a imparcialidade do juiz só são susceptíveis de conduzir à recusa ou escusa do juiz quando objectivamente consideradas; não basta, com efeito, o mero convencimento subjectivo por parte do MP, do arguido, do assistente ou da parte civil, ou do próprio juiz, para que tenhamos por verificada a ocorrência de suspeição, e também não basta a constatação de qualquer motivo gerador de desconfiança sobre a imparcialidade do juiz, sendo necessário que o motivo ou motivos ocorrentes sejam sérios e graves.”

Em conformidade com o que se vem dizendo, resulta que a imparcialidade do juiz pode “apreciar-se de maneira subjectiva e objectiva:

Naquela perspectiva, significa que o juiz deve actuar com serenidade, sem paixão, pré-juízo ou interesse pessoal;

Nesta, que nenhuma suspeita legítima exista no espírito dos que estão sujeitos ao poder judicial”.

“Acresce que não basta a objectiva independência e imparcialidade subjectiva do juiz; não basta sê-lo, é preciso parecê-lo («justice must not only be done; it must also be seen to be done) e, por isso, a lei toma também certas cautelas para que a isenção do juiz não possa ser objecto de suspeitas por parte dos cidadãos”, como ensina o Prof. Germano Marques da Silva11.

Também a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, tem sido constante a considerar que a imparcialidade deve apreciar-se segundo critérios subjetivos e objetivos12.

Jurisprudência seguida, também, pelo Supremo Tribunal de Justiça, como são exemplos os acórdãos de 6 de setembro de 2013 (proc. n.º3065/06), de 13 de fevereiro de 2013 (proc. n.º 1475/11.8TAMTS.P1-A.S1) e de 2 de dezembro de 2021 (proc. n.º 324/14.0TELSB-AA.L3-A.S113.

Assim e em conclusão, seguindo o Ac. do STJ de 14.04.2021, a escusa do juiz legalmente pré-determinado, só pode prevalecer (i)se o juiz tem algum motivo pessoal no processo ou manifestou ou guarda em si alguma razão que possa determina-lo a favorecer ou a desfavorecer um dos interessados no resultado da decisão, (ii)se a comunidade ou os destinatários da decisão têm razões objetivamente justificadas para não confiar na neutralidade do juiz, designadamente por correr o risco de poder ser influenciado por algum interesse, dado, pré-juízo ou preconceito a favor ou contra um dos intervenientes na causa.

Exigindo-se sempre que os motivos da suspeição sejam de tal modo sérios e graves que, coloquem em crise a neutralidade do juiz, apontando claramente para que deva ser recusado ou escusado14.

4.4.Diferentemente dos impedimentos que são taxativamente elencados e ao contrário do que acontecia no Código de Processo Penal de 1929, (art.º 112º), o Código de Processo Penal actual abandonou aquela enumeração de situações que podiam gerar pedido de recusa e fixou, em substituição, uma cláusula geral, ou seja, um “motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança”, deixando para o interprete a incumbência de a integrar em cada caso concreto.

O TEDH tem entendido que, para além de que a imparcialidade se presume até prova em contrário, que, sendo assim, a imparcialidade objectiva releva essencialmente de considerações formais e o elevado grau de generalização e de abstracção na formulação do conceito apenas pode ser verificado numa base estritamente casuística, na análise in concreto das funções e dos actos processuais do juiz15.

4.5.No caso, os Ex.mos Juízes Desembargadores AA e BB, vêm pedir escusa, deixando de intervir neste processo, n.º 2318/23.5PBOER.L1-C.S1, agora em fase de recurso no Tribunal da Relação de Lisboa, onde os ora requerente exercem funções como Juízes Desembargadores.

Os requerentes, já antes, exerciam funções de Juízes Desembargadores neste Tribunal da Relação de Lisboa, onde este processo subiu em recurso decidindo este tribunal, por acórdão de 22.10.2024, confirmar o Despacho que indeferiu o requerimento dos arguidos CC e DD, pedindo a alteração da medida de coação, por medida menos grave, e, em consequência, manter a prisão preventiva dos mesmos, sendo relator o requerente BB e adjunta a requerente AA.

Assim, naquela qualidade, os requerentes, no Apenso A do mesmo processo, proferiram acórdão que se relaciona com a decisão a tomar agora, em sede de recurso da sentença absolutória, no mesmo Tribunal da Relação de Lisboa.

Após distribuição, ficaram os requerentes indigitados para intervir no julgamento do recurso interposto.

Com este pedido, vêm os requerentes informar que aquele acórdão proferido, no Apenso A do processo está associado a esta decisão a proferir, agora, em sede de recurso, e, por isso, pedem escusa.

4.6. Fora dos casos em que se encontra impedido, impende sobre o juiz o dever de informar que se encontra em qualquer situação de incompatibilidade e pede para ser afastado de intervir em determinado processo e em relação à quele caso concreto.

Trata-se, como refere José Mouraz Lopes16, de uma renúncia ao exercício da função jurisdicional.

O pedido de escusa é, assim, naturalmente um acto pessoal, com base numa situação ou causa pessoal e subjectivamente avaliado.

Aparentemente, portanto, deveria ser o pedido de escusa requerido individualmente.

No caso são dois os requerentes. Objectivamente a razão do pedido é a mesma, e prende-se com o exercício das funções em que ambos estão investidos e com a intervenção obrigatória de ambos no mesmo processo e mesmo acto processual.

Ambos avaliam a situação do mesmo modo, justificando-se, assim, na prática, o pedido conjunto.

4.7.O disposto no art.º 43º, 2, do CPP, tipifica como causa de recusa e, por isso, de pedido de escusa, a intervenção do juiz noutro processo ou em fases anteriores do mesmo processo, fora dos casos do artigo 40º.

A verificação concreta do objecto do processo em qualquer das intervenções processuais do juiz, (a que interveio e aquela em que vai intervir) é fundamental para se apreciar da eventualidade de existir motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade. Só um juízo “ex post factum”, sobre a intervenção funcional do juiz num determinado processo poderá levar, objectivamente, à “suspeita” da sua nova intervenção, por falta de garantia de imparcialidade total nesse processo. Daí a necessidade de avaliar toda a intervenção do juiz, num determinado processo, para daí poder concluir da existência de motivos, sérios e graves, que levem a uma situação de quebra de confiança no juiz, pondo em causa a sua imparcialidade17.

Pelo que vem sendo referido, só deve consubstanciar motivo de suspeição em certas circunstâncias, como (i)o processo tenha tido por objecto a mesma factualidade, (ii)esteja com ela directamente relacionada ou que (iii)digam respeito a factos que tenham ocorrido durante ou no processo em que o juiz “suspeito” interveio17,18.

Quando toda a intervenção se verifica no mesmo processo, “pretende-se acautelar a natural tendência a manter um juízo já expresso ou uma atitude já assumida noutros momentos decisórios no mesmo procedimento.”

A determinação concreta do que torna a intervenção judicial de fases anteriores do processo como prejudicante em relação à intervenção do mesmo juiz no mesmo processo em fase posterior deverá assumir uma consistência senão inequívoca, pelo menos capaz de não provocar equívocos susceptíveis de por em causa a própria legitimidade de quem julga.”19.

4.8.Concretizando, referem os requerentes que subscreveram o acórdão proferido a 22.10.2024, que decidiu requerimento dos arguidos onde pediam a alteração da medida de coacção de prisão preventiva, por uma medida menos restritiva da sua liberdade, como a obrigação de permanência na habitação, nos termos dos art.ºs. 212º e 213º do Cód. de Processo Penal.

A decisão de confirmar o despacho de indeferimento do pedido de alteração da medida de coação de prisão preventiva, para medida menos grave, fez uma necessária valoração dos factos que sustentavam aquela medida de coação. E, convictos da sua indiciação, mantiveram o despacho recorrido.

Assim, naquele acórdão concluíram que “[a] existência ou não de fortes indícios e dos restantes fundamentos para aplicação da prisão preventiva já se verificavam no despacho que sujeitou os arguidos a prisão preventiva. E foi reforçada com a dedução de acusação”

“Sobre os arguidos é que recaem fortes indícios de terem praticado o crime e, em consequência da sua atuação fortemente indiciada, terem ocasionado o afastamento da vítima, sua mãe, da casa onde esta vivia, por direito próprio, não devendo prevalecer-se das consequências das suas condutas fortemente indiciadas, para afastar o perigo de continuação da atividade criminosa que determinou o afastamento da vítima. Decai este argumento”.

Há, efectivamente, como referem, uma evidente “tomada de posição sobre a existência de fortes indícios” da prática, pelos arguidos dos factos que lhe são imputados.

Agora, sendo os arguidos absolvidos e tendo o Ministério Público interposto recurso impugnando amplamente a decisão sobre a matéria de facto, terá o tribunal de recurso de rever e reapreciar de novo toda a prova, não como indícios, mas como prova produzida em julgamento.

Compete ao tribunal de recurso, o Tribunal da Relação, onde os requerentes exercem funções, ouvir toda a prova produzida e analisar e decidir, em definitivo, se a factualidade dada como assente, foi ou não bem avaliada.

Sendo possível, que o recurso do Ministério Público seja provido e, revertendo a decisão, possam ser os arguidos condenados.

Os requerentes, no acórdão em que intervieram, indeferindo a pretensão dos arguidos de alterar a medida de coação, mantendo a prisão preventiva, apreciaram os juízos indiciários sobre a factualidade que lhe era imputada, concluindo que havia fortes indícios da prática dos factos.

Ou seja, os requerentes possuem conhecimento profissional sobre o processo, no qual tiveram intervenção direta em fase antecedente.

Neste momento de recurso, a situação em causa, necessita de ponderação individual e de direta ligação ao caso concreto e a renovação de um juízo valorativo da prova produzida.

Sendo certo que em momento anterior formaram, os requerentes um pré-juízo sobre os factos em discussão.

A situação factual vista e apreciada naquele recurso para decisão da alteração da medida de coação, é agora, de novo, apreciada, não para aquele fim, mas para a decisão sobre a confirmação da decisão absolutória ou eventual reversão desta e eventual condenação dos arguidos nos termos do recurso do Ministério Público.

Donde, a posição assumida pelos requerentes naquele processo pode ser vista, fazendo intervir as regras da experiência comum, e por referência ao homem médio, representativo da sociedade, como capaz de influenciar ou de algum modo afectar, prejudicando, a decisão a tomar no julgamento do recurso.

Posição que, não sendo de todo inequívoco que a possa afectar, pelo menos é capaz ou tem potencial para provocar equívocos susceptíveis de pôr em causa a sua legitimidade e imparcialidade.

Agravando a situação, o facto de, sendo dois Juízes, poderem obter maioria no Tribunal de recurso.

O referido acórdão do Tribunal da Relação, em que foram intervenientes, não confirmou despacho que tenha aplicado medida de coação prevista nos artigos 200º a 202º do CPP, mas apenas indeferiu o pedido de alteração para medida menos gravosa, não sendo entendida, pelos requerentes, como impedimento, que pediram, antes, escusa.

Na verdade, para situações fora dos casos do artigo 40º, vigora a cláusula geral da figura da recusa, prevista no art.º 43º, n.º 2 do CPP.

Não sendo considerado fundamento de impedimento, aquela intervenção no processo, poderá, porém, ser vista como suspeita, considerando o prévio juízo formado pelos requerentes sobre os factos, podendo ser causa de desconfiança por parte dos arguidos, sobre a imparcialidade dos Juízes na análise e decisão do recurso.

Ora, através destes instrumentos jurídicos (recusa e escusa) “Visa-se também salvaguardar um bem essencial na Administração da Justiça que é a imparcialidade, enquanto equidistância sobre o litígio a resolver/decidir de forma a permitir que esta decisão seja justa e equitativa.

Estando em causa uma tarefa essencial do Estado, igualmente se procura defender a posição do Juiz, assegurando um instrumento processual que possibilite o seu afastamento quando, objectivamente, existir uma razão que minimamente possa beliscar a sua imagem de isenção e objectividade..

A “isenção objectiva do julgador pode não estar comprometida …. Mas objectivamente a dúvida ficará a pairar e por essa forma ficará afectada a imagem da justiça.20

… … …

Como se lê no Ac. do STJ de 12.03.2015, já citado, com aplicação a este caso, “Objectivamente, para um terceiro, colocado numa posição independente, o contacto prévio com aqueles processos cria uma marca indelével sobre os factos e as pessoas que neles intervêm com evidentes sequelas na apreciação do processo que agora é sujeito à sua apreciação.

A eventual perda de equidistância aqui surgida é objectiva e exógena a qualquer comportamento activo ou deliberado, mas é uma consequência da natureza das coisas, resultando de uma circunstância aleatória que é distribuição processual e do contacto prévio que deve ser mantido pelo julgador e que não é mais do que uma das faces da imparcialidade”21.

Por todo o exposto, e atento o disposto no art.º 43º, n.ºs 1, 2, e 4, do Código de Processo Penal, existem fundamentos para deferir a escusa requerida pelos Senhores Magistrados requerentes.

III-Decisão:

Nestes termos, acordam os Juízes do Supremo Tribunal de Justiça em:

- deferir o pedido dos Ex.mos Juízes Desembargadores AA e BB, escusando-os de intervir no julgamento do recurso interposto no processo n.º 2318/23.5PBOER.L1-C.S1, pelo Magistrado do Ministério Público.

- Sem tributação.

*

Supremo Tribunal de Justiça, 18 de Junho de 2025

António Augusto Manso (relator)

Maria Margarida Almeida (Adjunta)

Carlos Campos Lobo (Adjunto)

*

1- Onde, como se lê no Ac. do STJ de 14.04.2021, proc. 213/12.2TELSB-U.S1-A, in www.dgsi.pt, no art.14º consagra o direito do acusado a um Tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido por lei.

2- Que, no artigo 6º §.º 1 consagra também o direito da pessoa a que qualquer acusação de caráter penal formulada contra ela seja examinada “por um Tribunal competente, independente e imparcial estabelecido por lei”, como referido nos Acs. do STJ de 14.04.2021, proc. 213/12.2TELSB-U.S1-A, in www.dgsi.pt, citado e Ac. do STJ de 28.09.2023, proc. 147/21.7TELSB.P1-A.S1, www.dgsi.pt.

3-GrandChambre,, Affaire Micallef c. Malte, Arret du 15/10/2009, Reguête n.º 17056/07, citado no no Ac. do STJ de 14.04.2021, proc. 213/12.2TELSB-U.S1-A, in www.dgsi.pt.

4-Ac. do STJ de 14.04.2021, proc. 213/12.2TELSB-U.S1-A, in www.dgsi.pt.

5– Prof. Manuel Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, Lisboa, 1981, Petrony, Vol. I, p. 234.

6—José Mouraz Lopes, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, António Gama e outros, Almedina, Coimbra, p. 482.

7-Ac. do STJ de 14.04.2021, proc. 213/12.2TELSB-U.S1-A, in www.dgsi.pt.

8-Prof. Manuel Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, Lisboa, 1981, Petrony, Vol. I, p. 234.

9-José Mouraz Lopes, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, António Gama e outros, Almedina, Coimbra, p.509/510.

10-proferidos no Proc. n.º 1208/08, da 3.a Secção e no proc. n.º 324/14.0TELSB-Y.L1-A.S1, www.dgsi.pt/jstj, citados no Ac. do STJ de 14.04.2021, proc. 213/12.2TELSB-U.S1-A, in www.dgsi.pt.

11-Direito Processual Penal Português, Noções Gerais, Sujeitos Processuais e Objecto, UCE, Lisboa 2013, p. 225.

12-v. entre outros, o acórdão de 13 de novembro de 2012 no caso Hirschhorn c. Roménia, Queixan.º 29294/02 e o acórdão de 26/07/2007, no caso De Margus c. Croácia, Queixa n.º 4455/10, citado no Ac. do STJ de 18.09.2023, www.dgsi.pt.

13-Todos consultáveis In www.dgsi.pt.

14-Ac. do STJ de 14.04.2021, proc. 213/12.2TELSB-U.S1-A, in www.dgsi.pt.

15-Ac do STJ de 12.03.2015, proc. n.º 4914/12.7TDLSB.G1-A.S1, www.dgsi.pt.

16-in Comentário Judiciário do Código de Processo penal, tomo I, p. 509, 2ª edição, Almedina, Coimbra)

17-José Mouraz Lopes, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, António Gama e outros, Almedina, Coimbra, p.514.

18- Ac do STJ de 12.03.2015, proc. n.º 4914/12.7TDLSB.G1-A.S1, www.dgsi.pt.

19- José Mouraz Lopes, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, António Gama e outros, Almedina, Coimbra, p.515.

20-Ac do STJ de 12.03.2015, proc. n.º 4914/12.7TDLSB.G1-A.S1, www.dgsi.pt.

21-Idem.