Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
32/18.2T8AGD-A.P1-A.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: FERNANDO SAMÕES
Descritores: RECURSO DE REVISTA
REVISTA EXCECIONAL
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
VALOR DA CAUSA
ALÇADA
INCONSTITUCIONALIDADE
DIREITO AO RECURSO
Data do Acordão: 10/13/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECLAMAÇÃO - ART.º 643 CPC
Decisão: INDEFERIDA A RECLAMAÇÃO
Sumário :
I. A admissibilidade do recurso à luz do art.º 629.º, n.º 2, al. d), do CPC não prescinde da verificação dos pressupostos gerais da recorribilidade em função do valor da causa e da medida da sucumbência, pelo que só é admissível recurso para o STJ com o fundamento especial ali previsto, quando o mesmo seja vedado por motivo exclusivamente alheio à alçada do tribunal recorrido e, cumulativamente, quando o valor da causa o permita em termos gerais.

II. A revista excepcional, cujos requisitos específicos estão previstos no n.º 1 do art.º 672.º do mesmo Código, depende da prévia verificação dos pressupostos gerais da revista.

III. Não é inconstitucional o art.º 672.º do CPC na interpretação segundo a qual a revista excepcional pressupõe a verificação dos pressupostos gerais da revista.
Decisão Texto Integral:

Processo n.º 32/18.2T8AGD-A.P1-A.S1


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Acordam em conferência no Supremo Tribunal de Justiça – 1.ª Secção[1]:


I. Relatório

Os embargos de executado deduzidos por AA e BB contra B.P.I. – Banco Português de Investimento, S.A., foram julgados improcedentes por sentença de 19 de Dezembro de 2018, em síntese, porque o exequente/embargado deu cumprimento ao disposto nos art.ºs 12.º a  21.º do DL n.º 227/2012, de 25/10, visto que consta dos factos provados não só que “integrou o embargante no PERSI como lhe foi comunicado formalmente a extinção de tal procedimento e o fundamento para tal extinção”, tendo tais comunicações sido “enviadas em suporte duradouro (carta simples) dirigida para a morada do embargante”.

Inconformados, os embargantes interpuseram recurso de apelação que o Tribunal da Relação do Porto, por acórdão de 10 de Dezembro de 2019, julgou improcedente, confirmando a sentença recorrida com os mesmos fundamentos, entendendo que resulta da factualidade provada “que o embargado cumpriu com os procedimentos, formalismos e prazos previsto(s) no PERSI”.

Ainda irresignados, os embargantes interpuseram recurso de revista excepcional, alegando contradição com dois acórdãos da Relação (um de Lisboa e outro de Coimbra que consideram insuficiente a carta simples, exigindo prova do efectivo recebimento da carta), cuja cópia juntaram, e invocando o disposto nos art.ºs 629.º, n.º 2, al. d) e 672.º, n.º 1, als. a) e c), ambos do CPC.

Esse recurso não foi admitido por douto despacho do Ex.mo Juiz Desembargador Relator com o seguinte teor:

“Por falta de requisitos legais (alçada do Tribunal de recurso), não se admite o presente recurso excepcional de revista”.

Notifique.”

Não conformado com a decisão de não admissão do recurso de revista, o embargante/recorrente AAs reclamou dela sustentando que o mesmo deve ser admitido, face ao disposto nos art.ºs 627.º, n.º 1, 629.º, n.º 2, d) e 672.º, n.º 1, als. a) e c), todos do CPC, porquanto entende que o requisito da alçada não é aplicável ao caso por se tratar de revista excepcional que fundamentou não só em contradição com dois acórdãos da Relação, nos termos da alínea d) do n.º 2 do citado art.º 629.º e da alínea c) do n.º 1 do mencionado art.º 672.º, mas também na relevância jurídica da questão suscitada e na necessidade do esclarecimento do alcance da expressão “suporte duradouro” para melhor aplicação do direito, requisitos estes que compete apreciar ao STJ, sob pena de, entendendo-se de outro modo, inconstitucionalidade deste último artigo, por violação do direito ao recurso previsto no art.º 20.º da CRP.

Não foi apresentada resposta.

A reclamação foi indeferida, por despacho do actual Relator, de 8/7/2020,  cujo teor aqui se dá por produzido e que adiante se reproduzirá na parte tida como relevante, em suma por falta de verificação do requisito geral do valor inferior ao da alçada e porque a interpretação nele feita ao art.º 672.º do CPC não padece de inconstitucionalidade.

O reclamante veio interpor recurso para o Tribunal Constitucional, mas que se entendeu converter oficiosamente em reclamação para a conferência, por o despacho do Relator não ser susceptível daquela impugnação.

II. Fundamentação

No despacho que indeferiu a reclamação foram dados como provados os factos que resultam do antecedente relatório, mais o seguinte:

“O valor da acção é de 11.752,51 €”.

Nesse mesmo despacho pode, ainda, ler-se:

«… Como é sabido, pese embora as decisões judiciais sejam impugnáveis por meio de recurso (art.º 627.º, n.º 1, do CPC), a admissibilidade deste está condicionada, através de limites objectivos fixados na lei (cfr. Carlos Lopes do Rego, Acesso ao direito e aos tribunais, in Estudos sobre a Jurisprudência do Tribunal Constitucional, 1993, pág. 83).

Os valores da causa e da sucumbência são, de facto, limites ao recurso, nos termos do n.º 1 do art.º 629.º do CPC. Só que nos casos previstos no n.º 2 do mesmo artigo deixam de o ser, pois, nessas situações excepcionais, é sempre admissível recurso.

O recorrente invocou a alínea d) deste preceito, onde se prevê a contradição do acórdão recorrido “com outro” da mesma ou de outra Relação, “no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, e do qual não caiba recurso ordinário por motivo estranho à alçada do tribunal, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme.

Acontece, porém, que a admissibilidade do recurso à luz deste preceito excepcional não prescinde da verificação dos pressupostos gerais da recorribilidade em função do valor da causa e da medida da sucumbência.

É o que resulta do elemento literal constante do segmento normativo referente ao “motivo estranho à alçada do tribunal”.

Assim o indica o elemento histórico, como revelam os antecedentes do preceito em causa, ou seja, o n.º 4 do art.º 678.º do CPC de 1961 e subsequentes alterações introduzidas pelo DL n.º 38/2003, de 8/3 e pelo DL n.º 303/2007, de 24/8, donde se depreende que “a sua aplicação se circunscreve aos casos em que se pretenda recorrer de acórdão da Relação proferido no âmbito de acção (ou procedimento) cujo valor excede a alçada da Relação mas relativamente à qual esteja excluído o recurso de revista por outro motivo de ordem legal.”

E assim tem sido entendido pela generalidade da jurisprudência do STJ e da doutrina (cfr. entre outros, acórdãos do STJ de 26/3/2015, processo n.º 2992/13.0TBFAF-A.E1.S1, de 17/11/2015, proc.º 3709/12.2YYPRT.P1.S1, de 23/6/2016, proc.º 2023/13.0TJLSB.L1.S1 e de 24/11/2016, proc.º 1655/13.1TJPRT.P1.S1, todos em www.dgsi.pt; Abrantes Geraldes, em Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5.ª edição, Almedina, págs. 57-59; Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa, O Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Almedina, pág. 754 e Teixeira de Sousa, em https://blogippc.blogspot.pt em comentário ao Ac. do STJ de 2/6/2015, proc.º189/13.9TBCCH-B.E1.S1 (reforçado noutro comentário ao Ac. do STJ de 16/6/2015, proc.º 1008/07.0TBFAR.D.E1.S1), onde refere, além do mais que “o regime instituído no art. 629.º, n.º 2, al. d), não se basta com uma mera contradição entre acórdãos das Relações pelo que o preceito só é aplicável nos casos em que, apesar de a revista ser admissível nos termos gerais, se verifica uma irrecorribilidade estabelecida na lei”, concluindo que “este preceito estabelece uma recorribilidade para acórdãos que são recorríveis nos termos gerais e irrecorríveis por exclusão legal”.

Ora, sendo o valor da acção inferior à alçada do Tribunal da Relação que se encontra, neste momento de desde há algum tempo, fixada em 30.000,00 € (cfr. art.º 44.º, n.º 1, da Lei n.º 62/2013, de 26/8 (Lei da Organização do Sistema Judiciário), é evidente que não é admissível revista nos termos gerais.

Daí que não tenha aqui aplicação o disposto no art.º 629.º, n.º 2, al. d), do CPC, contrariamente ao sustentado pelo reclamante.

Este invocou também o art.º 672.º, n.º 1, al. c), do mesmo Código.

Porém, este preceito, que não se pode confundir com aquele, também não é aqui aplicável.

Desde logo, porque respeita à revista excepcional e esta depende naturalmente da verificação dos pressupostos do recurso de revista “normal”, designadamente no que respeita à natureza ou conteúdo da decisão, em face do art.º 671.º do CPC, ou ao valor do processo ou da sucumbência, nos termos do art.º 629.º, n.º 1 do mesmo Código (no mesmo sentido, Abrantes Geraldes, obra citada, págs. 387 e 388).

Assim, os casos previstos na al. d) do n.º 1 do citado art.º 672.º “pressupõem necessariamente que seja admitido, em abstracto, recurso de revista, quer em função do valor ou da sucumbência, quer em função da ausência de outro impedimento legal” (Abrantes Geraldes, obra citada, pág. 59).

E, no caso, não admite por o valor do processo ser inferior à alçada da Relação, como se disse.

Aliás, se fosse caso de admissão ao abrigo da al. d) do n.º 2 do art.º 629.º - e não é, como dissemos -, jamais teria lugar a aplicação da al. c) do n.º 1 do art.º 672.º, por este respeitar à revista excepcional e esta pressupor a verificação dos pressupostos gerais.

Pela mesma razão – falta de verificação de um pressuposto geral – também é inútil invocar a al. a) do n.º 1 do art.º 672.º.

Tendo o processo valor inferior à alçada da Relação, não pode haver lugar à pretendida revista excepcional, pelo que esta jamais poderia ser admitida ao abrigo da al. a) do n.º 1 do art.º 672.º.

Apesar de a apreciação dos pressupostos específicos da revista excepcional ser da competência da formação específica prevista no n.º 3 do citado art.º 672.º, a apreciação dos pressupostos gerais é feita previamente pelo Relator e, antes deste, está a cargo do Relator da Relação, que deve indeferir o requerimento de interposição nos termos do art.º 641.º, n.º 2, al. a), quando, entre outras situações, entenda que a decisão não admite recurso, o que fez.

           

Finalmente, não se vislumbra inconstitucionalidade na interpretação feita do mencionado art.º 672.º, por violação do direito ao recurso previsto no art.º 20.º da CRP.

            Com efeito, o Tribunal Constitucional "tem considerado que não existem impedimentos absolutos à limitação ou condicionamento do acesso ao Supremo" (cfr. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5.ª edição, pág. 349). O direito ao recurso, designadamente o de interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, pode ser limitado pelo legislador ordinário, como vem sendo afirmado, de forma unânime, pela jurisprudência (cfr., entre outros, ac. do STJ de 19/5/2016, proc. 122702/13.5YIPRT.P1.S1 in www.dgsi.pt.).

Segundo o acórdão acabado de citar, tirado a propósito do valor da acção e da sucumbência, a jurisprudência constitucional, face à natural escassez dos meios para administrar a Justiça e a necessidade da sua racionalização, “vem expressando o entendimento de que, em matéria cível, o direito de acesso aos tribunais não integra forçosamente o direito ao recurso ou o chamado duplo grau de jurisdição” (cfr. Lopes do Rego, Comentários ao CPC, pág. 453, e “O direito fundamental do acesso aos tribunais e a reforma do processo civil”, em Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, págs. 763 e segs., citando jurisprudência do Tribunal Constitucional, segundo a qual o que existe é um “genérico direito ao recurso de actos jurisdicionais, cujo conteúdo pode ser traçado pelo legislador ordinário, com maior ou menor amplitude”, ainda que seja vedada “a redução intolerável ou arbitrária” desse direito. Cfr. ainda diversa jurisprudência citada por Lebre de Freitas e Cristina Máximo dos Santos em O Processo Civil na Constituição, págs. 167 e segs. Sobre o princípio do duplo grau de jurisdição e sua conexão com a CRP cfr. ainda Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 8ª ed., págs. 72 a 76).

No mesmo acórdão é ainda afirmado que “Também tem sido assumido que tal direito não é necessariamente decorrente do que se dispõe na Declaração Universal dos Direitos do Homem ou na Convenção Europeia dos Direitos do Homem” (cfr. Ribeiro Mendes, Recursos em Processo Civil, págs. 99 e 100)”.

            “Em suma, o direito ao recurso não se apresenta com natureza absoluta, convivendo sempre com preceitos que fazem depender a multiplicidade de graus de jurisdição de determinadas condições objectivas ou subjectivas” (cfr. Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 8ª ed., pág. 75).

Segundo o mesmo acórdão e citando Lopes do Rego, as “limitações derivam, em última análise, da própria natureza das coisas, da necessidade imposta por razões de serviço e pela própria estrutura da organização judiciária de não sobrecarregar os Tribunais Superiores com a eventual reapreciação de todas as decisões proferidas pelos restantes tribunais” (in “O direito fundamental do acesso aos tribunais e a reforma do processo civil”, inserido em Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, pág. 764).

Daí que a limitação de dois graus de jurisdição nos termos supra referidos não ofende os princípios constitucionais da igualdade e do acesso ao direito, nem o direito a um processo justo e equitativo.»

Na reclamação ora em apreço, resultante da conversão oficiosa, pôs-se em causa exclusivamente esta questão da inconstitucionalidade.

Todavia, não vislumbramos razões para alterar o que foi decidido pelo Relator, nem elas foram invocadas pelo reclamante.

Reitera-se que não existe inconstitucionalidade na interpretação feita ao art.º 672.º do CPC, conforme consta do despacho reclamado, com o qual se concorda inteiramente.

A reclamação tem, necessariamente, que improceder, havendo que confirmar o despacho do Relator.

           

Sumário:
1. A admissibilidade do recurso à luz do art.º 629.º, n.º 2, al. d), do CPC não prescinde da verificação dos pressupostos gerais da recorribilidade em função do valor da causa e da medida da sucumbência, pelo que só é admissível recurso para o STJ com o fundamento especial ali previsto, quando o mesmo seja vedado por motivo exclusivamente alheio à alçada do tribunal recorrido e, cumulativamente, quando o valor da causa o permita em termos gerais.
2. A revista excepcional, cujos requisitos específicos estão previstos no n.º 1 do art.º 672.º do mesmo Código, depende da prévia verificação dos pressupostos gerais da revista.
3. Não é inconstitucional o art.º 672.º do CPC na interpretação segundo a qual a revista excepcional pressupõe a verificação dos pressupostos gerais da revista.

III. Decisão

          Pelo exposto, indefere-se a reclamação e confirma-se, integralmente, o despacho reclamado.


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Custas da reclamação pelo reclamante, por lhe ter dado causa, não obstante resultar de conversão oficiosa, fixando-se a taxa de justiça em 3 UCs.


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Lisboa, 13 de Outubro de 2020

 

Nos termos do art.º 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13 de Março, aditado pelo art.º 3.º do DL n.º 20/2020, de 1 de Maio, declaro que o presente acórdão tem voto de conformidade dos Ex.mos Juízes Conselheiros Adjuntos que não podem assinar.

            Fernando Samões (Relator, que assina digitalmente)

            Maria João Vaz Tomé (1.ª Adjunta)

            António Magalhães (2.º Adjunto)

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[1] Relator: Fernando Samões
1.º Adjunto: Juíza Conselheira Dr.ª Maria João Vaz Tomé
2.º Adjunto: Juiz Conselheiro Dr. António Magalhães