Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 1ª SECÇÃO | ||
Relator: | HENRIQUE ANTUNES | ||
Descritores: | IMPUGNAÇÃO PAULIANA FACTO CONSTITUTIVO ÓNUS DA PROVA DIREITO DE CRÉDITO CONDIÇÃO SUSPENSIVA CAUÇÃO QUALIFICAÇÃO DE INSOLVÊNCIA INSOLVÊNCIA CULPOSA OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAR PLANO DE INSOLVÊNCIA CONHECIMENTO DO MÉRITO RESTITUIÇÃO DE BENS | ||
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Data do Acordão: | 10/15/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | CONCEDIDA REVISTA | ||
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Sumário : | I - O autor da pauliana está adstrito à demonstração da existência do crédito e do seu valor; II - No caso de o crédito invocado se mostrar subordinado a uma condição suspensiva, ao credor não é lícito recorrer à pauliana, tendo apenas o direito potestativo de exigir ao devedor, na pendência da condição, a prestação de uma caução idónea que assegure a satisfação do direito de crédito, se e quando a condição se verificar; III - A afectação pela qualificação da insolvência como culposa dá lugar a uma responsabilidade insolvêncial autónoma, caracterizada por ser ilimitada, solidária e subsidiária, de natureza simultaneamente preventiva e repressiva, dos sujeitos que estiveram na origem da insolvência culposa; IV - O dever de indemnizar os credores da insolvente judicialmente imposto aos afectados - a que deve assinalar-se, além de uma finalidade indemnizatória, uma função punitiva ou sancionatória - fica subordinado a uma condição suspensiva: a insatisfação, à custa da massa insolvente, do crédito do sujeito activo da indemnização sobre o devedor insolvente; V - Se o processo de insolvência tiver sido encerrado na sequência da aprovação de um plano de insolvência, caso em que não se procederá à liquidação, nesse mesmo processo, da eventual massa insolvente, nem, consequentemente, a satisfação dos créditos sobre a insolvência, ao credor do direito de indemnização sobre os afectados, é lícito proceder à demonstração da verificação da condição suspensiva aposta àquele direito de indemnização pela decisão condenatória correspondente, em qualquer outro procedimento a tanto adequado; VI - O conhecimento imediato do mérito da causa só se realiza no despacho saneador se o processo possibilitar esse conhecimento; caso contrário, i.e., se os elementos fornecidos pelo processo não justificarem essa antecipação, o processo deve prosseguir para a fase da instrução, realizando-se a apreciação daquele mérito na sentença final. | ||
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Decisão Texto Integral: | Proc. 2725/22.0T8VRL.G1.S1
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: 1. Relatório. Prazeres da Terra – Produção, Comércio e Exportação de Produtos Regionais, Lda., pediu ao Sr. Juiz de Direito do Juízo Central Cível de ..., do Tribunal Judicial da Comarca de ..., contra AA e BB que: a) Por força da procedência da impugnação pauliana declarasse a ineficácia da escritura de partilha outorgada entre os réus, em 25/07/2017, declarando-se que a autora tem direito à restituição dos bens na medida do seu interesse, podendo executá-los, nomeadamente, no património do 2º réu, e ainda a praticar os atos de conservação de garantia patrimonial autorizados por lei, mais devendo ser declarados ineficazes todos os atos de disposição posteriores àquela escritura de partilha; b) Ou caso assim não de entenda, por força da procedência da arguição de simulação, declarasse a nulidade da escritura de partilha outorgada entre os réus, em 25/07/2017, por e, em consequência, fossem os bens restituídos ao património conjugal e, bem assim, fossem cancelados todos os registos de disposição que tenham sido efetuados, ou que venham a ser efetuados sobre os bens objeto da escritura. Fundamentou estas pretensões no facto de P..., Lda., da qual a ré era sócia e única gerente, que foi condenada a pagar-lhe a quantia de € 39 200,36 e juros à taxa legal das transacções comerciais, ter sido declarada insolvente, insolvência na qual lhe foi reconhecido o crédito de € 67 774,35 e que foi qualificada como culposa, tendo a ré sido condenada a indemnizar todos os credores com créditos reconhecidos e não satisfeitos pelo produto da massa insolvente, pelo que passou a ser credora daquela ré, que combinou divorciar-se do réu, tendo procedido, por escritura pública outorgado em 25 de Julho de 2017, à partilha dos bens comuns, acordando no despojamento da ré dos bens de maior ou único valor real, com o recebimento de tornas no valor de € 21 803, 53, que declarou ter recebido, o que não corresponde à realidade, tudo com vista a prejudicar os credores, continuando ambos a coabitar na mesma casa, pelo que a partilha foi realizada dolosamente para obstar ao pagamento do seu crédito, e de a sociedade insolvente, P..., Lda., dever a terceiros valor global não inferior a € 109 963,00, não possuindo património que lhe permita fazer face a tal passivo, encontrando-se inactiva, sem estabelecimento comercial, possuindo activo não superior a € 2 000,00, insuficiente para satisfazer as custas do processo de insolvência e as despesas com o administrador, pelo que não conseguirá obter qualquer pagamento através da insolvente. Os réus defenderam-se por excepção peremptória, alegando a caducidade da impugnação pauliana por terem decorridos mais de cinco anos sobre a celebração do acto impugnável, e por impugnação, invocando a inveracidade de alguns dos factos alegados pela autora e o desconhecimento de outros, o carácter meramente futuro, hipotéctico e eventual do crédito da autora, a omissão de interpelação da devedora insolvente para cumprir a obrigação a que se vinculou nos termos do plano de insolvência aprovado e, por último, a falta de idoneidade e/ou legitimidade da autora para arguir a nulidade da partilha, porquanto não é titular de qualquer relação cuja consistência, prática e jurídica, possa ser afectada por aquele negócio. Realizada a audiência prévia, o Sr. Juiz de Direito, logo no despacho saneador – depois de observar que destinando-se a impugnação pauliana a proteger o património enquanto garante do cumprimento das obrigações do seu titular, é condição para o seu exercício, a existência de um crédito que justifique a sua utilização, que o direito da Autora a ser indemnizada pela Ré, atualmente, não existe e, poderá nunca vir a existir, dado que, a existência desse direito de crédito está dependente da condição de a liquidação da massa insolvente P..., Lda., ser insuficiente para satisfação integral do crédito que a Autora tem sobre a mesma. Trata-se um direito de crédito (da Autora sobre a Ré) meramente hipotético/eventual, futuro. Só quando realizada a liquidação e esta se revelar insuficiente para satisfazer o crédito da A. sobre a P..., Lda., é que se poderá concluir pela existência (ou não) de um direito de crédito da A. sobre a Ré. E tal liquidação terá de ser realizada por apenso ao processo de insolvência (e não nestes autos, (…). Não tendo ainda sido promovida a liquidação do ativo da insolvente P..., Lda., o crédito de que a A. se arroga titular sobre a R., não existe, não passando de uma expectativa, que ainda não se encontra concretizada em direito, na esfera jurídica da A., e onde poderá nunca se vir a constituir. (…). Não se está perante uma situação de mera iliquidez ou de inexigibilidade do crédito da A. sobre a R., mas perante a inexistência do mesmo, que no âmbito do processo de insolvência da P..., Lda., foi aprovado e homologado, por sentença transitada em julgado, um plano de insolvência. Esse plano contempla o pagamento do crédito da A. sobre a insolvente, como crédito comum, e prevê que os créditos comuns serão pagos pela insolvente em 45 prestações mensais e sucessivas, com seis meses de carência de capital em dívida, após trânsito em julgado da sentença de homologação do plano. Perante o incumprimento desse plano por parte da insolvente, a A. tem de lançar mão do mecanismo do art. 218º do CIRE, interpelando a insolvente, por escrito, para que cumpra as obrigações incumpridas, acrescida de juros de mora, no prazo de 15 dias, a correr dessa interpelação, sob pena da moratória ou o perdão previstos no plano ficarem sem efeito – art. 218º, n.º 1, al. a) do CIRE -, repristinando-se os créditos originais da A. sobre a massa insolvente, ficando-lhe conferido o direito de instaurar novo processo de insolvência contra a insolvente, onde o património desta será apreendido para a massa insolvente e, caso seja liquidada essa massa e o seu produto seja insuficiente para satisfazer os créditos da A. sobre a insolvente, é que então se constituirá o direito de crédito da A. sobre a Ré, relativamente aos créditos insatisfeitos da A. sobre a insolvente, que o valor do crédito da A. sobre a R., e, consequentemente, a sua existência, só poderá ser fixado em incidente de liquidação, a ser instaurado por apenso ao processo de insolvência, de acordo com os critérios estabelecidos na sentença que qualificou a insolvência como culposa. Antes de ocorrer o acima referido, inexiste direito de crédito da Autora, sobre a R.”, pelo que, “falta um pressuposto substantivo (ser a A. credora da R.) para que possa proceder a pretensão da Autora, de declaração de ineficácia da escritura de partilha, que terá assim de improceder, que o que acima se referiu é igualmente aplicável à pretensão da A. de declaração de nulidade da escritura de partilha, com fundamento na sua simulação e que por falta de legitimidade substantiva, ou seja, por a A. não ser credora da ré, também a pretensão de declaração de nulidade está votada ao insucesso – absolveu os réus do pedido. A autora interpôs recurso de apelação desta sentença e o Tribunal da Relação de Guimarães, por acórdão, tirado por unanimidade, de 15 de Fevereiro de 2024, com fundamento em que enquanto não se verificarem as duas condições (liquidação da massa insolvente e distribuição do respetivo produto pelos credores da insolvência), o crédito indemnizatório de que a apelante se arroga titular sobre a apelada AA não passa de um direito de crédito meramente futuro, hipotético e eventual; e, por isso, seguramente não atual, que, no limite poderá nunca se chegar a constituir na esfera jurídico-patrimonial daquela (basta que para tal o produto da liquidação da massa insolvente seja suficiente para satisfazer o crédito da apelante sobre a devedora P..., Lda.), que a apelante não provou que o crédito indemnizatório que alega deter sobre AA se chegou a constituir na sua esfera jurídico-patrimonial, pelo que, tal como decidido pela 1ª Instância, tem de se julgar improcedente o pedido principal que formulou, e que tratando-se de crédito sujeito a condição suspensiva (como é o caso do crédito indemnizatório que o apelante detém sobre a apelada AA, conforme resulta do antedito), aquele não pode recorrer ao instituto da impugnação pauliana, mas apenas exigir que AA lhe prestasse caução para garantir a satisfação desse crédito indemnizatório, caso este se viesse a constituir, confirmou o saneador-sentença recorrido no segmento em que julgou improcedente o pedido principal e absolveu dele os apelados. Porém, o mesmo acórdão, com fundamento em que nos termos do disposto na al. b), do n.º 1, do art. 595º do CPC, apenas é consentido ao tribunal conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo o permitir sem necessidade de mais provas, ou seja, quando não exista matéria controvertida suscetível de justificar a elaboração de temas da prova e a realização da audiência final, porquanto, toda a matéria relevante esteja provada por confissão expressa ou tácita, por acordo ou documento e quando seja indiferente para qualquer das soluções plausíveis de direito a prova dos factos que permaneçam controvertidos, verificando-se não ser este o caso dos autos quanto ao pedido subsidiário, em que a apelada pede que se declare a nulidade da escritura de partilha outorgada ente os apelados (Réus) em 25/07/2017, por simulação e, em consequência, serem os bens que dela foram objeto restituídos ao património conjugal e, bem assim, serem cancelados todos os registos de disposição que tenham tinha efetuados, ou que venham a ser efetuados sobre os bens objeto daquela escritura de partilha, posto que, de acordo com a conceção ampla de “interessado” do art. 286º do CC (uma das soluções de direito que é suscetível ser adotada sobre esta concreta questão), apesar da apelada não ter demonstrado o direito de crédito que alegou deter em relação à apelada AA, é indiscutível que a mesma detém legitimidade para requerer a declaração da nulidade daquela escritura de partilha celebrada entre os apelados (AA e ex- marido desta, BB), por simulação, em face da condenação da identificada apelada a satisfazer os créditos da insolvência da sociedade devedora, P..., Lda. (como é o caso do crédito da apelada que foi reconhecido e graduado no âmbito do processo de insolvência desta, por sentença de graduação e verificação de crédito nele proferida e transitada em julgado, e que ainda não obteve aí pagamento) – revogou a sentença impugnada no segmento em que conheceu do pedido subsidiário e ordenou o prosseguimento dos autos quanto a este, com a seleção de temas de prova pertinentes para conhecer desse pedido, seguindo-se a posterior realização de audiência final e a prolação de sentença. A autora, apelante, interpôs deste acórdão, recurso de revista excepcional – no qual pede a sua revogação e considerando-se que a recorrente é titular de um direito de crédito sobre a recorrida, deve a ação prosseguir os seus termos contra os recorridos também para apreciação do pedido principal assente na impugnação pauliana, com selecção dos temas da prova pertinentes para dele também conhecer, seguindo-se a posterior realização de audiência final e prolação de sentença – tendo extraído da sua alegação as conclusões seguintes: I- Vem o presente recurso interposto do acórdão proferido nos autos e datado de 15/02/2024, somente na parte em que este confirmou o despacho saneador-sentença proferido pela primeira instância no segmento em que julga improcedente o pedido principal (ação de impugnação pauliana) e dele absolveu os apelados, devendo manter-se o demais decidido no acórdão recorrido, designadamente no que à revogação do despacho saneador- sentença no segmento em que conheceu do pedido subsidiário importa. II- Salvo o devido respeito por opinião contrária, entende a ora recorrente que se justifica a interposição do presente recurso de revista excepcional na supra mencionada parte do segmento decisório, respeitante ao pedido principal formulado nos autos, pois que está “em causa uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito” – cf. artigo 672º, n.º 1, a) CPC. III- Os contornos do caso concreto não encontram solução reiterada e expressa na jurisprudência, sendo, por isso, uma questão merecedora de superior ponderação jurisprudencial, porque suscetível de provocar divergências. IV- Ora, o que está em discussão, em linhas gerais, prende-se em saber se a recorrente é titular de direito de crédito sobre a recorrida, em termos atuais, certos, exigíveis e líquidos, entendendo a aqui recorrente que não se encontra em falta o pressuposto substantivo para se apreciar a ineficácia da escritura de partilha em causa nos autos, por verificação dos pressupostos da impugnação pauliana, que constituía o pedido principal formulado nos autos. V- No caso concreto, a recorrente, titulada pela sentença condenatória proferida no âmbito do processo n.º 1512/15.7..., que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de ... – Juízo Local Cível de ... –Juiz ..., que decidiu, entre outros, qualificar a insolvência da sociedade comercial P..., Lda., como culposa, decidiu declarar afetada pela qualificação da insolvência a recorrida, AA, e condenou-a a indemnizar todos os credores da sociedade insolvente – incluindo a aqui recorrente, que tenham reclamado os seus créditos e até ao limite dos montantes reclamados, reconhecidos e graduados, e não satisfeitos pelo produto da massa insolvente, em conjunto com o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 23/11/2017 e transitado em julgado, que manteve a sentença de qualificação da insolvência proferida naquele apenso, com a ressalva de que esta condenação em indemnização aos credores da insolvente deve ser deferida para o momento em que for possível apurar em concreto o valor dos créditos não satisfeitos pelo produto da massa insolvente, instaurou ação declarativa contra aquela AA e contra o seu ex-marido, alegando e demonstrando que estes têm vindo a praticar actos de dissipação do seu património, com o objetivo de prejudicar os seus credores, designadamente a aqui recorrente, a quem declarou por inúmeras vezes que nunca irá pagar e tendo vindo a agir de forma a obstar a que esta obtenha qualquer pagamento, conforme abundantemente demonstrado nos autos, razão pela qual outorgaram entre si escritura de partilha, em 25/07/2017. VI- Nestes termos, a recorrente instaurou ação declarativa contra os recorridos, pedindo, a título principal, que se declarasse a ineficácia da escritura de partilha outorgada entre os recorridos, em 25/07/2017, declarando-se que a recorrente tem direito à restituição dos bens na medida do seu interesse, podendo executá-los, nomeadamente, no património do recorrido, e ainda a praticar os atos de conservação de garantia patrimonial autorizados por lei, mais devendo ser declarados ineficazes todos os atos de disposição posteriores àquela escritura de partilha e, subsidiariamente, que se declarasse a nulidade da escritura de partilha outorgada entre os recorridos, em 25/07/2017, por simulação e, em consequência, fossem os bens restituídos ao património conjugal e, bem assim, fossem cancelados todos os registos de disposição que tenham sido efetuados, ou que venham a ser efetuados sobre os bens objeto da escritura. VII- Sucede que, foi pela primeira instância proferido despacho saneador-sentença que, conhecendo imediatamente do mérito da causa, julgou a ação improcedente e, em consequência, absolveu os aqui recorridos do pedido, por entender que a ora recorrente, ali autora, não é titular de um direito de crédito sobre a recorrida, tendo a aqui recorrente interposto recurso de apelação do mesmo. VIII- Ora, em 15/02/2024, foi proferido o acórdão recorrido, o qual decidiu dar provimento parcial à apelação da recorrente, na medida em que, não obstante o acórdão recorrido ter julgado improcedente o pedido principal (de impugnação pauliana), revogou o saneador-sentença no segmento em que conheceu do pedido subsidiário formulado na ação (de pedido de nulidade da escritura pública de partilha, por simulação), e ordenou o prosseguimento dos autos para apreciação deste. IX- Para tal e em suma, considerou a Segunda Instância que a aqui recorrente não provou que o crédito indemnizatório que alega deter sobre a recorrida se chegou a constituir na sua esfera jurídico-patrimonial, uma vez que, derivando o seu crédito da qualificação como culposa da insolvência da sociedade comercial P..., Lda., da recorrida AA ter sido afetada por essa qualificação e, nessa sequência, ter sido condenada a indemnizar os credores da sociedade comercial, esta indemnização ficou sujeita “a duas condições futuras, ambas com natureza suspensiva, a saber: 1ª- a liquidação da massa insolvente; e 2ª- a insuficiência do produto decorrente da liquidação da massa insolvente para satisfazer o crédito da apelante sobre a sociedade devedora (P..., Lda.).”, entendendo o acórdão recorrido que, “enquanto essas duas condições futuras e suspensivas do direito à indemnização que assiste à apelante sobre a apelada AA não se verificarem, esse direito indemnizatório: por um lado, apenas pode ser fixado em incidente de liquidação, a ser instaurado por apenso ao processo de insolvência (…) e, por outro, enquanto não for concluída a liquidação da massa insolvente e não se proceder ao pagamento dos credores da insolvência com o produto da liquidação da massa (operações a serem realizadas no processo de insolvência da sociedade devedora), desconhece-se se o produto da liquidação é (ou não) suficiente para satisfazer o crédito que a apelante detém sobre a sociedade devedora e, consequentemente, se lhe assiste (ou não) o crédito indemnizatório que se arroga titular sobre a apelada AA (e que lhe foi reconhecido, por acórdão transitado em julgado, mas sujeito a essas duas condições suspensivas).”“Daí que, enquanto não se verificarem as duas condições (liquidação da massa insolvente e distribuição do respetivo produto pelos credores da insolvência), o crédito indemnizatório de que a apelante se arroga titular sobre a apelada AA não passa de um direito de crédito meramente futuro, hipotético e eventual; e, por isso, seguramente não atual, que, no limite poderá nunca se chegar a constituir na esfera jurídico-patrimonial daquela (basta que para tal o produto da liquidação da massa insolvente seja suficiente para satisfazer o crédito da apelante sobre a devedora P..., Lda.).” X- Por conseguinte, julgou o acórdão recorrido no sentido de, tendo a impugnação pauliana como requisitos cumulativos gerais a existência de um crédito do demandante sobre o devedor, que esse direito de crédito se tenha constituído antes do acto ou negócio impugnado ou, sendo posterior, que o acto ou negócio tenham sido realizados dolosamente com o fim de impedir o direito do futuro credor e que desse acto ou negócio resulte a impossibilidade ou o agravamento para o credor de obter a satisfação integral do seu crédito, mais acrescendo o requisito da má fé do devedor e do terceiro, caso o acto ou o negócio impugnados tiverem natureza onerosa, enquanto aquela dupla condição suspensiva não estiver verificada, aquele crédito indemnizatório do credor sobre o afetado pela qualificação da insolvência não se constituiu na esfera jurídico-patrimonial do primeiro, pelo que a recorrente não pode fundar nele a ação que impugnação pauliana que instaurou, “face à sua natureza meramente futura, hipotética e eventual e que não passa de uma mera expectativa jurídica, que poderá nunca se chegar a constituir e direito”, podendo somente a recorrente, enquanto credora, exigir que a recorrida, devedora dessa indemnização, preste caução. XI- É do segmento do acórdão recorrido que confirmou o despacho saneador- sentença proferido pela primeira instância na parte em que julga improcedente o pedido principal (ação de impugnação pauliana) e absolveu os apelados que a aqui recorrente não se conforma e do qual pretende interpor o presente recurso de revista excepcional, visto que, o que ocorreu no caso em apreciação nos presentes autos pode muito bem repetir-se noutros que ainda não tenham sido levados à superior apreciação deste Supremo Tribunal. XII- Esta questão, saber se, quando a presente ação declarativa foi instaurada, já era possível apurar em concreto o valor dos créditos não satisfeitos pelo produto da massa insolvente, sendo que tal valor corresponde à totalidade dos créditos reclamados, reconhecidos e graduados naqueles autos de insolvência, pelo que a recorrente tem um direito de crédito sobre a recorrida, imediatamente exigível, não sendo hipotético nem eventual nem estando dependente da liquidação da massa insolvente da P..., Lda., razão pela qual se mostram preenchidos os requisitos da ação de impugnação pauliana, tem relevância jurídica e é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito. Tanto mais que a apreciação da questão aqui discutida tem, pois, relevância eminentemente prática, passível de se repercutir noutros casos exatamente iguais ou apenas semelhantes. XIII- Se se entender como entendeu o tribunal a quo, então na prática os credores vêm-se impedidos de recorrer à ação de impugnação pauliana quando esteja em causa um crédito como o dos autos, mesmo quando tenham sido alegados factos da existência do crédito, que esse crédito se constituiu antes do acto ou negócio que foi realizado dolosamente pelo devedor com o fim de impedir o direito do futuro credor e que desse acto ou negócio resulte a impossibilidade ou agravamento para o credor de obter a satisfação integral do seu crédito, como é o caso sub judice. XIV- Ora, salvo melhor opinião, no caso dos autos, o crédito da recorrente é exigível e existente, na medida em que esta tem um crédito reconhecido judicialmente sobre a requerida AA, em face da decisão proferida na qualificação da insolvência da P..., Lda. XV- Tal crédito está perfeitamente determinado, não sendo, salvo opinião em contrário, futuro, hipotético e eventual, como entendeu o acórdão recorrido. XVI- Salvo melhor opinião, ao decidir como decidiu, confirmando naquela parte o despacho saneador-sentença recorrido, o tribunal recorrido foi mais longe do que deveria na sua indagação sobre os requisitos de que depende a existência do crédito do credor sobre o devedor, em sede de impugnação pauliana, em completo desfavorecimento da agora recorrente. XVII- De modo que, a solução a que chegar este Supremo Tribunal pode constituir uma orientação para a apreciação de outros casos, não se limitando a sua utilidade e os seus efeitos práticos ao caso concreto sub judice. XVIII- Tem assim capacidade de expansão da controvérsia, uma vez que ultrapassa os limites da situação singular aqui em discussão, pelo que, a utilidade da decisão a proferir na presente revista extravasa os limites do caso concreto das partes envolvidas no conflito dos autos. XIX- Sendo, portanto, também patente por este aspeto a relevância jurídica da questão, que urge esclarecer para se obter uma melhor aplicação do direito. XX- Por tudo isto, justifica-se que este Supremo Tribunal de Justiça aprecie objecto do presente recurso, o que se requer. XXII- Como supra se disse e salvo o devido respeito, não pode a recorrente concordar com o acerto do decidido na parte em que o acórdão confirmou o saneador-sentença no segmento em que julgou improcedente o pedido principal e absolveu dele os apelados, pois que, como vimos, o crédito da recorrente aqui em causa assenta na sentença judicial condenatória, proferida no âmbito do processo n.º 1512/15.7T8CHV-C, em conjunto com o Acórdão pelo Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 23/11/2017. XXIII- A recorrente instaurou ação declarativa contra aquela AA e contra o seu ex-marido, alegando e demonstrando que estes têm vindo a praticar actos de dissipação do seu património, com o objetivo de prejudicar os seus credores, designadamente a aqui recorrente, pelo que instaurou ação declarativa contra os recorridos, pedindo, a título principal, que se declarasse a ineficácia da escritura de partilha outorgada entre os recorridos, em 25/07/2017, declarando-se que a recorrente tem direito à restituição dos bens na medida do seu interesse, podendo executá-los, nomeadamente, no património do recorrido, e ainda a praticar os atos de conservação de garantia patrimonial autorizados por lei, mais devendo ser declarados ineficazes todos os atos de disposição posteriores àquela escritura de partilha e, subsidiariamente, que se declarasse a nulidade da escritura de partilha outorgada entre os recorridos, em 25/07/2017, por simulação e, em consequência, fossem os bens restituídos ao património conjugal e, bem assim, fossem cancelados todos os registos de disposição que tenham sido efetuados, ou que venham a ser efetuados sobre os bens objeto da escritura. XXIV-Como se disse, o acórdão recorrido entendeu que a recorrente não provou que o crédito indemnizatório que alega deter sobre a recorrida se chegou a constituir na sua esfera jurídico-patrimonial, pelo que, a recorrente não possui os requisitos gerais cumulativos para lançar mão da impugnação pauliana. XXV- Salvo o devido respeito, não pode a recorrente conformar-se com o decidido nesta parte. XXVI- Trata-se aqui de saber se, quando a presente ação declarativa foi instaurada, já era possível apurar em concreto o valor dos créditos não satisfeitos pelo produto da massa insolvente, sendo que tal valor corresponde à totalidade dos créditos reclamados, reconhecidos e graduados naqueles autos de insolvência, pelo que a recorrente tem um direito de crédito sobre a recorrida, imediatamente exigível, não sendo hipotético nem eventual nem estando dependente da liquidação da massa insolvente da P..., Lda., razão pela qual se mostram preenchidos os requisitos da ação de impugnação pauliana. XXVII- A recorrente reclamou o seu crédito sobre a sociedade insolvente, sendo que este crédito consta da lista definitiva de créditos reconhecidos, junta pelo Sr. Administrador da Insolvência no apenso de reclamação de créditos (processo n.º 1512/15.7...). Por sentença de verificação e graduação de créditos, transitada em julgado e proferida neste apenso, foi o crédito da aqui recorrente considerado comum, tendo sido julgados verificados e graduados os créditos reconhecidos (tudo conforme consta dos factos n.ºs 11 a 13 do rol de factos provados elencados no despacho saneador-sentença recorrido). Nos autos foi aprovado o Plano de insolvência da sociedade comercial insolvente, sendo que, com a aprovação de tal Plano, não se procedeu à liquidação do património daquela sociedade e, portanto, à repartição do produto obtido pelos seus credores, em conformidade, aliás, com a finalidade do processo de insolvência, constante do artigo 1.º do CIRE. Ademais, em 07/02/2018 foi determinado o encerramento dos autos de insolvência, com fundamento no trânsito em julgado da decisão de homologação do plano de insolvência (cfr. artigo 230, n.º 1 al. b) do CIRE), não tendo os autos prosseguido para liquidação. XXVIII- Sucede que, por um lado, o plano de insolvência homologado nos autos não foi cumprido pela sociedade insolvente e, até à presente data, a recorrente não obteve qualquer pagamento, não obstante o plano de insolvência determinar somente um período de carência de seis meses. A sociedade insolvente não possui património, em razão da conduta da recorrida e melhor espelhada na petição inicial que deu origem a estes autos e que se dá aqui por integralmente reproduzida por razões de economia processual. XXIX- Além disso, a recorrida, não obstante ter sido condenada em sede de incidente de qualificação da insolvência, não indemnizou os credores daquela sociedade insolvente até à presente data, nada tendo pago à recorrente. XXX- Pelo contrário, os recorridos praticaram actos de disposição do seu património, obrigando a recorrente a instaurar a presente ação declarativa. XXXI-Com efeito, quando os recorridos outorgaram a partilha, em 25/07/2017, já a recorrida tinha sido condenada em primeira instância no âmbito do apenso C do processo n.º 1512/15.7..., a indemnizar os credores da sociedade P..., Lda., nos termos do artigo 189.º, n.º 2, al. e) do CIRE, condenação essa que foi confirmada por este Tribunal superior, por acórdão de 23/11/2017, como supra referido. Assim, à data da outorga da dita partilha, realizada entre os recorridos, estes tinham plena consciência da possibilidade séria da decisão de primeira instância vir a ser confirmada pelo Tribunal da Relação, como efetivamente veio a suceder, fazendo com que a partilha tenha sido efetuada dolosamente com o intuito de impedir a satisfação futura daquele crédito (cfr artigo 610º, a) do C.C.). XXXII- Da celebração da escritura de partilhas entre os recorridos, resultou para a recorrente uma diminuição da garantia patrimonial do seu crédito e, consequentemente, a impossibilidade ou agravamento da impossibilidade da autora obter a satisfação integral do seu crédito. XXXIII- Todo o circunstancialismo espelhado em sede de petição inicial, consubstanciado na existência do crédito por banda da recorrente sobre a ré, na combinação do divórcio entre recorridos, por forma a transferir, em sede de partilhas, para a esfera patrimonial do recorrido os bens que lhe aprouvessem, em prejuízo dos credores da recorrida, pese embora os recorridos jamais tivessem vontade de se divorciar ou partilhar o que quer que fosse entre si, não recebendo a ré quaisquer tornas e continuando os recorridos a coabitar na mesma casa e continuando a ser por todos reconhecidos, mesmo desde aí, como se de marido e mulher se tratassem, demonstra a intenção dolosa dos recorridos ao celebrar o negócio jurídico impugnado. XXXIV- Por se encontrarem, salvo o devido respeito, verificados os requisitos gerais da ação de impugnação pauliana previstos no artigo 610º do C.C., a recorrente instaurou os presentes autos, sendo que, quanto à má-fé dos recorrentes, resulta claro que estes tinham consciência do prejuízo que a partilha, que realizaram no ano de 2017, causava à recorrente, tendo-a realizado naqueles termos para obstar ao pagamento do crédito desta. XXXV- Resulta claramente que, os recorridos, ao celebrarem aquela partilha, conheciam a concreta situação económico-financeira quer da sociedade insolvente, quer da própria recorrida, bem conhecendo o passivo de cada uma delas, configurando aquela partilha, uma partilha meramente virtual, de fachada, destinada a permitir a criação dos obstáculos necessários à limitação e obstrução do legítimo direito dos credores à liquidação do respetivo património. Para além deque, com a escritura de partilhas efetuada pelos recorridos, parte substancial do património ficou a ser pertença do recorrido, que por sua vez nada deve à recorrente, no entanto, os recorridos não fizeram efetiva e materialmente qualquer partilha entre si, não tendo havido entrega de bens ou tornas. XXXVI- Resulta claro, por tudo quanto se deixa explanado, que o comportamento dos recorridos legitimou a recorrente a deduzir a impugnação pauliana, nos termos do disposto nos artigos 610.º e ss do CC, tendo por objeto aquela concreta escritura de partilhas e que deverá ser declarada ineficaz perante a recorrente e, na eventualidade de terem sido praticados atos posteriores de disposição dos bens objeto da partilha, devem os mesmos igualmente ser declarados ineficazes perante a recorrente, com as legais consequências. XXXVII- Portanto, do supra exposto resulta que, todos os créditos reclamados, reconhecidos e graduados nos autos de insolvência encontram-se insatisfeitos na sua totalidade, pois nenhum deles obteve até aqui qualquer pagamento, nem o irá obter pelo produto da massa insolvente – que não existirá, logo não haverá produto de qualquer liquidação do património da insolvente para ser repartido pelos credores desta, por forma a aferir se, posteriormente a este rateio, ainda existirão créditos não satisfeitos pelo produto da massa e qual o seu valor. XXXVIII-Para efeitos de titularidade do direito de crédito da recorrente sobre a recorrida, apenas interessa que os créditos reclamados, reconhecidos e graduados (no caso concreto, por sentença de verificação e graduação de créditos datada de 02/11/2016) não tenham sido satisfeitos no processo de insolvência, precisamente o que apreciou a qualificação da insolvência, e efectivamente não foram satisfeitos por qualquer produto da massa insolvente, devendo, repete-se, entender-se que apenas está em causa a verificação da não satisfação dos créditos no processo principal de insolvência onde foi apreciada a qualificação da insolvência, não existindo qualquer necessidade, salvo melhor opinião, de realizar a liquidação da massa insolvente, ao contrário do que vem vertido no acórdão recorrido, pois o quantum do crédito da recorrente já está perfeitamente determinado. XXXIX- Importa ter em conta a ratio da introdução da condenação exposta na alínea e) do n.º 2 do artigo 189.º do CIRE, que fundamenta a presente ação, a qual não parece ter sido tomada em consideração no acórdão recorrido, que se prende com o reforço da tutela dos credores pois, na verdade, o próprio incidente de qualificação da insolvência surgiu da necessidade de responsabilizar as pessoas que criaram ou contribuíram para a situação de insolvência que se verificou, através da sua atuação com dolo ou culpa grave, em prejuízo dos interesses da pessoa coletiva insolvente e dos credores desta. Com aquela condenação, pretende-se alcançar uma maior proteção dos credores que não conseguiram ver os seus créditos satisfeitos pela massa insolvente. XL- Na verdade, nada impõe que a recorrente, antes de lançar mão da presente ação, pelos fundamentos que o fez, tivesse de interpelar a insolvente nos termos previstos no artigo 218.º, n.º 1, al. a) do CIRE, uma vez que o que se pretendeu foi, em face da ausência de satisfação dos créditos reclamados, reconhecidos e graduados através do processo de insolvência onde se apreciou a qualificação da insolvência, que a credora conseguisse obter o pagamento da indemnização, na sua quota-parte, nos termos em que a ali recorrida foi condenada. XLI- A recorrente possui um direito de crédito bastante e um título que baseia tal crédito – a sentença condenatória de qualificação de insolvência - do qual resolveu lançar mão, faculdade que lhe é conferida nos termos da Lei, não estabelecendo esta qualquer condição ou pressuposto prévio para tal. XLII- No momento da instauração da ação declarativa em apreço, o estado do processo já permitia definir o valor dos créditos por satisfazer, que correspondem à sua totalidade, tendo ficado evidenciado, no processo de insolvência, que a insolvente deve a terceiros um valor global não inferior a € 109.963,00, sendo que, não possui património que lhe permita fazer face a tal passivo. Pelo que, também por este motivo, a ressalva proferida por aquele acórdão encontrava-se preenchida no momento da instauração da presente ação declarativa. XLIII- Portanto, ao contrário do vertido no acórdão recorrido e salvo melhor opinião, a recorrente tem um direito de crédito atual, um direito de crédito existente, razão pela qual, pelas razões expostas, não necessita de ser liquidada a massa insolvente da P..., Lda. para só aí se concluir pela existência de um direito de crédito da recorrente sobre a recorrida. XLIV- A massa insolvente daquela sociedade insolvente nunca será suficiente para satisfazer o crédito da recorrente, ou de outros credores, presumindo-se que sequer será suficiente para satisfazer as custas de um processo de insolvência futuro e as despesas com o Administrador da Insolvência que será nomeado. Razão pela qual, se prevê que a recorrente não conseguirá obter qualquer pagamento através desta sociedade, como não o conseguiu obter até ao presente. Tudo circunstâncias bem sabidas e conhecidas dos recorridos. XLV- O direito de crédito da recorrente existe e é atual, está é, no limite, diferido para um momento posterior, sendo que, não podemos olvidar que, ao contrário do prazo de prescrição ordinário de 20 anos que goza o direito de crédito da recorrente em termos gerais, a impugnação pauliana está sujeita a um curto prazo de caducidade, que a recorrente necessitou de salvaguardar, de modo a acautelar o seu direito creditício sobre as respetivas garantias patrimoniais. XLVI- Desta forma, mal andou o acórdão recorrido, ao julgar que falta um pressuposto substantivo (ser a recorrente credora da recorrida) para que possa proceder a pretensão da primeira, de declaração de ineficácia da escritura de partilha, que consubstanciava o pedido principal que formulou nos autos. XLVII- Estão preenchidos, salvo melhor entendimento, todos os pressupostos para ser apreciada a pretensão da recorrente também quanto à impugnação pauliana que formulou enquanto pedido principal nos autos. XLVIII- O acórdão proferido pelo tribunal a quo mostra-se, assim, violador, em parte, pelo menos, dos artigos 601.º, 605.º e ss, 610.º e ss, 342.º, todos do C.C., artigo 189.º, n.º 2, al. e) e 218.º, n.º 1, al. a), ambos do CIRE devendo, por isso, ser nesta parte revogado, nos termos supra expostos e, considerando-se que a recorrente é titular de um direito de crédito sobre a recorrida, deve a ação prosseguir os seus termos contra os recorridos também para apreciação do pedido principal assente na impugnação pauliana, com seleção dos temas da prova pertinentes para dele também conhecer, seguindo-se a posterior realização de audiência final e prolação de sentença, com as legais consequências. O mesmo acórdão foi também impugnado pelos réus, apelados, no segmento em que se conheceu do pedido subsidiário, julgando-o improcedente e absolvendo dele os apelados, e ordena o prosseguimento dos autos quanto a este pedido subsidiário, com a seleção de temas de prova pertinentes para dele conhecer, seguindo-se a posterior realização de audiência final e prolação de sentença, através de recurso ordinário de revista normal ou comum, no qual pedem a sua revogação e a sua substituição por decisão que julgue improcedente o pedido subsidiário. Nenhuma das partes respondeu ao recurso da outra e o Sr. Juiz Desembargador Relator admitiu ambos os recursos. O relator, por despacho de 6 de Junho de 2024, depois de concluir que o recurso de revista excepcional interposto pela recorrente Prazeres da Terra, Lda., deve ser apresentado à Formação para esta decidir sobre a verificação do pressuposto específico de admissibilidade deste recurso alegado por aquela recorrente – a necessidade de apreciação da questão objecto do recurso para uma melhor aplicação do direito – observou que o recurso de revista, normal ou comum, interposto pelos demandados, AA e CC, não é admissível, por virtude da irrecorribilidade da decisão nele impugnada, e determinou a notificação de ambas as partes para se pronunciarem sobre a questão correspondente. A recorrente Prazeres da Terra, Lda., concluiu pelo acerto do ponto de vista do relator e, portanto, pela inadmissibilidade da revista dos demandados, AA e CC; estes, diferentemente, com fundamento em que o objecto do seu recurso incide sobre decisão impugnada que conheceu do mérito da causa na parte atinente ao pedido subsidiário, que os prejudica, concluíram pela admissibilidade desse mesmo recurso. Porém, o relator, por despacho de 25 de Junho de 2024 – que não foi objecto de impugnação – julgou findo, por inadmissibilidade, o recurso de revista, normal ou comum, dos demandados e determinou a remessa do processo à formação para se decidir da admissibilidade da revista excepcional, interposta pela autora. A Formação, por acórdão de 11 de Setembro de 2024, com fundamento no carácter inédito e na complexidade da questão objecto da revista, considerou verificado o requisito específico da revista excepcional representado pela relevância jurídica daquela questão, e admitiu-a. 2. Delimitação do âmbito objectivo do recurso e recorte da questão concreta controversa. A autora formulou, na petição inicial, uma acumulação eventual de pedidos que respeitam a um mesmo acto jurídico (art.º 555,º, n.º 1, do CPC). Um pedido principal – a declaração de ineficácia da escritura pública de partilha do património conjugal comum, scilicet, do negócio modificativo em que a partilha se resolve e que se reconduz à acção pauliana, um dos meios jurídicos específicos, finalisticamente ordenados à manutenção da integridade do património do devedor e que permite ao credor a impugnação de determinados actos do devedor que ponham em perigo a garantia geral dos seus débitos (art.º 610.º do Código Civil); um pedido subsidiário: a declaração de nulidade daquele negócio jurídico, com fundamento no simulação, i.e., numa divergência intencional enganosa entre a vontade real e a declarada – que produz aquele valor negativo, se no acto concorrerem os requisitos seguintes: um acordo entre o declarante e o declaratário; uma divergência entre a declaração e a vontade das partes; ordenada para enganar terceiros (art.º 240.º do Código Civil). A autora começou, pois, por formular uma certa pretensão com fundamento em determinado acto jurídico; mas porque não estava segura de que essa pretensão fosse procedente e viesse a encontrar acolhimento por parte do tribunal, deduziu subsidiariamente outra pretensão mais sólida para ser considerada pelo tribunal no caso de não vingar a primeira (art.º 554.º, n.º 1, do CPC). A sentença da 1.ª instância desamparou ambos os pedidos; o acórdão que julgou o recurso de apelação que dela foi interposto, reiterou a improcedência do pedido principal, mas revogou a decisão de improcedência do pedido subsidiário – determinando o prosseguimento da instância para se instruir, discutir e julgar tal pedido – com fundamento na insuficiência da matéria de facto adquirida, no momento do proferimento do despacho saneador, para se decidir, conscienciosamente, tal pedido, segundo os vários enquadramentos jurídicos possíveis desse objecto da causa, maxime, segundo os vários entendimentos jurídicos plausíveis do conceito de interessado a quem é facultada a arguição da nulidade da partilha do património conjugal comum e, portanto, a quem é reconhecida legitimidade – substantiva1 – para pedir a declaração daquele valor jurídico negativo (art.º 286.º do Código Civil). O relator, por decisão que não foi objecto de reclamação, concluiu pela inadmissibilidade, por irrecorribilidade da decisão, do recurso interposto pelos recorridos do acórdão impugnado no segmento em que revogou a sentença da 1.ª instância e ordenou o prosseguimento da instância para se conhecer, a final, do pedido subsidiário deduzido pela autora. Aquela decisão passou em julgado (art.ºs 619.º n.º 1, 620.º, n.º 1, 621.º e 628.º do CPC). Ergo, actualmente, apenas há que conhecer da revista excepcional da autora, que tem por objecto esta questão concreta controversa: a de saber se o acórdão impugnado deve ser revogado e substituído por outro que, à semelhança do que a Relação decidiu no tocante ao pedido subsidiário, determine o prosseguimento da causa, para se proceder à sua instrução, discussão e julgamento e, finalmente, se conhecer do pedido principal: o de declaração da ineficácia, relativamente à recorrente, da escritura de partilha – rectius, do negócio jurídico modificativo de partilha do património conjugal comum, i.e., da divisão de um património colectivo, através da atribuição a cada um dos seus titulares de bens concretos em propriedade individual ou em compropriedade com valor proporcional ao da sua quota ou meação - que documenta. A resolução deste problema vincula, naturalmente, à ponderação dos requisitos da impugnação pauliana, do regime da condição e, finalmente, dos pressupostos da antecipação, logo para o despacho saneador, do conhecimento do mérito da causa. 3. Fundamentos. 3.1. Fundamentos de facto. Os factos materiais em que as instâncias assentaram são os seguintes: 1- A A. é uma sociedade comercial por quotas, que se dedica, designadamente, e com carácter lucrativo, às atividades comerciais de produção, comercialização e exportação de produtos regionais. 2- No exercício da sua atividade comercial, a A. foi contactada pela sociedade comercial P..., Lda., NIPC ...95, com sede no Largo ..., com vista a fornecer-lhe diversos bens e produtos, o que a A. efetivamente fez. 3- A R. é sócia desta P..., Lda., e, à data do mencionado fornecimento, era também a sua única gerente. 4- O Tribunal da Relação de Guimarães condenou a P..., Lda., a pagar à A. a quantia de € 39.200,36, a título de capital, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal para as transações comerciais, a contar da data de vencimento de cada uma das faturas em causa na mesma até efetivo e integral pagamento. 5- Como a P..., Lda., não pagou o sentenciado à A., esta instaurou ação executiva, que corre termos neste Tribunal Judicial, no Juízo de Execução de... sob o nº 1474/15.0... 6- A P..., Lda., decidiu instaurar PER, que correu termos sob o n.º 1512/15.7..., no Tribunal Judicial da Comarca de ...- Juízo Local Cível de ... - Juiz .... 7- No âmbito do qual, o crédito da A. também foi reconhecido, definitivamente, à data, no valor global de € 65.742,64. 8- Impondo a suspensão daqueles autos de execução, que se mantêm suspensos desde 17/03/2017. 9- A sociedade comercial P..., Lda., foi declarada insolvente em 16/03/2016, por sentença transitada em julgado, proferida no âmbito do processo n.º 1512/15.7... que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de ... - Juízo Local Cível de ... - Juiz .... 10- Uma vez que, o administrador judicial provisório nomeado no âmbito do PER, comunicou o encerramento da fase de negociações sem acordo entre esta e os credores e emitiu parecer no sentido da declaração de insolvência da P..., Lda. 11- A A., enquanto credora da sociedade comercial P..., Lda., reclamou o seu crédito no âmbito desse processo de insolvência, no valor global de € 67.774,35, à data. 12- Este crédito consta da lista definitiva de créditos reconhecidos, junta pelo Sr. Administrador da Insolvência, no âmbito do apenso de reclamação de créditos (processo n.º 1512/15.7...). 13- Por sentença de verificação e graduação de créditos, datada de 02/11/2016, já transitada em julgado, proferida no âmbito do apenso de reclamação de créditos, foi o crédito da autora considerado comum, tendo sido julgados verificados e graduados os créditos reconhecidos. 14- Foi também apresentado um plano de insolvência, que consagrava, para o crédito comum da Autora: 6 meses de carência de capital em dívida após o trânsito em julgado da homologação do plano; início de pagamento de capital 6 meses após trânsito em julgado da homologação do plano; e pagamento do capital em dívida em 48 prestações mensais, iguais e sucessivas. 15- Em 07/02/2018, foi determinado o encerramento dos autos de insolvência, com o trânsito em julgado da decisão de homologação do plano de insolvência. 16- Por sentença proferida no âmbito do Incidente de Qualificação da Insolvência (1512/15.7...), processo apenso ao de insolvência acima referido, datada de 03/07/2017, foi decidido, entre outros, qualificar a insolvência da sociedade comercial P..., Lda., como culposa, e declarar afetada pela qualificação da insolvência a R., e foi decidido, na alínea e), condenar a R. a indemnizar todos os credores da sociedade insolvente, que tivessem reclamado os seus créditos e até ao limite dos montantes reclamados, reconhecidos e graduados, e não satisfeitos pelo produto da massa insolvente. 17- Discordando desta sentença, a R. interpôs recurso, tendo sido proferido acórdão pelo Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 23/11/2017, já transitado em julgado, que decidiu julgar parcialmente procedente a apelação, “alterando-se as alíneas c) e d) da sentença, quanto ao período de inibição, que se fixa em 2 (dois) anos e mantendo-se as restantes alíneas, com a ressalva de que a condenação da alínea e) deve ser deferida para o momento em que for possível apurar em concreto o valor dos créditos não satisfeitos pelo produto da massa insolvente”. 18- Através de escritura pública outorgada no dia 25/07/2017, os R.R. procederam à partilha dos bens comuns pertencentes ao dissolvido casal. 3.2. Fundamentos de direito. 3.2.1. Requisitos da acção pauliana. De acordo com o princípio da responsabilidade patrimonial, o património do devedor é a garantia geral dos credores, pelo que, pelo cumprimento de uma obrigação respondem, em regra, todos os bens do devedor, susceptíveis de penhora (art.º 601.º do Código Civil). Num sistema assente no princípio da responsabilidade patrimonial, em que o património do devedor é a garantia geral dos seus débitos, assumem particular importância os instrumentos de conservação da garantia patrimonial, que impeçam o devedor, movido pelo escopo de frustrar a garantia geral dos seus credores, de distrair do seu património, em combinação com terceiros que partilhem também desse propósito, determinados bens. Um dos meios jurídicos específicos, finalisticamente ordenados à manutenção da integridade do património do devedor é justamente a acção pauliana que permite ao credor a impugnação de determinados actos do devedor que ponham em perigo a garantia geral dos seus débitos. São pressupostos deste instrumento de conservação da garantia patrimonial: um acto praticado pelo devedor que não seja de natureza pessoal; acto esse que provoque, para o credor, a impossibilidade de obter a satisfação integral do seu crédito ou o agravamento dessa impossibilidade; havendo má fé ou, simplesmente, um acto gratuito; desde que o crédito seja anterior ao acto, ou sendo posterior, quando o acto tenha sido efectuado dolosamente com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor (art.ºs 610.º a 612.º do Código Civil)2. Estes pressupostos levantam problemas desiguais, mas têm em comum a característica de todos eles – com excepção do relativo à perda da garantia patrimonial - deverem ser provados por quem pretenda actuar a pauliana (art.ºs 342.º, n.º 1, e 611.º do Código Civil). A acção pauliana tem por objectivo a manutenção da integridade do património do devedor, de modo que este desempenhe a sua função de garantia geral dos seus débitos. Dada essa finalidade, o requisito primeiro e evidente da impugnação pauliana é a existência de um crédito (art.º 610.º do Código Civil). Esse crédito tanto pode ter por objecto uma prestação de coisa como uma prestação de facto - e pode ter como fonte qualquer acto ou facto a que se associe a eficácia constitutiva de uma obrigação. A única exigência relevante é de que se trate de uma obrigação civil, uma vez que a pauliana, por razões que se compreendem por si, não é facultada aos credores de obrigações naturais3. Esse crédito bem pode ser ilíquido, mas há-de tratar-se de um crédito puro, no sentido de que não deve estar subordinado a uma condição suspensiva. Em tal caso, ao credor não é disponibilizada a pauliana – mas apenas o direito potestativo de exigir ao devedor, na pendência da condição, a prestação de uma caução idónea que assegure a satisfação do direito de crédito, se e quando a condição se verificar (art.º 614.º, n.º 2, do Código Civil). Como o crédito submetido a uma qualquer condição suspensiva se não tem por certo, entendeu-se não ser razoável conceder ao credor o direito de interferir com a liberdade de actuação do devedor sobre o seu património. Todavia, o perigo da perda definitiva da garantia patrimonial do crédito já justifica que possa exigir ao devedor a prestação de caução idónea, que assegure a satisfação do crédito condicional4. O crédito tanto pode ser anterior como posterior ao acto questionado (art.º 610.º, a), do Código Civil). No entanto, se o débito tiver sido contraído depois do acto objecto de impugnação, é necessário demonstrar que esse acto foi concretizado dolosamente, com o fim de impedir a satisfação do futuro credor (art.º 610.º, a), 2ª parte, do Código Civil). Para a impugnação do acto anterior ao crédito não é, portanto, suficiente, que se mostre que o acto tinha o fito de impedir a satisfação do direito de crédito do futuro credor, antes tem de provar-se que um tal acto foi iluminado por aquela finalidade dolosa, i.e., que o acto impugnado foi concluído com qualquer sugestão ou artifício, com a intenção de induzir ou manter em erro o credor, como sucederá, decerto, nos casos em que se faz crer ao credor que os bens ainda existem no património do devedor à data em que foi constituído o respectivo crédito (art.º 253.º, n.º 1, do Código Civil). Os actos anteriores ao crédito são, pois, impugnáveis. Mas só o são desde que se demonstre que, além de visarem impedir a satisfação do crédito, o acto foi praticado ardilosamente, com o propósito de fazer crer ao credor que os bens continuavam no património do devedor5. O acto impugnável, além de finalisticamente destinado a prejudicar o credor, deve provocar a diminuição da garantia patrimonial do crédito e, por essa via, a impossibilidade de satisfação desse crédito ou o agravamento dessa impossibilidade (art.º 610.º, b), do Código Civil). Portanto, a diminuição da garantia patrimonial, i.e., dos valores patrimoniais que respondem pela satisfação da dívida, tanto pode resultar da diminuição do activo – v.g. por alienação ou oneração de bens ou direitos - como do aumento do passivo – por constituição de novas obrigações. Requisito particularmente relevante da pauliana é a má fé, dado que a procedência da impugnação do acto oneroso do devedor depende da actuação de má fé, daquele e de terceiro, entendendo-se por má fé, neste contexto, a consciência do prejuízo que o acto causa ao credor (art.º 612.º, nºs 1 e 2, do Código Civil). A má fé, tanto do devedor como do terceiro, é apresentada, formalmente, por igual, e, portanto, não se trata apenas de uma fraude do devedor com conhecimento do terceiro: para que o acto seja impugnável através da acção pauliana, tanto o devedor como o terceiro devem ter atentado contra a boa fé. Note-se, porém, que é suficiente a concorrência, no devedor e no terceiro, da má fé não sendo necessária a verificação de um conluio ou concertação entre ambos6. A má fé consiste, neste domínio, na consciência do prejuízo que o acto causa ao credor (art.º 612.º, nº 2, do Código Civil). A má fé resolve-se, portanto, na consciência de que o acto cria, para o credor, a impossibilidade de obter a satisfação integral do seu crédito ou, ao menos, o agravamento dessa impossibilidade. A consciência do prejuízo – que deve existir no momento da prática do acto - é um processo psicológico, pertencente ao domínio da representação ou ideação, assumindo uma natureza intelectiva: o devedor e o terceiro devem ter a percepção, não apenas da situação patrimonial do primeiro e dos efeitos do acto que vão praticar, mas igualmente de que esse acto impossibilitará os credores do devedor de obter a satisfação dos seus créditos7. A consciência do prejuízo – também conhecido como eventus damni - é compatível com qualquer forma de dolo – directo, necessário e eventual - e mesmo com a negligência consciente, i.e., com actuação negligente, do devedor e do terceiro, que apesar de preverem aquele resultado, o não desejam. Discutível é se deve afirmar-se a má fé também nos casos de negligente inconsciente, i.e., também naqueles casos em que o devedor e o terceiro, não tendo previsto aquele resultado, não o quereriam se o tivessem conjecturado8. Importa, porém, reter este ponto: a má fé só é exigida no tocante aos actos onerosos: se o acto for gratuito, a impugnação procede, mesmo que o devedor e o terceiro tenham actuado de boa fé (art.º 612.º, nº 1, 2ª parte, do Código Civil). Esta solução explica-se por si: sendo o acto gratuito, há sempre prejuízo para o credor – e prejuízo injustificável, porque quem procura interesses deve ceder a quem procura evitar prejuízos. Este regime vincula, naturalmente, ao distinguo entre actos onerosos e actos gratuitos. O acto diz-se oneroso quando envolve para cada uma das partes uma atribuição patrimonial e um correlativo sacrifício patrimonial; é gratuito quando só para uma das partes há atribuição patrimonial e só para outra, sacrifício patrimonial. Dentro dos actos gratuitos avultam, como categoria primária, as liberalidades, i.e., os actos de que resulta intencionalmente para outrem um enriquecimento. O principal tipo de liberalidade, inter vivos, é, naturalmente, a doação (artº 940 e ss. do Código Civil)9. A acção pauliana actua repressivamente visando destruir a diminuição da garantia patrimonial já ocorrida, de modo a reconstituir a garantia patrimonial de um crédito. O acto impugnado com a pauliana é, em si, inteiramente válido. O devedor, por maior que seja o seu passivo, não perde a disponibilidade dos seus bens. A única coisa que lhe não é lícita é, com má fé, ou se for esse o caso, com dolo, prejudicar os seus credores. Isto explica que o acto impugnado, mesmo no caso de procedência da impugnação, se mantém válido e produz todos os seus efeitos. A procedência da impugnação apenas implica esta consequência particular: a de os bens ou direitos transmitidos responderem – ou, mais exactamente, continuarem a responder - pelas dívidas do alienante. É por esta razão que se fala em ineficácia em relação ao credor, ineficácia que se traduz a natureza meramente relativa ou creditícia do direito à restituição (art.º 616.º, nº 1, do Código Civil)10. Esta consequência tem ao nível do registo predial este reflexo: a acção pauliana e a sentença que a julgue procedente devem ser registadas, mas esse registo não prejudica em nada os registos das transmissões anteriores e, designadamente, da transmissão impugnada: tais registos permanecem válidos e eficazes 11. O autor da pauliana está adstrito à demonstração da existência do crédito e do seu valor. Mas a pauliana não é uma acção de cumprimento, dado que não visa exigir judicialmente o cumprimento – mas um simples instrumento de conservação da garantia patrimonial do crédito (art.º 817.º do Código Civil). Neste sentido, e no tocante ao crédito cuja garantia patrimonial se visa preservar, a acção pauliana é uma acção de simples apreciação positiva: a sentença que a julgue procedente limita-se declarar a existência do crédito e o seu valor (art.º 10.º, n.º 2, a), do CPC). Julgada procedente a pauliana, a exigência do cumprimento e a realização coactiva da prestação ocorrerão em momento e em procedimento ulteriores e à custa do bem ou direito transmitido. Como já se notou, é o credor que se encontra onerado com o ónus da prova, designadamente, do crédito cuja garantia patrimonial visa preservar ou reconstituir com a pauliana e da sua não subordinação a uma condição suspensiva (art.º 342.º, n.º 1, do Código Civil). O não cumprimento desse ónus da prova comporta uma vantagem relevante para o devedor e para o terceiro, uma vez que impõe ao tribunal que decida contra quem aquele ónus onera (art.ºs 414.º do CPC, e 346.º, 2.ª parte, do Código Civil). 3.2.2. Regime da condição. O Código Civil dá esta noção de condição: cláusula contratual típica que vem subordinar a eficácia de uma declaração de vontade a um evento futuro e incerto (art.º 270.º.). Construído para os actos negociais, o regime da condição é, todavia, aplicável a actos não negociais e, portanto, também a actos do tribunal, maxime, a actos decisórios (art.º 295.º do Código Civil). Depois de dar aquela noção, o mesmo Código procede a um distinguo entre a condição suspensiva e a condição resolutiva. A condição diz-se suspensiva quando o negócio só produza efeitos após a verificação do evento; a condição é resolutiva sempre que o negócio deixe de produzir efeitos após a eventual verificação do evento em causa (art..º 270.º). Além desta classificação legal, a condição é susceptível de uma multiplicidade de classificações de origem puramente doutrinal12. Por relevar para a economia do recurso, destaca-se a ordenação das condições que as separa entre as condições casuais e potestativas, condições de momento certo e de momento incerto, e condições automáticas e condições exercitáveis. Assim, a condição pode ser casual ou potestativa, conforme o evento de que dependam se traduza num facto alheio aos participantes ou, pelo contrário, emirja da vontade de um deles, caso em que este último recebe o direito potestativo de deter ou desencadear a eficácia do negócio. A condição casual pode depender dum facto natural, dum acto de terceiro ou dum acto social ou administrativo. A condição pode ser de momento certo ou de momento incerto, conforme ocorra numa ocasião prefixada, ainda que incerta ou numa ocasião indeterminada. As condições podem ser automáticas ou exercitáveis, de harmonia com a desnecessidade ou a necessidade, para a sua eficácia, de qualquer manifestação de vontade. A condição seja ela suspensiva ou resolutiva, releva, inteiramente, da autonomia privada das partes e, como tal, deve ser respeitada, mais o devendo ser, necessariamente, quanto ela foi disposta por decisão judicial transitada em julgado (art.º 270.º, 405.º e 406.º n.º 1 do Código Civil). A pendência da condição cessa com a verificação ou não verificação; a certeza de que a condição se não verificará equivale à não verificação (art.º 275.º do Código Civil). Verificada a condição os seus efeitos retrotraem-se, em princípio, à data da conclusão do negócio a que foi aposta. Portanto, sendo resolutiva, aquele negócio tem-se como não celebrado (art.ºs 276.º e 277.º, do Código Civil). Os efeitos da verificação ou do preenchimento da condição vêm claramente marcados na lei: a produção dos efeitos do acto, tratando-se de condição suspensiva; a cessação desses mesmos efeitos, se a condição for resolutiva. A regra é a de que esse desencadeamento, ou essa cessação seja retroactiva (seja resolução e não dissolução); mas a isso pode opor-se a natureza do negócio ou a vontade das partes (art.º 276.º do Código Civil). Para o problema, sempre sensível, do ónus da prova da verificação da condição, a lei disponibiliza uma previsão específica: esse ónus recaiu sobre o autor, se o direito que invoca estiver sujeito a condição suspensiva, ou sobre o réu, se essa condição for resolutiva (art.º 343.º, n.º 3, do Código Civil). 3.2.3. Pressupostos da antecipação para o despacho saneador da apreciação do mérito da causa. O despacho saneador tem, entre outras, por função, apreciar tanto os aspectos jurídico-processuais da acção como o mérito desta (art.º 595.º, n.º 1, do CPC). No contexto das funções atribuídas ao despacho saneador, a apreciação daqueles aspectos constitui a sua finalidade primária e o seu conteúdo essencial, enquanto o conhecimento do mérito é uma finalidade meramente eventual. O despacho saneador destina-se, antes de mais, a verificar a admissibilidade da apreciação do mérito e a regularidade do processo (art.º 595.º, n.º 1, a) do CPC). De resto, é de toda a vantagem em que o controlo dessa admissibilidade não seja relegada para uma fase adiantada da acção e é ela que justifica a atribuição daquela função de saneamento a tal despacho. No plano das funções atribuídas ao despacho saneador, a apreciação daqueles aspectos constitui o seu conteúdo essencial, enquanto o conhecimento do mérito é uma finalidade eventual: o despacho saneador visa fundamentalmente evitar a que se atinja a fase da sentença sem qualquer controlo sobre a admissibilidade da apreciação do mérito da causa e que, por isso, se possa frustrar a função essencial dessa sentença. Na verdade, a apreciação do mérito da acção e o proferimento da decisão sobre a sua procedência ou improcedência é realizada, em regra, na sentença final (art.º 607.º do CPC). Mas em certas condições, essa apreciação pode ser antecipada para o despacho saneador: o tribunal pode conhecer do mérito da acção nesse despacho sempre que o estado do processo permita, sem necessidade de mais provas, a apreciação do pedido, de algum dos pedidos cumulados, do pedido reconvencional ou ainda da procedência de alguma excepção peremptória (art.º 595.º, n.º 1, b), do CPC). Caso isso suceda, o despacho saneador fica tendo, para todos os efeitos, o valor de sentença e dele cabe, naturalmente, recurso de apelação (art.º 595.º. n.º 3, 2ª parte, e 644.º, n.º 1, do CPC). Portanto, o conhecimento imediato do mérito só se realiza – mas deve realizar-se - no despacho saneador se o processo possibilitar esse conhecimento; caso contrário, i.e., se os elementos fornecidos pelo processo não justificarem essa antecipação, o processo deve prosseguir para a fase da instrução, realizando-se a apreciação do mérito na sentença final. É curial que a decisão jurisdicional seja pronta; mas é igualmente conveniente que seja justa. Em nítida obediência aos princípios da celeridade e da economia processuais, a lei quer que o mérito da causa seja arrumado logo no saneador. Mas não sacrificou a esses princípios outras exigências também axiologicamente relevantes. O mérito da causa será julgado no despacho saneador se a questão puder ser decidida nesse momento, i.e., se o processo o permitir, sem necessidade de mais provas (art.º 595.º, n.º 1, b), do CPC). Quando isso ocorre, não há necessidade que o processo atravesse a fase complicada, morosa, pesada e dispendiosa da instrução e da audiência discussão e julgamento. A esta luz, o conhecimento do mérito da acção, logo naquele despacho, não é desconforme nem com o acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva nem com o direito ao processo equitativo. Às partes é constitucionalmente garantido que o direito de atuar em juízo deve efectivar-se através de um processo equitativo, entendido como um processo justo, logo na sua conformação legislativa, mas também como um processo materialmente informado pelos princípios materiais de justiça nos vários momentos processuais (art.º 20.º. n.º 4, in fine, da Constituição da República Portuguesa). Simplesmente, o princípio da equitatividade, não impede uma conformação do processo que autorize o proferimento de uma decisão de mérito, em momento processual anterior ao da sentença final, logo que se se mostrem reunidos os pressupostos de facto e de direito que permitam uma decisão conscienciosa sobre esse mesmo mérito. Inversamente, só a admissibilidade desse conhecimento antecipado é harmonizável com uma outra dimensão do processo equitativo: o direito à obtenção de uma decisão, conforme com o Direito, em prazo razoável, i.e., a uma decisão judicial sem dilações indevidas (art.º 20.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa). Para que há-de prosseguir o processo, se não há factos sobre os quais possa incidir a prova ou se há já factos que devam considerar-se assentes que excluem, de harmonia com a lei substantiva aplicável, uma decisão de procedência ou que a impõem? Não é razoável que, em nome do direito à prova, i.e., à apresentação de provas destinadas a provar os factos alegados em juízo, como dimensão ineliminável do direito ao processo justo ou equitativo, se prossiga num processo para demonstrar factos que, mesmo a provarem-se, não garantem à parte a procedência do direito que pela acção pretende fazer valer e declarar ou de uma qualquer excepção oposta pelo demandado a esse direito. Mas isto só é assim, evidentemente, no caso de a apreciação do mérito da acção não demandar a produção de mais provas e, portanto, poder, com inteira justificação, ser antecipada para o despacho saneador. Este viaticum habilita, com suficiência, à resolução da questão concreta controversa objecto da revista. 3.2.4. Concretização. A sentença que qualifique a insolvência como culposa tem, injuntivamente, i.e., ainda que isso não tenha sido pedido, que condenar as pessoas afectadas a indemnizar os credores do devedor insolvente no montante dos créditos não satisfeitos, até às forças dos respectivos patrimónios, sendo solidária tal responsabilidade entre todos os afectados (art.º 189.º, n.º 2, e), do CIRE, na redacção anterior à que lhe foi impressa pela Lei n.º 9/2022, de 11 de Janeiro). Abstraindo da controvérsia sobre os critérios de determinação do valor ou quantum desta indemnização, por não relevar para a economia do recurso, parece seguro que o dever de indemnizar assenta numa responsabilidade insolvencial autónoma, de natureza simultaneamente reparadora, preventiva e repressiva do sujeito ou sujeitos que estiveram na origem de uma insolvência culposa13. Efectivamente, a responsabilização do afectado ou afectados pela qualificação da insolvência, traduz-se fundamentalmente, em consequências jurídicas de natureza bifronte: por um lado, medidas de natureza preventiva ou cautelar, destinadas a proteger essencialmente os interesses gerais da segurança do tráfico jurídico e económico, mediante o saneamento de agentes comprovadamente indesejáveis; por outro, medidas de natureza repressiva ou sancionatória, destinadas a proteger os interesses dos credores insolvenciais, mediante a responsabilização patrimonial dos sujeitos que criaram ou contribuíram para a situação de insolvência – maxime o dever de indemnização daqueles credores (art.º 189.º. n.º 2, b) a d), 3 e 4, do CIRE). Ao dever de indemnizar imposto ao afectado pela qualificação como culposa da insolvência, derivado ou assente na responsabilidade insolvencial autónoma apontada deve, assim, assinalar-se, além, evidentemente, de uma finalidade ressarcitória, uma função punitiva, sancionatória ou aversiva14. Todavia, seja qual for a exacta função desta responsabilidade – indemnizatória ou punitiva ou sancionatória, ou mista – é seguro que dela emerge uma obrigação de indemnização que é ilimitada, solidária e subsidiária. É ilimitada numa tripla dimensão: porque compreende tanto os créditos sobre a massa15, como os créditos sobre a insolvência que tenham sido objecto de reconhecimento; porque abrange os créditos, constituídos ou vencidos antes do período temporal de três anos que precedeu o início do processo de insolvência e porque pela satisfação do passivo descoberto responde, como, aliás, já resultava das regras gerais, todo o património do afectado (art.º 601.º do Código Civil); é subsidiária dado que só há lugar ao dever de indemnizar, se o activo do devedor insolvente for insuficiente, constituindo desse modo uma responsabilidade de segunda linha16, pelo que a obrigação de indemnizar só se constitui verdadeiramente após a prévia excussão do património do responsável principal: o devedor insolvente. Por força do seu carácter subsidiário, no sentido de que só se constitui ou só é accionada quando se demonstrar inequivocamente que a massa insolvente é insuficiente para a satisfação, no todo em parte, de todos os credores, o dever de os indemnizar imposto ao afectado, fica sujeito a uma verdadeira condição suspensiva17. Enquanto o processo de insolvência estiver em curso, o pagamento da indemnização deve, claro, ser feito ao administrador da insolvência, passando o seu valor a integrar a massa insolvente, com a finalidade última de ser distribuída pelos credores, repartição que, segundo o entendimento que se tem por preferível, não tem que atender à graduação dos créditos, solução que é hoje clara face à redacção actual da alínea e), do n.º 2 do art.º 189.º do CIRE, em que o critério para o cálculo da indemnização deixou de ser o montante dos créditos não satisfeitos. No caso do recurso, o crédito cuja garantia patrimonial a recorrente visa preservar com a impugnação pauliana é o que - no contexto da qualificação insolvência da devedora, P..., Lda., e da afectação da recorrida, AA, por essa qualificação - resulta da condenação desta contida, por último, no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, a indemnizar todos os credores da sociedade insolvente, que tivessem reclamado os seus créditos e até ao limite dos montantes reclamados, reconhecidos e graduados, e não satisfeitos pelo produto da massa insolvente, deferida – rectius, diferida - para o momento em que for possível apurar em concreto o valor dos créditos não satisfeitos pelo produto da massa insolvente – e não o crédito que à recorrente foi reconhecido, no processo de insolvência, no tocante à devedora insolvente, P..., Lda. Para recusar à recorrente o acesso à pauliana, as instâncias são acordes na afirmação de que o crédito invocado pela recorrente não tem existência actual – sendo meramente futuro, hipotéctico e eventual. Realmente, o acórdão impugnado – reiterando a orientação contida no acórdão da mesma Relação, proferido no dia 18 de Junho de 2020, no processo 464/19.9T8VRL.G118, que teve por objecto providência cautelar de arresto promovido pela recorrente, de que reproduziu largo traço da respectiva fundamentação – foi terminante na declaração de que a indemnização que se reconheceu à recorrente sobre a recorrida, AA, foi sujeito a duas condições futuras, ambas com natureza suspensiva, a saber: 1.ª – a liquidação da massa insolvente; e 2.ª – a insuficiência do produto decorrente da liquidação da massa insolvente para satisfazer o crédito da recorrente sobre a sociedade devedora (P..., Lda.). Condições a que se subordinou a constituição do direito indemnizatório reconhecido à recorrente sobre a recorrida AA nunca mais se poderão vir a verificar – acrescenta o acórdão impugnado – dado que homologado o plano de insolvência e encerrado o processo de insolvência, por decisões transitadas em julgado, sem que tivesse sido liquidada a massa insolvente, esta jamais poderá ser liquidada no âmbito daquele processo de insolvência. Ainda segundo o acórdão recorrido, a recorrente deveria ter lançado mão do mecanismo previsto no art.º 218.º do CIRE, interpelando a insolvente por escrito para que cumprisse as prestações insatisfeitas, acrescidos de juros de mora, no prazo de 15 dias a contar dessa interpelação escrita, repristinando os créditos originais sobre a apelada sobre a devedora (P..., Lda.) e de lhe ficar conferido o direito potestativo de instaurar novo processo de insolvência contra a última. Uma leitura ainda que pouco detida da alegação da recorrente inculca que, no fundo, não recusa a conclusão de que o crédito para cuja tutela promoveu a pauliana tenha sido subordinado à condição ou condições indicadas pelo acórdão impugnado, antes sustenta que aquela condição ou condições já se mostravam verificadas no momento da propositura da acção, dado que, segundo alega, a insolvente não tem património, não possui património que lhe permita fazer face ao passivo, e nenhum dos créditos graduados no processo de insolvência obteve qualquer pagamento, nem o irá obter pelo produto da massa insolvente, que não existirá, não havendo produto de qualquer liquidação do património da insolvente para ser repartido pelos credores. Descontando a circunstância de, na lógica argumentativa do acórdão contestado, o que não é actual é o direito de crédito alegado pela recorrente e não a condição ou condições a que foi subordinado, afinal o problema não radica tanto no carácter condicional daquele crédito – mas na sede processual adequada para proceder à verificação ou não verificação da condição ou condições a que foi subordinado, sede que, segundo o acórdão impugnado é uma só: o processo de insolvência. Simplesmente como tal processo foi encerrado, na sequência da aprovação de um plano de insolvência, por decisão passada em julgado e, consequentemente, não haverá, nesse processo, lugar à liquidação da massa insolvente, caso exista, é certo que a condição ou condições se não verificarão e, como essa certeza de equivale a não verificação, o crédito invocado pela recorrente jamais chegará a ter existência actual. Aceitando-se, ad argumentum, isto como exacto, tem-se por certo que a exigência da prévia interpelação da devedora insolvente para que cumpra o plano em nada concorre para a verificação da condição ou condições a que se subordinou o crédito da recorrente sobre a recorrida, dado que mesmo nesta hipótese nunca haverá lugar à liquidação da massa insolvente no processo de insolvência em que se procedeu a sua qualificação como culposa e se afectou a recorrida, nada mais restando – segundo o acórdão impugnado - que instaurar contra a devedora insolvente novo processo de insolvência, no qual, supõe-se, se procederia, enfim, à verificação ou não verificação da condição ou condições a que crédito invocado pela recorrente contra a recorrida foi subordinado. Abstraindo da circunstância de um tal resultado se mostrar indiferente à ponderação dos aspectos sinépicos da decisão judicial, i.e., das consequências dessa mesma decisão19, julga-se que há boas razões para o ter por inaceitável e, nessa medida, por incorrecto. Em primeiro lugar, deve entender-se que o crédito invocado pela recorrente no tocante à recorrida para fundamentar o recurso à impugnação pauliana está, na essência – aliás, de harmonia com o carácter subsidiário da responsabilidade da última – subordinado a uma única condição: a da insatisfação, no todo ou em parte, do crédito, da mesma recorrente, relativamente à devedora insolvente, à custa do património desta. Em segundo lugar, na impossibilidade de proceder à demonstração da verificação daquela condição no processo de insolvência em consequência do seu encerramento, por virtude da aprovação de um plano de insolvência, por decisão passada em julgado e da exclusão, também definitiva, da liquidação, no processo de insolvência, da massa insolvente, o credor da afectada pela qualificação como culposa da insolvência, deve ser admitido a demonstrar e a convencer aquela afectada da verificação daquela condição num qualquer outro processo, a tanto adequado. De resto, o acórdão da Relação de Guimarães, datado de 23 de Novembro de 2013, que, por último, estatuiu sobre o dever de indemnização a que a recorrida se mostra indubitavelmente vinculada, limitou-se a deferi-la – scilicet - a diferi-la - para o momento em que for possível apurar em concreto o valor dos créditos não satisfeitos pelo produto da massa insolvente, em lado nenhum impondo que esse apuramento tenha, irremissivelmente, que ocorrer no contexto – e só no contexto – do processo de insolvência. A decisão que declarou a recorrida afectada pela qualificação da insolvência e a condenou no dever de indemnizar a autora recorrente, é uma sentença condenatória e, portanto, é indiscutível que constitui um título executivo (art.º 703.º, n.º 1, a), do CPC). A condenação contida naquela decisão implica um comando de cumprimento de uma prestação que, quando desobedecido, atribui ao credor um direito de execução (art.º 817.º do Código Civil). Encerrado o processo de insolvência – e consequentemente, face à cessação das funções do administrador da insolvência e à impossibilidade de afectar a indemnização ou indemnizações a um património – autónomo – especialmente vocacionado para concentrar os interesses dos credores, qualquer destes credores, individualmente considerados, (re)adquire legitimidade processual e, em especial, o poder de executar o património dos responsáveis afectados. Os credores, sujeitos activos do crédito indemnizatório relativamente ao afectado, podem, pois, promover, para obter a sua satisfação coactiva, acções executivas – singulares ou individuais - contra o respectivo devedor20. Tratando-se, porém, de uma obrigação condicional, só é exigível – e, portanto, intrinsecamente exequível – depois de prova da verificação da condição (art.ºs 270.º do Código Civil e 715.º, n.º 1, do CPC). Nesta hipótese, incumbe ao credor exequente alegar no requerimento executivo a verificação da condição suspensiva, recaindo também sobre ele o ónus da prova dessa verificação (art.ºs 343.º, n.º 1, do Código Civil, e 715.º do CPC). A prova pode ser realizada através de documentos ou de qualquer outro meio de prova (art.º 715.º, n.º 2, do CPC). Isto confirma concludentemente a correcção do argumento de que – ao contrário do que sustenta o acórdão recorrido - ao credor da indemnização, sujeita a condição suspensiva, imposta ao afectado pela qualificação como culposa da insolvência é lícito fazer a prova da verificação daquela condição em processo diverso do processo de insolvência. Aliás, nos casos em que o processo de insolvência se mostre definitivamente encerrado, aquela prova terá, irrecusável e necessariamente, de ser produzida em processo diferenciado, sob pena de a condenação contida na sentença de afectação ser puramente inane, tanto do ponto de vista da satisfação do direito do credor lesado, como da perspectiva da sua feição punitiva ou repressiva. Entendimento contrário equivaleria a recusar ao credor um direito de que indiscutivelmente titula: o direito de acção, que é um direito ius persequendi e resulta da correspondência entre o ius e a actio, tal como se encontra legalmente estabelecido, tanto na lei de processo como na lei substantiva, e mesmo do direito à acção, que compreende, entre outros, o direito a uma tutela jurisdicional efectiva, concretizado, nomeadamente, no direito de executar as decisões dos tribunais e no direito a obter as providências necessárias para conservar a garantia patrimonial do seu direito de crédito (art.ºs 2.º, n.º 2, do CPC, 610.º e 817.º do Código Civil). Ponto tanto mais relevante quanto é certo que o direito à impugnação está submetido ao prazo de caducidade de 5 anos, contados da data do acto impugnável – e não do respectivo registo, quando este seja devido – excepção peremptória que, de resto, apesar de alegada, as instâncias não apreciaram (art.º 618.º do Código Civil). Portanto, à recorrente assiste o direito de actuar a pauliana e de impugnar os actos da recorrida que põem em perigo a garantia geral do crédito de indemnização e não, simplesmente, o de exigir da última a prestação de caução idónea. Isto, evidentemente, caso se deva concluir – como alega a recorrente – que já se verificou a condição a que a sentença condenatória da recorrida subordinou aquele seu crédito. A decisão de improcedência da apelação, contida no acórdão impugnado é, pois, incorrecta. Cumpre, por isso, para dar à recorrente a satisfação que pede no recurso, revogá-la, e considerada a clara necessidade de submeter os factos alegados pela recorrente, maxime os relativos á invocada verificação da condição suspensiva a que o seu crédito sobre a recorrida foi subordinado, ao exercício da prova, dado o seu carácter controvertido, determinar o prosseguimento da instância de maneira que o conhecimento do pedido principal formulado pela autora ocorra na sua sede normal: a sentença final. Dito doutro modo: a apreciação do mérito daquela pretensão exige, segundo o enquadramento jurídicos que se julga correcto, a produção de mais provas e, portanto, não podia, com inteira justificação, ser antecipada para o despacho saneador. Expostos todos os argumentos, conclui-se em síntese apertada: - O autor da pauliana está adstrito à demonstração da existência do crédito e do seu valor; - No caso de o crédito invocado se mostrar subordinado a uma condição suspensiva, ao credor não é lícito recorrer à pauliana, tendo apenas o direito potestativo de exigir ao devedor, na pendência da condição, a prestação de uma caução idónea que assegure a satisfação do direito de crédito, se e quando a condição se verificar; - A afectação pela qualificação da insolvência como culposa dá lugar a uma responsabilidade insolvencial autónoma, caracterizada por ser ilimitada, solidária e subsidiária, de natureza simultaneamente preventiva e repressiva, dos sujeitos que estiveram na origem da insolvência culposa; - O dever de indemnizar os credores da insolvente judicialmente imposto aos afectados – a que deve assinalar-se, além de uma finalidade indemnizatória, uma função punitiva ou sancionatória – fica subordinado a uma condição suspensiva: a insatisfação, à custa da massa insolvente, do crédito do sujeito activo da indemnização sobre o devedor insolvente; - Se o processo de insolvência tiver sido encerrado na sequência da aprovação de um plano de insolvência, caso em que não se procederá à liquidação, nesse mesmo processo, da eventual massa insolvente, nem, consequentemente, à satisfação dos créditos sobre a insolvência, ao credor do direito de indemnização sobre os afectados, é lícito proceder à demonstração verificação da condição suspensiva aposta àquele direito de indemnização pela decisão condenatória correspondente, em qualquer outro procedimento a tanto adequado; - O conhecimento imediato do mérito da causa só se realiza no despacho saneador se o processo possibilitar esse conhecimento; caso contrário, i.e., se os elementos fornecidos pelo processo não justificarem essa antecipação, o processo deve prosseguir para a fase da instrução, realizando-se a apreciação daquele mérito na sentença final. Os recorridos sucumbem no recurso. Essa sucumbência torna-os objectivamente responsáveis pela satisfação das respectivas custas (art.º 527.º, n.º 1, do CPC). 4. Decisão. Pelos fundamentos expostos, concede-se a revista, revoga-se o acórdão nela impugnado e determina-se o prosseguimento da instância para apreciação do pedido principal formulado pela autora, Prazeres da Terra – Produção, Comércio e Exportação de Produtos Regionais, Lda. Custas da revista pelos recorridos. 2024.10.14 Henrique Antunes (Relator) Jorge Leal Jorge Arcanjo
A retórica argumentativa do acórdão de que decorre o naufrágio do recurso, pode resumir-se nestas proposições: - Em nítida obediência aos princípios da celeridade e da economia processuais, o mérito da causa deve ser arrumado logo no saneador, desde que a questão possa, com segurança, ser decidida nesse momento, i.e., se o processo o permitir, sem necessidade de mais provas. - Quando isso ocorre, não há necessidade que o processo atravesse a fase complicada, morosa, pesada e dispendiosa da instrução e da audiência discussão e julgamento e aquele conhecimento, logo naquele despacho, não é desconforme nem com o acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva nem com o direito ao processo equitativo. _____________________________________________ 1. Que, de modo deliberadamente simplificador, pode ser entendida com a posição jurídica de um sujeito face a uma determinada posição jurídica concreta, ou como a susceptibilidade ou insusceptibilidade de certa pessoa exercer um direito ou uma obrigação, resultante, não das qualidades ou situação jurídica da pessoa, mas das relações entre ela e o direito ou obrigação em causa. Cfr., v.g., José de Oliveira Ascensão, Teoria Geral do Direito Civil – Acções e Factos Jurídicos, Vol. III, pág. 54, Pedro Pais Leitão de Vasconcelos, A Autorização, Coimbra Editora, 2012, pág. 73 e 382, António Menezes Cordeiro, da Legitimidade e da Legitimação no Direito Civil, in Liber Amicorum Fausto Quadros, Coimbra, 2016, pág. e João de Castro Mendes, Teoria Geral do Direito Civil, Vol. III, págs. 76. Por todos, cfr. Joana Lopes Pereira, Legitimidade Civil – Uma Abordagem Actualista, Junho de 2018, disponível em repostório.ul.pt.↩︎ 2. António Menezes Cordeiro, Direito das Obrigações, 2º vol., AAFDL, Lisboa, 1980, págs. 488 a 492.↩︎ 3. Maria do Patrocínio Baltazar Paz Ferreira, Impugnação Pauliana, Aspectos Gerais do seu Regime, Lisboa, 1987, pág. 40.↩︎ 4. Vaz Serra, Responsabilidade patrimonial, BMJ n.º 75, pág. 211.↩︎ 5. António Menezes Cordeiro, ROA, Ano 51, 1991, vol. II, pág. 558, Maria Paz Ferreira, Impugnação Pauliana, cit., pág. 38 e Acs. do STJ de 25.05.1990, www.dgsi.pt e 15.02.2000, CJ, STJ, VIII, I, pág. 91.↩︎ 6. Almeida Costa, RLJ Ano 127, pág. 277, e Acs. do STJ de 26.05.1994, 18.05.1999 e 07.11.2000, CJ, STJ, II, II, pág. 114, BMJ n.º 487, pág. 287, CJ, STJ, VIII, III, pág. 102, respectivamente, e da RP de 01.09.1997, CJ, XXII, III, pág. 188.↩︎ 7. João Cura Mariano, Impugnação Pauliana, Almedina, Coimbra, 2004, pág. 191.↩︎ 8. Em sentido negativo, João Cura Mariano, Impugnação Pauliana, cit., pág. 196 e Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, vol. II, Almedina, Coimbra, 2002, pág. 299, Almeida Costa, RLJ Ano 127, pág. 274. É essa também a orientação recente do Supremo: cfr. Acs. de 29.09.09, 26.02.09, 12.03.09 e 18.06.09, www.dgsi.pt.↩︎ 9. Mota Pinto, “Onerosidade e gratuitidade das garantias de dívidas de terceiro na doutrina da falência e da impugnação pauliana”, RDES, Ano XXV, nº 3-4, págs. 236 e 237 e Castro Mendes, Teoria Geral do Direito Civil, Vol. II, Lisboa, AAFDL, 1995, págs. 481 e 482.↩︎ 10. Romeu Martins Ribeiro Filho, Impugnação pauliana como meio de conservação da garantia patrimonial, Garantia das Obrigações, Almedina, Coimbra, 2007, págs. 483 e 484.↩︎ 11. Ac. do STJ de 26.92.98, CJ, STJ, I, pág. 100.↩︎ 12. António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo I, 2ª edição, Almedina, Coimbra, 2000, pág. 511, e Castro Mendes, Teoria Geral do Direito Civil, vol. II, AAFDL, Lisboa, 1995, págs. 327 a 334, e da Condição, BMJ n.º 263, págs. 37 a 60.↩︎ 13. Esta responsabilidade visa ressarcir os credores do dano decorrente da insatisfação, no processo de insolvência dos respectivos créditos, sancionar ou reprimir os condutas daqueles que, com uma culpa qualificada, contribuíram para a constituição ou para o agravamento do estado de insolvência e, prevenir, geral e especialmente, condutas semelhantes: Maria do Rosário Epifânio, A responsabilidade dos Administradores de Sociedade Comerciais pela qualificação de insolvência, in Colóquios STJ – Comércio e Insolvências, CEJ, 2.ª edição, págs. 63 e 64, Henrique Sousa Antunes, Natureza e Funções da Responsabilidade Civil por insolência Culpa, in V Congresso de Direito da Insolvência, Almedina, Coimbra, 2019, pág. 147 e José Manuel Branco, Responsabilidade Patrimonial e Insolvência Culposa, Almedina, Coimbra, 2015, pág. 45.↩︎ 14. Acs. do STJ de 05.04.2022 (1247/13) e de 22.06.2021 (439/15).↩︎ 15. Diferentemente, Alexandre Soveral Martins, Um Curso de Direito da Insolvência, Almedina, 2015, pág. 388.↩︎ 16. Partindo do pressuposto de que a responsabilidade prevista no art.º 189.º, n.º 2, al. e), do CIRE constitui uma sanção por comportamentos dolosos ou com culpa grave dos administradores, correspondendo, nesse sentido, à previsão do art.º 818.º do Código Civil (execução de bens de terceiro), na parte em que se refere aos actos com prejuízo para o credor, sustenta-se que essa responsabilidade funciona como uma fiança legal: Adelaide Menezes Leitão, Insolvência Culposa e Responsabilidade dos Administradores na Lei n.º 16/2012, de 20 de Abril, in I Congresso de Direito da Insolvência, Almedina, Coimbra, 2013, págs. 279 e 280.↩︎ 17. Maria do Rosário Epifânio, Manual de Direito da Insolvência, 2014, 4.ª edição, pág. 141.↩︎ 18. Disponível em www.dgsi.pt. Acórdão que, por sua vez, repete a orientação contida no Ac. da Relação de Coimbra de 22.10.2019 (743/18), segundo a qual, os créditos a que alude o al. e) do n.º 2 do art.º 189.º do CIRE são créditos futuros e como tal não admitem arresto para a respectiva garantia.↩︎ 19. António Menezes Cordeiro, Introdução à edição portuguesa do Livro de Claus-Wilhelm Canaris, Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito, 3.ª edição, Fundação Calouste Gulbenkian, págs. CIX e CX.↩︎ 20. Catarina Serra, O incidente de qualificação da insolvência depois da Lei n.º 9/2022 – Algumas observações ao regime com ilustrações de jurisprudência, in Julgar, n.º 48, 2022, págs. 36 e 37.↩︎ |