Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
127/19.5YUSTR.L1-M.S1-A
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: LEONOR FURTADO (RELATORA DE TURNO)
Descritores: ESCUSA
JUIZ CONSELHEIRO
ADVOGADO
IMPARCIALIDADE
SUSPEIÇÃO
INDEFERIMENTO
Data do Acordão: 04/06/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: ESCUSA
Decisão: IMPROCEDÊNCIA / NÃO DECRETAMENTO
Sumário :
I - O pedido de escusa ou de recusa de juiz assenta na apreciação do risco de que, em determinado processo, a sua intervenção possa ser considerada suspeita, por haver motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.
II - Objectivamente, o facto de um Juiz possuir um conhecimento e relação cordial com um Ilustre Advogado e de ter conhecido familiares seus ou a actual amplificação no espaço público do escrutínio de quem atua em qualquer órgão de soberania ou a circunstância do juiz e representante de um sujeito processual estarem ligados por uma fraterna amizade, não se mostra suficiente para evidenciar que, qualquer intervenção do juiz em processo em que pontue o visado representante de um sujeito processual, seja susceptível de criar dúvidas sérias sobre a posição de inteira equidistância do juiz.
III - Relevante para que se considere a suspeição, é, antes do mais, a natureza e a extensão do comprometimento do Juiz no processo em causa, como juiz natural, que justifique o cuidado e escrúpulo que agora se tem, para evitar que sobre a sua decisão recaia qualquer dúvida, porquanto, não está em causa uma amizade com um sujeito processual, mas com alguém que intervém no processo a título profissional.
Decisão Texto Integral:


PEDIDO DE ESCUSA

JUIZ CONSELHEIRO

Processo n.º 127/19.5YUSNT.L1-M.S1-A

Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça:
I – RELATÓRIO
1. O Senhor Juiz Conselheiro AA, exercendo funções na ... Secção Criminal, deste Supremo Tribunal de Justiça (STJ), ao abrigo do disposto nos art.ºs 43.º e 45.º. n.º 1, al. b), do Código de Processo Penal (CPP), formulou pedido de escusa de intervir no processo n.º 127/19.5YUSTR.L1-M.S1, do qual é relator, referindo que, considerando as circunstâncias factuais descritas nos pontos II, VI, VI (repetida a numeração), e VII, do seu requerimento “(…) Apesar dessa amizade fraterna obviamente não afetar a capacidade de o requerente apreciar e decidir, de forma imparcial e isenta, é suscetível, todavia, de poder vir suscitar suspeições, e de levantar dúvidas sérias e graves sobre a sua imparcialidade (cf. n.° 1, do art. 43.°, do CPP), …”.

Em síntese, e essencialmente, invoca os seguintes fundamentos:

 II- Nesse processo, o primeiro dos mandatários recorridos, em representação do Banco de Portugal, é o Senhor Doutor BB. O qual é seu amigo de há longa data, como aliás teve o privilégio de ser amigo de seu falecido Pai, Prof. CC, e ainda o é da Senhora sua Mãe, assim como de seu também falecido Tio, Dr. DD, que várias vezes o convidou para publicações na editora ..., e nomeadamente nas várias edições da ....

(…)

VI- Porém, como numa frase talvez apócrifa, mas que a História regista, ocorre-nos apenas que, mesmo assim, "aqui estou eu e não posso fazer nada de diferente". A profunda amizade, verdadeiramente fraterna, como o Ilustre causídico e historiador, mesmo com todos os condicionalismos, e a possibilidade de frustração da diligência, não podem deixar de impelir a esta atitude. Que creio agora só pecar por tardia.

VI- Não cabe aqui historiar toda a factualidade em causa, muito diferente de um conhecimento ou comércio intelectual pontuais. Diga-se apenas, que há uma amizade também de família, que teve origem no conhecimento pessoal do Pai do Doutor BB, num congresso internacional, creio que em 1989 e na amizade que a partir daí se foi forjando. E que se fundiu com amizades com outros amigos comuns, nomeadamente o nosso orientador de tese na Universidade ..., Prof. Doutor EE. Além de outros mais.

VII- De salientar um constante contacto, com diuturna participação em projetos conjuntos (nomeadamente no âmbito do hoje extinto ...). Como documento escrito, sublinhe-se o relativamente recente Prefácio elaborado pelo Doutor BB ao livro do signatário ..., editado em ..., há apenas dois anos (2021).

VIII- É possível que o exposto talvez não justificasse o cuidado e escrúpulo que agora se tem, se o ambiente no espaço público fosse mais tranquilo e menos vívido e omnipresente o escrutínio de quem atua em qualquer órgão de soberania (em princípio, manifestação de pujança cívica), e desde logo os Juízes Conselheiros, mas também quem representa em juízo o Banco de Portugal. Agora, mais do que nunca, parece valer o velho (e mesmo que eventualmente criticável) brocardo clássico sobre "a mulher de César". É necessário que não haja sombra de suspeita sobre quem julga. E uma velha amizade é, realmente, motivo de suspeita pública para quem não entenda que, pelo contrário, seria até motivo para mais atenta devoção à Justiça apenas, sem qualquer aceção de pessoas.”.


Com o requerimento não foram juntos aos autos quaisquer outros elementos que suportem o requerido.

2. Atenta à natureza urgente do processo foram dispensados os vistos e, realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

II – FUNDAMENTAÇÃO
1. Os factos estão consubstanciados nos n.ºs II, VI, VI (repetida a numeração) e VII, do requerimento que suporta o pedido de escusa.

O pedido de escusa ou de  recusa de juiz assenta na apreciação do risco de que, em determinado processo, a sua intervenção possa ser considerada suspeita, por haver motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade

Sobre o fundamento da suspeição a que se refere o art.º 43.º do CPP, este Supremo Tribunal tem jurisprudência firme cuja aplicação se mostra actualizada, não se justificando repetir os ensinamentos que dela emanam, valendo por todos, a fundamentação efectuada no Ac. do STJ de 13-04-2005, Proc. n.º 05P1138, em www.dgsi.pt. Efectivamente, ali se disse:

A imparcialidade do juiz (e, por isso, do tribunal), constitui, pois, uma garantia essencial para quem submeta a um tribunal a decisão da sua causa.

4. A imparcialidade do juiz e do tribunal, no entanto, não se apresenta sob uma noção unitária. As diferentes perspectivas, vistas do exterior, do lado dos destinatários titulares do direito ao tribunal imparcial, reflectem dois modos, diversos mas complementares, de consideração e compreensão da imparcialidade: a imparcialidade subjectiva e a imparcialidade objectiva.

Na perspectiva ou aproximação subjectiva ao conceito, a imparcialidade tem a ver com a posição pessoal do juiz, e pressupõe a determinação ou a demonstração sobre aquilo que um juiz, que integre o tribunal, pensa no seu foro interior perante um certo dado ou circunstância, e se guarda, em si, qualquer motivo para favorecer ou desfavorecer um interessado na decisão.

(…)

5. As aparências são, pois, neste contexto, inteiramente de considerar, sem riscos devastadores ou de compreensão maximalista, quando o motivo invocado possa, em juízo de razoabilidade, ser considerado fortemente consistente («sério» e grave») para impor a prevenção.

O pedido de escusa do juiz para intervir em determinado processo pressupõe, e só poderá ser aceite, quando a intervenção correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo sério e grave adequado a gerar dúvidas sobre a sua imparcialidade, ou quando tenha tido intervenção anterior no processo fora dos casos do artigo 40º do Código de Processo Penal - artigo 43º, nºs 1, 2 e 4 do mesmo diploma.

(…) O motivo «sério» e «grave», por regra, deve surgir e revelar-se numa determinada situação concreta e individualizada, pois é aí que se manifestam os elementos, processuais ou pessoais, que podem fazer nascer dúvidas sobre a imparcialidade e que têm, por isso, de ser apreciados nessas (nas suas próprias) circunstâncias.”.

No mesmo sentido, entre outros, os acórdãos do STJ de  23-09-2009, Proc. n.º 532/09.5YFLSB; ou o de 27-10-2021, Proc. n.º 69/18.1TREVR-B.S1 ou o de 22/09/2022, Proc. n.º 362/19.6GESLV.E1-A.S1, e, mais recentemente, o Ac. de 02/02/2023, Proc. n.º 19/16.0YGLSB-N  – todos em www.dgsi.pt.

Neste último aresto salientou-se que “Não estando o juiz autorizado a recusar-se a si próprio, declarando-se voluntariamente suspeito, é-lhe, não obstante, conferida a possibilidade de suscitar perante outro tribunal a suspeição que admite que possa recair sobre si, para assim ser dispensado de intervir no processo – uma suspeição que a lei qualifica como escusa (art.43.º, n.º 4 do C.P.P.).

(…)No entanto, não é necessário demonstrar uma efetiva falta de isenção e imparcialidade do juiz peticionante da escusa, bastando, atentas as particulares circunstâncias do caso, um receio objetivo de que, vista a questão sob a perspetiva do cidadão comum, o juiz possa ser alvo de uma desconfiança fundada quanto às suas condições para atuar de forma imparcial.

A jurisprudência dos nossos tribunais tem sido constante no sentido de se exigir a alegação de factos concretos que constituam motivo de especial gravidade e que possam gerar desconfiança, não se bastando com simples generalidades.” – sublinhado nosso.

E, mais adiante, no mesmo aresto acrescenta-se: “(…) No respeitante ao primeiro critério, a questão circunscreve-se a saber se a convicção pessoal do julgador em dada ocasião, oferece garantias suficientes para excluir qualquer dúvida legítima.

Nesta perspetiva, a imparcialidade tem a ver com a posição pessoal do juiz, e pressupõe a determinação ou a demonstração sobre aquilo que um juiz, que integra o tribunal, pensa no seu foro íntimo perante um certo dado ou circunstância, e se guarda, em si, qualquer motivo para favorecer ou desfavorecer um interessado na decisão.

Por princípio, impõe-se que existam provas que permitam demonstrar ou indiciar relevantemente uma tal predisposição, e, por isso, a imparcialidade subjetiva presume-se até prova em contrário.

A imparcialidade vista pelo segundo critério circunscreve-se a saber se, independentemente da atitude pessoal do juiz, certos factos verificáveis autorizam a suspeitar da sua imparcialidade.

E, embora nesta matéria, mesmo as aparências possam revestir-se de alguma importância, entrando em linha de conta a ótica do acusado, sem, todavia, desempenhar um papel decisivo, o elemento determinante consiste em saber se as apreensões do interessado podem considerar-se objetivamente justificadas.” – sublinhado nosso.


2. O pedido de escusa apresentado pelo Senhor Juiz Conselheiro AA respalda-se na necessidade de garantir e prevenir que sobre o sistema de justiça, em geral, e em particular no caso para que pede dispensa de intervir, recaia o perigo da suspeição e da desconfiança sobre a isenção e imparcialidade da decisão, como o mesmo salienta no seu requerimento, pois que “(…) É necessário que não haja sombra de suspeita sobre quem julga. E uma velha amizade é, realmente, motivo de suspeita pública para quem não entenda que, pelo contrário, seria até motivo para mais atenta devoção à Justiça apenas, sem qualquer aceção de pessoas.”.

No caso presente, verifica-se que o Senhor Juiz Conselheiro intervém como relator num processo em que o Ilustre Advogado de um sujeito processual, o Banco de Portugal, é uma pessoa das suas relações de amizade, sendo que essa amizade “(…) se fundiu com amizades com outros amigos comuns.”, e na participação em projetos conjuntos, tendo o referenciado causídico escrito um prefácio para um recente livro que publicou.

Com efeito, objectivamente, o facto de i) o Senhor Juiz Conselheiro possuir um conhecimento e relação cordial com o Ilustre Advogado e de ter conhecido familiares seus, ii) a actual amplificação no espaço público do escrutínio de quem atua em qualquer órgão de soberania e iii) as circunstâncias pessoais dos envolvidos – juiz e representante de um sujeito processual ligados por uma fraterna amizade –, não se mostra suficiente para evidenciar que, qualquer intervenção do juiz peticionante em processo em que pontue o visado representante de um sujeito processual, seja susceptível de criar dúvidas sérias sobre a posição de inteira equidistância do juiz.

Na verdade, tais circunstâncias subjectivas, desacompanhadas da alegação concreta de factos objectivos que importam preservar e que dissipem todas as dúvidas ou reservas sobre a intervenção do juiz num processo em que esse seu amigo representa um sujeito processual, pois as aparências têm importância, não se verifica fundamento para que deva ser concedida a escusa pedida por um Juiz por temer fundadamente que sobre si recaia a suspeição de falta de imparcialidade.

Relevante para que se considere a suspeição, é, antes do mais, a natureza e a extensão do comprometimento do Juiz no processo em causa, como juiz natural, que justifique o cuidado e escrúpulo que agora se tem, para evitar que sobre a sua decisão recaia qualquer dúvida. Tal como afirmado no acórdão de 02/02/2023, já referenciado “Na articulação entre os princípios do juiz natural - que encontra expressão no art.32.º, n.º 9 da C.R.P.: «Nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior» - e da imparcialidade do juiz (e do tribunal), aquele princípio deve ceder quando existam circunstâncias sérias, no sentido de ponderosas, cuja verificação não se coaduna com a leviandade de um juízo, e graves, porque de forte relevo na formulação do juízo de desconfiança.”.

Deve notar-se que não está em causa uma amizade com um sujeito processual, no caso, o Banco de Portugal. Trata-se de uma amizade com alguém que intervém no processo a título profissional. Uma tal relação não pode ser vista, objectivamente, como sendo motivo sério e grave de modo a fazer nascer o receio ou apreensão, razoavelmente fundadas pelo lado relevante das aparências, sobre a imparcialidade do juiz, posto que, essa amizade não é com quem tem interesse de parte.

E, as divergências profissionais são correntes entre intervenientes processuais, sendo que, embora se compreenda o escrúpulo que moveu o Exmo. Senhor Juiz Conselheiro a solicitar a escusa, tal relação de amizade não é susceptível de ser vista como motivo de suspeição adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade, porquanto, o auditório de pessoas prudentes entende a coexistência das relações de amizade entre os decisores e os representantes das partes, no âmbito do estrito desempenho das respectivas funções.

Ora, do pedido não resultam alegados factos que, séria e concretamente, permitam considerar que a intervenção do peticionante no processo em causa possa correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo sério e grave, fundado na indicada relação fraterna de amizade entre o Juiz e o Advogado de um dos sujeitos processuais, que possa gerar dúvidas sobre a sua imparcialidade e assim, através da aceitação do seu pedido de escusa, reforçar a confiança que numa sociedade democrática os tribunais devem oferecer aos cidadãos.
III – DECISÃO

Termos em que, acordando, se decide:
a) Não conceder a escusa pedida pelo Senhor Juiz Conselheiro AA, nos termos do art.º 43.º, do CPP, por não existir fundamento para tal e, consequentemente, indeferir o requerido;
b) Sem custas.

Lisboa, 06 de Abril de 2023 (processado e revisto pelo relator)

Leonor Furtado (Relatora)

Orlando Gonçalves (Adjunto)

António João Latas (Adjunto)

Maria João Tomé (Presidente)