Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
6/20.3GALLE.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: ANTÓNIO GAMA
Descritores: RECURSO PER SALTUM
TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
TRÁFICO DE MENOR GRAVIDADE
QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
MEDIDA DA PENA
Data do Acordão: 04/07/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :

I – A análise dos tipos legais de tráfico de estupefacientes não deve ser dicotómica, apenas entre o tipo fundamental de ilícito (art. 21.º/1, DL 15/93) e o tipo privilegiado em razão da menor gravidade do facto (art. 25.º DL 15/93), mas estender-se ao art. 24.º, que prevê um tipo agravado de tráfico de estupefacientes, abrangendo situações de especial ilicitude do facto. Mesmo o art. 21.º deve ser considerado na sua completude, pois tem um âmbito de aplicação alargada, com agravação (nºs 2 e 3) e atenuação (n.º 4) de penas. Só uma ponderação global fornece uma visão integrada da resposta legislativa ao fenómeno do tráfico de estupefacientes: o tipo fundamental de tráfico no art. 21.º/1, um tipo de crime privilegiado no art. 25.º, e um tipo de crime qualificado no art. 24.º.

II – O tipo privilegiado de tráfico de menor gravidade (art. 25.º) pressupõe uma dimensão da ilicitude do facto, consideravelmente menor do que a ínsita no tipo fundamental (art. 21.º), enquanto o tipo qualificado, exigindo em regra uma ilicitude maior que a pressuposta no art. 21.º, beneficia de uma indicação taxativa de situações passíveis de integrar o tipo qualificado.

III – Os pressupostos de aplicação da norma (art. 25.º) respeitam, todos eles, ao juízo sobre a ilicitude do facto, uns à própria ação típica (meios utilizados, modalidade, circunstâncias da ação), outros ao objeto da ação típica (qualidade – percentagem de presença do princípio ativo – ou quantidade do estupefaciente), pelo que não relevam, como diminuindo a ilicitude, fatores atinentes ao juízo sobre a culpa, quer relativos ao desvalor da atitude interna do agente, ou à sua personalidade. Nas contas da correta ou incorreta subsunção jurídica da conduta apurada não entram o risco de o arguido «ser visionado e detectado pelos órgãos de polícia criminal» e «a sua condição de vida modesta».

IV – A menor ilicitude afere-se pela ponderação dos meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da ação, a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações, o número de pessoas a quem foi realizada a venda, distribuição, cedência etc., ou o número de vezes em que tal ocorreu em relação à mesma pessoa. Nesta equação ganha especial relevo, contra a pretensão do arguido, o facto, que não podemos ignorar, de ao arguido não serem conhecidos hábitos de consumo de drogas.

Decisão Texto Integral:


Processo n.º 6/20.3GALLE.S1

Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça:

I

1. No Juízo Central Criminal ... foi decidido:

«Condenar o arguido AA pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art. 21º n.º 1 do DL 15/93, de 22.01, na pena de 5 (cinco) anos e 8 (oito) meses de prisão;

Condenar o arguido BB pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art. 21º n.º 1 do DL15/93, de 22.01, na pena de 5 (cinco) anos e 3 (três) meses de prisão».

2. Inconformados, recorreram os arguidos rematando a alegação de recurso com as seguintes conclusões (transcrição):

Arguido AA:

«1. O Recorrente colaborou com o Tribunal, em sede de Julgamento.

2. O Recorrente prestou declarações e admitiu a prática do crime.

3. As declarações do Recorrente em sede de julgamento tiveram um significativo relevo no apuramento dos factos.

4. Como consta do Acórdão a fls 49- “o arguido AA admitiu a autoria do crime, com significativo relevo no apuramento dos factos”.

5. Face a essa colaboração relevante para o apuramento dos factos, deveria ter sido aplicado ao Recorrente uma pena menos gravosa, nomeadamente uma pena de prisão suspensa na sua execução, ou se tal não for este o entendimento uma pena de prisão efetiva no seu limite mínimo.

Termos em que, e sempre com o douto suprimento de Vossas Excelências, deverá este recurso ser procedente e consequentemente ser revista a pena de prisão efectiva aplicada ao Recorrente substituindo-a por uma pena de prisão suspensa na sua execução ou se este não for o entendimento numa pena de prisão efetiva no seu limite mínimo. Porém Vossas Excelências decidirão como for de Justiça, assim se fazendo a costumada Justiça».

Arguido BB:

«1. Vem o presente recurso, que versa exclusivamente matéria de direito, interposto do, aliás douto acórdão proferido a fls… pelo Tribunal “a quo”, que julgando parcialmente procedente a acusação, condenou o Recorrente pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo artigo 21.º, do DL 15/93 de 22/01, na pena de 5 (cinco) anos e (três) meses de prisão.

III – A) Dos factos provados

2. Com interesse para o presente recurso resultou provada, além do mais, a seguinte factualidade:

Que o arguido se encontra com o estatuto processual de obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica, medida que tem cumprido exemplarmente, não se tendo verificado nenhum incidente ao longo de mais de 1 (um) ano em que se encontra sujeito à mesma.

(…)

O Recorrente sofre de pancretite aguda, sendo seguido pelo Hospital ... no serviço de gastroenterologia, tendo vivenciado em Julho de 2021 período de internamento hospitalar..

Reside em espaço arrendado, de tipologia  ..., em contexto urbano, com renda mesnal de 300 euros, situação existente à data dos factos. Vive com a companheira e com o filho, de 27 meses, sendo notórios os laços de união entre o grupo familiar, assentes no diálogo e partilha de resposnabilidades.

O pai mantém residência em ..., tendo a mãe já falecido.

À data dos factos em efectuava trabalhos no espaço habitacional como ....

A companheira trabalha como ..., auferindo salário mínimo, a que acrescem as quantias quando executa trabalho suplementar e em fins-de-semana, beneficiando o casal de ajudas de cariz pontual da mãe da companheira, bem como as quantias de montante variável decorrentes da actividade que o arguido exerce como ....

Tem desempenhado diversas actividades como ...,... ou ajudante ..., para entidades patronais diferenciadas.

Não consta que consuma drogas.

CC declarou, 13-07-2021, dispor de vaga para admitir o arguido como ....

Foi condenado:

- por decisão de 04-06-2018, transitada em 04-07-2018 [proc. 662/18... do Tribunal ...] na pena de 60 dias de multa à taxa diária de 5 euros, pela prática em 03-06-2018 de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez (art. 291º, nº 1 do CP), pena declarada extinta pelo cumprimento.]

III – B) Do Enquadramento Jurídico-Penal da Matéria de Facto Provada.

3. Da factualidade dada como assente no âmbito dos presentes autos, resulta, salvo o devido respeito, que o tribunal “a quo” fez uma errada subsunção dos mesmos no artigo 21.º, nº 1 do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro.

4. Com efeito, e uma vez mais ressalvado o devido (e merecido) respeito, estamos convencidos que a factualidade em causa ainda pode ser enquadrável no tipo privilegiado, p. e p. pelo artigo 25.°, alínea a), do Decreto-Lei n.° 15/93, de 22 de Janeiro.

5. Ou, quando muito, na designada «zona cinzenta» entre o crime base previsto no artigo 21.º do D.L. nº 15/93, de 22 de Janeiro e o de menor gravidade previsto no artigo 25.° do mesmo diploma legal, conforme aponta o douto Acórdão do STJ de 23-11-2011, consultável em www.dgsi.pt.

6. É assim a imagem global do facto, ponderadas conjuntamente todas as circunstâncias relevantes que nele concorrem, que permitirá a identificação de uma situação de ilicitude mitigada, de menor gravidade, ou seja, uma situação em que o desvalor da ação é claramente inferior ao padrão ínsito no tipo fundamental de crime – o tráfico de estupefacientes previsto no art. 21º do DL nº 15/93.

7. Ora, da matéria dada como provada resulta:

Que o Recorrente vendia directamente o produto a consumidores finais.

Que essas vendas correspondiam a doses individuais para o consumo imediato de quem o procurava, ou seja, a chamada venda a retalho.

Que essas transacções eram efectuadas na rua, sujeitando-se a ser visionado e detectado pelos órgãos de polícia criminal, como veio, de facto, a suceder.

Resulta ainda patente a falta de sofisticação dos meios utilizados pelo Recorrente na traficância dessas pequenas quantidades de produto, pois usava o telefone para receber os contactos (encomendas) e deslocava-se ao encontro dos mesmos.

Acresce que o período de duração da actividade ilícita foi de cerca de 6 (seis) meses, com períodos de inatividade.

A área de actuação do recorrente era circunscrita a uma localidade.

E os lucros também não seriam elevados, face à quantia que tinha em seu poder quando foi detido – cerca de € 352,10 euros – cfr. ponto 49 dos factos provados.

8. A sua condição de vida é modesta, o que resulta cristalinamente da factualidade provada no ponto 58 da matéria assente, acima transcrito na parte que aqui releva.

9. O grau de ilicitude é, pois, no quadro de um tráfico comum, pequeno, permitindo-nos concluir que estamos perante uma situação de pequeno tráfico completamente distinta da do grande e médio tráfico, razão pela qual a actuação do Recorrente deveria ter sido enquadrada no previsto no artigo 25.°, alínea a), do Decreto-Lei n.° 15/93, de 22 de Janeiro,

10. ou, quando assim doutamente se não entenda, tal actividade é integrável na designada «zona cinzenta» entre o tráfico de estupefacientes p. e p. pelo artigo 25.º e o do artigo 21.º do Decreto-Lei n.° 15/93, de 22 de Janeiro, impondo a aplicação de pena não superior a 5 (cinco) anos de prisão, atento o limite máximo da pena aplicável previsto no artigo 25.° alínea a), , suspensa na sua execução, pelos fundamentos que infra se aduzirão.

Sem conceder

III – C) Da Medida Da Pena

11. Mantendo-se a qualificação jurídico-penal operada pelo Tribunal “a quo”, o que se admite por cautela e dever de patrocínio, sempre a pena aplicada se mostra excessiva e desproporcional.

12. Pois, salvo melhor opinião, na determinação da medida da pena, o douto acórdão não relevou, como se impunha, as circunstâncias posteriores à prática dos factos em apreço nos autos, que constam dos autos, nomeadamente:

13. Que o recorrente encontra-se a cumprir medida de coação de permanência na habitação com vigilância eletrónica desde o dia 19 de Outubro de 2020 (cfr. Acto da D.G.R.S.S.P com a refª Citius ...), ou seja, há mais de 1 (um) ano;

14. Que durante este período, demonstrou recetividade às orientações da DGRSSP e consequente capacidade no cumprimento das regras e obrigações a que está sujeito, conforme decorre cristalinamente dos Relatórios de acompanhamento da medida de obrigação de permanência na habitação elaborados por esta entidade que se indicam e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzidos para os devidos e legais efeitos, designadamente:

- O 1º Relatório de acompanhamento da OPH datado de 16/02/2021 e junto aos autos nessa data com a refª Citius ...;

- O 2º Relatório de acompanhamento da OPH datado de 13-05-2021 e junto aos autos com a Refª Citius ...;

- O 3º Relatório de acompanhamento da OPH datado de 17-06-2021 e junto aos autos com a Refª Citius ...;

- Que Durante esse período teve um episodio agudo e esteve internado no hospital em ..., desde 19 de Julho de 2021 ao dia 26 de Julho de 2021, por motivos clínicos urgentes e inadiáveis, na especialidade de gastroenterologia, tendo sido efectuadas monitorizações regulares, com carácter inopinado, com recurso a meios móveis, junto da unidade hospitalar, sem registo de anomalias.

Em complemento, foram estabelecidos vários contactos telefónicos, com médico e elementos do corpo de enfermagem, no sentido de acompanhar a situação do arguido, conforme se constata da matéria provada e do relatório da D.G.R.S.S.P. datado de 30-07-2021, junto aos autos nessa data com a refª Citius ... e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para os devidos e

legais efeitos.

15. Desses relatórios da DGRSSP, para além de surgir comprovado que o arguido, aqui Recorrente, mantém um comportamento adequado às regras e disciplina impostas pela medida de coacção que cumpre em meio habitacional,

16. Resulta ainda que padece de grave problema de saúde que o torna especialmente vulnerável, mormente, à doença da COVID-19 e respectivas variantes.

17. Também resulta comprovado que beneficia de enquadramento habitacional e familiar, mantendo a coabitação com a esposa e o filho DD assumindo no meio familiar um comportamento adequado. A família revela-se o seu principal suporte, a nível afetivo e económico.

18. Resulta ainda comprovado que apresenta uma proposta (Declaração) de trabalho como ..., a qual produzirá efeitos assim que o arguido tenha disponibilidade (liberdade) para exercer essas funções.

19. Decorre assim dos autos, que o arguido, pese embora em situação de obrigação de permanência na habitação, tem um projecto de vida familiar e laboral.

20. Que o arguido demonstra que este contacto com o sistema judicial e prisional (esteve em meio prisional durante cerca de 11 dias) já surtiu efeitos na sua conduta, apresentando actualmente um projecto de vida adequado à vida em sociedade e à norma.

21. Da factualidade decorrente dos autos, mormente do ponto 58 dos factos provados, resulta que o arguido dispõe de suporte familiar e de um projecto de trabalho, que se constituem como fortes factores de protecção, mitigando as aludidas exigências de prevenção especial.

22. Assim, com a devida vénia, entendemos que o comportamento do arguido posterior aos factos subjacentes a estes autos deve relevar na determinação da medida concreta da pena.

23. O que não sucedeu no caso sub judice.

24. Ademais, é consabido que em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa – cf. nº 2 do artigo 40.º do Código Penal.

25. Sucede que na determinação da medida concreta da pena, o Tribunal a quo não fez uma equitativa ponderação dos valores em causa.

26. O crime de tráfico em que o Recorrente foi condenado é punível com prisão de 4 (quatro) a 12 (doze) anos, cf. artigo 21.°, n.° 1, do Decreto-Lei n.° 15/93, de 22 de Janeiro.

27. O Recorrente não regista antecedentes criminais por crimes de idêntica natureza.

28. No juízo de culpa deve predominar a culpa pelo facto, no sentido no sentido de que o objecto de valoração da culpa é também, quando não prevalentemente, o facto ilícito típico perpetrado. – cfr. Anabela Rodrigues – A determinação da Medida da Pena Privativa da Liberdade, pags. 478 e sgs.

29. É o que impõem os princípios, de base constitucional, da necessidade, da intervenção mínima e da subsidiariedade do direito penal. O direito penal é a ultima ratio, um último recurso quando outras formas de intervenção social e legislativa não são suficientes para atingir objectivos de protecção da comunidade. Estatui o artigo 18º, nº 2, da Constituição portuguesa que a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos nesse mesmo diploma, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente previstos.

30. Encontrar a “justa retribuição”, a “pena merecida” constitui a finalidade primeira da sanção.

31. Sem esquecer que as exigências de prevenção geral (as expectativas da comunidade na validade da norma) constituem o limiar mínimo da pena, sendo elevadas estas exigências no tipo de crime em causa (bem espelhada na grave moldura abstrata de 4 a 12 anos de prisão), sempre se dirá que a culpa do agente constitui sempre o seu limiar máximo.

32. E, no caso concreto, com o devido respeito por melhor opinião, entende o Recorrente que a pena concretamente aplicada ultrapassa os limites impostos pela sua culpa, mostrando-se desadequada e desproporcional.

33. Pelas razões que ficaram expostas, deveria ter sido aplicada uma pena mais próxima do mínimo legal da moldura abstrata que é de 4 (quatro) anos.

III – D) Da Suspensão Da Pena

34. Aqui se reiterando o que ficou dito no que respeita à situação pessoal do arguido, estamos em crer que, nesta fase da vida do Recorrente, a simples ameaça de cumprimento da pena prisão é suficiente para que este mantenha uma conduta normativa.

35. De realçar que este é o primeiro confronto do arguido com o sistema prisional.

36. De notar ainda que o Recorrente se tem mantido em cumprimento da medida de coacção de obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica, há mais de 1 (um) ano, sem que tenham ocorrido quaisquer incidentes.

37. Essa medida de coacção foi pacificamente aceite pela comunidade em que se encontra inserido, designadamente, a localidade de ... no concelho ..., pois nos autos não há nota de queixas ou de qualquer informação a denotar incomodo por parte dos membros dessa pequena comunidade, em que todos se conhecem e facilmente reportariam alguma situação que lhes causasse mal-estar.

38. Acresce que o Recorrente é um jovem com 29 anos de idade, porquanto nasceu em .../.../1992 e tal como ficou comprovado nos autos encontra-se perfeitamente inserido familiar e socialmente, apresentando concreta proposta de trabalho.

39. Mais decorre dos autos que o Recorrente padece de grave problema de saúde que o torna especialmente vulnerável, mormente, à doença da COVID-19 e respectivas variantes.

40. Assim, no actual quadro de vida do Recorrente, conjugado com o problema de saúde que o afecta, estamos convencidos que o cumprimento de uma pena de prisão efectiva afigura-se-nos contrário ao fim das penas – o da reinserção do agente na sociedade (cfr. artigo 40.º do Código Penal), para além de tal pena a cumprir em meio prisional (onde o distanciamento social é impossível) constituir um factor de risco para a sua saúde, quiçá para a própria vida.

41. Ao passo que uma pena suspensa na sua execução, mediante regime de prova, permite manter as condições de sociabilidade próprias à condução da vida no respeito pelos valores de direito como factores de inclusão.

42. E a factualidade dada como provada relativa à situação social, familiar e laboral do Recorrente permite-nos ainda formular um juízo de prognose favorável quanto ao seu comportamento futuro.

43. Com a devida vénia, a actual fase da vida do Recorrente permite-nos a formulação de um juízo de prognose favorável no sentido de que a simples censura dos factos e a ameaça da pena de prisão realizam de forma adequada as finalidades da punição.

44. Em suma, e sempre ressalvado o devido respeito por diferente entendimento, acreditamos que a manter-se a qualificação dos factos provados no crime de tráfico, p. e p. pelo artigo 21.°, n.° 1, alínea a), do Decreto-Lei n.° 15/93, de 22 de Janeiro, a pena a ser aplicada não deverá ser superior a 5 (cinco) anos, suspensa na sua execução, nos termos do artigo 50.° do Código Penal, ainda que

subordinada ao regime probatório nos termos prevenidos no artigo 53.º do mesmo diploma legal, por se mostrar suficiente, proporcional e adequada à salvaguarda das exigências de prevenção na sua dupla dimensão, geral e especial.

45. Nesta confluência, a douta decisão recorrida, pela errada interpretação e aplicação que deles fez, viola os artigos 21.º e 25.º ambos do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, o artigo 9.º da Portaria nº 94/96, de 26 de Março, os artigos 40.º, 50.º, 51.º, 52.º, 53.º, 71.º, 72.º e 73.º todos do Código Penal, os artigos 379.º, nº 1, al. c) e 410.º do Código de Processo Penal, bem como os artigos 18.º , 29.º, nº 5 e 32.º da Constituição da Republica Portuguesa.

Nestes termos e nos mais de Direito que os Colendos Conselheiros esclarecidamente suprirão, deve o presente recurso ser julgado procedente por provado e em consequência:

- Revogar-se o douto acórdão recorrido substituindo-o por outro que altere o enquadramento jurídico-penal da matéria de facto provada, subsumindo-a no artigo 25.º do D.L. nº 15/93, de 22 de janeiro;

Ou, quando assim, doutamente, se não decida,

- Seja revogado o douto acórdão recorrido, substituindo-se por outro que aplique ao arguido pena de prisão não superior a 5 anos.

- Em ambas as hipóteses ante referidas, que a pena a determinar por V. Exas. Seja suspensa na sua execução, subordinada a regime de prova nos termos das disposições conjugadas dos artigos 50.º e 53.º do C.P-

Todavia, V. Exas. Colendos Conselheiros farão a habitual JUSTIÇA!!!

3. O Ministério Público respondeu concluindo pela improcedência dos recursos.

4. Neste Supremo Tribunal de Justiça o PGA foi de parecer que o acórdão recorrido qualificou e sancionou de forma adequada e criteriosa a matéria fáctica fixada, pelo que os recursos deverão improceder.

5. Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência para decisão.

II

A

Factos provados (transcrição):

1) Cada um dos arguidos AA e BB misturava produtos na heroína e cocaína que adquiriam para depois vender, e cada um deles dividia-a em doses individuais.

2) Os arguidos AA e BB utilizaram telemóveis para aceitar encomendas de heroína e cocaína.

3) No dia 27 de Maio de 2020, cerca das 15.48 hrs., próximo da Rua ..., em ..., o arguido AA vendeu heroína ou cocaína a EE por quantia não apurada.

4) No dia 06 de Julho de 2020, cerca das 15.48 hrs., na Av. ..., em ..., o arguido BB vendeu heroína a FF por quantia não apurada.

5) No dia 12 de Agosto de 2020, cerca das 10.36 hrs., em ..., mediante prévio contacto telefónico, o arguido AA vendeu 30 euros de heroína a GG.

6) No dia 12 de Agosto de 2020, cerca das 11.28 hrs., em ..., mediante prévio contacto telefónico, o arguido AA vendeu heroína a HH, por quantia não apurada.

7) No dia 17 de Agosto de 2020, cerca das 19.32 hrs., em ..., mediante prévio contacto telefónico, o arguido AA vendeu heroína a II por quantia não apurada.

8) No dia 21 de Agosto de 2020, cerca das 10.22 hrs., em ..., mediante prévio contacto telefónico, o arguido AA vendeu 30 euros de heroína a GG por quantia não apurada.

9) No dia 21 de Agosto de 2020, cerca das 10.29/10.30 hrs., em ..., mediante prévio contacto telefónico, o arguido AA vendeu cocaína a JJ por quantia não apurada.

10) No dia 21 de Agosto de 2020, cerca das 11.09 hrs., em ..., mediante prévio contacto telefónico, o arguido AA vendeu heroína a KK por quantia não apurada.

11) No dia 27 de Agosto de 2020, cerca das 15.46 hrs., em ..., mediante prévio contacto telefónico, o arguido AA vendeu 30 euros de heroína a GG por quantia não apurada.

12) No dia 27 de Agosto de 2020, cerca das 17.35 hrs., em ..., mediante prévio contacto telefónico, o arguido AA vendeu heroína ou cocaína ao condutor do veículo com matrícula ..-..-OI por quantia não apurada.

13) No dia 27 de Agosto de 2020, cerca das 18.07 hrs., em ..., mediante prévio contacto telefónico, o arguido AA vendeu heroína a LL por quantia não apurada.

14) No dia 27 de Agosto de 2020, cerca das 18.52 hrs., em ..., mediante prévio contacto telefónico, o arguido AA vendeu heroína a MM por quantia não apurada.

15) No dia 2 de Setembro de 2020, cerca das 17.29 hrs., em ..., mediante prévio contacto telefónico, o arguido AA vendeu heroína a KK e NN por quantia não apurada.

16) No dia 7 de Setembro de 2020, cerca das 14.56 hrs., em ..., mediante prévio contacto telefónico, o arguido AA vendeu heroína a II por quantia não apurada.

17) No dia 7 de Setembro de 2020, cerca das 15.30 hrs., em ..., mediante prévio contacto telefónico, o arguido AA vendeu 30 euros de heroína a GG.

18) No dia 7 de Setembro de 2020, cerca das 15.56 hrs., no ..., em ..., mediante prévio contacto telefónico, o arguido BB vendeu heroína ou cocaína ao condutor do veículo com matrícula ..-..-UE por quantia não apurada.

19) No dia 7 de Setembro de 2020, cerca das 16.17 hrs., no ..., em ..., mediante prévio contacto telefónico, o arguido BB vendeu heroína a OO por quantia não apurada.

20) No dia 24 de Setembro de 2020, cerca das 10.48 hrs., em ..., mediante prévio contacto telefónico, o arguido AA vendeu 30 euros de heroína a GG.

21) No dia 24 de Setembro de 2020, cerca das 12.02 hrs., em ..., mediante prévio contacto telefónico, o arguido BB vendeu 1 bola de heroína a PP por 30 euros.

22) No dia 24 de Setembro de 2020, cerca das 14.53 hrs., na EM..., mediante prévio contacto telefónico, o arguido BB vendeu heroína ou cocaína a QQ por quantia não apurada.

23) No dia 24 de Setembro de 2020, cerca das 15.28 hrs., na EM..., mediante prévio contacto telefónico, o arguido AA vendeu 30 euros de heroína a GG.

24) No dia 24 de Setembro de 2020, cerca das 16.37/16.39 hrs., na Rua ..., em ..., mediante prévio contacto telefónico, o arguido BB vendeu heroína a OO por quantia não apurada.

25) No dia 6 de Outubro de 2020, cerca das 20.33 hrs., mediante prévio contacto telefónico, o arguido BB vendeu um saco de heroína com o peso de 23,898 gramas a RR por 300 euros.

26) No período de um mês que antecedeu o descrito em 25), o arguido RR comprou pelo menos mais duas vezes heroína (cerca de 20 gramas de heroína de cada vez) ao arguido BB.

27) No dia 7 de Outubro de 2020, mediante prévio contacto telefónico, o arguido AA vendeu 2,610 gramas de heroína (com um grau de pureza de 5,2%) a SS por 30 euros.

28) No dia 7 de Outubro de 2020, pouco antes das 13.30 hrs., mediante prévio contacto telefónico, o arguido BB vendeu 2,26 gramas de heroína (com grau de pureza de 5,6%) a LL, e 2,179 gramas de heroína (com um grau de pureza de 5,7%) a TT, por quantias não apuradas.

29) TT comprou heroína pelo menos de três em três dias, por 30 euros de cada vez, compras que fazia ao arguido AA ou ao arguido BB (variando entre um e outro, separadamente, mas comprando sensivelmente um número igual de vezes a cada arguido, e aparecendo ambos os arguidos juntos várias vezes - mas nestas situações apenas um vendia), em ..., o que ocorreu no período de 5 a 6 meses anterior a 7 de Outubro de 2020.

30) UU comprou heroína e cocaína todos os dias, e por vezes mais que uma vez num dia, pagando 30 euros pela heroína e 20 euros pela cocaína de cada vez, no período de 4 a 5 meses que antecedeu o dia 7 de Outubro de 2020, em ... e ..., o que fazia ao arguido AA ou a outra pessoa que por vezes aparecia, comprando em termos sensivelmente iguais a cada um deles.

31) OO comprou heroína ao arguido BB de 3 em 3 dias ou uma vez por semana, comprando 60 a 150 euros (estes por 5 gramas) de cada vez, em ..., pelo menos a partir do início de Setembro de 2021 e até 7 de Outubro de 2021 – incluindo as vendas referidas em 19) e 24). 

32) JJ comprou cocaína diariamente ou dia sim dia não, por 20 euros de cada vez, compras que fazia ao arguido BB, durante um mês e pouco no verão de 2020 (nomeadamente no período de Agosto), em regra em ... – incluindo a referida em 9).

33) VV comprou heroína uma ou duas vezes por semana (podendo estar algum tempo sem comprar), por 30 euros de cada vez (2 gramas), compras que fazia ao arguido AA ou ao arguido BB (variando entre um e outro, separadamente, mas comprando sensivelmente um número igual de vezes a cada arguido, e aparecendo ambos os arguidos juntos algumas vezes - mas nestas situações apenas um vendia), em ... ou ..., o que ocorreu durante o ano que antecedeu o dia 7 de Outubro de 2020. Por vezes, nas mesmas condições, também comprava meia grama de cocaína, por 20 euros.

34) WW comprou heroína pelo menos cinco vezes, por 30 euros de cada vez, ao arguido AA, em 2020, tendo, no mesmo período, comprado a mesma quantidade e o mesmo número de vezes heroína ao arguido BB. 

35) SS e XX compraram 1 grama ou 1,5 gramas de heroína ao arguido AA por 30 euros a grama, pelo menos duas vezes por mês, no período de sete meses que antecedeu a detenção do arguido, em ..., incluindo a referida em 27) – tendo ainda adquirido cocaína, por 20 euros cada vez, e heroína, por 30 euros cada vez, ao arguido BB, o que sucedeu no mesmo período, pelo menos duas vezes por mês.

36) LL comprou heroína pelo menos três vezes por semana, por 30 euros de cada vez, compras que fazia ao arguido AA ou ao arguido BB (variando entre um e outro, separadamente, mas comprando sensivelmente um número igual de vezes a cada arguido, e aparecendo ambos os arguidos juntos várias vezes), em ..., o que ocorreu pelo menos desde meados de Agosto de 2020 e até 7 de Outubro de 2020 – incluindo as vendas referidas anteriormente.

37) YY comprou heroína (em regra 30 euros de cada vez) uma ou duas vezes por semana ao arguido AA ou ao arguido BB (separadamente, sensivelmente o mesmo número de vezes a um e a outro), em ..., o que ocorreu no período de seis a sete meses que antecedeu o dia 7 de Outubro de 2020.

38) ZZ comprou heroína ao arguido AA uma vez por dia num período de três meses que antecedeu dia não determinado de Setembro de 2020, por 30 euros de cada vez.

39) NN comprou heroína ao arguido AA duas vezes, no Verão de 2020, por 30 euros de cada vez – para além da referida em 15).

40) MM comprou heroína (duas a cinco bolas de cada vez) pelo menos nove vezes ao arguido BB, no período de 4 de Agosto de 2020 a 1 de Outubro de 2020.

41) MM comprou heroína ao arguido AA em 31 de Agosto de 2020.

42) MM e AAA compraram um pacote de heroína (por dez euros cada pacote) dia sim dia não no período de pelo menos um ano anterior a Junho de 2020 ao arguido RR.

43) BBB comprou pelo menos dez vezes heroína (duas ou quatro gramas de cada vez, pagando 30 euros por duas gramas) ao arguido BB, no período de 3 a 4 meses que antecedeu a detenção do arguido, tendo ainda comprado algumas vezes, no mesmo período, ao arguido AA – sendo que algumas vezes ambos os arguidos compareciam nos encontros, sendo que nessas vezes apenas lidava com o arguido BB.

44) GG comprou 30 euros de heroína pelo menos 10 vezes (além das descritas supra) no período de 5 de Agosto de 2020 a 7 de Outubro de 2020 ao arguido AA.

45) Desde o final do ano de 2019 até 06.10.2020 o arguido AA vendeu heroína pelo menos dia sim dia não, vendendo a pelo menos três pessoas por dia, 1 ou 2 gramas de heroína de cada vez, vendendo em regra cada grama por 20 euros.

46) No mesmo período, vendeu cocaína pelo menos dia sim dia não, vendendo em regra 30 euros de cada vez.

47) No dia 07.10.2020, cerca das 14.45/14.50 hrs., na Rua ..., em ..., o arguido AA tinha:

- nove embalagens de heroína, com o peso de 25,068 gramas, grau de pureza de 5,8%, e

- catorze embalagens de cocaína, com o peso de 2,55 gramas, grau de pureza de 48,2%,

heroína e cocaína que destinava à venda (e se encontravam em automóvel do arguido);

- dois telemóveis (... e ...), sendo o telemóvel ... utilizado nos contactos telefónicos estabelecidos com vista à venda de heroína e cocaína.

48) No mesmo dia, cerca das 15.15 hrs., na sua residência, na Rua ..., em ..., o arguido AA tinha:

- dez embalagens de heroína, com o peso de 24,252 gramas, grau de pureza de 5,2%;

- dez embalagens de heroína, com o peso de 24,460 gramas, grau de pureza de 5,9%;

- três embalagens de cocaína, com o peso de 0,570 gramas, grau de pureza de 61,7%, heroína e cocaína destinadas à venda;

- quatro frascos de amoníaco usado para «cozer» a cocaína

- um rolo de folha de alumínio que o arguido em parte usava para acondicionar heroína e cocaína;

- vários sacos de plástico que o arguido em parte usava para acondicionar heroína e cocaína;

- 700 euros provenientes da venda de heroína e cocaína.

49) No dia 07.10.2020, entre as 14.50 hrs. e as 15.30 hrs., consigo e na sua residência, na Travessa ..., em ..., o arguido BB tinha:

- dois telemóveis (... e ...), sendo o telemóvel ... utilizado nos contactos telefónicos estabelecidos com vista à venda de heroína e cocaína,

- 252,10 e 100 euros, provenientes da venda de heroína e cocaína.

50) O arguido AA, com o acordo do arguido BB, passou a atender o telemóvel do arguido BB, nos contactos relacionados com a venda de heroína/cocaína quando este esteve internado no hospital (desde 19 de Agosto ao início de Setembro de 2020), efectuando vendas na sequência daqueles contactos.

51) No dia 5 de Maio de 2020, cerca das 18.28 hrs., no ..., ..., o arguido RR tinha consigo:

- seis bolas de heroína com o peso de 25,896 gramas, grau de pureza que mediava entre 7,3%/8,9%, heroína esta da qual o arguido destinava pelo menos metade à venda;

- três embalagens de cocaína com o peso de 0,252 gramas, grau de pureza de 96,1%, que o arguido destinava ao seu consumo.

52) No dia 6 de Outubro de 2020, cerca das 20.50 hrs., na ..., KM 103,1 sentido ..., em viatura conduzida pelo arguido CCC, o arguido RR tinha consigo:

- o saco com heroína com o peso de 23,898 gramas adquirido ao arguido BB (como referido em 25), com o grau de pureza de 5,7%, heroína esta da qual o arguido RR destinava pelo menos metade à venda;

- dois telemóveis;

- dois pedaços de papel, um com um nome e número de telemóvel e outro com contas.

53) Os arguidos RR e CCC tinham combinado em que este levava aquele ao local da aquisição da heroína, para comprar heroína, trazendo-o depois de volta para a zona de ..., tendo o RR dado dinheiro ao arguido CCC para pagar o combustível usado na deslocação e tendo-lhe ainda prometido dar dois pacotes de heroína (cerca de meia grama, no valor de 10 euros cada pacote) para o CCC consumir (heroína esta que este arguido CCC pretendia consumir de uma vez quando lhe fosse entregue).

54) Os arguidos AA e BB agiram livre, deliberada e conscientemente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, querendo deter e fornecer/vender heroína/cocaína a terceiros no concelho ..., sem estarem legalmente habilitados.

55) O arguido RR agiu livre, deliberada e conscientemente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, querendo deter heroína para venda e vender heroína a terceiros, mormente em ..., sem estar legalmente habilitado.

56) O arguido CCC sabia que o arguido RR comprara heroína.

57) O arguido CCC agiu livre, deliberada e conscientemente.

58) O arguido RR foi condenado:

- no proc. 6/11, por decisão de 21.02.2014, transitada em 21.02.2014, na pena de dois anos de prisão pela prática de um crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelos art. 21º n.º 1 e 25º al. a) do DL 15/93, de 22.01 [no dia 08.06.2011 tinha dezoito invólucros de heroína com o peso de 60,829 gramas e destinava parte da heroína ao seu consumo e outra parte à venda a terceiros];

- no proc. 359/09, por decisão de 11.10.2010, transitada em julgado em 11.05.2012, o arguido foi condenado na pena de três anos de prisão pela prática de um crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelos art. 21º n.º 1 e 25º al. a) do DL 15/93, de 22.01 [no dia 18.03.2009 trazia consigo 20,412 gramas de heroína e 1,942 gramas de heroína; nesse dia havia entregue dois pacotes com 1,334 gramas de heroína a DDD];

- no proc. 52/11, por decisão de 08.03.2012, transitada em 22.10.2012, na pena de dez meses de prisão pela prática de um furto qualificado tentado, p. e p. pelos art. 203º n.º 1, 204º n.º 1 al. e), 22º e 23º n.º 1 do CP [no dia 10.02.2010 dirigiu-se a um terminal de multibanco em ..., nas instalações da Caixa de Crédito Agrícola, nas quais entrou usando um cartão bancário e, com um ferro, tentou forçar a abertura da caixa, o que não logrou].

Em cúmulo destas penas foi condenado na pena única de 4 anos de prisão, tendo estado preso em cumprimento desta pena e da pena aplicada no proc. 13/08... entre 04.06.2012 e 30.05.2017.

59) O arguido AA vivia, à data da detenção, com a companheira de uma relação de 27 anos e 3 filhos de 26, 24 e 19 anos. Nacional de ..., encontra-se em Portugal há cerca de 22 anos, com autorização de residência válida até 2023. Residia em casa arrendada.

Tem trabalhado com regularidade na construção civil, em situação de contratado, com salário idêntico ao salário mínimo nacional. A companheira recebia salário idêntico. A renda da habitação é no valor de 300 euros, pagando idêntica renda relativa a habitação de que dispõe em ....

Tem problemas de saúde nas articulações que se agravaram após a detenção.

Não consome drogas.

É tido por bom pai, que providencia aquilo de que os filhos precisam, considerando a família que terá praticado os factos para fazer face ás despesas da família.

Em meio prisional tem comportamento adequado.

Admitiu a sua conduta de venda de drogas.

Foi condenado

- por decisão de 04.09.2020, transitada em 06.10.2020 [proc. 143/20 do Tribunal ...], na pena de 80 dias de multa à taxa diária de 5 euros, pela prática em 09.03.2020 de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez (art. 292º n.º 1 do CP) – pena declarada extinta pelo cumprimento.

O arguido BB reside em espaço arrendado, de tipologia  ..., em contexto urbano, com renda mensal de 300 euros, situação existente à data dos factos.

Vive com a companheira e com o filho, de 27 meses, sendo notórios os laços de união entre o grupo familiar, assentes no diálogo e partilha de responsabilidades.

O pai mantém residência em ..., tendo a mãe já falecido.

À data dos factos efectuava alguns trabalhos no espaço habitacional como ....

A companheira trabalha como ..., auferindo o salário mínimo, a que acrescem quantias quando executa trabalho suplementar e em fins-de-semana, beneficiando o casal de ajudas, de cariz pontual da mãe da companheira, bem como das quantias de montante variável decorrentes da actividade que o arguido exerce como ....

Sofre de pancreatite aguda, sendo seguido pelo Hospital ... no serviço de gastroenterologia, tendo vivenciado, em Julho de 2021, período de internamento hospitalar.

Com o 12º ano de escolaridade, não deu continuidade aos estudos por condicionalismos económicos, tendo emigrado aos 22 anos de ... para Portugal, juntamente com a companheira, fixando residência no ..., procurando melhores condições de vida.

Desde então tem desempenhado diversas actividades como ...,... ou ajudante ..., para entidades patronais diferenciadas.

Denota percepção do desvalor do ilícito, mas assumindo uma atitude de total demarcação dos factos.

Não consta que consuma drogas.

CC declarou, 13.07.2021, dispor de vaga para admitir o arguido como ....

Foi condenado:

- por decisão de 04.06.2018, transitada em 04.0... [proc. 662/18... do Tribunal ...], na pena de 60 dias de multa à taxa diária de 5 euros, pela prática em 03.06.2018 de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez (art. 292º n.º 1 do CP) – pena declarada extinta pelo cumprimento.

À data dos factos, o arguido RR mantinha-se integrado no agregado de origem (constituído pela mãe/63 anos e irmão/44 anos), em casa térrea, T..., arrendada, sita num bairro social.

Exceptuando o período de reclusão, o arguido sempre coabitou com este agregado, mantendo com os elementos da família relação de proximidade, constituindo a mãe (o irmão apresenta problemas do foro psiquiátrico, usufruindo de pensão de invalidez) suporte psicoafectivo e factor de estabilidade socioeconómico face ao historial aditivo do arguido.

Pese embora activo como ... (sendo a entidade patronal/proprietário de embarcação piscatória um vizinho), e encontrando-se integrado em programa de desintoxicação à base de metadona, mantinha consumo de drogas, destinando, na globalidade, as receitas auferidas (de carácter variável, mas correspondente, em média, ao salário mínimo) às despesas com os hábitos aditivos.

Oriundo de um agregado com um estrato socioeconómico desfavorecido, a infância do arguido decorreu numa ambiência familiar pautada pelos comportamentos desajustados do pai, consumidor em excesso de bebidas alcoólicas, e, nesse contexto, protagonista de maus-tratos aos elementos do agregado.

Tendo registado uma frequência escolar caracterizada por dificuldades de aprendizagem e desmotivação, viria a abandonar o sistema de ensino com cerca de 16 anos, sem concluir o 6º ano de escolaridade. Integrado no mercado de trabalho, como ..., o arguido obteve equivalência ao 2º ciclo (6º ano) de escolaridade aquando da aquisição de cédula ... no Centro de Formação Profissional ....

O início de actividade remunerada coincidiu com o desenvolvimento, em crescendo, de um processo de dependência da heroína, circunstancialismo que condicionou o seu percurso de vida, face às dificuldades em consolidar quadro de abstinência. Tendo o arguido, na globalidade, desenvolvido actividade remunerada (como ..., por conta de outrem, ou como ...), as receitas auferidas eram maioritariamente canalizadas para o consumo de drogas.

O recurso à intervenção da .../..., integrando programas de desintoxicação à base de metadona e/ou registando curtos período de tratamento, em regime de internamento, na Unidade de Desabituação da ..., não viria a se traduzir num quadro de abstinência consolidada.

A dificuldade do arguido cumprir as regras vigentes em meio prisional (nomeadamente ao nível da ausência de comportamentos aditivos) viria a impossibilitar a concessão de liberdade condicional.

Na presente reclusão tem registado um comportamento conforme ás normas do EP (integrado em programa de desintoxicação à base de metadona), tendo visitas regulares da mãe que salientou a sua disponibilidade para apoiar o processo de reinserção social do arguido.

Foi condenado:

- por decisão de 17.06.1996 [proc. 598/94 do Tribunal ...] na pena de 20 meses de prisão, suspensa por 3 anos, pela prática em 30.08.1993 de um crime de introdução [art. 177.2 do CP/82] e de um crime de furto qualificado [art. 196 e 297.2.h) do CP/82] - pena declarada extinta pelo cumprimento.

- por decisão de 02.12.1997 [proc. 78/97.... do Tribunal ...] na pena de 40 dias de multa à taxa diária de 400$00, pela prática em 31.08.1995 de um crime de ofensa à integridade física [art. 142º do CP/82] – pena declarada extinta pelo pagamento.

- por decisão de 14.03.2000, transitada em 03.04.2000 [proc. 154/99 do Tribunal ...] na pena de 2 anos e 6 meses de prisão suspensa por igual prazo, pela prática em 26.05.1995 de um crime de furto qualificado [art. 204º n.º 2 do CP] – pena declarada extinta pelo cumprimento.

- por decisão 18.10.2005, transitada em 02.11.2005 [proc. 14/04 do Tribunal ...] na pena de 150 dias de multa à taxa diária de 4 euros, pela prática em 04.11.2004 de um crime de furto [203º n.º 1 do CP] – pena declarada extinta pelo cumprimento.

- por decisão de 03.11.2009, transitada em 24.11.2009 [proc. 13/08... do Tribunal ...] na pena 12 meses de prisão suspensa por igual prazo, pela prática em 15.12.2008 de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade – a suspensão da execução da pena de prisão foi revogada.

3. Factos não provados

Não se logrou provar que:

a) os arguidos AA e BB adquiriram heroína/cocaína a fornecedores provenientes da (...) ....

b) o arguido RR vendeu diariamente heroína/cocaína a consumidores em ..., sendo fornecido pelos arguidos AA e BB.

c) entre Agosto e Outubro de 2020, os arguidos AA e BB, mediante prévio contacto telefónico, venderam, diariamente, heroína/cocaína a 82 consumidores no concelho ....

d) em 4), foi vendida cocaína.

e) no dia 9 de Julho de 2020, cerca das 15.32 hrs., em ..., o arguido BB vendeu heroína/cocaína a indivíduo não identificado por quantia não apurada.

f) o arguido AA também vendeu cocaína a GG.

g) o arguido AA também vendeu cocaína a HH.

h) a heroína vendida a II era uma bola.

i) a venda referida em 9) ocorreu com o arguido BB e a cocaína vendida a JJ era uma bola.

j) em 10), foi vendida cocaína.

l) em 13), foi vendida cocaína.

m) em 14) foi vendida cocaína.

n) no dia 2 de Setembro de 2020, cerca das 15.53 hrs., em ..., mediante prévio contacto telefónico, o arguido AA vendeu heroína ou cocaína a EEE.

o) em 15), foi vendida cocaína.

p) a heroína referida em 19) foi vendida por 120 euros e correspondia a 5 bolas.

q) no dia 8 de Setembro de 2020, cerca das 12.08 hrs., em ..., mediante prévio contacto telefónico, o arguido AA, conjuntamente com o arguido BB, vendeu heroína/cocaína a HH, por quantia não apurada.

r) no dia 8 de Setembro de 2020, cerca das 13.47 hrs., em ..., mediante prévio contacto telefónico, o arguido AA, conjuntamente com o arguido BB, vendeu heroína/cocaína ao condutor do veículo com matrícula ..-..-OQ por quantia não apurada.

s) no dia 21 de Setembro de 2020, cerca das 15.03 hrs., em ..., mediante prévio contacto telefónico, o arguido AA vendeu 30 euros de heroína/cocaína a GG por quantia não apurada.

t) os factos reportados a 24.09.2020, pelas 14.53 hrs., 15.28 hrs. e 16.37 hrs. ocorreram em ....

u) em 24.09.2021, cerca das 15.28 hrs., o arguido AA também vendeu heroína ou cocaína a FFF.

v) em 24), a heroína foi vendida por 120 euros e correspondia a 5 bolas; na mesma ocasião também foi vendida cocaína.

x) no dia 3 de Outubro de 2020, os arguidos AA e BB deslocaram-se a ... para adquirirem heroína/cocaína para subsequente venda a revendedores e a consumidores, tendo regressado a ... no dia 6 de Outubro de 2020.

z) a venda referida em 27) ocorreu cerca das 13.05 hrs. e foi feita também a XX e a venda referida em 28) ocorreu ás 13.27 hrs..

aa) TT comprou heroína e cocaína diariamente aos arguidos AA e BB entre Maio e Outubro de 2021.

ab) as compras de UU ao arguido AA ocorreram entre Maio e Outubro de 2020 (sendo a cocaína por 30 euros a dose) e também foram feitas diariamente ao arguido BB de Maio a Outubro de 2020 (comprando heroína por 30 euros e cocaína por 30 euros).

ac) entre Maio de 2020 e Outubro de 2020, o arguido BB vendeu a OO 12 vezes 5 cinco bolas de heroína por 120 euros.

ad) JJ comprou heroína e cocaína diariamente aos arguidos AA e BB entre Maio e Outubro de 2021.

ae) VV comprou heroína e cocaína diariamente aos arguidos AA e BB entre Maio e Outubro de 2021.

af) WW comprou heroína e cocaína diariamente aos arguidos AA e BB entre Maio e Outubro de 2021.

ag) GGG comprou heroína e cocaína diariamente aos arguidos AA e BB entre Maio e Outubro de 2021.

ah) FFF comprou heroína e cocaína diariamente aos arguidos AA e BB entre Maio e Outubro de 2021.

ai) HH comprou heroína e cocaína diariamente aos arguidos AA e BB entre Maio e Outubro de 2021.

aj) entre Maio de 2020 e Outubro de 2020, o arguido AA vendeu a II, por cerca de 30 vezes, heroína por 30 euros cada dose.

al) entre Maio de 2020 e Outubro de 2020, o arguido BB vendeu a KK, por cerca de 50 vezes, bolas de heroína por 25 euros.

am) entre Maio de 2020 e Outubro de 2020, o arguido AA vendeu a KK, por cerca de 20 vezes, bolas de heroína por 25 euros.

an) os arguidos AA e BB venderam diariamente heroína/cocaína entre Maio de 2020 e de Outubro de 2020 a SS, sendo a dose de heroína vendida por 30 euros e a dose de cocaína por 20 euros. 

ao) os arguidos AA e BB venderam diariamente heroína/cocaína entre Maio de 2020 e de Outubro de 2020 a XX, sendo a dose de heroína vendida por 30 euros e a dose de cocaína por 20 euros. 

ap) os arguidos AA e BB venderam diariamente heroína/cocaína entre Maio de 2020 e de Outubro de 2020 a LL, sendo a dose de heroína vendida por 30 euros e a dose de cocaína por 20 euros.

aq) os arguidos AA e BB venderam diariamente heroína/cocaína entre Maio de 2020 e de Outubro de 2020 a FF, sendo a dose de heroína vendida por 30 euros e a dose de cocaína por 20 euros.

ar) os arguidos AA e BB venderam diariamente heroína/cocaína entre Maio de 2020 e de Outubro de 2020 a YY, FFF, ZZ, PP, HHH, NN, MM, AAA, BBB, III ou GG, sendo a dose de heroína vendida por 30 euros e a dose de cocaína por 20 euros (diferentemente do que consta dos factos provados).

as) os factos referidos em 47) e 48) ocorreram pelas 14.39 hrs., e o arguido AA tinha mais dois telemóveis (além dos descritos), quatro cartões SIM e 252,10 euros, sendo este dinheiro proveniente da venda de heroína e cocaína e aqueles telemóveis e cartões e o telemóvel ... instrumentos da venda de heroína e cocaína.

at) o amoníaco era destinado a fazer doses individuais de heroína/cocaína, o rolo de alumínio e os sacos de plástico eram só usados para acondicionar heroína e cocaína.

au) o telemóvel ... era instrumento da venda de heroína e cocaína.

av) o arguido BB tinha, na sua residência ou em outro local, seis embalagens de heroína, com o peso de 11,890 gramas (grau de pureza de 4,7%), e uma balança digital.

ax) os telemóveis e os pedaços de papel referidos em 52) são instrumentos da venda de heroína.

az) o arguido RR destinava a cocaína e toda a heroína detidas à venda.

ba) o CCC também (de)tinha a heroína referida em 52), que destinava à venda.

bb) o arguido CCC sabia que pelo menos parte da heroína adquirida pelo arguido RR era destinada à venda, teve essa situação como consequência necessária da aquisição da droga, ou representou aquela possibilidade, com a qual se conformou.

bc) o arguido CCC sabia que a heroína detida pelo arguido RR seria consumida por este em período superior a 10 dias. 

bd) o arguido CCC sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei penal, querendo deter heroína, sem estar legalmente habilitado

be) o arguido RR quis deter cocaína para a vender a terceiros.

*

B

O Direito

As questões a que importa responder são as seguintes:

Arguido AA:

a) Medida da pena aplicada e eventual suspensão.

Arguido BB:

b) A qualificação jurídica dos factos

c) Medida da pena aplicada e eventual suspensão.

*

a) Medida da pena aplicada e eventual suspensão.

§ 1 O arguido AA entende que lhe deve ser aplicada «uma pena menos gravosa, nomeadamente uma pena de prisão suspensa na sua execução, ou se tal não for o entendimento uma pena de prisão efetiva no seu limite mínimo».

§ 2 Em tema de medida da pena aplicada ao arguido AA diz a decisão recorrida:

«[Na moldura penal abstrata de 4 a 12 anos de prisão] a pena concreta a aplicar será determinada (…) em função da culpa do agente, que funciona como limite máximo da punição, e ainda das exigências de prevenção, geral e especial, postas pelo caso em apreço (art. 40º do CP) – em cuja valoração se atenderá a todas as concretas circunstâncias que, no caso, não fazendo parte do tipo legal, deponham contra ou a favor do agente (art. 71º n.º 2 do CP), designadamente:

- o grau de ilicitude do facto, ou seja, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação de deveres impostos ao agente [(…) releva a extensão da conduta adoptada por cada um deles, a dualidade e natureza das drogas em causa, o carácter lucrativo das suas actividades, a quantidade de droga detida pelo arguido AA e ainda, atenuando o desvalor dos factos, o posicionamento dos arguidos na base do processo de tráfico];

- a intensidade do dolo ou negligência [o dolo foi directo e intenso para todos os arguidos, na medida das concretas actividades imputadas];

- os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram [obtenção de vantagens patrimoniais, com indiferença por interesses comunitários, para os arguidos AA (…)];

- as condições pessoais do agente e a sua situação económica [o arguido AA tem família constituída, com quem contam, e alguma inserção laboral];

- a conduta anterior ao facto e posterior a este [o arguido AA tem … condenação pela prática de crime estradal; o arguido AA admitiu a autoria do crime, com significativo relevo no apuramento dos factos;

- a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena [nada se apurou com relevo nesta sede].

Neste quadro, é sensível a culpa dos arguidos; as exigências de prevenção especial são elevadas para todos os arguidos, atendendo à natureza da actividade do arguido AA; são exigentes as preocupações de prevenção geral de reintegração (dados os reflexos comunitários dos crimes em causa).

Tendo em conta estes dados, julga-se ajustada a fixação da seguinte pena 5 anos e 8 meses de prisão (arguido AA)».

§ 3 Alega o recorrente a confissão em sede de audiência de julgamento, com significativo relevo no apuramento dos factos. Dos factos provados consta (59) que o arguido admitiu a sua conduta de venda de drogas, e aquando da determinação da medida da pena o tribunal considerou que o arguido AA admitiu a autoria do crime, com significativo relevo no apuramento dos factos. Temos uma confissão relevante, mas também se apurou que o arguido não consome drogas o que, como não deixa de registar o acórdão, permite a conclusão de que o arguido levava a cabo a atividade delituosa apurada tendo em vista apenas o lucro do tráfico. Estão identificados largas centenas de atos de tráfico no período de um ano. Há um grande grau de ilicitude, atuou o arguido com dolo direto, o fim da sua atuação merece elevada censura dado que o arguido agiu visando como vimos a obtenção de vantagens patrimoniais, desconsiderando e indiferente com as consequências graves que o consumo envolve a nível comunitário, com a degradação dos seres humanos que diariamente o procuravam. A culpabilidade em sentido lato é apreciável, dado que o arguido estava ciente dos comportamentos que levava a cabo. As exigências de prevenção geral e especial são notoriamente altas. Neste quadro factual não colhe a crítica do recorrente, a confissão foi devidamente ponderada pelo acórdão recorrido.

§ 4 A pena aplicada é proporcionada à necessidade de reafirmação das normas violadas que o caso reclama. As exigências de prevenção geral não permitem que a um caso desta gravidade seja aplicada a pena de prisão efetiva no seu limite mínimo. Face ao exposto a pena aplicada será integralmente mantida. Porque aplicada em medida superior a cinco anos, a pena de prisão não é passível de suspensão pelo que fica prejudicada a segunda questão posta pelo recorrente. Improcede o recurso do arguido AA na totalidade.

b) A qualificação jurídica dos factos

§ 5 Sustenta o recorrente BB que «a factualidade (…) pode ser enquadrável no tipo privilegiado, p. e p. pelo artigo 25. °, alínea a), do Decreto-Lei n.° 15/93, de 22 de Janeiro. Ou, quando muito, na designada «zona cinzenta» entre o crime base previsto no artigo 21.º do D.L. nº 15/93, de 22 de Janeiro e o de menor gravidade previsto no artigo 25.° do mesmo diploma legal, conforme aponta o douto Acórdão do STJ de 23-11-2011, consultável em www.dgsi.pt.» Invoca «a imagem global do facto, ponderadas conjuntamente todas as circunstâncias relevantes que nele concorrem, que permitirá a identificação de uma situação de ilicitude mitigada, de menor gravidade, ou seja, uma situação em que o desvalor da ação é claramente inferior ao padrão ínsito no tipo fundamental de crime – o tráfico de estupefacientes previsto no art. 21º do DL nº 15/93». Sustenta que «vendia directamente o produto a consumidores finais; que essas transacções eram efectuadas na rua, sujeitando-se a ser visionado e detectado pelos órgãos de polícia criminal, como veio, de facto, a suceder; a falta de sofisticação dos meios utilizados; o período de duração da actividade ilícita foi de cerca de 6 (seis) meses, com períodos de inatividade; a área de actuação do recorrente era circunscrita a uma localidade. Os lucros também não seriam elevados, face à quantia que tinha em seu poder quando foi detido – cerca de € 352,10 euros – cfr. ponto 49 dos factos provados; a sua condição de vida é modesta, o que resulta cristalinamente da factualidade provada no ponto 58 da matéria assente, acima transcrito na parte que aqui releva».

§ 6 Com a precedente alegação questiona o recorrente a qualificação jurídica dos factos e concretamente a sua subsunção no crime de tráfico de estupefacientes da previsão do art. 21.º/1, DL 15/93, sustentando que a conduta apurada se deve subsumir ao trafico de estupefacientes previsto e punido no art. 25º, DL 15/93.

§ 7 Dispõe o art. 25.º do DL 15/93: «Se, nos casos dos artigos 21.º e 22.º, a ilicitude do facto se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta nomeadamente os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção, a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações, a pena é de:

a) Prisão de um a cinco anos, se se tratar de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III, V e VI;

b) Prisão até 2 anos ou multa até 240 dias, no caso de substâncias ou preparações compreendidas na tabela IV».

As substâncias traficadas constam das tabelas I – A e I – B.

§ 8 A análise dos tipos legais de tráfico de estupefacientes não deve ser dicotómica, apenas entre o tipo fundamental de ilícito (art. 21.º/1, DL 15/93) e o tipo privilegiado em razão da menor gravidade do facto (art. 25.º DL 15/93), mas estender-se ao art. 24.º, que prevê um tipo agravado de tráfico de estupefacientes, abrangendo situações de especial ilicitude do facto. Mesmo o art. 21.º deve ser considerado na sua completude, pois tem um âmbito de aplicação alargada, com agravação (nºs 2 e 3) e atenuação (n.º 4) de penas. Só uma ponderação global fornece uma visão integrada da resposta legislativa ao fenómeno do tráfico de estupefacientes: o tipo fundamental de tráfico no art. 21.º/1, um tipo de crime privilegiado no art. 25.º, e um tipo de crime qualificado no art. 24.º.

§ 9 O tipo privilegiado de tráfico de menor gravidade (art. 25.º) pressupõe uma dimensão da ilicitude do facto, consideravelmente menor do que a ínsita no tipo fundamental (art. 21.º), enquanto o tipo qualificado, exigindo em regra uma ilicitude maior que a pressuposta no art. 21.º, beneficia de uma indicação taxativa de situações passíveis de integrar o tipo qualificado (ac STJ 13.09.2018, wwwdgsi.pt).

§ 10 Em matéria de tráfico e outras atividades ilícitas, dispõe o art. 21.º/1, DL 15/93 «Quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no artigo 40.º, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos». Por sua vez em tema de agravação dispõe o art.º 24.º, DL 15/93, «as penas previstas nos artigos 21.º e 22.º são aumentadas de um quarto nos seus limites mínimo e máximo se: a) As substâncias ou preparações foram entregues ou se destinavam a menores ou diminuídos psíquicos; b) As substâncias ou preparações foram distribuídas por grande número de pessoas; c) O agente obteve ou procurava obter avultada compensação remuneratória; d) O agente for funcionário incumbido da prevenção ou repressão dessas infrações; e) O agente for médico, farmacêutico ou qualquer outro técnico de saúde, funcionário dos serviços prisionais ou dos serviços de reinserção social, trabalhador dos correios, telégrafos, telefones ou telecomunicações, docente, educador ou trabalhador de estabelecimento de educação ou de trabalhador de serviços ou instituições de acção social e o facto for praticado no exercício da sua profissão; f) O agente participar em outras actividades criminosas organizadas de âmbito internacional; g) O agente participar em outras actividades ilegais facilitadas pela prática da infracção; h) A infracção tiver sido cometida em instalações de serviços de tratamento de consumidores de droga, de reinserção social, de serviços ou instituições de acção social, em estabelecimento prisional, unidade militar, estabelecimento de educação, ou em outros locais onde os alunos ou estudantes se dediquem à prática de actividades educativas, desportivas ou sociais, ou nas suas imediações; i) O agente utilizar a colaboração, por qualquer forma, de menores ou de diminuídos psíquicos; j) O agente actuar como membro de bando destinado à prática reiterada dos crimes previstos nos artigos 21.º e 22.º, com a colaboração de, pelo menos, outro membro do bando; l) As substâncias ou preparações foram corrompidas, alteradas ou adulteradas, por manipulação ou mistura, aumentando o perigo para a vida ou para a integridade física de outrem». Finalmente, quanto ao tráfico de menor gravidade diz o art. 25.º, DL 15/93, «se, nos casos dos artigos 21.º e 22.º, a ilicitude do facto se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta nomeadamente os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção, a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações, a pena é de: a) Prisão de um a cinco anos, se se tratar de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III, V e VI; b) Prisão até 2 anos ou multa até 240 dias, no caso de substâncias ou preparações compreendidas na tabela IV».

§ 11 O crime de tráfico de menor gravidade pressupõe situações em que o tráfico de estupefacientes, tal como se encontra definido no tipo base, se processa de forma a ter-se por consideravelmente diminuída a ilicitude. A título exemplificativo, indicam-se no preceito (art. 25.º) como critério ou índice da ilicitude consideravelmente diminuída as seguintes circunstâncias objetivas «os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da ação, a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações».

§ 12. Os pressupostos de aplicação da norma respeitam, todos eles, ao juízo sobre a ilicitude do facto, uns à própria ação típica (meios utilizados, modalidade, circunstâncias da ação), outros ao objeto da ação típica (qualidade – percentagem de presença do princípio ativo – ou quantidade do estupefaciente), pelo que não relevam, como diminuindo a ilicitude, fatores atinentes ao juízo sobre a culpa, quer relativos ao desvalor da atitude interna do agente, ou à sua personalidade (ac STJ. 15.01.2020, disponível em wwwdgsi.pt). Assim, nas contas da correta ou incorreta subsunção jurídica da conduta apurada não entram o risco de o arguido «ser visionado e detectado pelos órgãos de polícia criminal» e «a sua condição de vida modesta».

§ 13. Feita a precisão que antecede, resulta que em regra a menor ilicitude afere-se pela ponderação dos meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da ação, a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações, o número de pessoas a quem foi realizada a venda, distribuição, cedência etc., ou o número de vezes em que tal ocorreu em relação à mesma pessoa. Nesta equação ganha especial relevo contra a pretensão do arguido o facto, que não podemos ignorar, de ao arguido não serem conhecidos hábitos de consumo de drogas (ac. STJ de 23.11.2011, disponível em www.dgsi.pt).

§ 14 O arguido dedicou-se ao tráfico durante um período de cerca de um ano (facto provado 33). Foram identificados mais de centena e meia de atos de tráfico, nem sempre de pequenas doses [(25) No dia 6 de Outubro de 2020, cerca das 20.33 hrs., mediante prévio contacto telefónico, o arguido BB vendeu um saco de heroína com o peso de 23,898 gramas a RR por 300 euros; (26) No período de um mês que antecedeu o descrito em 25), o arguido RR comprou pelo menos mais duas vezes heroína (cerca de 20 gramas de heroína de cada vez) ao arguido BB]. O «comprador» RR, destinava esses produtos, quer ao seu consumo pessoal, quer a revenda a consumidores [(51) … o saco com heroína com o peso de 23,898 gramas adquirido ao arguido BB (como referido em 25), com o grau de pureza de 5,7%, heroína esta da qual o arguido RR destinava pelo menos metade à venda]. Durante o período de tempo em que o BB esteve hospitalizado (desde 19 de agosto ao início de Setembro de 2020) e com o seu acordo, o arguido AA passou a atender o telemóvel do BB, nos contactos relacionados com a venda de heroína/cocaína.

§ 15 Sendo no caso irrelevante saber se os atos de tráfico se limitaram a ... ou não, porquanto importa atender às quantidades traficadas e o tráfico pode estender-se por várias localidades e ser diminuto e concentrar-se numa localidade e envolver grandes quantidades, além de que nos dias de hoje, com a mobilidade facilitada, a venda pode ocorrer numa localidade e abastecer várias localidades, diremos que também ocorreu em ... (facto provado 33). Finalmente a percentagem de presença do princípio ativo é pequena.

§ 16 Procedendo a uma valorização global da conduta do BB ponderando o conjunto da ação, tendo em conta o grau de lesividade ou de perigo de lesão (o crime de tráfico é um crime de perigo abstrato) do bem jurídico protegido (saúde pública) (ac. STJ de 15.01.2020, disponível em www.dgsi.pt), face à ausência de circunstâncias provadas que diminuam consideravelmente a ilicitude da ação delituosa do recorrente, não merece reparo a integração da apurada conduta no tipo fundamental de ilícito do art. 21.º do DL 15/93.

c) Medida da pena aplicada.

§ 17 Sustenta o recorrente em via subsidiária que, mantendo-se a qualificação jurídico-penal operada pelo Tribunal “a quo”, sempre a pena aplicada se mostra excessiva e desproporcional.

Na ótica do recorrente há circunstâncias posteriores à prática dos factos em apreço nos autos, que devem ser consideradas será o caso de se encontrar «a cumprir medida de coação de permanência na habitação com vigilância eletrónica desde o dia 19 de outubro de 2020 (cfr. Acto da D.G.R.S.S.P com a refª Citius ...), ou seja, há mais de 1 (um) ano; Que durante este período, demonstrou recetividade às orientações da DGRSSP e consequente capacidade no cumprimento das regras e obrigações a que está sujeito, conforme decorre cristalinamente dos Relatórios de acompanhamento da medida de obrigação de permanência na habitação; que teve um episodio agudo e esteve internado no hospital em ..., desde 19 de Julho de 2021 ao dia 26 de Julho de 2021, por motivos clínicos urgentes e inadiáveis, na especialidade de gastroenterologia (…); que padece de grave problema de saúde que o torna especialmente vulnerável, mormente, à doença da COVID-19 e respectivas variantes; tem um projecto de vida familiar e laboral, etc». Por tudo o que antecede, entende que lhe deveria ter sido aplicada uma pena mais próxima do mínimo legal da moldura abstrata que é de 4 (quatro) anos e suspensa na sua execução.

§ 18 Em tema de determinação da medida concreta da pena dispõe o art. 71.º/2/d/e, CP, que o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, nomeadamente, as condições pessoais do agente e a conduta posterior ao facto, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime. Ora as circunstâncias posteriores ao facto invocadas pelo recorrente, quer a sua situação clínica, quer o «respeito» pelas regras decorrentes da medida de coação aplicada não têm o condão atenuativo pretendido. O alegado cumprimento das regras é conatural à vida em sociedade e o «respeito» pela medida de coação aplicada teve como contrapartida a sua manutenção, pois caso o arguido não respeitasse as condições impostas, poderia ter sido substituída por medida mais gravosa (art. 203.º, CPP). A conduta do arguido, juridicamente unificada, tem na sua base mais de centena e meia de atos de tráfico dados como provados, pelo que estamos perante um grau de ilicitude elevado; não se limitou, como já referido; à venda de pequenas doses, a gravidade das consequências do tráfico são por demais conhecidas não precisando de ser enfatizadas, atuou o arguido com dolo direto; não sendo consumidor atuou em vista do lucro propiciado pela atividade. Perante este quadro e numa moldura penal [de pena] de prisão de 4 a 12 anos não merece censura a pena aplicada de 5 (cinco) anos e 3 (três) meses de prisão. Consequentemente fica prejudicada a questão da eventual suspensão da pena de prisão porque aplicada em medida superior a 5 anos de prisão (art. 50.º/1, CP). Improcede na totalidade o recurso do arguido BB.

Decisão:

Nega-se provimento aos recursos interpostos pelos arguidos AA e BB.
Custas pelo Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 6 UC (art.º 8º n.º 9 do RCP e Tabela III anexa).

Supremo Tribunal de Justiça, 07 de abril de 2022.

António Gama (Relator)

Orlando Gonçalves

Eduardo Loureiro