Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | 3.ª SECÇÃO | ||
| Relator: | ANTERO LUÍS | ||
| Descritores: | RECURSO PENAL ABSOLVIÇÃO EM 1.ª INSTÂNCIA E CONDENAÇÃO NA RELAÇÃO VIOLÊNCIA DOMÉSTICA COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA IMPROCEDÊNCIA | ||
| Data do Acordão: | 10/02/2024 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
| Decisão: | NEGADO PROVIMENTO | ||
| Sumário : | I. No crime de violência doméstica um único acto, ainda que isolado, é passível de preencher o tipo, desde que essa acção seja apta a colocar em causa, de forma intolerável, a dignidade da vítima ou a sua liberdade de determinação; II. O crime de violência doméstica encontra-se, numa relação de especialidade, com o crime de ofensas à integridade física simples e de subsidiariedade expressa em relação a outros crimes punidos mais gravemente “por força de outra disposição legal” (artigo 152º, nº 1 in fine do Código Penal); III. Comete o crime de violência doméstica o arguido que no leito conjugal, ao ser questionado pela ofendida sobre uma pretensa infidelidade, desfere-lhe uma cotovelada no peito e depois, com ambos os elementos do casal já levantados da cama, agredi-a com vários socos na cabeça e, por várias vezes, apelidou-a de “ciumenta” e “louca” e posteriormente, munido de uma faca, apontou-a ao pescoço da vítima e aproximou a faca do abdómen da mesma e disse-lhe “eu furo-te a barriga”; IV. A persistência e intensidade na acção, revela uma manifestação de superioridade do arguido em relação à sua companheira, que visa desconsiderar, diminuir e mesmo humilhar a mesma, ao não admitir ser questionado ou contrariado, reagindo com ofensas e ameaças desproporcionais à questão que lhe foi colocada, impondo a vontade pela força e a aniquilação da vontade da vítima. | ||
| Decisão Texto Integral: |
Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça I. Relatório 1. Por acórdão de 19 de Março de 2024 proferido nos presentes autos que correm termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Central Criminal ... - Juiz ..., foi o arguido AA absolvido da prática, como autor material, sob a forma consumada, em concurso efetivo, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alíneas b) e c), do Código Penal e de um outro crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, d) do Código Penal, por que havia sido acusado. 2. Dessa decisão absolutória, o Ministério Público na 1ª instância interpôs recurso para o Tribunal da Relação do Porto a qual, por acórdão de 10 de Julho de 2024, na procedência desse recurso, mediante alteração da matéria de facto provada, condenou o arguido AA por um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alíneas b) e c), do Código Penal, na pena de dois anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, com regime de prova, e bem assim no pagamento à vítima da indemnização de mil euros. 3. Inconformado com tal acórdão, o arguido interpôs recurso para este Supremo Tribunal de Justiça, apresentando as seguintes conclusões: (transcrição) A. O Arguido foi absolvido em 1.ª instância, mas, posteriormente, condenado por Acórdão do Tribunal da Relação do Porto por um crime de violência doméstica, previsto no artigo 152º nºs 1 als. b) e c) do Código Penal, na pena de dois anos de prisão, com execução suspensa por igual período, com regime de prova, bem assim como a pagar à vítima a indemnização de mil euros. B. O Arguido não concorda com tal decisão, desde logo porque os factos provados não integram o crime de violência doméstica. C. O bem tutelado no crime de violência doméstica – como é habitualmente apontado -, é a pessoa e a sua dignidade humana, compreendendo nesta a saúde, a integridade física e psíquica, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual e a honra, de tal forma que a violência desenvolvida pelo agente sobre a vítima redunde num abuso de poder daquele e numa situação de degradação e humilhação desta. D. Os factos praticados, isolados ou reiterados, integrarão este tipo legal de crime se, apreciados à luz do circunstancialismo concreto da vida familiar e a sua repercussão sobre a mesma, transmitirem este quadro de degradação da dignidade de um dos elementos, incompatível com a dignidade e liberdade pessoais inerentes ao ser humano. E. Uma vez que qualquer crime contra as pessoas atenta contra a sua dignidade, então esta violação que remete aquelas ações para o tipo legal da violência doméstica terá que revelar a tal especial ofensa à dignidade humana que determinou o surgimento deste tipo especial que a tutela. F. In casu, atendendo aos factos dados como provados, terá de se concluir que não se encontram preenchidos os elementos objetivos e subjetivos do tipo legal de crime de violência doméstica que vinha imputado ao arguido, razão pela qual decidiu bem o Tribunal de 1.ª instância ao absolver o mesmo. G. Na realidade, o único acto ilícito que está em causa é o descrito nos factos provados 6 e 7, dos quais resulta que: “6. Nessa sequência, o arguido desferiu uma cotovelada no peito da sua companheira. 7. Depois, com ambos os elementos do casal já levantados da cama, o arguido desferiu vários socos na cabeça da sua companheira e, por várias vezes, apelidou-a de “ciumenta” e “louca”.” H. Os actos praticados pelo arguido não são suscetíveis de configurar a ocorrência de um crime de violência doméstica, porque não assumem a tal intensa crueldade, insensibilidade, desprezo, aviltamento da dignidade humana necessárias ao crime pelo qual foi condenado. Não está em causa um comportamento unilateralmente empreendido no âmbito de uma relação de domínio do arguido sobre a queixosa, colocando esta numa relação de supra/infra ordenação. I. Efetivamente, quer em termos de “qualidade” dos atos, quer ainda de “quantidade” dos mesmos, não se vislumbra uma conduta maltratante e tradutora de um acentuado desrespeito pela dignidade da queixosa– como pessoa e mulher– mas uma factualidade que não alcança a reiteração nem agravidade suficientes para que se possam considerar como integradora de um cenário global de violência doméstica. J. Não há relação de subjugação ou humilhação de um dos envolvidos em relação ao outro. K. Inexiste, assim, aquele plus de especial ofensa da dignidade humana no quadro de degradação da dignidade de um dos elementos da relação capaz de erigir a conduta subjudice à tutela que se pretende efetivar através do tipo legal de crime que vinha imputado ao arguido. L. É apodítico que os factos em causa não integram a prática do crime de violência doméstica. Ademais, M. o facto de se ter dado como provado que o Arguido desferiu uma cotovelada no peito da sua companheira e vários socos na cabeça da mesma, tal poderia, eventualmente, em abstrato, configurar a prática de um crime de ofensa à integridade física do artigo 143.º do Código Penal. Sendo tal crime de natureza semi-pública, a declaração da queixosa no sentido de desistência de queixa torna a referida atuação insindicável, por falta de um pressuposto processual que confira legitimidade à ação penal. N. No que concerne aos factos relacionados com BB, tal atuação integraria, hipoteticamente, ao menos em abstrato, a prática de um crime de ofensa à integridade física do artigo 143.º do Código Penal. Também nesta situação a declaração de desistência de queixa (que apenas podia ser apresentada pela progenitora CC em representação do seu filho menor BB) impede a apreciação de tal questão substantiva, por falta de pressuposto legitimador da ação penal. O. Em relação ao episódio da faca, estaríamos perante a eventual prática de um crime de ameaça, p. e p. pelo artigo 153.º n.º1 do Código Penal e, também ele, dependente de queixa (n.º 2 do preceito em causa), o que, face à declaração de desistência, não pode ser criminalmente perseguido. P. Como tal, salvo o devido e natural respeito, sempre teria que se concluir pela absolvição do Arguido, ao contrário do que decidiu o Tribunal da Relação do Porto. Não o fazendo, ao decidir como decidiu, o Tribunal da Relação violou, entre outros, o disposto no artigo 152.º do Código Penal. Q. Face a todo o antedito, sempre terá de se concluir, tal como decidido pelo Tribunal de 1.ª instância, pela total absolvição do Arguido, devendo o Acórdão proferido ser substituído por outro que absolva na íntegra o Arguido. Nestes termos, e nos demais de Direito que V. Exa. doutamente suprirá, requer-se que seja o presente Recurso julgado totalmente procedente, absolvendo-se o Recorrente, pois só assim será feita JUSTIÇA! (fim de transcrição) 3. O Ministério Público junto do Tribunal da Relação do Porto, respondeu ao recurso rebatendo os argumentos aduzidos pelo recorrente, não apresentando, contudo, conclusões. 3. Neste Supremo o Senhor Procurador-Geral Adjunto, emitiu o seu douto parecer e após aderir aos argumentos aduzidos na resposta ao recurso, concluiu pela improcedência do mesmo. 4. Notificado o recorrente, o mesmo não respondeu. Realizado o exame preliminar, colhidos os vistos, cumpre decidir. II. Fundamentação 5. É pacífica a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça1 e da doutrina2 no sentido de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso que ainda seja possível conhecer.3 Da leitura dessas conclusões, o recorrente apenas coloca a este Supremo Tribunal, a qualificação jurídica do tipo legal por que foi condenado. 5.1. Do acórdão do Tribunal da Relação do Porto, com a alteração da matéria de facto efectuada, resultam provados, os seguintes factos: (transcrição) 1. Desde data não concretamente apurada AA e a vítima CC, no Brasil donde são originários, viviam em comunhão de mesa, cama e habitação, como de marido e mulher se tratassem. 2. O casal mudou-se para território nacional em junho de 2022. 3. O casal fixou residência na ..., em .... 4. Com eles viviam os filhos da vítima CC, os menores BB, nascido a .../.../2009, e DD, nascida a .../.../2005. 5. No dia 18 de fevereiro de 2022, pelas 22h30, quando o casal se encontrava na residência comum, já deitado na cama, a vítima confrontou o arguido com a circunstância dele manter conversas no chat com outras mulheres. 6. Nessa sequência, o arguido desferiu uma cotovelada no peito da sua companheira. 7. Depois, com ambos os elementos do casal já levantados da cama, o arguido desferiu vários socos na cabeça da sua companheira e, por várias vezes, apelidou-a de “ciumenta” e “louca”. 8. Em consequência direta e necessária de cada uma das pancadas desferidas pelo arguido CC sofreu dores e mal-estar. 9. Alertado pelo barulho vindo do quarto do casal, o menor BB deslocou-se a essa divisão da casa. 10. Quando aí chegou, o arguido abriu a porta do quarto e saiu, embatendo com o seu corpo no do BB e fazendo-o cair ao chão. 11. Dirigindo-se à sua companheira, o denunciado disse “É para o teu filho aprender a respeitar um homem”. 12. O arguido dirigiu-se novamente até à sua companheira, e quando se encontravam na cozinha, muniu-se de uma faca que ali se encontrava e apontou-a ao pescoço de CC. Depois aproximou essa faca do abdómen da sua companheira e anunciou-lhe “eu furo-te a barriga”, o que a levou a gritar com medo. Mais se provou que: 13. Do relatório social do arguido consta que: À data dos factos, AA residia com a ofendida, sendo que o casal, de origem brasileira, tomou a decisão de vir viver para Portugal, onde chegaram a 22 de julho de 2022, com os dois filhos da ofendida, que contam atualmente 18 e 14 anos, na morada constante nos autos. Esta situação sofreu alteração quando o arguido decidiu terminar a relação, em finais de fevereiro /março de 2023, saindo de casa. Numa fase inicial, a ofendida permaneceu na habitação com os filhos, mas, posteriormente, por falta de condições financeiras, segundo o arguido, mudou-se para uma habitação que se situa nas traseiras da sua oficina, na morada constante neste documento. Por seu turno, o arguido pernoita na oficina, onde tem um quarto e uma casa de banho. Segundo o arguido, o relacionamento, que se iniciou no Brasil há cerca de 5 anos, decorreu inicialmente de forma positiva, situação que se alterou quando, assume, estabeleceu outro relacionamento em paralelo, que cessou pouco tempo depois e pese embora a tentativa de reconciliação que o casal ensaiou, a mesma não resultou, atribuindo à ofendida atitudes de desconfiança, ciúme e controlo que viriam a estar na origem de desentendimentos verbais entre os dois e o fim do relacionamento. Do contacto com a ofendida, esta refere que, efetivamente, o termo da relação e os desentendimentos do casal tiveram origem no facto do arguido ter estabelecido outro relacionamento e estar registado em sites de encontros amorosos. Pese embora estejam a residir lado a lado, arguido e ofendida referem não manter qualquer tipo de interação e, quando tal é necessário, nomeadamente por causa das despesas de manutenção dos espaços que residem serem comuns, o filho da ofendida faz de intermediário, reportando a não existência de qualquer tipo de conflito. A ofendida referiu ainda ser sua intenção regressar definitivamente com os descendentes ao seu país de origem, em julho de 2025. O arguido descende de um agregado familiar, composto pelos progenitores e 3 irmãos, referindo a existência de 6 irmãos uterinos, mais velhos, cuja dinâmica foi marcada negativamente pelas dificuldades financeiras; o pai era ... em ..., o que determinou a vinda da progenitora com os descendentes para S. Paulo, em busca do apoio da respetiva família de origem, sendo que pouco tempo depois, na sequência de problemas de saúde, aquela viria a falecer, contava o arguido 12 anos. O arguido refere que ficou, numa fase inicial e por um curto período de tempo, com uns tios maternos, passando pouco tempo depois a viver numa fazenda agrícola com uns senhores a quem foi entregue pelos tios e onde permaneceu até aos 18 anos. Refere que desde a ida para S. Paulo e a morte da mãe nunca mais teve qualquer informação/notícia do progenitor. AA refere que nunca concluiu qualquer grau de ensino, referindo as dificuldades financeiras e a morte da progenitora como fatores que interferiram negativamente nesta dimensão da sua vida, mas, ao longo dos anos, foi procurando colmatar esta falha através, nomeadamente, da leitura e de estudo de várias matérias que foi realizando. O arguido iniciou atividade laboral precocemente na agricultura, com o pai e posteriormente na fazenda onde esteve a viver até aos 18 anos, altura em que foi viver para ..., onde iniciou atividade como ajudante de ..., inicialmente por conta de outrem e mais tarde com a sua própria empresa. Contraiu matrimónio aos 18 anos, tendo deste matrimónio 3 filhas, atualmente com 22, 13 e 12 anos e que cessou quando o arguido estabeleceu relação com a ofendida. Afirma manter relação de grande proximidade com as descendentes que vivem no Brasil com o ex-cônjuge, contribuindo com montantes variáveis de acordo com a sua disponibilidade. AA quando chegou a Portugal trabalhou como ... por conta de outrem, cerca de 8/9 meses, findos os quais estabeleceu-se por conta própria, situação que não sofreu alteração. O arguido refere que o seu negócio gere cerca de 7.000EUR mensais ilíquidos, tendo com este montante de assegurar as despesas da oficina, nomeadamente o vencimento de dois funcionários, cujos calores ascendem a cerca de 2.000EUR, o pagamento da renda do espaço, que engloba a casa onde reside a ofendida, no valor de 1.800EUR, a que acrescem as despesas com água, energia elétrica e TV por cabo com internet, que ascendem a cerca de 280EUR de todo o espaço. O arguido refere ainda que tem o pagamento mensal do ginásio que frequenta, 50EUR mensais e, pelo facto de não lhe ser possível cozinhar dentro da oficina, efetua as refeições num dos supermercados ..., referindo um gasto mensal de cerca de 650EUR. O arguido descreve a situação financeira como capaz de fazer face às suas despesas do agregado, com uma gestão criteriosa dos recursos. O quotidiano do arguido organiza-se, segundo verbalizou, em função do exercício da atividade laboral, referindo que o tempo livre é passado no ginásio, bem como com a namorada, com quem estabeleceu relação afetiva há cerca de um mês, referindo ser ainda muito precoce avaliar o futuro da relação, desconhecendo aquela este seu confronto com o sistema de administração da justiça. Como projeto futuro o arguido pretende ver o seu negocio aumentar, bem como manter residência no nosso país, ponderando ir ao Brasil apenas para visitar as filhas. Na deslocação ao meio de residência, não nos foram transmitidos sentimentos de rejeição face ao arguido. Da articulação com Comando Metropolitano ..., inexistem registos, para além dos factos que deram origem ao presente processo. Este é, segundo afirma, o primeiro confronto com o sistema da administração da justiça penal, verbalizando algum receio face ao seu desfecho e às consequências que daqui lhe podem advir. Verbaliza alguma consciência crítica sobre a natureza do crime de que está acusado e capacidade de reflexão sobre a problemática criminal em apreço. AA manifestou-se genericamente disponível para o que lhe for determinado judicialmente, em caso de eventual condenação. 14. Não lhe são conhecidos antecedentes criminais. - Com a sua conduta, o arguido quis e conseguiu maltratar física e psiquicamente a sua companheira e sabia que os seus actos afectavam a sua dignidade pessoal e equilíbrio psicológico e emocional. - Agiu o arguido de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei. (fim de transcrição) 6. Apreciando 6.1 Antes de apreciar a questão suscitada pelo recorrente, importa clarificar a competência deste Supremo Tribunal de Justiça. De acordo com os artigos 46º da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto (Lei da Organização do Sistema Judiciário) e artigo 434º do Código de Processo Penal, os poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça restringem-se “exclusivamente ao reexame da matéria de direito, sem prejuízo do disposto nas alíneas a) e c) do n.º 1 do art. 432º”. Por força das referidas normas e do sistema de recursos para o Supremo Tribunal de Justiça, a matéria de facto deve-se considerar definitivamente estabilizada pelas instâncias, excepto se estivermos em presença de detecção oficiosa dos vícios do artigo 410º nº 2 do Código de Processo Penal.4 Neste sentido, qualquer suposto erro de julgamento não pode ser corrigido pelo Supremo Tribunal de Justiça, fora, repete-se, do conhecimento oficioso dos vícios do 410º, nº2. Feito este esclarecimento, vejamos a pretensão do recorrente. 6.2 Como ficou referido anteriormente, o recorrente apenas coloca em crise a qualificação jurídica efectuada no douto acórdão do Tribunal da Relação do Porto, alegando que a factualidade dada por assente apenas integra a prática pelo recorrente de um ou mais crimes de ofensas à integridade física simples, em relação aos quais houve desistência de queixa pela ofendida. Encontrando-se estabilizados os factos anteriormente elencados, vejamos, agora, a argumentação aduzida em sede de qualificação jurídica na referida decisão. Considerou-se no referido acórdão: (transcrição) Em consequência do acabado de expor, é agora o momento de verificar se os factos integram ou não o crime de violência doméstica. O tribunal recorrido considerou que integram apenas crimes de ofensa à integridade física e ameaça, os quais, por dependerem de queixa e a vítima ter declarado desistir dela, não são puníveis por extinção do procedimento criminal. O afastamento da qualificação como crime de violência doméstica, depois da exposição dos traços gerais doutrinários e jurisprudenciais considerados mais pertinentes, está assim justificado no acórdão recorrido: “Com efeito, a imagem global que se extrai do elenco fáctico apurado não é a adoção de um comportamento unilateralmente empreendido no âmbito de uma relação de domínio do arguido sobre a queixosa, colocando esta numa relação de supra/infra ordenação. Com efeito, quer em termos de “qualidade” dos atos, quer ainda de “quantidade” dos mesmos, não se vislumbra aqui uma conduta maltratante e tradutora de um acentuado desrespeito pela dignidade da queixosa – como pessoa e mulher – mas uma factualidade que não alcança a reiteração nem a gravidade suficientes para que se possam considerar como integradora de um cenário global de violência doméstica. Repise-se : não há relação de subjugação ou humilhação de um dos envolvidos em relação ao outro”. “Inexiste, assim, a nosso ver, aquele plus de especial ofensa da dignidade humana no quadro de degradação da dignidade de um dos elementos da relação capaz de erigir a conduta subjudice à tutela que se pretende efectivar através do tipo legal de crime que vinha imputado ao arguido”. Não está correcta a conclusão a que se chegou na decisão recorrida. É certo não existir unanimidade sobre a natureza do bem jurídico protegido pela incriminação no crime de violência doméstica. Como pode ser visto mais em detalhe no estudo de Catarina Fernandes (Manuel Pluridisciplinar Violência Doméstica – implicações sociológicas, psicológicas e jurídicas do fenómeno, Abril de 2016, Centro de Estudos Judiciários, páginas 84 a 1065), a posição dominante na doutrina e na jurisprudência tem considerado que a norma protege a saúde, entendida esta como o bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental, o qual pode ser afectado por toda a multiplicidade de comportamentos que afectem – no caso que nos importa – a dignidade pessoal do cônjuge. No entanto, outros autores e jurisprudência assinalam que a esfera de protecção da norma se dirige aos valores da “dignidade humana”, da “integridade pessoal”, da “integridade física e psíquica, a liberdade pessoal, a liberdade de autodeterminação sexual e a honra” ou a “integridade pessoal e livre desenvolvimento da personalidade”. Aceitamos que a razão da incriminação autónoma da violência doméstica não está na preservação da comunidade familiar ou conjugal, pois isso revelaria uma opção por uma concepção tradicional de família muito aquém do objecto de protecção pretendido pelo legislador. Contudo, não deixa de estar contemplada na norma como fundamento da tipificação a tutela de bens jurídicos inerentes a uma relação de natureza familiar, afectiva ou de coabitação. Isso decorre claramente da integração do vocábulo “doméstica” na própria denominação do crime, da definição da necessidade de certas relações entre o agente e a vítima, da agravação pela prática do crime no “domicílio comum”, da natureza das penas acessórias previstas para o crime e do confronto com o crime de maus tratos, do artigo 152º-A do CP, em que a definição da acção ilícita é em grande parte comum mas o tipo é distinto apenas em função de diferentes qualidades das vítimas. Pensamos portanto que o bem jurídico tutelado pela norma, justificativo de uma protecção mais intensa do que aquela que é dada noutros tipos incriminadores em que cada um dos actos típicos poderia integrar-se, não pode ser visto separadamente do maior desvalor associado à violação da integridade pessoal, num conceito amplo que abranja a saúde física e psíquica, a dignidade e a liberdade, praticada no âmbito daquelas relações de natureza familiar, afectiva ou de coabitação. O acréscimo de protecção justifica-se precisamente porque a autonomização deste crime tem em conta a maior censurabilidade da conduta e o maior perigo de lesão de bens pessoais em contextos relacionais com aquela natureza. Não podemos ter dúvidas de que um episódio de agressões físicas (cotovelada e socos na cabeça), insultos (“ciumenta” e “louca”) e de ameaça (faca apontada primeiro ao pescoço e depois abdómen, acompanhada das palavras “eu furo-te a barriga”), tem ser considerado suficientemente relevante para integrar o conceito de maus tratos físicos e psíquicos. O ponto é saber se tais actos, praticados contra a pessoa da companheira, parcialmente na presença do filho dela, no domicílio do casal, de noite, iniciados na cama comum, em reacção a uma observação da vítima sobre o facto de o arguido se relacionar com outras mulheres, apenas atingem os direitos pessoais protegidos pelas normas que incriminam as ofensas à integridade física, as injúrias e as ameaças, ou se os atingem de forma acrescida por terem ocorrido no contexto da relação conjugal. A circunstância de se ter provado que a agressão física foi praticada na sequência daquela observação da vítima parece-nos decisiva. Trata-se de uma observação directamente conexionada com os deveres morais inerentes à existência da relação conjugal estável. A reacção agressiva do arguido a uma observação legítima da sua companheira – mesmo que exagerada ou apenas imaginada – constitui, de resto, uma manifestação de desigualdade ou subjugação de um elemento do casal sobre outro, não necessária para o preenchimento do tipo mas relevante para a compreensão do contexto da motivação e forma de execução da ofensa dos bens jurídicos protegidos. Isso é ainda mais evidente quando o arguido, na sequência de um encontrão no filho dela, lhe disse “é para o teu filho aprender a respeitar um homem”. Todos os factos remetem para aspectos próprios do relacionamento que têm a ver com a fidelidade conjugal. Todos estes actos foram, note-se, praticados em momentos e espaços próprios da comunidade conjugal, na presença do filho menor e por razões inerentes a essa relação. O arguido actuou intencionalmente e de forma livre, voluntária e consciente, ciente da ilicitude do seu comportamento. A imagem global que nos é dada pelos factos aponta de forma nítida para uma ofensa à integridade pessoal da vítima, num plano mais amplo do que o mero somatório de violações cumulativas dos direitos à saúde, honra e liberdade. É pois nosso entendimento que os actos praticados pelo arguido integram o crime de violência doméstica imputado na acusação, previsto no artigo 152º nºs 1 al. b) do CP. Não é aplicável a al. b) do nº 1, imputada também na acusação, na medida em que á vítima não é progenitora de descendente comum com o arguido. (fim de transcrição) 6.3 Vejamos. O artigo 152.º do Código Penal, sob a epígrafe “Violência doméstica”, estatui que: 1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade, ofensas sexuais ou impedir o acesso ou fruição aos recursos económicos e patrimoniais próprios ou comuns: a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge; b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação; c) A progenitor de descendente comum em 1.º grau; ou d) A pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite; e) A menor que seja seu descendente ou de uma das pessoas referidas nas alíneas a), b) e c), ainda que com ele não coabite; é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal. 2 - No caso previsto no número anterior, se o agente: a) Praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima; ou b) Difundir através da Internet ou de outros meios de difusão pública generalizada, dados pessoais, designadamente imagem ou som, relativos à intimidade da vida privada de uma das vítimas sem o seu consentimento; é punido com pena de prisão de dois a cinco anos. (…). A redacção do actual preceito resulta da 23ª alteração ao Código Penal, operada pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro,6 dando nova redacção ao art.º 152º, passando no mesmo a consagrar, agora expressamente, que tal actuação do agente pode ser “de modo reiterado ou não”, tal como já era entendimento maioritário da jurisprudência. Deste modo, um único acto, ainda que isolado, é passível de preencher o tipo de ilícito, desde que essa acção seja apta a colocar em causa, de forma intolerável, a dignidade da vítima ou a sua liberdade de determinação. Ao nível do bem jurídico protegido pela norma, o mesmo é complexo, mas pode ser sintetizado na tutela ampla da dignidade da pessoa humana. Sobre o bem jurídico protegido, Pinto de Albuquerque, entende ser a “integridade física e psíquica, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual e até a honra”.7 Por sua vez, Taipa de Carvalho, considera que “A ratio do tipo não está, pois, na protecção da comunidade familiar, conjugal, educacional ou laboral, mas sim na protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana. (…) A ratio deste art. 152.º vai muito além dos maus tratos físicos, compreendendo os maus tratos psíquicos (p. ex., humilhações, provocações, ameaças, curtas privações de liberdade de movimentos, etc.), a sujeição a trabalhos desproporcionados à idade ou à saúde (física, psíquica ou mental) do subordinado, bem como a sujeição a actividades perigosas, desumanas ou proibidas” e acrescenta, ”o bem jurídico protegido por este tipo de crime é a saúde – bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental, e bem jurídico este que pode ser afectado por toda a multiplicidade de comportamentos que impeçam ou dificultem o normal e saudável desenvolvimento da personalidade da criança ou do adolescente, agravem as deficiências destes, afectem a dignidade pessoal do cônjuge, ou pessoa que viva em condições análogas, prejudiquem o possível bem-estar dos idosos ou doentes, ou sujeitem os trabalhadores a perigos para a sua vida ou saúde”.8 Plácido Conde Fernandes, considera “O bem jurídico, enquanto materialização directa da tutela da dignidade da pessoa humana, implica que a norma incriminadora apenas preveja as condutas efectivamente maltratantes, ou seja, que coloquem em causa a dignidade da pessoa humana, conduzindo à sua degradação pelos maus tratos”.9 Maria Manuela Valadão e Silveira considera igualmente que “Na Constituição, o direito à integridade pessoal insere-se, juntamente com a vida, a liberdade, a segurança, num núcleo de direitos fundamentais, sendo que a violação desses direitos denega, desde logo, a própria dignidade essencial da pessoa humana, que é o primeiro princípio em que se funda Portugal. Neste contexto, o n.º 2 do art.º 152.º protege em primeira linha a integridade, a saúde, nas suas dimensões física e psíquica. Contribui, desta forma e em uníssono, com os outros tipos incriminadores do capítulo, para densificar o valor constitucional da integridade, que se analisa no n.º 1 do art.º 25.º da Constituição, em integridade moral e física. E isto, em si, nada terá de extraordinário; é um juízo que vale para todo e qualquer crime contra a integridade física”.10 Este entendimento doutrinal sobre o bem jurídico protegido, é igualmente sufragado pela jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça.11 O crime de violência doméstica encontra-se, ao que aqui interessa, numa relação de especialidade, com o crime de ofensas à integridade física simples e de subsidiariedade expressa em relação a outros crimes punidos mais gravemente “por força de outra disposição legal” (artigo 152º, nº 1 in fine do Código Penal). Tendo em conta este enquadramento legal, jurisprudencial e doutrinal e tendo em conta os factos dados por assentes, é manifesto ter o arguido cometido um crime de violência doméstica, porquanto o mesmo, apesar de estarmos em presença de factos que ocorreram numa única ocasião, praticou os mesmos de forma reiterada, persistente e com elevada intensidade, o que manifesta indiscutivelmente gravidade suficiente para se poder enquadrar no âmbito do crime de violência doméstica. Na verdade, o arguido, no leito conjugal, ao ser questionado pela ofendida sobre uma pretensa infidelidade, o mesmo desferiu-lhe uma cotovelada no peito e depois, com ambos os elementos do casal já levantados da cama, desferiu-lhe vários socos na cabeça e, por várias vezes, apelidou-a de “ciumenta” e “louca”. Enquanto decorriam estes factos e porque o filho menor da ofendida tivesse ouvido barulho, deslocou-se para a porta do quarto, tendo o arguido aberto a porta do mesmo e saído, embatendo com o seu corpo no do menor fazendo-o cair ao chão, dizendo à ofendida que era para “o teu filho aprender a respeitar um homem”. Posteriormente “o arguido dirigiu-se novamente até à sua companheira, e quando se encontravam na cozinha, muniu-se de uma faca que ali se encontrava e apontou-a ao pescoço de CC. Depois aproximou essa faca do abdómen da sua companheira e anunciou-lhe “eu furo-te a barriga”, o que a levou a gritar com medo”. Toda esta factualidade para além da persistência e intensidade na acção, revela uma manifestação de superioridade do arguido em relação à sua companheira e seu filho, que visa desconsiderar, diminuir e mesmo humilhar a mesma, ao não admitir ser questionado ou contrariado, reagindo com ofensas e ameaças desproporcionais à questão que lhe foi colocada, impondo a vontade pela força e a aniquilação da vontade da vítima. Perante tudo o que fica dito e tendo ainda em consideração os factos dados como provados, ao nível do elemento subjectivo do tipo legal, é manifesto estarem preenchidos os elementos típicos do tipo legal de violência doméstica. Assim, confirma-se integralmente o acórdão recorrido, improcedendo o recurso. III. Decisão Pelo exposto, acordam no Supremo Tribunal de Justiça, 3ª Secção Criminal, em julgar improcedente o recurso do arguido, AA e confirmar o acórdão recorrido. Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça, em 5 (cinco) UC’s - artigo 513.º, n. º1 do Código de Processo Penal e artigo 8º n.º 9 e tabela III anexa ao Regulamento das Custas Processuais). Lisboa, 02 de Outubro de 2024. Antero Luís (Relator) António Augusto Manso (1º Adjunto) Horácio Correia Pinto (2º Adjunto) ____ 1. Neste sentido e por todos, ac. do STJ de 20/09/2006, proferido no Proc. Nº O6P2267. 2. Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág.335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., Rei dos Livros, 2011, pág.113. 3. Acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95 de 19/10/1995, publicado no DR/I 28/12/1995. 4. Neste sentido e por todos, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26 Novembro 2015, Proc. 371/13.9JAFAR.E1.S1, disponível em www.dgsi.pt 5. http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/outros/Violencia-Domestica-CEJ_p02_rev2c-EBOOK_ver_final.pdf 6. Sobre a evolução legislativa do preceito legal, veja-se a resenha feita no acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 13 de Setembro de 2018, Proc. Nº 372/17.8PBLRS.L1.S1,em que foi Relator o Conselheiro Raúl Borges, disponível em www.dgsi.pt 7. Comentário do Código Penal: à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Lisboa, Universidade Católica Editora, 3ª edição, 2015, pág. 591. 8. Comentário Conimbricense ao Código Penal, Tomo I, Coimbra, Coimbra Editora, 1999, p. 332. 9. In Violência Doméstica, Novo Quadro Penal e Processual Penal, Jornadas sobre a Revisão do Código Penal, Revista do CEJ, 1º semestre de 2008, n.º 8, pág. 305) 10. In Sobre o crime de maus tratos conjugais, Revista de Direito Penal, volume I, n.º 2, ano 2002, edição da UAL, Universidade Autónoma de Lisboa, págs. 32/3 e 42. 11. Por todos, acórdão de 20 de Abril de 2017, proc. nº n.º 2263/15.8JAPRT.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt |