Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2939/16.2T8FAR-A.E1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: ANA RESENDE
Descritores: RECURSO DE REVISÃO
SIMULAÇÃO PROCESSUAL
FRAUDE À LEI
USO ANORMAL DO PROCESSO
FALTA DE CONTESTAÇÃO
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
Data do Acordão: 10/26/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :

- Sem prejuízo do regime sancionatório da litigância de má fé, compete ao Juiz zelar pela devida utilização dos instrumentos jurídicos, numa possível perceção da aparência de um litígio, que vem lesar um direito de terceiro, ou mesmo o interesse geral, com a violação de uma norma que o proteja;

- Pressupondo um prévio acordo, nem sempre o mesmo é divisável, pois a inação que o possa mais facilmente traduzir, não se traduz, de modo necessário, em tal intento, podendo decorrer de múltiplas situações não censuráveis.

- Na impossibilidade do seu cumprimento em momento oportuno, salvaguarda a lei a apreciação do caso em momento ulterior, através do recurso de revisão, face a uma alegada, e a comprovar, fraude processual.

- Para procedência do recurso de revisão, nos termos do art.º 696, g), do CPC, são exigíveis fundamentos bem determinados e restritos: a decisão impugnada seja final, isto é, transitada em julgado e que essa decisão ponha termo a um litígio simulado entre demandado e demandante, no sentido de as partes terem usado o processo, não com o fim normal de resolver um litígio, mas e concretamente, para obterem um resultado diferente do aparente do processo.

- A simulação processual ocorre assim quando as partes, de comum acordo, criam a aparência dum litígio inexistente para obter uma sentença cujo efeito apenas querem relativamente a terceiros, mas não entre si, pelo que o conluio das partes traduz-se, em regra, na alegação do autor, não contraditada ou apenas ficticiamente contraditada pelo réu, duma versão fáctica não correspondente à realidade, para obter, uma decisão judicial em prejuízo de terceiro.

- Verifica-se uma situação que se consubstancia em simulação processual, quando o autor interpõe uma ação, não visando dirimir qualquer litígio, mas sim a obtenção de um resultado não alcançado em anteriores lides judiciais em que foram visados aqueles que nelas tinham interesse, como era do seu conhecimento, e na qual a ré, que não tinha qualquer interesse real nos autos, não apresentou contestação, de tal silêncio resultando a confissão dos factos proporcionando a decisão proferida, que lesa o direito de terceiro, recorrente no recurso de revisão.

Decisão Texto Integral:


REVISTA n.º 2939/16.2T8FAR-A.E1.S1

ACORDAM NA 6ª SECÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

           

I - Relatório

1. MUNICÍPIO DE VILA REAL DE SANTO ANTÓNIO veio apresentar recurso de revisão, do Acórdão da Relação de Évora de 7.06.2018, transitado em julgado, decidindo “reconhecida ao Autor, AA, (Recorrido)  a aquisição por usucapião, da parcela registada na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...04 da freguesia ..., inscrita na respetiva matriz sob o artigo ...21”, proferida na ação comum instaurada por AA contra BB.

2. Alega em conformidade, que é proprietário e legítimo possuidor de um prédio urbano constituído por parcela destinado a construção urbana, inscrito na matriz predial da freguesia ..., concelho ... ...02, adquirido ao Estado Português em 1961.

Em Junho de 1999, a mãe do recorrido AA, CC, declarou indevidamente que existia um prédio omisso na matriz e não registado na Conservatória do Registo Predial, dando apenas como confrontação pelo Norte com a Rua ..., Sul e Poente com terrenos da Câmara Municipal ... e Nascente com Rua ....

Foi instaurada ação declarativa, (n.º 333/2001) na qual foi solicitada a declaração de nulidade da escritura pública de Justificação Notarial de Olhão, celebrada no dia 8 de maio de 2001, com fundamento nas declarações prestadas em tal escritura, uma vez que o lote de terreno foi alienado em hasta pública a um terceiro, sendo adjudicada ao licitante DD.

No seguimento dessa ação foi aberta uma nova descrição predial correspondente a uma parcela, lote de terreno com a área de 560m2, que deu origem ao registo n.º ...04.

No aludido processo n.º ...01 não ficou provado, que a mãe do Recorrido exerceu até 9 de junho de 1999 atos administrativos de propriedade sobre o referido lote de terreno, nem que a mesma e o seu ex-marido EE, em 1973, adquiriram a DD, um lote de terreno para a construção urbana com a área de 560m2, sito em ... concelho ..., confrontando do Norte com a Rua ..., nascente com Rua ... e sul e poente com o terrenos da Câmara Municipal ..., tendo tomado posse do mencionado lote de terreno, fizeram construir no local diversas edificações para a obra que seria o hotel N..., tendo aquando do divórcio em 1979 acordado que o terreno passava para a posse da referenciada CC.

Nesses autos o Recorrido foi habilitado como réu.

Assim foi considerada nula e sem nenhum efeito a escritura de justificação, e ordenado o cancelamento da inscrição da parcela a favor da mãe do Recorrido, mantendo-se a inscrição a favor do Recorrente.

O Recorrido logrou o registo a seu favor da parcela em causa, porquanto veio interpor o presente processo contra BB, invocando a aquisição por usucapião da sua mãe CC, após aquisição verbal feita em 1973, e a manutenção da posse há mais de 20 ano, correspondendo tal terreno a duplicação parcial do descrito sob o n.º ...02, inscrito em nome do Recorrente desde 1961.

Esta parcela para a construção com a área de 5.279,70m2, a confrontar do norte com a antigamente denominada por Rua ..., sul com a Avenida ..., nascente terrenos municipais e poente com Rua ..., inscrito na matriz predial urbana da freguesia ..., foi adquirida pelo Recorrente ao Estado Português, e registada em nome do Município de Vila Real de Santo António, com a mencionada área de 5.279,70m2, nos quais estão incluídos os 560m2, que não foram objeto de processo de destaque ou desanexação, e assim pertence ao Recorrente, e está registada a seu favor.

Com efeito, na observância das Condições Gerais de Alienação de terrenos municipais, no âmbito da hasta pública do dia 30 de novembro de 1964, foi emitido o alvará, n.º ...9, referente à adjudicação efetuada pela Recorrente a favor de DD, quanto a uma parcela total de 560 m2, em ..., confrontando a norte com a rua ..., sul e poente, terrenos municipais e nascente Rua ..., a destacar do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial, sob o n.º ...71, inscrito na matriz sob o artigo ...65, mas não tendo o valor da venda sido integralmente pago, a parcela não foi objeto de destaque, mantendo-se na posse e registada em nome do Recorrente, pois apesar da demarcação efetuada, DD nunca chegou a tomar posse efetiva do terreno, nem realizada a transmissão da propriedade para a S..., SARL, nem desanexada.

Tal resulta da ação n.º 367/2001 (mais tarde 71/14....) que, quanto à invocada usucapião suscitada na reconvenção pelo Recorrido, em sede de sentença considerou que nunca poderia proceder em função da autoridade do caso julgado, da decisão proferida no processo 333/2001.

Tendo em causa o que foi decidido em ambos os processos, o Recorrido não tinha qualquer hipótese de obter o registo a seu favor, a não ser por via de uma simulação processual.

No entanto o Recorrido obteve o registo após ter sido proferido acórdão neste processo, que considerou “o falecido marido da R. DD vendeu a CC e EE, em 1973 a parcela que terreno que havia adquirido à Câmara Municipal ... em 30 de novembro de 1968, nos termos do alvará n.º ...9; b) reconhecer que DD recebeu o preço de venda e conferiu posse da parcela de terreno a CC e EE; c) reconhecer o autor (AA) como proprietário da parcela em causa”.

Face ao decidido nos dois processos anteriores o Recorrido obteve o registo a seu favor por via de uma simulação processual, instaurou a presente ação tendo conhecimento que os 560m2 são a destacar, que DD não era legítimo proprietário do lote, que em 29 de dezembro de 1978 em nome de S..., constituída em 1965, sendo administradores da mesma em 1972, o pai do Recorrido e ele próprio apresentou um pedido de aprovação de um projeto de construção que durou até 1980, simulando o litígio, invocando um desentendimento entre si e o então suposto devedor, e de conluio com a Ré, mediante a não contestação desta obteve o reconhecimento de um direito que não existe, com o único intuito de prejudicar os direitos do Recorrente, aproveitando o facto de aquando o registo da ação ter sido aberta uma descrição com a identificação do terreno que consubstancia uma duplicação de registo, bem como da inscrição matricial, apesar de a mesma constar em nome do Recorrente.

Conclui em conformidade, o Recorrente:

- Estamos assim perante uma simulação processual entre o Autor e a Ré com o único intuito de prejudicar os direitos do Município de Vila Real de Santo António sobre a parcela de terreno.

- Aproveitando o facto de aquando do registo da ação ter sido aberta uma descrição que se consubstancia como uma duplicação de registo, para utilizar o pedido de usucapião, apesar de constar na matriz em nome do Autor, e ser o mesmo o titular inscrito do prédio ...94;

- A única forma de o Recorrido ultrapassar o direito do Recorrente, que era do conhecimento daquele, foi interpor esta ação declarativa para reconhecimento de um direito de propriedade inexistente, apenas por confissão por falta de contestação, essencial para a fundamentação da decisão, e assim perante o silêncio combinado com a Ré, o Recorrido, enquanto autor, conseguiu o reconhecimento do direito como seu, impedindo o Recorrente de reclamar ou exercer os seus direitos sobre a parcela.

- Simulação que lhe acarreta graves prejuízos, pois o reconhecimento ilegítimo dos direitos do Autor colidem com o direito de propriedade que o Município tem sobre esse terreno, registado na Conservatória sob o n.º ...02, nomeadamente de venda ou alienação.

- Houve o uso anormal do processo, pelo que deve ser revogado o Acórdão, uma vez que da atuação das partes resultou o conluio do autor e ré, em prejuízo do Recorrente.

3. O Recorrido veio responder, invocando que não foi feita a indicação de qualquer facto que sustente a simulação, que o Recorrente sempre reconheceu o lote como tendo existência independente nos dois processos apontados, que o prédio que o Recorrente inscreveu na matriz sob o n.º ...23 só foi inscrito em 2010, através de dados falsos, e ainda que o mesmo litiga de má fé.

4. Tendo em conta o fundamento invocado – simulação processual prevista na alínea g) do art.º 696 do CPC, podendo conduzir à alteração da decisão relativa à matéria de facto apurada, determinou-se que os autos passassem a correr termos na 1.ª instância.

5. Realizado o julgamento, foi proferida sentença, que julgou procedente, por provado, o recurso de revisão interposto, e em consequência anulada a decisão final proferida no âmbito da ação declarativa apensa, e improcedente o pedido de condenação do Recorrente, como litigante de má fé.

6. Inconformado veio o Recorrido interpor recurso de apelação, que revogou a decisão recorrida, considerando o recurso de revisão improcedente.

7. Ora inconformado, veio o Recorrente interpor recurso de revista, formulando nas suas alegações as seguintes conclusões:(Transcritas)

I- Face aos factos que foram dados como provados em processos anteriores, e outras novas circunstâncias verificadas no decurso da presente ação não podem restar quaisquer dúvidas que Autor e Ré celebraram um acordo de simulação com a criação de um litígio inexistente entre si, tendo como única finalidade a obtenção de sentença cujos efeitos apenas querem relativamente a terceiros mas não entre si;

E isto porque,

II -  Em anteriores ações que correram termos sob os nºs 333/2001 e 367/2001, o Autor ora recorrido viu ser indeferido o seu pedido de reconhecimento de direito de propriedade adquirido por usucapião, sobre uma parcela de terreno com a área de 560 m2 na povoação de ..., concelho ... a confrontar do Norte com rua ..., do Sul e poente com terrenos municipais e do Nascente com Rua ...;

III- Em ambas as ações, o ora recorrido fundamentara o seu pedido de aquisição por usucapião, pelo facto de a sua mãe FF ter adquirido por compra verbal efectuada no ano de 1973 a DD, mantendo o prédio na sua posse há mais de 20 anos;

IV - Acresce que tal parcela de terreno seria a desanexar de um outro prédio que se encontra registado em nome do ora recorrente, que emitira o Alvará ...9 em nome do mencionado DD;

V -  Nesta nova ação de condenação que o recorrido AA veio instaurar contra a herdeira de DD (falecido em 2015), foi novamente invocado que a sua mãe CC tinha adquirido por compra verbal em 1973 ao referido DD o lote de terreno e desde essa data estava na sua posse, pelo que o adquirira por usucapião;

VI - E, argumentando os mesmos factos, (apesar de ter tido a possibilidade de celebrar escritura de compra e venda com o dito DD, até à data do óbito deste, não o tendo feito), viu finalmente reconhecido o direito que invocara apenas pela circunstância de falta de contestação da ação por parte da BB;

VII - Com esta nova ação foram afastados os efeitos de caso julgado relativamente ao modo de aquisição do seu direito de propriedade por usucapião;

VIII -  Resulta assim de todos os factos anteriormente alegados que a ação de condenação instaurada pelo Autor contra a Ré, apenas serve de meio de obter o reconhecimento de um direito do Autor sobre a dita parcela de terreno que anteriormente lhe fora negado;

IX - Pelo que ao contrário do que foi decidido no douto acórdão recorrido será permitido concluir pela existência de um factum simulations entre Autor e Ré mediante o qual estes criaram a aparência de um litígio inexistente para obter uma sentença cujos efeitos apenas querem relativamente ao ora recorrente e não entre si;

X - O douto Acórdão recorrido não teve em consideração o disposto no artigo 5º nº 2 al b) e al c) que face ao disposto no artigo 394º do Código Civil, teriam que ser apreciados como factos indiciários da simulação;

XI - Verificando-se assim uma errada aplicação das Leis processuais.

XII - Pelo exposto, deve a revista ser concedida, revogando-se o Acórdão recorrido e mantida a decisão da 1ª Instância.

8. Cumpre apreciar e decidir.

*

II – Enquadramento facto-jurídico

A . Dos factos.

Foram considerados provados os seguintes factos:

1- Mostrava-se descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...71, a fls. 183 do livro ...8, o prédio rústico composto por parcela de terreno das M..., 194600m2, a confrontar a norte e nascente com M..., a sul com terrenos municipais e Estrada ... entre ... e ... (prolongamento da Avenida ...) e poente com terrenos municipais, com aquisição a favor da Câmara Municipal ... conforme ap. ... de 1961.04.27, o qual se mostra descrito sob o n.º ...27, da freguesia ..., inscrito na matriz predial sob o art.º ...65 (cf. doc. de fls.354/356, cujo teor se dá por reproduzido).

2-Do qual foi desanexada uma parcela de terreno para construção urbana, com a área de 5.279,70 m2, a confrontar a norte com Rua ...), sul com Av. ..., nascente com Terrenos Municipais e Poente com Rua ..., com aquisição a favor da Câmara Municipal ... conforme ap. ... de 1961.04.27, a qual se mostra descrita como prédio urbano sob o n.°...02, da freguesia ..., inscrito na matriz predial sob o art.º ...23 (cf. doc. de fls. 357/359, cujo teor se dá por reproduzido).

3-   E que tem a configuração que consta do ortofotomapa junto a fls.370, cujo teor se dá por reproduzido.

4- Em 30.11.1964 a Câmara Municipal ... deliberou adjudicar, pelo preço de 560 escudos o m2 a DD, por licitação em hasta pública, uma parcela de terreno destinada a construção de uma zona de comércio e convívio, com a área de 560m2, sita na povoação de ..., a confrontar do norte com rua ..., do sul e poente com terrenos municipais e do nascente com Rua ..., sendo os limites a norte - alinhamento reto com vinte e oito metros de comprimento; sul dois alinhamentos retos de catorze metros cada, paralelos e separados vinte metros; nascente um  alinhamento  reto de trinta metros de comprimento; e a poente dois alinhamentos retos de dez metros e vinte metros, paralelos e separados catorze metros a destacar de um prédio descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...71, a fls.183 do livro ...8 (cf. doc. de fls. 69 e 8/11 dos autos principais, cujo teor se dá por reproduzido).

5-No dia 02.12.1964 DD e a Câmara Municipal ... procederam à demarcação do lote de terreno nos seguintes termos: "limites: -Norte - alinhamento reto com vinte e oito metros de comprimento; Sul dois alinhamentos retos de catorze metros cada, paralelos e separados vinte metros; Nascente um alinhamento reto de trinta metros de comprimento; e a Poente dois alinhamentos retos de dez metros e vinte metros, paralelos e separados catorze metros. Área total- quinhentos e sessenta metros quadrados" (cf. doc. de fls. 12 dos autos principais, cujo teor se dá por reproduzido).

6- Em 10.03.1965 foi emitido o alvará n.º ...9 referente à adjudicação efetuada pela Câmara Municipal ... a DD para que servisse de título ao comprador relativamente a essa parcela de terreno (cf. doc.de fls. 8/11 dos autos principais, cujo teor se dá por reproduzido).

7- Em 13.12.1965 DD requereu à Câmara Municipal ... a passagem do direito de propriedade titulado pelo alvará n.º ...9 para a sociedade S..., SARL, tendo  sido   deliberado   autorizar   essa transferência (cf. doc. de fls. 68/69 dos autos principais, cujo teor se dá por reproduzido).

8- A sociedade S..., SARL foi constituída em 1965 e em 1972 o pai do recorrido, EE, e este foram nomeados administradores, cargo que desempenharam de 1972 até 1982 (cf. doc. 12 junto com o recurso, cujo teor se dá por reproduzido).

9- Em 29.12.1978 foi apresentado junto da Câmara Municipal ..., em nome de S..., SARL, um pedido de aprovação do projeto para a construção do edifico destinado a cinema e zonas comerciais a construir nessa parcela de terreno (cf. doc. 13 junto com o recurso, cujo teor se dá por reproduzido).

10- O requerimento foi assinado por EE, na qualidade de administrador e em representação da mencionada sociedade (cf. doc. 13 junto com o recurso, cujo teor se dá por reproduzido).

11- Todo o procedimento administrativo de licenciamento da construção a realizar na parcela de terreno, que decorreu até pelo menos 1980, passou para o nome da S... (cf. docs. 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22 e 23 juntos com o recurso, cujo teor se dá por reproduzido).

12- Em 09.06.1999 CC declarou que existia um prédio omisso na matriz e não registado na Conservatória do Registo Predial, apresentando uma declaração ..., sem suporte topográfico ou planta de localização, indicando como confrontações pelo norte com Rua ..., sul e poente com terrenos da Câmara Municipal ... e nascente com Rua ... (cf. doc. 6 junto com o recurso, cujo teor se dá por reproduzido).

13- Dando origem à inscrição matricial sob o art.º ...21 do lote de terreno para construção urbana com a área de 560m2, prédio urbano, a confrontar a norte com Rua ..., a sul e a poente com terrenos da Câmara Municipal ... e a nascente com Rua ... (cf. doc. de fls.361/363, cujo teor se dá por reproduzido).

14- Por escritura de justificação notarial outorgada em 08.05.2001, exarada a fls.29 do livro ...34... de notas para escrituras diversas do Cartório Notarial ..., CC declarou ser dona e legítima possuidora do prédio urbano composto de parcela de terreno para construção, com a área de 560m2, na freguesia ..., concelho ..., a confrontar a norte com Rua ..., a sul e a poente com terrenos da Câmara Municipal ... e a nascente com Rua ..., inscrito na matriz em seu nome sob o art.º ...21, no qual a justificante e o seu ex-marido, EE, entraram na posse por compra verbal e nunca reduzida a escrito feita pelo referido EE a DD, em data imprecisa do ano de 1973, em simultâneo com a compra de ações da sociedade "S... S.A." (cf. doc de fls 13 dos autos apensos, cujo teor se dá por reproduzido).

15- Mostra-se descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...04, o prédio urbano composto por parcela de terreno destinada a construção, com a área de 560m2, a confrontar a norte com Rua ..., sul e poente com terrenos municipais e nascente com Rua ..., com aquisição por usucapião a favor de CC, conforme ap. ...2 de 2001.07.10, inscrito na matriz predial sob o art.º ...21 (cf. doc. de fls.14/15 dos autos apensos, cujo teor se dá por reproduzido).

16- O recorrente intentou ação declarativa contra CC, que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca ... sob o n.º333/2001, na qual pediu a declaração de nulidade da referida escritura pública de justificação notarial celebrada no dia 08.05.2001, no Cartório Notarial ..., a fls.29 do livro ...34..., ordenando-se o cancelamento do registo predial a favor da ré (cf. docs.7 e 8, cujo teor se dá por reproduzido).

17- Nessa ação ficaram provados os seguintes factos:

"E) Mais foi certificado que, quanto ao Lote número 6/64 (...) Em 10 de Novembro de 1964, em sessão extraordinária do Conselho Municipal da Câmara Municipal ..., procedeu-se à hasta pública de uma parcela de terreno, sita em ..., para construção de um edifício de convívio com a área de 560 m2, designado por lote número 6/64, a confrontar do Norte com rua ..., Sul com terrenos municipais, Nascente com Rua ... (hoje Rua ...) e Poente com terrenos municipais, que foi adjudicado ao licitante DD, após abertura da praça e depois de lidas as condições de alienação, por ter oferecido o maior lanço doc.de fls. 10 e 11, que aqui se dá por inteiramente reproduzido;

F)A  alienação   dessa   parcela   era   acompanhada   de "Condições Gerais e especiais” que constam dos autos a fls. 36, 37 e 38;

G) Em 30 de Novembro de 1965, deu entrada na secretaria da Câmara Municipal ..., um requerimento subscrito por DD, solicitando ao Presidente da Câmara ..., fosse autorizada a passagem do direito de propriedade da parcela de terreno referida em E), por si adquirida em hasta pública em 30 de Novembro de 1964, e conforme alvará n.º ...9 passado pela mesma Câmara para "S..., SARL", requerimento este que apresenta a nota de Apresentado na reunião de 13 de Dezembro de 1965 e Deferido, deferimento confirmado por carta de 18/12/1965 (fls. 14 e 32)"; pelo que tinham sido transferidos para a Sociedade S..., SARL, e não para DD, os direitos adquiridos na referida adjudicação em Hasta Pública, não tendo este então, qualquer direito sobre a mencionada parcela de terreno, desde 1965" (cf. doc. 9, cujo teor se dá por reproduzido).

18 - E foram considerados não provados, entre outros, os seguintes factos:

Que a Ré (CC, mãe do recorrido) exerceu até 9 de junho de 1999, atos demonstrativos de propriedade sobre o referido lote de terreno;

Que no ano de 1973, a Ré e o seu ex-marido, EE, adquiriram a DD, um lote de terreno para construção urbana com a área de 560m2, sito em ... concelho ..., confrontando do Norte com Rua ..., nascente com Rua ... e sul e poente com terrenos da Câmara Municipal ...;

Que o referido DD apresentou como título de aquisição o Alvará n° ...9;

Que a Ré CC e seu ex-marido tomaram posse do mencionado lote de terreno;

Que em 1973, a Ré e seu ex-marido fizeram construir no local, diversas edificações para apoio à obra que na altura iniciaram, do que viria a ser o hotel N...;

Que a Ré e o marido acordaram verbalmente, aquando do seu divórcio em abril de 1979 que o terreno em causa passava para a posse da Ré (cf. doc 9, cujo teor se dá por reproduzido).

19 - E foi decidido "Atentos os factos provados há que concluir que o Réu não logrou obter prova de qualquer facto que permita concluir que a primitiva Ré adquiriu a propriedade do prédio em causa nos autos, por qualquer das formas de aquisição que a Lei prevê, designadamente de factos integradores do conceito de posse usucapiativa, prescricional ou efetiva" declarando-se nula e de nenhum efeito a escritura de justificação e ordenar o cancelamento da inscrição de propriedade por aquisição da ré CC (cf. doc. 9, cujo teor se dá por reproduzido).

20-Nesta ação n.º 333/2001 o recorrido AA foi habilitado como sucessor da Ré CC (cf. doc.9, cujo teor se dá por reproduzido).

21- O recorrente intentou ação declarativa contra Massa Falida da S..., SARL e CC, que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca ... sob o n.º367/2001, na qual peticionou que fosse considerada nula a alienação do Lote 6/64 através de hasta pública realizada em 30.11.1964 e posteriormente transmitida para a S..., SARL e que o Lote 6/64 inscrito na matriz na matriz predial respetiva sob o artigo ...21 é propriedade da autora (cf. doc. 25, cujo teor se dá por reproduzido).

22- Nessa ação foi decidido que "a cláusula 11ª do contrato referido em 1 - Condições Gerais e Especiais é uma cláusula resolutiva expressa. Ou seja, findo o período estipulado no contrato, a contraente vendedora (a A.) ficaria com o direito de exercer a resolução do contrato (com os efeitos especialmente previstos não totalmente retroativos - como o permite o art.º 436, n.º 1, 2ª parte do Cód. Civil)" (cf. doc 25 cujo teor se dá por reproduzido).

23- Quanto ao direito de usucapião, pedido em reconvenção, por parte do recorrido AA, a sentença refere o seguinte:

"Atendendo à decisão, mostra-se prejudicado o conhecimento das demais questões, sendo certo que a usucapião invocada nunca poderia proceder em função da autoridade do caso julgado, da decisão proferida no processo 333/2001. (cf. doc. 25 cujo teor se dá por reproduzido).

24- Na pendência desta ação a Câmara Municipal ... limpou o lote de terreno das construções que ali se encontravam.

25- O recorrido intentou ação declarativa contra BB que correu termos no Juízo Central Cível ...- J... com o n.º 2939/16.2T8FAR, na qual peticionou:

"a) seja confirmado que o seu falecido marido da Ré (DD) vendeu a CC e (marido), EE, em 1973, a parcela de terreno que havia adquirido à Câmara Municipal ... em 30 de Novembro de 1968 nos termos do alvará n.º ...9;

b) seja reconhecido que DD recebeu o preço de venda e conferiu a posse da parcela de terreno aos referidos CC e EE;

c) seja reconhecido o autor como proprietário da parcela de terreno em causa, atualmente descrita na Conservatória do Registo Predial ... ...04 e inscrito na respetiva matriz sob o artigo ...21" (cf. doc. de fls. 132/148 e petição inicial dos autos apensos, cujo teor se dá por reproduzido).

26- Nesta ação o recorrido fundamentou os pedidos na aquisição por usucapião por parte da mãe CC por "ter adquirido por compra verbal feita em 1973, mantendo o prédio na sua posse há mais de 20 anos, sem qualquer interrupção, na convicção de ser sua proprietária" (cf. doc. de fls 132/148 e petição inicial dos autos apensos, cujo teor se dá por reproduzido).

27- A ré BB não apresentou contestação e foi proferida sentença que julgou a ação parcialmente procedente, por provada, e, em consequência, “declaro que GG recebeu de CC e EE trezentos e treze mil e seiscentos escudos pela alienação verbal da parcela de terreno identificada no art.º l dos factos provados, absolvendo a ré do demais peticionado”.

28- Por acórdão do Tribunal da Relação de Évora, datado de 07.06.2018, foi considerado o recurso procedente, revogando a sentença proferida e decidido reconhecer ao autor a aquisição, por usucapião, da parcela de terreno registada na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...04, da freguesia ..., inscrita na matriz sob o art.º ...21 (cf. fls.132/148 e autos apensos, cujo teor se dá por reproduzido).

29-A parcela de terreno com a área de 560m2 objeto da hasta pública de 1964 não foi objeto de destaque do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...71 fls.183 do livro ...8 (cf. (cf. doc. de fls.354/356, cujo teor se dá por reproduzido).

30- O recorrido AA tem conhecimento que nos termos do alvará n.º ...9 que titulou a adjudicação dos 560m2 estes são a destacar de um prédio descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ...71 a fls. 183 do livro ...8.

31- E que o DD não era possuidor do lote de terreno em causa e não o vendeu.

32- Por edital de 15.09.2016 a Câmara Municipal ... anunciou a venda através de hasta pública do prédio descrito sob o n.º ...02 (cf. doc. 1 da resposta, cujo teor se dá por reproduzido).

33-O recorrido enviou à Câmara Municipal ... carta na qual referiu que esta venda abrangia a área de 560m2 que lhe pertencia (cf. doc. 2 da resposta, cujo teor se dá por reproduzido).

34- A presidente da Câmara Municipal ... propôs à assembleia municipal a venda do referido prédio por negociação direta (cf. doc. 3 da resposta, cujo teor se dá por reproduzido).

Foram considerados como não provados:

a) Na pendência das ações n.ºs ...01 e ...67/2001 o presidente da Câmara Municipal ... reconheceu-o o recorrido como proprietário do Lote de terreno e propôs-lhe a permuta por um terreno de igual valor;

b) Na pendência da ação n.º 367/2001 a Câmara Municipal ... eliminou a vedação e os marcos que delimitavam o Lote nos termos do auto de demarcação realizado em 02.12.1964;

c)   E preencheu e apresentou nos serviços de finanças uma declaração Mod.129 para inscrição de prédio que abrangia o Lote 6/64 que registou em seu nome, com o art.º 3323 e a que corresponde a descrição n.º ...02;

d) A presidente da Câmara Municipal ... reuniu com o recorrido em 08.02.2019 e reconheceu-o como proprietário do Lote de terreno, avaliado em meio milhão de euros;

e)   A Câmara Municipal ... assinou contrato-promessa de compra e venda do prédio descrito sob o n.º ...02 sabendo que incluía o Lote de terreno propriedade do recorrido registado sob o n.º ...04;

f) E informou os compradores de que deveriam negociar a compra do Lote 6/64 ao recorrido.

B. Do direito.

A questão a apreciar nos autos, tal como surge delineada prende-se com a procedência, ou não, do recurso de revisão no que concerne ao Acórdão da Relação de Évora de 7 de junho de 2018, reconhecendo a aquisição pelo Recorrido, da parcela de terreno identificada.

Com efeito, as Instâncias divergiram no entendimento e decorrente decisão proferida.

Em sede de sentença, tendo em conta que o recurso fora interposto ao abrigo da alínea g) do art.º 696, do CPC, foi considerado que o ora Recorrente tinha sido terceiro na ação declarativa apensa na qual fora proferida a decisão objeto do recurso de revisão, estando demonstrada a existência de simulação processual, pela inexistência de litígio entre as parte, mais atendendo à matéria de facto apurada, que o marido da ali Ré, HH, adjudicara uma parcela de terreno de 560m2 em hasta pública, em 30.11.1964, titulada pelo alvará n.º ...9, a desanexar do prédio indicado, descrito com o n.º 7671, tendo o mesmo transmitido o direito de propriedade, em 10.03.1966, para a sociedade S..., da qual o Recorrido e o seu pai, EE, foram administradores, desde 1965 a 1980, e ambos, em nome da sociedade trataram de procedimentos administrativos relativos à mesma parcela.

Não tendo EE, pai do Recorrido, comprado verbalmente a dita parcela a DD, e assim inexistente o litígio entre o Recorrido e a Ré na ação, herdeira do mencionado DD, não apresentando a mesma contestação, tal importou no reconhecimento da propriedade a favor do Recorrido, o que já fora tentado quer através de uma escritura de justificação notarial e via reconvenção noutra ação, na qual teve intervenção após habilitação, conhecendo os factos que fundamentaram essa ação e a escritura de justificação, e são iguais aos que sustentam a ação, com a decisão a rever, causando prejuízo ao Recorrente, porquanto a parcela em referência não foi desanexada do prédio urbano que lhe pertence, prédio esse que aceitou transmitir a outrem, que não o Recorrido ou a Recorrida, concluindo pela procedência do recurso de revisão.

Por sua vez, no âmbito do Acórdão recorrido foi considerado evidente que a factualidade provada não permitia concluir que com o processo instaurado, o Autor e a Ré no mesmo tinham pretendido criar uma aparência de um litígio inexistente, para obter uma sentença cujo efeito apenas queriam relativamente a terceiros, mas não entre si, até porque obteve vencimento a pretensão que o marido da Ré tinha recebido dos pais do Recorrido, uma quantia apontada relativa à alienação verbal da parcela do terreno.

Mais se entendeu que no requerimento inicial não foram alegados factos donde resulte a existência de um pacto simulatório nem que este seja a causa da decisão revidenda, pelo que da pretensão do Recorrido, supostamente infundada, não pode concluir-se pela inexistência de litígio, não havendo o pactum simulationis mediante a aparência dum litígio, que não existindo, visava obter uma sentença, com efeitos apenas relativamente a terceiros e não entre si, afastando a procedência do recurso de revisão.

Insurge-se o Recorrente quanto a tal entendimento, reiterando que dos factos alegados decorre que a ação de condenação interposta pelo Recorrido contra a Recorrida apenas serviu de meio para obter o reconhecimento que fora negado ao Recorrido, decorrendo de um factum simulations entre os Recorridos.

Apreciando.

Enquanto recurso extraordinário, o recurso de revisão[1], previsto nos artigos 696 e seguintes do CPC, incidente sobre qualquer decisão judicial, consubstancia-se como um meio excecional impugnativo, visando a destruição do caso julgado, em situações taxativamente previstas na lei, justificando-se a sua existência na particular prevalência da exigibilidade da justiça material, sobre as razões de segurança e certeza jurídica que subjazem ao caso julgado[2].

Como fundamento do recurso de revisão, para o caso que nos interessa, consta do art.º 696, do CPC, que “ a decisão transitada em julgado só pode ser objeto de revisão quando: g) O litígio assente sobre ato simulado das partes e o tribunal não tenha feito uso do poder que lhe confere o art.º 612, por não se ter apercebido da fraude”.

Com efeito importa ter presente a função instrumental do processo relativamente ao direito material, sobretudo no prosseguimento do intento que as normas processuais visam a resolução de conflitos entre as partes, na articulação dos respetivos interesses, desde que juridicamente relevantes, e não para serem tidas como um instrumento para atribuir ou retirar direitos, antes numa aplicação efetiva e articulada do direito adjetivo com o substantivo, obtendo soluções equilibradas e justas, conforme o Direito vigente[3].

Atente-se assim, ao disposto no art.º 612, do CPC, que sob a epígrafe “uso anormal do processo” prevê “Quando a conduta das partes ou quaisquer circunstâncias da causa produzam a convicção segura de que o autor e o réu se serviram do processo para praticar um ato simulado ou para um fim proibido por lei, a decisão deve obstar ao objetivo anormal prosseguido pelas partes”.

Sem prejuízo do regime sancionatório da litigância de má fé, compete assim ao Juiz zelar pela devida utilização dos instrumentos jurídicos, numa possível perceção da aparência de um litígio, que vem lesar um direito de terceiro, ou mesmo o interesse geral, com a violação de uma norma que o proteja, pressupondo um prévio acordo, nem sempre divisável, até porque a inação que o possa mais facilmente traduzir, não se traduz, de modo necessário, em tal intento, podendo decorrer de múltiplas situações não censuráveis.

Certo é, que para além de tal dever, e até mesmo da não possibilidade do seu cumprimento em momento oportuno, salvaguarda a lei a apreciação do caso em momento ulterior face a uma alegada, e a comprovar, fraude processual, nos termos aludidos, através do recurso de revisão[4].

Deste modo, compreende-se que para a resolução do dissídio verdade material/segurança jurídica sejam exigíveis fundamentos bem determinados e restritos, indicando-se como exigíveis, que a decisão impugnada seja final, isto é, transitada em julgado, que essa decisão ponha termo a um litígio simulado entre demandado e demandante, no sentido de as partes terem usado o processo, não com o fim normal de resolver um litígio, mas e concretamente, para obterem um resultado diferente do aparente do processo, caso em que alguém se deixa condenar, com manifesto prejuízo de terceiro, a quem é atribuída legitimidade para a interposição do recurso, art.º 3, do art.º 631, do CPC[5].

A simulação processual ocorre assim quando as partes, de comum acordo, criam a aparência dum litígio inexistente para obter uma sentença cujo efeito apenas querem relativamente a terceiros, mas não entre si, pelo que o conluio das partes traduz-se, em regra, na alegação do autor, não contraditada ou apenas ficticiamente contraditada pelo réu duma versão fáctica não correspondente à realidade, para obter, uma decisão judicial em prejuízo de terceiro, por essa via divergente da função do processo civil, sendo essa decisão passível de recurso revisão pelo terceiro prejudicado[6].

Configura-se deste modo, que se estará perante uma decisão judicial, lesando interesses ou direitos de terceiro, em que perante uma verdade fabricada por uma das partes, divisa-se a colaboração da outra, não se desmarcando da mesma, de algum modo, nomeadamente pela apresentação, de uma contestação/oposição autónoma, ou outro meio tido por conveniente, para paralisar a obtenção de tal decisão, divergente da finalidade de dirimir conflitos entre si.  

Na delineação do quadro jurídico atendível não pode deixar de salientar as dificuldades[7] inerentes à deteção da situação que pode esconder-se por de trás de posições processuais aparentemente legítimas e até verdadeiras, para cuja solução não será irrelevante a já aludida a natureza instrumental do processo e a respetiva dependência do direito material ou substantivo[8], neste âmbito se situando a obrigação prevista no art.º 698, n.º 2, do CPC, determinando que o recorrente no requerimento de interposição de recurso da decisão apresente a certidão da decisão em que se funda o pedido, como no caso dos autos, relativa à prova da situação jurídica de terceiro, explicando a possibilidade de a simulação o prejudicar[9].

Reportando-nos aos autos, importa ter em conta que para a apreciação do pedido do Recorrente não basta ater-nos à decisão recorrida, como aliás resulta do factualismo apurado, mas às vicissitudes e intervenientes nas mesmas que se desenrolaram durante um largo período de anos, relativos à parcela de terreno em causa e culminaram na Decisão Singular do Tribunal da Relação de Évora, de 7.06.2018, transitada em 25.06.2018, que reconheceu ao Recorrido a aquisição, por usucapião, da parcela de terreno em referência.

Desde logo, no que concerne à falta de alegação de factualidade subsumível à pretensão apresentada pelo Recorrente no requerimento inicial do recurso de revisão, para além um rigoroso expressis verbis, avulta da ampla explanação realizada pelo mesmo, do qual aliás de deu nota no relatório aqui formulado, que enunciou plúrimos acontecimentos, sobretudo de cariz processual, visando demonstrar a sua verdade, e a contrariar o resultado obtido pelo Recorrido, o qual teria lançado mão de simulação processual conjuntamente com a Recorrida, na suficiência do vertido nesse requerimento.

Vejamos o relevantemente apurado nos presentes autos.

Em 30.11.1964 o Recorrente deliberou adjudicar, a DD, por licitação em hasta pública, uma parcela de terreno destinada a construção, com a área de 560m2, a confrontar do norte com rua ..., do sul e poente com terrenos municipais e do nascente com Rua ..., (depois Rua ...) a destacar do prédio sob o n.º ...71, a fls.183 do livro ...8, tendo procedido à respetiva demarcação em 2.12.1964, e emitido, em 10.03.1965, o alvará n.º ...9 referente à mesma, para que servisse de título ao comprador relativamente a essa parcela de terreno

Em 13.12.1965, DD requereu ao Recorrido a passagem do direito de propriedade titulado pelo alvará n.º ...9 para a sociedade S..., SARL, autorização que foi concedida.

A sociedade S..., SARL, que tinha sido constituída em 1965, tendo como administradores nomeados, de 1972 a 1982, o Recorrido, e o seu pai, EE, apresentou em 29.12.1978 junto do Recorrente um pedido de aprovação dum projeto para a construção dum edifico a construir nessa parcela de terreno, assinado pelo seu administrador, EE, decorrendo o processo administrativo, relativamente ao licenciamento, até 1980, a pedido da S....

Resulta assim que os direitos decorrentes da adjudicação da parcela identificada, foram atribuídos à sociedade S..., pacificamente, como não podia ser desconhecido pelo Recorrido, enquanto titular de um seu órgão social.

Acontece que em 9.06.1999, CC, mãe do Recorrido, declarou que existia um prédio omisso na matriz e não registado na Conservatória do Registo Predial, indicando como confrontações, pelo norte com Rua ..., sul e poente com terrenos da Câmara Municipal ... e nascente com Rua ..., dando origem à inscrição matricial sob o art.º ...21 do lote de terreno para construção urbana com a área de 560m2, com tais confrontações.

Mas não só, por escritura de justificação notarial outorgada em 08.05.2001, declarou ser dona e legítima possuidora desse prédio sob a invocação, que juntamente com o seu ex-marido, EE, entraram na posse por compra verbal e nunca reduzida a escrito feita por EE a DD, em data imprecisa do ano de 1973, em simultâneo com a compra de ações da sociedade S... S.A., obtendo a inscrição matricial a seu favor, conforme ap. ...2 de 2001.07.10.

No entanto, o Recorrente veio judicialmente, processo n.º ...01, pedir a declaração de nulidade da referida escritura pública de justificação notarial, com o cancelamento registo a favor da ali ré, CC, o que logrou, por não se ter verificado a aquisição por via da usucapião, considerando-se não apurado que a ré CC, mãe do Recorrido, tivesse exercido até 9.06.1999 atos demonstrativos de propriedade sobre o referido lote de terreno, que a mesma e o seu ex-marido, EE o tivessem adquirido no ano de 1973, exercessem sobre o lote em causa atos de posse, bem como aquando o divórcio do casal em abril de 1979, o terreno tivesse passado para a posse da ali ré, realidade que o Recorrido não podia desconhecer, até porque habilitado como sucessor da Ré CC.

Por sua vez o Recorrente veio intentar contra a Massa Falida da S..., SARL e CC, os autos que correram termos sob o n.º 367/2001, pedindo a declaração da nulidade da alienação em hasta pública em 30.11.1964 e posteriormente transmissão para a S..., SARL inscrito na matriz na matriz predial respetiva sob o artigo ...21, mais peticionando que fosse declara proprietária da mesma parcela.

Na mesma ação a ali ré, CC invocou a aquisição originária do imóvel por usucapião, pelo que tendo falecido na pendência do processo, e sido habilitado o Recorrido para prosseguir os termos da demanda, foi decidido por sentença de 13.02.2012, “ a usucapião invocada nunca poderia proceder em função da autoridade do caso julgado, da decisão proferida no processo 333/2001”, decisão esta que nesta parte não foi alterada, face à prolação de Acórdão deste Tribunal de 16.1.14., tendo o Recorrente, na pendencia, deste processo levado a cabo limpezas de construções que se encontravam no terreno.

Resulta do enunciado, propositadamente amplo, que ao Recorrido não eram estranhas todas as vicissitudes à volta da aquisição da parcela em causa, maxime no que concerne às duas ações interpostas até por nas mesmas ter sido habilitado para prosseguir os respetivos termos, conhecendo do não reconhecimento do direito de propriedade de forma originária, por via de usucapião, no âmbito da contraposição dos intervenientes processuais por não só interessados, mas também intervenientes nos termos dos mesmos e na respetiva realidade subjacente.

Sem prejuízo do aludido, verifica-se que, em 28.10.2016, Recorrido veio interpor contra BB, os autos onde foi proferida a decisão revidenda, peticionando que fosse declarado que o  falecido marido daquela, DD, vendera a CC e (marido), EE, pais do Recorrido, em 1973, a parcela de terreno que havia adquirido ao Recorrente, em 30.11.1968 nos termos do alvará n.º ...9, reconhecido que DD recebera o preço de venda e conferira a posse da parcela de terreno aos referidos CC e EE, e em conformidade devendo o Recorrido ser  reconhecido como proprietário da parcela de terreno em causa.

Trouxe como causa de pedir a aquisição por usucapião da mãe, CC, decorrente da compra verbal feita em 1973, mantendo uma posse pacífica, ininterrupta, na convicção de estar a exercer um direito em nome próprio, há mais de 20 anos.

Para além do já explanado no que concerne ao conhecimento do fundamento e  destino das demandas processuais com vista à aquisição da parcela, apurado ficou também, que o mesmo sabe que a dita parcela deverá ser destacada nos termos do alvará que titulou a adjudicação, e também que DD não era possuidor do lote de terreno em causa e não o vendeu, o que vai de encontro às contingências enunciadas.

Ainda assim, o Recorrido logrou obter uma sentença declarando “que GG recebeu de CC e EE trezentos e treze mil e seiscentos escudos pela alienação verbal da parcela de terreno identificada no art.º l dos factos provados, absolvendo a ré do demais peticionado” e por Decisão singular do Tribunal da Relação de Évora, reconhecido ao Recorrido a aquisição, por usucapião, da parcela de terreno inscrita na matriz sob o art.º ...21, decisão revidenda, que aplicando o disposto no art.º 567, n.º1, do CPC, desse modo considerou provados todos os factos alegados na petição inicial.

Com efeito, decorre dos autos que a Ré/recorrida, BB não apresentou contestação, nem se pronunciou validamente nos autos, e desse silêncio resultou a confissão de factos proporcionando a decisão proferida.

Ora, dúvidas não restam que a Decisão judicial em causa, lesa os interesses do Recorrente, que se arroga a detentor da titularidade do direito de propriedade sobre a parcela, que explicite-se, não importa aqui determinar.

Por outro lado configura-se que a ação interposta, nos termos em que o foi, não visava dirimir qualquer litígio, por como se explanou ser inexistente quanto à Recorrida ré, mas sim a obtenção de um resultado não alcançado em lides processuais em que foram visados aqueles que nas mesmas tinham interesse.

Concorrendo para a existência de uma simulação processual, nos precisos termos como surge desenhada a ação após tudo o demais ocorrido, acresce que não se pode  escamotear, face a tudo enunciado, repita-se, que a versão dos autos apresentada pelo Recorrido mostra-se desfasada da verdade real conhecida pelo mesmo, e se manteve face ao facto de a ação ter sido  movida contra a Recorrida, que não tendo qualquer interesse real na ação, não se desmarcou ou questionou, de algum modo, o vertido nos autos, permitindo a prolação do decidido.

Desta forma, por se verificar uma grave anomalia processual, não passível de apreensão na pendência dos autos, importa que de proceda à sua sanação, e em conformidade com o disposto no art.º 696, g) do CPC se determine a sua anulação.

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III – DECISÃO

Nestes termos, decide-se revogar o Acórdão da Relação, repristinando a sentença que julgou procedente o recurso de revisão da decisão interposto, e anulada a decisão final proferida na ação declarativa apensa n.º 2939/16.2T8FAR.

Custas, da apelação e da revista, pelo Recorrido.

Lisboa, 26 de outubro de 2022

Ana Resende (Relatora)

Ana Paula Boularot

Graça Amaral

                                                          

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Sumário, art.º 663, n.º 7, do CPC.

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[1] Criado pelo Código do Processo Civil de 1939, como recurso extraordinário de oposição de terceiro equivalia, substancialmente, a uma ação de simulação instaurada pelo terceiro recorrente contra as partes na ação em que ocorrera a simulação processual. A reforma do CPC operada pelo DL 44.129, de 28.12.1961, introduziu a exigência de instauração de uma ação prévia para obter sentença de reconhecimento da simulação e do envolvimento de prejuízo para terceiro. Este regime foi mantido, no essencial, pela revisão do CPC introduzida pelos DL 329-A/95, de 12.12, e 180/96, de 25.09, e 38/2003, de 08.03. O DL 303/2007, de 24.08, integrou o recurso extraordinário de oposição de terceiro no recurso extraordinário de revisão de sentença, com o fundamento para a alínea g) do artigo 771.º deixando de se exigir a prévia instauração de ação. Tal regime foi mantido pela reforma da Lei n.º 41/2013, de 26.04, reforçando em termos de tramitação as garantias do contraditório. Cf. Acórdão do STJ, 26.01.2017 de 2226/13.8TJVNF-B.G1.S1, com amplo desenvolvimento, in www.dgsi.pt.
[2] Cf. Acórdão do STJ de 12.12.2017, processo n.º 2178/04.5TVLSB-E.L1.S1, in www.dgsi.pt. mencionando “Com o caso julgado protege-se o interesse substancial da estabilidade da ordem jurídica,  (…). A segurança é, pois, uma das exigências feitas ao Direito, pelo que, em última análise, representa também uma tarefa ou missão contida na própria ideia de Direito (…). Justiça e segurança acham-se numa relação de tensão dialética (havendo que salientar este ponto: a segurança jurídica como tal é um atributo da juridicidade; de modo que a tensão ou conflito entre justiça material e segurança jurídica é uma tensão dialética permanente e indesvanecível que se situa no interior mesmo da juridicidade)” apud, J. Baptista Machado, “Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador”, 1991, p. 55.
[3] Cf. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, in Código de Processo Civil Anotado, volume I, 2.ª edição, 2021, fls. 759.

[4] Cf. Acórdão do STJ de 12.12.2017, processo n.º 2178/04.5TVLSB-E.L1.S1, in www.dgsi.pt, mencionando “(…)  a ideia de justiça e a de certeza andam geralmente associadas, em certas circunstâncias excecionais entram as duas em conflito, impondo-se então que a certeza abra as suas portas para deixar entrar a justiça. E a chave para o efeito é o recurso extraordinário(…).”
[5] Cf. Lebre de Freitas, Ribeiro Mendes e Isabel Alexandre, in Código Processo Civil Anotado, volume 3.º, 3.ª edição, 2022, fls. 45/46 e 314/315.
[6] Cf. Acórdãos do STJ de 24.05.2018, processo n.º 412/12.7TBBRG-G.S1, e de 26.01.2017, processo n.º 2226/13.8TJVNF-B.G1.S1, ambos in www.dgsi.pt.
[7] Cf. Acórdão do STJ de 3071/13.6TJVNF.G1.S1, de 7.07.2017, in www.dgsi.pt, referindo que os simuladores em geral procuram as trevas, fogem das testemunhas, reportando aos ensinamentos do Prof. Manuel de Andrade, na Teoria Geral da Relação Jurídica, volume II, 1972, pag.207.
[8] Cf. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, obra e local mencionados.
[9] Cf. Lebre de Freitas, Ribeiro Mendes e Isabel Alexandre, obra mencionada a fls. 324.