Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
266/20.0YRLSB.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO (CRIMINAL)
Relator: CONCEIÇÃO GOMES
Descritores: EXTRADIÇÃO
SUSPENSÃO TEMPORÁRIA DA ENTREGA
CASO DE FORÇA MAIOR
PROTEÇÃO DA SAÚDE
Data do Acordão: 05/06/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: EXTRADIÇÃO / M.D.E.
Decisão: PARCIALMENTE PROVIDO
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
Decisão Texto Integral:

Acordam na 3ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça



1. RELATÓRIO

1.1. A Magistrada do Ministério Público veio, nos termos do disposto nos artigos 1º, 2º e 10º da Convenção de Extradição entre os Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, assinada na cidade da Praia, em 23 de novembro de 2005, promover o cumprimento do pedido de extradição relativo ao cidadão brasileiro AA, que também usa a identidade de BB, nascido em .. de março de 1964, em … - Brasil, de nacionalidade brasileira, filho de CC e de DD, titular de cartão de identidade brasileiro n° 003...2, emitido no Brasil e do passaporte emitido em 06-10-2016 como o n° FR6...6 e com residência, antes de detido, na Rua ..., nº..., ..., com os seguintes fundamentos:

«1º - Ao abrigo da Convenção de Extradição entre os Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, assinada na Cidade da Praia, em 25 de Novembro de 2005 - aprovada pela resolução da Assembleia da República portuguesa nº 49/2008 e ratificada pelo decreto do Presidente da República nº 67/2008, aprovada pelo decreto legislativo nº 45/2009, do Congresso Nacional brasileiro, e ratificada pelo decreto nº 7.935, da Presidência da República Federativa do Brasil -, as autoridades brasileiras solicitam ao Estado português a extradição do seu nacional supra identificado, para efeitos de procedimento criminal contra o mesmo.

2º Com efeito, no âmbito do processo nº 50..7-67.2017….200/…, que corre termos na …a Vara Federal de .../ Secção Judiciária de ...aquele cidadão brasileiro encontra-se acusado da prática de factos subsumíveis ao tipo legal de falsificação ideológica, previsto e punível ao abrigo do disposto no artigo 299º do Código Penal do Brasil e de um crime de uso de documento falso, previsto e punível pelo disposto no artigo 304º do Código Penal do Brasil, com pena máxima abstratamente aplicável de 5 anos de prisão, por factos praticados em … de Outubro de 2011 e … de Outubro de 2016.

3º- Os factos constitutivos do crime a que se reporta o artigo segundo deste requerimento são igualmente previstos pelo artigo 256º, n°1 al) e) e nº3 do Código Penal português, e punidos, em abstracto, com pena de prisão que pode atingir os 5 (cinco) anos.

4º - Não correu nem corre perante os tribunais portugueses qualquer processo criminal contra o extraditando pelos mesmos factos que fundamentam o presente pedido de extradição e o procedimento criminal não se acha extinto, por efeito da prescrição, nem face ao Código Penal do Brasil (artigo 109º III), nem face ao Código Penal português (artigo 118º, nº1 al) b) do Código Penal).

5º - O extraditando encontra-se atualmente em situação de reclusão, no Estabelecimento Prisional … à ordem dos presentes autos.

6º- O pedido formal de extradição apresentado às autoridades portuguesas pelas autoridades brasileiras satisfaz os requisitos dos artigos 2º da citada Convenção de Extradição e 31º da lei nº 144/99, de 31 de agosto, tendo-o a Senhora Ministra da Justiça, por despacho de 13 de Fevereiro de 2020, considerado admissível e autorizado o seu prosseguimento.

7º- Não se identificam causas de recusa a que aludem os artigos 3º e 4º da Convenção de Extradição entre os Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa nem as que resultam da lei interna, nomeadamente o extraditando não é nacional português, os crimes que lhe são imputados pelas autoridades da República Federativa do Brasil mostra-se previsto no ordenamento jurídico português, e não se verifica qualquer das situações a que alude o artigo 6º al) a) a d), 7º e 8º da lei 144/99 de 31 de Agosto.

- Nada de formal ou de substancial obsta, pois, à extradição para a República Federativa do Brasil, do cidadão brasileiro AA.

9º Este Tribunal da Relação de Lisboa é o competente para decretar a extradição, nos termos do artigo 49º nº 1 da lei nº 144/99, de 31 de agosto Nestes termos e considerando o disposto nos artigos 1º, 2º e 10º, da Convenção de Extradição entre os Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, e o disposto nos artigos 3º e 31º da lei nº 144/99, de 31 de agosto,

Requer-se:

Nos termos do artigo 51° e seguintes da referida lei nº 144/99, o prosseguimento dos presentes autos de extradição, procedendo-se à audição do extraditando, nos termos do artigo 54° da citada lei; e,

Cumprindo-se então com o determinado nos artigos 55.° e seguintes da mesma lei, concedendo-se, a final, a extradição do referido cidadão brasileiro para a República Federativa do Brasil.

Junta:

- O pedido de extradição formalizado pelas autoridades brasileiras;

Cópia do despacho da Senhora Ministra da Justiça que considerou admissível o pedido de extradição.

1.2. Foi proferido despacho liminar, e o extraditando foi ouvido nos termos previstos no artigo 54º, da Lei n°144/99, de 31-8, manifestando a sua oposição ao pedido formulado pela República Federativa do Brasil e a vontade de beneficiar da regra da especialidade.

1.3. Foi concedido o prazo previsto no art. 55º, da citada lei, o extraditando deduziu oposição, invocando:

a) A nulidade insanável da promoção do Ministério Público;

b) A falta dos pressupostos de extradição fundada na irregularidade do pedido formulado (art. 55º, n°2, da Lei n°144/99), falta de requisitos do pedido de extradição (art. 23º, da Lei n°144/99);

c) A não inclusão dos elementos listados no art. 44º, da Lei nº144/99;

d) A violação da ordem pública internacional do Estado Português;

e) O "pedido fraudulento" de extradição, da deslealdade da autoridade requerente e manifesto risco de incumprimento da regra da especialidade.

1.4. O Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Lisboa teve vista, nos termos do art. 55º, nº3, da Lei nº 144/99, respondendo à oposição do extraditando, alegando, em síntese, que não se identificam causas de recusa a que alude a Convenção de Extradição entre os Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, nem as que resultam da lei interna. O pedido formal de extradição apresentado às autoridades portuguesas pelas autoridades da República Federativa do Brasil satisfaz os requisitos dos artigos 1º e 2º da sobredita Convenção, e ainda o disposto no artigo 31º da lei nº 144/99, de 31 de agosto, nada de formal ou de substancial obsta à extradição para a República Federativa do Brasil de BB e concluindo pela improcedência da oposição apresentada.

1.5. O extraditando indicou duas testemunhas como prova, e por despacho do relator não foi admitida a sua inquirição, com o fundamento de que a inquirição das mesmas reconduzir-se-ia a ato inútil, porquanto não foram alegados factos suscetíveis de integrar fundamentos de oposição admissíveis pelo art. 55º, nº2, da Lei n°144/99, de 31-8 e apoiando a sua argumentação em questões de direito.

1.6. Por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 17 de março de 2020 foi deliberado autorizar a extradição para a República Federativa do Brasil, de AA, que também usa a identidade de BB, nascido em … de março de 1964, em ... - Brasil, de nacionalidade ..., filho de CC e de DD, para procedimento criminal pelos crimes e factos supra descritos, relativos à Ação Penal n° 50…682019...200, pendente na ...ª Vara Federal de .... .

1.7. Inconformado com o acórdão dele interpôs recurso o extraditando, que motivou concluindo nos seguintes termos:

«1. O presente recurso interposto pelo aqui Recorrente diz respeito ao Acórdão proferido pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, o qual, julgou procedente o pedido de extradição do Recorrente para a República Federativa do Brasil.

2. Não pode o aqui Recorrente conformar-se com tal decisão em face da manifesta falta de razão que lhe subjaz, e que determina, por conseguinte, a procedência do presente recurso in totum.

3. Concluiu o Tribunal a quo pela não verificação de um pedido encapotado de extradição, referindo que o pedido da República Federal do Brasil não abrange quaisquer factos relativos a procedimento criminal ou condenação por crime de homicídio.

4. Não compreende nem aceita o Recorrente, tal entendimento pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa. Porquanto, o pedido da Parte Requerente constitui elemento fundamental do procedimento de extradição, e deve conter, precisa e completamente a descrição dos factos imputados, com data, local e circunstâncias da infração que esteja em causa, o que não acontece.

5. O pedido de extradição subjudice viola as obrigações de clareza e transparência dos factos e fundamentos que lhe subjazem, em termos que se demonstram incompatíveis com os princípios basilares da ordem pública internacional do Estado Português.

6. Apesar de expressamente o pedido formal de extradição respeitar apenas aos factos relativos aos crimes de falsidade ideológica e uso de documento falso, a verdade é que a presença mais ou menos encapotada do crime de homicídio demonstra claramente aquele que é o objetivo visado pelas Autoridades Brasileiras: garantir a entrega do Recorrente ao Brasil para que aí o Recorrente cumpra pena de prisão pela suposta prática do crime de homicídio, em clara violação da não renúncia à regra da especialidade que o Recorrente já declarou nos presentes autos.

7. O pedido formal de extradição apresentado pelas Autoridades Brasileiras refere que tal pedido é apresentado pelos factos e fundamentos que se encontram expostos na decisão que emite tal pedido e na decisão do ev. 23 a qual inclui o mandado de prisão para cumprimento de pena definitiva pela suposta prática de crime de homicídio.

8. O pedido formalizado pelo Ministério Público padece de diversas nulidades e irregularidades.

9. Entre as quais, a inclusão na sua promoção, dos factos supostamente ocorridos em outubro de 2011, quando o pedido de extradição emitido pelo Brasil respeita somente aos factos alegadamente praticados em outubro de 2016.

10. Sendo mantido o entendimento do Venerando Tribunal a quo segundo o qual o pedido apresentado pelo Ministério Público deve considerar-se integrado por remissão com os elementos que constam dos documentos juntos com ele e aí elencados, tal implica que o crime de homicídio seja, por consequência, incluído no leque de crimes que fundamenta o pedido de extradição.

11. De outra forma não se poderia entender, dado que a documentação relativa ao mesmo integra a documentação remetida aos presentes autos com o pedido formal de extradição.

12. Pelo que, se o Ministério Público dá por reproduzido e integrado no seu requerimento a demais documentação junta aos autos, dá também por incluída a documentação relativa ao crime de homicídio.

13. Razão pela qual se impõe concluir não só pelas nulidades e irregularidades que ferem a promoção do Ministério Público, já arguidas em sede de oposição, como pelo pedido fraudulento de extradição e consequente deslealdade da autoridade requerente.

14. É manifesto o interesse do Brasil na extradição do Recorrente, pelo crime de homicídio, não obstante o mesmo não constituir fundamento «oficial» do pedido de extradição formal apresentado.

15. O Requerido não renunciou ao princípio da especialidade pelo que a manutenção da decisão recorrida sempre acarretará uma violação insuportável dos princípios que regem a ordem pública internacional do Estado Português e, bem assim, uma violação dos direitos, liberdades e garantias do Requerido com a qual um Estado de Direito democrático não pode compactuar.

16. O contexto atual, resultante da proliferação dos casos registados de contágio de COVID-19, torna necessária a ponderação do presente processo de extradição à luz desta situação excecional que se vive. Impondo a aplicação de medidas extraordinárias e de caráter urgente.

17. Face à pandemia atual, a eventual procedência e confirmação do pedido de extradição deverá ter em conta não só o estado de saúde débil do Recorrente, como também o risco que a extradição para o Brasil pode causar à vida do mesmo.

18. Porquanto, o Brasil de momento encontra-se numa situação delicada, tendo os números registados de infetados aumentado exponencialmente.

19. Tal situação comporta sérios riscos ao nível de diversas infraestruturas, nomeadamente ao nível dos estabelecimentos prisionais que, dada a sua sobrelotação e falta de condições higiénicas consubstanciam numa enorme fonte de contágio.

20. O Recorrente é doente …, tendo já sido sujeito a uma intervenção cirúrgica devido a graves problemas relacionados com os seus pulmões, fazendo, por isso, parte dos grupos de risco apontados pelas diretrizes da Direção Geral de Saúde, estando mais vulnerável à COVID-19.

21. Existindo no caso concreto, um risco elevado, importante e seriamente perigoso para o Recorrente.

22. A atual situação de pandemia, conjugada com a frágil condição de saúde do Recorrente tornam a sua extradição insuportável, não podendo ser assegurado ao Recorrente, dada a carência de meios que se enfrenta, o acompanhamento e tratamento médicos normais que seriam exigidos.

23. Pelo que, não pode este Insigne Tribunal não ponderar a existência deste risco, nomeadamente as consequências previsíveis da extradição do Recorrente para o Brasil, tendo em vista a situação geral no país e das circunstâncias específicas do Recorrente.

24. Dada a situação atual provocada pelo COVID-19, que não tem precedentes torna-se necessário encontrar suporte legal que dê resposta às circunstâncias que vivemos.

25. Torna-se ainda necessário olhar ao total esvaziamento do sentido útil do atual pedido de extradição dado que, sendo a extradição para efeitos de procedimento criminal, o fim visado pela mesma é apenas e só o assegurar a necessidade do Recorrente contestar a acusação que pende sobre si.

26. Sendo o fim visado pelas autoridades brasileiras, com a apresentação do presente pedido de extradição, a contestação da acusação que corre termos na ….ª Vara Federal de ..., por parte do Recorrente, julga-se desproporcional o sacrifício que é imposto ao Recorrente.

27. Sendo certo, ser possível atingir o fim visado pelas autoridades brasileiras, permanecendo o Recorrente em Portugal.

28. Termos em que, a proporcionalidade e razoabilidade impostas constitucionalmente a este Insigne Tribunal determinam, por si só e diante do conflito de direitos que no contexto atual cumpre dirimir, a recusa do pedido de extradição emitido pelas Autoridades Brasileiras - o que se requer para todos os legais efeitos.

Nestes termos e nos demais de Direito, que V. Exas. mui doutamente suprirão, requer-se seja o presente Recurso admitido, por legal e tempestivo, e mais seja julgado totalmente procedente, por provado, com a consequente revogação da Decisão Recorrida em moldes que determinem a recusa do pedido de extradição emitido nos presentes autos, com todas as legais consequências.

Crê-se que ao julgardes assim, estareis V. Exas., Colendos Juízes Conselheiros, a realizar a costumada JUSTIÇA!

1.8. No Tribunal da Relação de Lisboa o Ministério Público pronunciou-se no sentido que deve ser negado provimento ao recurso, concluindo nos seguintes termos:

«1. O acórdão recorrido autorizou a extradição do recorrente para a República Federativa do Brasil, para procedimento criminal pelos crimes de falsificação ideológica, praticado a … de outubro de 2011 e de uso de documento falso, praticado a ... de outubro de 2016, previstos e punidos pelos artigos 299º e 304º, do Código Penal Brasileiro e relativos à Ação Penal n° 50…682019…200, da …ª Vara Federal de ..., Estado de ...;

2. Não se verifica um pedido encapotado de extradição para cumprimento da pena de reclusão em regime fechado, em que foi condenado pela prática de homicídio qualificado, nos autos nº 0000015-49….0062, da Comarca de …/…, Estado de …, “com saldo de pena a cumprir de 14 anos, 4 meses e 11 dias”;

3. O acórdão recorrido só podia, como fez e bem, conhecer do pedido de extradição balizado pelo requerimento inicial apresentado, nos termos dos arts. 1º, 2º, 3º, 10º da Convenção de Extradição entre os Estados Membros da CPLP e 50º, nº 2, da Lei nº 144/99, de 31 de agosto e pelo despacho que liminarmente o admitiu proferido a 20 de fevereiro de 2020, ao abrigo do disposto no art. 51º, nº 1, desta lei;

4. Na sequência, aliás, do processo administrativo que culminou com o despacho de Sua Excelência Senhora Ministra da Justiça, que declarou admissível o pedido de extradição apresentado pelas Autoridades Judiciais Brasileiras para efeitos de procedimento criminal pela prática de um crime de falsificação ideológica ocorrido a … de outubro de 2011 e de um crime de uso de documento falso ocorrido a … de outubro de 2016, pedido esse que não abarcava, nem poderia abarcar, a extradição para cumprimento de pena pela condenação do recorrente pela prática do crime de homicídio;

5. O pedido extradicional foi formulado e decidido no interesse da …ª Vara Federal Criminal de ..., apenas para procedimento criminal e com base nos aludidos crimes de falsificação ideológica e de uso de documento falso;

6. Como bem decidiu o acórdão recorrido o pedido formulado no requerimento inicial do Ministério Público junto deste TRL deve considerar-se integrado por remissão com os elementos que constam dos documentos também juntos;

7. A referência à condenação pelo crime de homicídio qualificado referido em 2 tem de ser entendida como meramente informativa da conduta do recorrente, que terá motivado a prática dos factos ilícitos integradores dos crimes de falsificação ideológica e de uso de documento falso, estes sim e apenas estes visados com a autorização de extradição decidida no acórdão recorrido;

8. Prolifera por todo o mundo, incluindo Portugal e o Brasil a pandemia decorrente da proliferação do vírus denominado Covid 19;

9. Em Portugal foi declarado e estado de emergência, com fundamento na verificação de calamidade pública - Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de março, renovado pelo Decreto do Presidente da República n.º 17-A/2020, de 2 de abril;

10. Alega o recorrente que sofre de problemas cardiovasculares e respiratórios, tendo já sido operado aos pulmões, com ablação de parte;

11. Resulta da informação clínica remetida pelo estabelecimento prisional que o recorrente padece de … e …, estando medicado e os valores controlados;

12. Esta sua problemática saúde coloca-o no grupo de risco, sujeito a um dever especial de proteção - art. 4º, nº 1, b), dos Decretos nº 2-A/2020, de 20 de março e n.º 2-B/2020, de 2 de abril;

13. Desconhecendo-se a evolução desta pandemia, a extradição do recorrente poderá vir a ser diferida, nos termos do art. 35º, nº 3, da Lei 144/99, de 31 agosto e com o fundamento no estado de emergência declarado em consequência da situação de calamidade pública, mas não recusada;

O presente recurso não merece, em nosso entender, provimento, devendo ser confirmado o acórdão recorrido».

1.9. Colhidos os vistos legais, foram os autos à Conferência.



***


II. FUNDAMENTAÇÃO

Resultam dos autos as seguintes ocorrências processuais relevantes para a decisão do recurso:

1. A pedido das autoridades da República Federativa do Brasil pela Procuradoria-Geral Distrital do Tribunal da Relação de Lisboa foi requerida a extradição de AA, que também usa a identidade de BB, nascido em ... de março de 1964, em ... - Brasil, de nacionalidade brasileira, filho de CC e de DD, titular de cartão de identidade brasileiro n° 003...2, emitido no Brasil e do passaporte emitido em 06-10-2016 como o n° FR6...6 e com residência, antes de detido, na Rua ..., nº ..., ... .

2. As autoridades da República Federativa do Brasil pedem a extradição do requerido para procedimento criminal por factos subsumíveis ao tipo legal de falsificação ideológica, previsto e punível ao abrigo do disposto no artigo 299º do Código Penal do Brasil e de um crime de uso de documento falso, previsto e punível pelo disposto no artigo 304º do Código Penal do Brasil, com pena máxima abstratamente aplicável de 5 anos de prisão, por factos praticados em ... de outubro de 2011 e ... de outubro de 2016 (descritos na denúncia do Ministério Público da Procuradoria da República em ..., Ação Penal nº 50…8201…200, junta a estes autos a fls. 61).

3. O extraditando foi detido no dia ... de janeiro de 2020.

4. A detenção do Recorrente foi efetuada com base em mandado de detenção internacional emitido, a ... de julho de 2018, pelas Autoridades Judiciárias Brasileiras e, inserido no sistema de informação da INTERPOL com o n.º 2018/6...8.

5. Aquando da sua audição judicial em ... de janeiro de 2020 o extraditando manifestou desde logo a sua oposição à extradição, mais tendo recusado renunciar à regra da especialidade.

6. É do seguinte teor o acórdão recorrido na parte que aqui releva:

4. O objecto do processo reconduz-se à verificação dos requisitos do pedido de extradição apresentado pela República Federativa do Brasil em relação ao cidadão AA.

II. Tudo visto, cumpre decidir.

a) A nulidade insanável da promoção do Ministério Público:

O objecto do processo judicial de extradição (arts. 50 e segs. da Lei n° l44/99), é definido pelo requerimento do Ministério Público promovendo o cumprimento do pedido de extradição formulado pelo Estado estrangeiro.

No caso, através do requerimento apresentado o Ministério Público identifica o extraditanto (não questionando o detido que é a pessoa reclamada) e, em relação a factos, alega que são subsumíveis ao tipo legal de falsificação ideológica e ao crime de uso de documento falso, praticados em … de Outubro de 2011 e … de Outubro.

O requerimento do Ministério Público promovendo o cumprimento do pedido de extradição, surge na sequência do processo administrativo a que se refere o art.48, da Lei n°144/99.

Com o requerimento o Ministério Público juntou:

- A informação da Procuradoria-geral da República à Exma Sra Ministra da Justiça, datada de 5Fev.20, onde é referido que o pedido de extradição se refere aos factos relativos ao Processo 50…67-67, 2017….200/…, que corre termos na …ª Vara Federal de ... / Seção Judiciária de ..., por um crime de falsidade ideológica e um crime de uso de documento falso, praticados em … de outubro de 2011 e … de outubro de 2016.

- O douto despacho da Ex.ma Sra Ministra da Justiça, datado de 13Fev.20, que declara admissível a extradição em relação a factos do processo n.° 501…2-68.2019….200/…, por um crime de "falsidade ideológica", praticado a … de outubro de 2011 e um crime de "uso de documento falso", praticado … de outubro de 2016.

Em relação a documentos emitidos pelo Estado requerente, o Ministério Público juntou:

- Ofício da Secretaria Nacional de Justiça, Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional, Coordenação de Extradição e Transferência de Pessoas Condenadas Extradição, datado de 30 de janeiro de 2020, dirigido ao Gabinete de Documentação e Direito Comparado, da Procuradoria-Geral da República de Portugal, formalizando pedido de extradição de BB, no interesse do Juízo da …ª Vara Federal Criminal de .../…, por crimes descritos nos artigos 299 e 304 do Código Penal brasileiro. -Documento emitido pela Seção Judiciária de ..., 1a Vara Federal de ..., onde se identifica o processo originário com o n° 502…7-67.2017….200/…, REQUERENTE: POLÍCIA FEDERAL/…, como acusado BB, processado nos autos da Ação Penal n° 50…682019…200, descrevendo os factos do seguinte modo: "obter o Passaporte FR6…6 se utilizando de carteira de identidade ideologicamente falsa, cujo passaporte foi utilizado para saída do Brasil".

- Edital de citação e intimação n°72…35, emitido pela Seção Judiciária de ..., …a Vara Federal de ..., relativo à Acção Penal N° 501…2-68.2019…200/…, identificando como réu: AA, por uso de documento público materialmente falso (primeiro fato), em concurso material com as sanções do art. 299 do Código Penal, por uso de documento público ideologicamente falso (segundo fato).

- Denúncia do MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, Procuradoria da República em ...(n°502…-67.2017…200), dirigida ao MM. Juízo Federal Criminal de ..., em desfavor de AA, pelos seguintes factos:

Primeiro fato (Uso de documento público materialmente falso -art. 304 c/c 297 do Código Penal, c/c art. 61, II, "b" do Código Penal) "Com objetivo de assegurar impunidade por condenação definitiva a pena de 15 anos de reclusão em regime inicial fechado, por homicídio qualificado julgado na Comarca de …/…, nos autos de n° 000001..-49…..0062, com saldo de pena a cumprir de 14 anos, 4 meses e 11 dias, o acusado apresentou-se à Coordenadoria de Identificação da Secretaria de Estado da Segurança Pública e Defesa Social do Estado do …, localizada em …/…, portando Certidão de Nascimento materialmente falsa, supostamente lavrada no Livro 11-A, F-31, RG 8…8, do …° Cartório de …./…, ardil com o qual obteve cédula de identidade expedida em …/10/2011, sob número de registro geral 003.3….0…2, em nome de BB, filho de CC e DD, natural de …/…, aos 11/03/1964, fazendo constar desse documento de identidade o número 701….-20 de sua inscrição no Cadastro de Pessoas Físicas (CPF), obtida no dia anterior, …/10/2011...";

Segundo fato (Uso de documento público ideologicamente falso -art. 304 c/c 299 do Código Penal, c/c art. 61, II, "b" do Código Penal) "Munido de cédula de identidade produzida mediante o ardil acima descrito, e buscando assegurar impunidade através de evasão do país sob identidade falsa, o acusado AA apresentou-se como BB perante a Polícia Federal em ..., comprovando sua identidade com a cédula de N° 003…./…/…, ardil com a qual obteve passaporte N° FR6…6, confirmado em 0…/10/2016, válido até 0…/10/2026 .

O pedido apresentado pelo Ministério Público deve considerar-se integrado por remissão com os elementos que constam dos documentos juntos com ele[1] (1).

Da análise conjunta desse requerimento e desses documentos resulta inequivocamente que o pedido de extradição de AA, que também usa a identidade de BB, é para efeitos de procedimento criminal, pelos factos relativos à Ação Penal n° 50…82019…200, que corre termos na …a Vara Federal de ..., relativos a factos ocorridos em 25/10/2011 (Primeiro fato) e 06/10/2016 (Segundo fato), supra descritos.

Alega o extraditando que os fundamentos apresentados pelo Ministério Público para promover a extradição estão além e aquém dos fundamentos apresentados pela Autoridade Requerente.

Além, porque o Ministério Público refere que o requerido está acusado o que não é confirmado pela documentação apresentada pelo Estado requerente.

A expressão acusado usada no requerimento do Ministério Público, consta do documento emitido pela Seção Judiciária de ..., …a Vara Federal de ..., onde a identificação do extraditando surge depois da expressão acusado, no entanto, nestes autos é irrelevante que a expressão usada pelo Ministério Público corresponda ou não ao sentido formal de acusação no processo penal português, pois podendo a extradição ter lugar para procedimento penal ou para cumprimento de pena (art.31, n°l, da Lei n°144/99), não se suscitam dúvidas que no caso o fim é o procedimento criminal, para o efeito sendo indiferente a fase processual concreta em que o processo se encontra no Estado requerente, seguro que é que o extraditando ainda não foi julgado pelos factos em causa.

Alega o extraditando, ainda, que o Estado requerente só considera factos alegadamente praticados em Outubro de 2016 e o Ministério Público considera, na sua promoção, os factos supostamente ocorridos em Outubro de 2011.

Contudo, como resulta dos documentos supra referidos emitidos pelo Estado requerente, este pretende a extradição também por factos ocorridos em …/10/2011 (Primeiro fato).

Alega, ainda, que o requerimento do Ministério Público omite qualquer referência ao crime de homicídio mencionado no pedido formal de extradição emitido pelas Autoridades do Brasil.

De facto, no ofício da Secretaria Nacional de Justiça, Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional, Coordenação de Extradição e Transferência de Pessoas Condenadas Extradição, datado de … de janeiro de 2020, é feita referência a um crime de homicídio, contudo, é claro não ser formulado pedido de extradição em relação a esse crime, constando apenas desse ofício uma informação "Informo, ainda, que esta área entrará em contato com o Juízo de Direito da Comarca de …./… a fim de verificar outrossim o interesse na apresentação do pedido de extradição em desfavor do nominado, com base no crime de homicídio duplamente qualificado''.

Alega o extraditando que não é aplicável a Convenção de Extradição entre Estados Membros da CPLP aos factos de 2011, pois a mesma só entrou em vigor no Brasil a 20 de Março de 2013.

Esta Convenção, porém, como refere a Ex.ma PGA na sua douta resposta à oposição apresentada pelo extraditando, encontra se em vigor para o Brasil desde 1 de junho de 2009,

De qualquer modo, em relação às normas processuais nela previstas sempre seria de aplicar aos presentes autos, nos termos do art. 5, do CPP, iniciados muito depois do início da sua vigência.

Mesmo não existindo esta Convenção, a apreciação da pretensão do Estado requerente tinha apoio legal na Lei n°144/99, não esquecendo que anteriormente vigorou entre Portugal e o Brasil o Tratado de Extradição celebrado em 7 de Maio de 1991.

Está, deste modo, rigorosamente definido o objecto do pedido de extradição, não ocorrente nulidade da promoção do Ministério Público, nem qualquer irregularidade do processado.

b) A falta dos pressupostos de extradição:

Como resulta do exposto supra está definido com rigor o objecto e motivos do pedido de extradição, por forma a satisfazer o exigido em todas as alíneas do n° l, do art.23, da Lei n°144/99.

Ao contrário do alegado pelo extraditando, não existe qualquer pedido encapotado de extradição, sendo claro, como se referiu, que esse pedido não abrange quaisquer factos relativos a procedimento criminal ou condenação por crime de homicídio.

c) A não inclusão dos elementos listados no art.44, da Lei n° l44/99

Alega o extraditando que dos autos não consta a garantia formal a que se refere a al. c, do n° l, daquele preceito legal.

Contudo, a garantia que a pessoa reclamada não será extraditada para terceiro Estado, assim como o princípio da especialidade, estão assegurados pela Convenção de Extradição entre os Estados-Membros da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (arts.6 e 7), o que dispensa a apresentação de uma garantia formal para o caso concreto.

Qualquer violação ao disposto naquele Convenção constituiria ilícito ao nível das relações entre os Estados em causa, o que se tem por seguro não ser possível ocorrer, quando estão em causa Estados que norteiam as suas relações por princípios de boa-fé e rigoroso respeito pelo Direito.

d) Violação da ordem pública internacional do Estado Português:

Como já se referiu, não existe qualquer pedido fraudulento de extradição, o pedido de extradição está devidamente delimitado e não existe qualquer risco de violação do princípio da especialidade, nem de extradição para terceiro Estado, não se reconhecendo violação de qualquer princípio Ordem Pública Internacional do Estado Português.

Improcede, pois, a oposição do extraditando.

e) Os factos supra descritos pelos quais a República Federativa do Brasil pretende a entrega de AA, cidadão brasileiro, para procedimento criminal, são subsumíveis ao tipo legal de falsificação ideológica, previsto e punível ao abrigo do disposto no artigo 299 do Código Penal do Brasil e ao crime de uso de documento falso, previsto e punível pelo disposto no artigo 304 do Código Penal do Brasil, com pena máxima abstratamente aplicável de 5 anos de prisão.

São também puníveis pela legislação penal portuguesa, mais precisamente pelo artigo 256, n° l al. e) e n°3 do Código Penal Português, em abstracto, com pena de prisão que pode atingir os cinco anos.

Não se verifica qualquer causa extintiva do procedimento criminal, nem perante a lei da República Federativa do Brasil nem face à lei criminal Portuguesa.

Não se verifica, ainda, qualquer caso em que a extradição é excluída (art.32, da Lei n°144/99, de 31-8), nem causa de inadmissibilidade ou de recusa facultativa de extradição previstas, respectivamente, nos arts.3 e 4, da citada Convenção de Extradição entre os Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa.

Sua Excelência a Sra. Ministra da Justiça considerou admissível a extradição (arts. 46, n° 2 e 48, n° 2 da Lei 144/99 de 31/8 e arts. 1 a 4 da Convenção de Extradição entre os Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa)

O pedido de extradição mostra-se devidamente instruído em conformidade com a Convenção de Extradição entre os Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa e o disposto nos artigos 23° e 44° da Lei 144/99.

O extraditando não tem nacionalidade portuguesa e a sua alegada forte ligação a Portugal não constitui fundamento de oposição à extradição.

Assim, nada de formal ou substancial obstando à extradição do requerido e verificando-se todos os requisitos exigidos pelas citadas Convenção de Extradição e Lei 144/99, impõe-se que seja satisfeito o pedido de extradição apresentado pelas autoridades da República Federativa do Brasil.


***



III. O DIREITO

O objeto do presente recurso, atentas as conclusões da motivação do recorrente, prende-se, em síntese, com as seguintes questões:

a) A irregularidade do pedido formal de extradição pelas Autoridades Brasileiras;

b) O pedido do Ministério Público;

c) A situação excecional decorrente do Covid 19.


Vejamos a 1ª questão:

a) A irregularidade do pedido formal de extradição pelas Autoridades Brasileiras.

A extradição constitui uma das formas de cooperação internacional em matéria penal, mediante a qual um Estado (requerente) solicita a outro Estado (requerido) a entrega de uma pessoa que se encontre no território deste, para efeitos de procedimento penal ou para cumprimento de pena ou de medida de segurança privativas de liberdade, por crime cujo julgamento seja da competência dos tribunais do Estado requerente.

Na definição dada por Gomes Canotilho, [2]a extradição é a transferência de um individuo que se encontra no território de um Estado para a autoridade de outro Estado, a solicitação deste, por se encontrar arguido ou condenado pela prática de um crime, sendo entregue às autoridades desse Estado”

O procedimento extradicional não é um processo-crime contra o extraditando, estando em causa apenas a obtenção de uma decisão por parte do Estado requerido sobre a verificação dos pressupostos materiais da extradição. (Ac. do STJ, de 19-09-2007, Relator Raul Borges Proc. n.º 3338/07 - 3.ª Secção).

A decisão de extradição não se configura, não se deve configurar, como um procedimento quase automático, assente numa repetição de estereótipos, mas sim uma cuidada equação das circunstâncias do caso vertente (Ac. do STJ, de 31-03-2011, Relator Santos Cabral, Proc. nº 257/10.9YRCBR.S1, 3ª Secção).

Os Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa CPLP, - entre eles Portugal e Brasil – subscreveram, em 23-11-2005, na cidade da Praia, uma Convenção sobre Extradição, a qual foi ratificada por Decreto do Presidente da República 3/94, de 03-02, e aprovada pela Resolução da AR n.º 49/2008, de 18-07, in DR I-Série n.º 178, de 15-09-2008, que entrou em vigor em 01.03.2010 (vigorando par força do disposto no art. 8.º 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa), sendo ratificada no Brasil em 01.05.2009.

Após a sua aprovação e publicação oficial as normas insertas nas convenções internacionais vigoram na ordem jurídica interna, com um valor nunca inferior à lei ordinária interna – cf. art. 8.º, n.ºs 1 e 2, da CRP. Significa isto que o regime definido na referida Convenção de Extradição revogou a regulamentação fixada na Lei 144/99, de 31-08, no que diz respeito à cooperação judiciária entre os Estados.

Na República Federativa do Brasil, a Convenção foi aprovada pelo Congresso Nacional por meio do Decreto Legislativo 45, de 30 de março de 2009, sendo promulgada pelo Decreto Presidencial 7.935, de 19 de Fevereiro de 2013, considerando que o acordo entrou em vigor para a República Federativa do Brasil no plano jurídico externo em 01 de Junho de 2009.

O artº 25º da Convenção, sob a epígrafe «Conexão com outras convenções e acordos», consagra:

1 — A presente Convenção substitui, no que respeita aos Estados aos quais se aplica, as disposições de tratados, convenções ou acordos bilaterais que, entre dois Estados Contratantes, regulem a matéria da extradição.

2 — Os Estados Contratantes poderão concluir entre si tratados, convenções ou acordos bilaterais ou multilaterais para completar as disposições da presente Convenção ou para facilitar a aplicação dos princípios nela contidos.

A extradição de cidadãos brasileiros para o seu País de origem rege-se pois pelas normas constante do Tratado de Extradição celebrado entre Portugal e a CPLP.

Sendo a República Federativa do Brasil o Estado requerente, aplica-se ao caso em apreço a Convenção de Extradição entre os Estados-Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 49/2008”. (Vide o Ac do STJ de 17.09.2015, processo 601/15.2YRLSB.S1 - Relator Pires da Graça)[3] .

Anteriormente aos atuais regimes, no campo específico das relações bilaterais entre Portugal e o Brasil, vigorava o Tratado de Extradição assinado em 7 de maio de 1991, em Brasília. Este tratado, ratificado por Decreto do Presidente da Republica n° 3/94 e aprovado pela Resolução da Assembleia da Republica nº 5/94, foi publicado no D.R.I-A, n.º 28, de 3/2/1994, vigorando a partir de 1/12/1994, consagrava expressamente no seu art. 6º uma norma referente ao princípio da especialidade.

Nos termos do art. 3º Lei 144/99 de 31/1, relativo à cooperação judiciária internacional em matéria penal, sob a epígrafe "Prevalência dos tratados, convenções e acordos internacionais" refere-se que:

«1. As formas de cooperação a que se refere o artigo 1º regem-se pelas normas dos tratados, convenções e acordos internacionais que vinculem o Estado Português e, na sua falta ou insuficiência, pelas disposições deste diploma.

2. São subsidiariamente aplicáveis as disposições do Código de Processo Penal».

Como supra se referiu alega o recorrente que se verifica a irregularidade do pedido formal de extradição pelas Autoridades Brasileiras, porquanto:

«O pedido da Parte Requerente constitui elemento fundamental do procedimento de extradição, e deve conter, precisa e completamente a descrição dos factos imputados, com data, local e circunstâncias da infração que esteja em causa, o que não acontece.

O pedido de extradição subjudice viola as obrigações de clareza e transparência dos factos e fundamentos que lhe subjazem, em termos que se demonstram incompatíveis com os princípios basilares da ordem pública internacional do Estado Português.

Apesar de expressamente o pedido formal de extradição respeitar apenas aos factos relativos aos crimes de falsidade ideológica e uso de documento falso, a verdade é que a presença mais ou menos encapotada do crime de homicídio demonstra claramente aquele que é o objetivo visado pelas Autoridades Brasileiras: garantir a entrega do Recorrente ao Brasil para que aí o Recorrente cumpra pena de prisão pela suposta prática do crime de homicídio, em clara violação da não renúncia à regra da especialidade que o Recorrente já declarou nos presentes autos.

O pedido formal de extradição apresentado pelas Autoridades Brasileiras refere que tal pedido é apresentado pelos factos e fundamentos que se encontram expostos na decisão que emite tal pedido e na decisão do ev. 23 a qual inclui o mandado de prisão para cumprimento de pena definitiva pela suposta prática de crime de homicídio.

O pedido formalizado pelo Ministério Público padece de diversas nulidades e irregularidades.

Entre as quais, a inclusão na sua promoção, dos factos supostamente ocorridos em outubro de 2011, quando o pedido de extradição emitido pelo Brasil respeita somente aos factos alegadamente praticados em outubro de 2016.

Sendo mantido o entendimento do Venerando Tribunal a quo segundo o qual o pedido apresentado pelo Ministério Público deve considerar-se integrado por remissão com os elementos que constam dos documentos juntos com ele e aí elencados, tal implica que o crime de homicídio seja, por consequência, incluído no leque de crimes que fundamenta o pedido de extradição.

De outra forma não se poderia entender, dado que a documentação relativa ao mesmo integra a documentação remetida aos presentes autos com o pedido formal de extradição.

Pelo que, se o Ministério Público dá por reproduzido e integrado no seu requerimento a demais documentação junta aos autos, dá também por incluída a documentação relativa ao crime de homicídio.

Razão pela qual se impõe concluir não só pelas nulidades e irregularidades que ferem a promoção do Ministério Público, já arguidas em sede de oposição, como pelo pedido fraudulento de extradição e consequente deslealdade da autoridade requerente.

É manifesto o interesse do Brasil na extradição do Recorrente, pelo crime de homicídio, não obstante o mesmo não constituir fundamento «oficial» do pedido de extradição formal apresentado.


Vejamos:

Consagra a Convenção de Extradição entre os Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa:

Artigo 1.º

«Obrigação de extraditar

Os Estados Contratantes obrigam -se a entregar, reciprocamente, segundo as regras e as condições estabelecidas na presente Convenção, as pessoas que se encontrem nos seus respetivos territórios e que sejam procuradas pelas autoridades competentes de outro Estado Contratante, para fins de procedimento criminal ou para cumprimento de pena privativa da liberdade por crime cujo julgamento seja da competência dos tribunais do Estado requerente.

Artigo 2.º

Factos determinantes da extradição

1 — Dão causa à extradição os factos tipificados como crime segundo as leis do Estado requerente e do Estado requerido, independentemente da denominação dada ao crime, os quais sejam puníveis em ambos os Estados com pena privativa de liberdade de duração máxima não inferior a um ano.

2 — Se a extradição for requerida para o cumprimento de uma pena privativa da liberdade exige -se, ainda, que a parte da pena por cumprir não seja inferior a seis meses.

3 — Se a extradição requerida por um dos Estados Contratantes se referir a diversos crimes, respeitado o princípio da dupla incriminação para cada um deles, basta que apenas um satisfaça as exigências previstas no presente artigo para que a extradição possa ser concedida, inclusive com respeito a todos eles.

Artigo 3.º

Inadmissibilidade de extradição

1 — Não haverá lugar a extradição nos seguintes casos:

a) Quando se tratar de crime punível com pena de morte ou outra de que resulte lesão irreversível da integridade física;

b) Quando se tratar de crime que o Estado requerido considere ser político ou com ele conexo. A mera alegação de um fim ou motivo político não implicará que o crime deva necessariamente ser qualificado como tal;

c) Quando se tratar de crime militar que não constitua simultaneamente uma infração de direito comum;

d) Quando a pessoa reclamada tiver sido definitivamente julgada, indultada, beneficiada por amnistia ou objeto de perdão no Estado requerido com respeito ao facto ou aos factos que fundamentam o pedido de extradição;

e) Quando a pessoa reclamada tiver sido condenada ou dever ser julgada no Estado requerente por um tribunal de exceção;

f) Quando se encontrarem prescritos o procedimento criminal ou a pena em conformidade com a legislação do Estado requerente ou do Estado requerido.

2 — Para efeitos do disposto na alínea b) do n.º 1 não se consideram crimes de natureza política ou com eles conexos:

a) Os crimes contra a vida de titulares de órgãos de soberania ou de altos cargos públicos ou de pessoas a quem for devida especial proteção segundo o direito internacional;

b) Os atos de pirataria aérea e marítima;

c) Os atos a que seja retirada natureza de infração política por convenções internacionais de que seja parte o Estado requerido;

d) O genocídio, os crimes contra a Humanidade, os crimes de guerra e infrações graves segundo as Convenções de Genebra de 1949;

e) Os atos referidos na Convenção contra a Tortura e Outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes, adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de Dezembro de 1984.

Artigo 10.º

Forma e instrução do pedido

1 — Quando se tratar de pedido para procedimento criminal, o pedido de extradição deverá ser acompanhado de original ou cópia certificada do mandado de prisão ou de ato processual equivalente.

2 — Quando se tratar de pedido para cumprimento de pena, o pedido de extradição deverá ser acompanhado de original ou cópia certificada da sentença condenatória e de certidão ou mandado de prisão dos quais conste qual a pena que resta cumprir.

3 — Nas hipóteses referidas nos nºs 1 e 2, deverão ainda acompanhar o pedido:

a) Descrição dos factos pelos quais se requer a extradição, indicando -se o lugar e a data de sua ocorrência, sua qualificação legal e fazendo -se referência às disposições legais aplicáveis;

b) Todos os dados conhecidos quanto à identidade, nacionalidade, domicílio, residência ou localização da pessoa reclamada e, se possível, fotografia, impressões digitais e outros meios que permitam a sua identificação; e

c) Cópia dos textos legais que tipificam e sancionam o crime, identificando a pena aplicável, bem como os que estabelecem o respetivo regime prescricional.


Por seu turno dispõe o art. 50º, da Lei144/99 de 31 de agosto.

1 - O pedido de extradição que deva prosseguir é remetido, conjuntamente com os elementos que o instruírem e respetiva decisão, ao Ministério Público no tribunal da Relação competente.

2 - Dentro das quarenta e oito horas subsequentes, o Ministério Público promove o cumprimento do pedido».

Considerando que o pedido de extradição é balizado pelo requerimento apresentado de acordo com os citados preceitos, e tendo ainda em consideração o despacho que o admitiu liminarmente proferido em 20-02-2020 ao abrigo do disposto no artigo 51, nº1 da lei nº 144/99 de 31 de agosto, não há dúvida que no caso subjudice, o requerimento do pedido de extradição mostra-se efetuado de harmonia com as normas supra referidas.

Como se afirma no acórdão recorrido, «O objeto do processo judicial de extradição (arts. 50 e segs. da Lei nº 144/99), é definido pelo requerimento do Ministério Público promovendo o cumprimento do pedido de extradição formulado pelo Estado estrangeiro.

No caso, através do requerimento apresentado o Ministério Público identifica o extraditando (não questionando o detido que é a pessoa reclamada) e, em relação a factos, alega que são subsumíveis ao tipo legal de falsificação ideológica e ao crime de uso de documento falso, praticados em … de Outubro de 2011 e … de Outubro de 2016.

O requerimento do Ministério Público promovendo o cumprimento do pedido de extradição, surge na sequência do processo administrativo a que se refere o art.48, da Lei n°144/99. (sublinhados e realce nossos)

Com o requerimento o Ministério Público juntou:

- A informação da Procuradoria-geral da República à Exma. Sra. Ministra da Justiça, datada de 5Fev.20, onde é referido que o pedido de extradição se refere aos factos relativos ao Processo 50…7-67, 2017….200/…, que corre termos na …ª Vara Federal de ... / Seção Judiciária de ..., por um crime de falsidade ideológica e um crime de uso de documento falso, praticados em … de outubro de 2011 e … de outubro de 2016.

- O douto despacho da Exma. Sra. Ministra da Justiça, datado de 13Fev.20, que declara admissível a extradição em relação a factos do processo n° 50…2-68.2019….200/…, por um crime de "falsidade ideológica", praticado a … de outubro de 2011 e um crime de "uso de documento falso", praticado … de outubro de 2016.

Em relação a documentos emitidos pelo Estado requerente, o Ministério Público juntou:

- Ofício da Secretaria Nacional de Justiça, Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional, Coordenação de Extradição e Transferência de Pessoas Condenadas Extradição, datado de 30 de janeiro de 2020, dirigido ao Gabinete de Documentação e Direito Comparado, da Procuradoria-Geral da República de Portugal, formalizando pedido de extradição de Maurício Augusto Santos Freira, no interesse do Juízo da …ª Vara Federal Criminal de .../…, por crimes descritos nos artigos 299 e 304 do Código Penal brasileiro.

 - Documento emitido pela Seção Judiciária de ..., …a Vara Federal de ..., onde se identifica o processo originário com o n° 50…7-67.2017….200/…, REQUERENTE: POLÍCIA FEDERAL/…, como acusado BB, processado nos autos da Ação Penal n° 50…820194…200, descrevendo os factos do seguinte modo: "obter o Passaporte FR6…6 se utilizando de carteira de identidade ideologicamente falsa, cujo passaporte foi utilizado para saída do Brasil".

- Edital de citação e intimação n°72000…5, emitido pela Seção Judiciária de ..., Ia Vara Federal de ..., relativo à Acção Penal N° 50…2-68.2019….200/…, identificando como réu: AA, por uso de documento público materialmente falso (primeiro fato), em concurso material com as sanções do art. 299 do Código Penal, por uso de documento público ideologicamente falso (segundo fato).

- Denúncia do MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, Procuradoria da República em ...(n°50…7-67.2017….200), dirigida ao MM. Juízo Federal Criminal de ..., em desfavor de AA, pelos seguintes factos:

Primeiro fato (Uso de documento público materialmente falso -art. 304 c/c 297 do Código Penal, c/c art. 61, II, "b" do Código Penal) "Com objetivo de assegurar impunidade por condenação definitiva a pena de 15 anos de reclusão em regime inicial fechado, por homicídio qualificado julgado na Comarca de …/…, nos autos de n° 000001…-49….62, com saldo de pena a cumprir de 14 anos, 4 meses e 11 dias, o acusado apresentou-se à Coordenadoria de Identificação da Secretaria de Estado da Segurança Pública e Defesa Social do Estado do …, localizada em …/…, portando Certidão de Nascimento materialmente falsa, supostamente lavrada no Livro 11-A, F-31, RG 8…8, do …° Cartório de …/…, ardil com o qual obteve cédula de identidade expedida em 26/10/2011, sob número de registro geral 003….72, em nome de BB, filho de CC e DD, natural de …/…, aos …/03/1964, fazendo constar desse documento de identidade o número 701….-20 de sua inscrição no Cadastro de Pessoas Físicas (CPF), obtida no dia anterior, …/10/2011...";

Segundo fato (Uso de documento público ideologicamente falso -art. 304 c/c 299 do Código Penal, c/c art. 61, II, "b" do Código Penal) "Munido de cédula de identidade produzida mediante o ardil acima descrito, e buscando assegurar impunidade através de evasão do país sob identidade falsa, o acusado AA apresentou-se como BB perante a Polícia Federal em ..., comprovando sua identidade com a cédula de N° 003….72/…/…, ardil com a qual obteve passaporte N° FR6…6, confirmado em 0…/10/2016, válido até 0…/10/2026 .

O pedido apresentado pelo Ministério Público deve considerar-se integrado por remissão com os elementos que constam dos documentos juntos com ele.

Da análise conjunta desse requerimento e desses documentos resulta inequivocamente que o pedido de extradição de AA, que também usa a identidade de BB, é para efeitos de procedimento criminal, pelos factos relativos à Ação Penal n° 50…682019…200, que corre termos na …a Vara Federal de ..., relativos a factos ocorridos em …/10/2011 (Primeiro fato) e …/10/2016 (Segundo fato), supra descrito».(sublinhado e realce nossos)

Do exposto se conclui que o acórdão recorrido conheceu do pedido de extradição balizado pelo requerimento inicial apresentado, nos termos dos artigos 1º, 2º, 3º, 10º da Convenção de Extradição entre os Estados Membros da CPLP e 50º, nº 2, da Lei nº 144/99, de 31 de agosto e pelo despacho que liminarmente o admitiu proferido a 20 de fevereiro de 2020, ao abrigo do disposto no art. 51º, nº 1, desta lei.

Neste sentido improcede nesta parte o recurso.


b) O pedido do Ministério Público;

Alega, ainda o recorrente, que o requerimento do Ministério Público omite qualquer referência ao crime de homicídio mencionado no pedido formal de extradição emitido pelas Autoridades do Brasil.

Conforme consta do acórdão recorrido, «De facto, no ofício da Secretaria Nacional de Justiça, Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional, Coordenação de Extradição e Transferência de Pessoas Condenadas Extradição, datado de 30 de janeiro de 2020, é feita referência a um crime de homicídio, contudo, é claro não ser formulado pedido de extradição em relação a esse crime, constando apenas desse ofício uma informação "Informo, ainda, que esta área entrará em contato com o Juízo de Direito da Comarca de …/… a fim de verificar outrossim o interesse na apresentação do pedido de extradição em desfavor do nominado, com base no crime de homicídio duplamente qualificado''.

E tal como salienta o Ministério Público na resposta ao recurso, «na sequência do processo administrativo que culminou com o despacho de Sua Excelência Senhora Ministra da Justiça, que declarou admissível o pedido de extradição apresentado pelas Autoridades Judiciais Brasileiras para efeitos de procedimento criminal pela prática de um crime de falsificação ideológica ocorrido a … de outubro de 2011 e de um crime de uso de documento falso ocorrido a … de outubro de 2016, o pedido esse que, nem poderia abarcar, a extradição a extradição para cumprimento de pena pela condenação do recorrente pela prática do crime de homicídio».

O recorrente não renunciou ao princípio da especialidade.

O princípio da especialidade é inato ao instituto tradicional da extradição, traduz a limitação do âmbito penal substantivo do pedido, cuja abrangência se encontrava vedada e circunscrita aos factos motivadores do pedido de extradição – surge como uma garantia da pessoa procurada e como limite da ação penal ou da execução da pena ou da medida de segurança e representa uma segurança jurídica de que não será julgada por crime diverso do que fundamenta o mandado de extradição.

O princípio da especialidade encontra-se previsto no art. 6º, da Convenção de Extradição entre os Estados Membros da CPLP, dispondo o seguinte:

«1.- A pessoa entregue não será detida, julgada ou condenada, no território do Estado requerente, por outros crimes cometidos em data anterior à solicitação de extradição, e não constantes do pedido, salvo nos seguintes casos:

a) Quando a pessoa extraditada, podendo abandonar o território do Estado Contratante ao qual foi entregue, nele permanecer voluntariamente por mais de 45 dias seguidos após a sua libertação definitiva ou a ele voluntariamente regressar depois de tê-lo abandonado;

b) Quando as autoridades competentes do Estado requerido consentirem na extensão da extradição para fins de detenção, julgamento ou condenação da referida pessoa em função de qualquer outro crime.

2 - Para os efeitos da alínea b) do número anterior, o Estado requerente deverá encaminhar ao Estado requerido pedido formal de extensão da extradição, cabendo ao Estado requerido decidir se a concede. O referido pedido deverá ser acompanhado dos documentos previstos no n.º 3 do artigo 10.º e de declarações do extraditado prestadas em juízo ou perante autoridade judiciária, com a devida assistência jurídica.

3 - Se a qualificação do facto constitutivo do crime que motivou a extradição for posteriormente modificada no decurso do processo no Estado requerente, a ação não poderá prosseguir, a não ser que a nova qualificação permita a extradição.

Conforme decidiu o AC do STJ de 19-09-2015, processo 601/15.2YRLSB.S1 - Relator Pires da Graça: «Este princípio pretende afastar os chamados «pedidos fraudulentos» em que se invoca um facto para fundamento da extradição e se acaba por julgar o extraditado por outro que se não invoca.

VI - O Estado requerido apenas pode recusar, com a devida fundamentação, o pedido de extradição quando o seu cumprimento for contrário à segurança, à ordem pública ou a outros seus interesses fundamentais (art. 22° da Convenção referida em IV.), e, não vêm alegados factos que se enquadrem em tal desiderato».

Conforme salienta a Magistrada do Ministério Público na Resposta à oposição do recorrente: «A cooperação judiciária internacional rege-se pelos princípios da reciprocidade e da confiança, no caso que nos importa entre os Estados Membros de uma determinada Convenção.

A perseguição criminal por outros crimes puníveis com penas mais graves ou para cumprimento de pena por crime diferente constituiria uma derrogação desses princípios e do princípio da especialidade.

A propósito do princípio da especialidade, importa convocar o Acórdão do STJ de 11-01-2012, relatado pelo Excelentíssimo Conselheiro Armindo Monteiro, processo 111/11.7YFLSB, da 39 secção, acórdão esse, disponível em www.dgsi.pt em cujo sumário pode ler-se:

«O princípio da especialidade é um dos princípios estruturantes de todo o processo de cooperação internacional e que não se limita, apenas, à extradição, nos termos da abrangência alargada a outras formas de cooperação definidas no art. 16º da Lei 144/99, de 31-08. Esse princípio faz parte daquele conjunto de axiomas impostos pela simples coexistência relevante da comunidade internacional no sentido de que a entrega por extradição de um delinquente obriga o Estado requerente a conter o seu procedimento, a sua perseguição penal, nos precisos limites da acusação específica pelo crime predefinido e não por qualquer outro.

A especialidade desempenha uma função de garantia sucessiva, ou seja, garantia da extradição efectuada, destinada a assegurar o cumprimento das obrigações que os Estados, com o pedido de extradição, de modo implícito mas inequívoco, se comprometem a observar -sublinhado nosso.

A violação da cláusula da especialidade por parte do Estado que viu a sua pretensão satisfeita integrará um ilícito, como tal censurável ao nível das relações entre os Estados.

Consideramos, assim, que os princípios da confiança, da reciprocidade e da especialidade não permitem pôr em causa os limites do pedido, nos termos peticionados».

Se a República Federativa do Brasil tivesse em vista o cumprimento da pena pela prática do alegado crime de homicídio, poderia formular novo pedido ou ampliar o pedido de extradição do recorrente, o que não é manifestamente o caso.

O pedido formulado pelas autoridades da República Federativa do Brasil é para procedimento criminal pelos crimes de falsificação ideológica e de uso de documento falso previstos nos artigos 299º e 304º, do Código Penal Brasileiro e não para cumprimento de pena.

Neste sentido, improcede nesta parte o recurso.


c) A situação excecional decorrente do Covid 19.

Alega o recorrente que «O contexto atual, resultante da proliferação dos casos registados de contágio de COVID-19, torna necessária a ponderação do presente processo de extradição à luz desta situação excecional que se vive. Impondo a aplicação de medidas extraordinárias e de caráter urgente.

Face à pandemia atual, a eventual procedência e confirmação do pedido de extradição deverá ter em conta não só o estado de saúde débil do Recorrente, como também o risco que a extradição para o Brasil pode causar à vida do mesmo.

Porquanto, o Brasil de momento encontra-se numa situação delicada, tendo os números registados de infetados aumentado exponencialmente.

Tal situação comporta sérios riscos ao nível de diversas infraestruturas, nomeadamente ao nível dos estabelecimentos prisionais que, dada a sua sobrelotação e falta de condições higiénicas consubstanciam numa enorme fonte de contágio.

O Recorrente é doente cardíaco, tendo já sido sujeito a uma intervenção cirúrgica devido a graves problemas relacionados com os seus pulmões, fazendo, por isso, parte dos grupos de risco apontados pelas diretrizes da Direção Geral de Saúde, estando mais vulnerável à COVID-19.

Existindo no caso concreto, um risco elevado, importante e seriamente perigoso para o Recorrente.

A atual situação de pandemia, conjugada com a frágil condição de saúde do Recorrente tornam a sua extradição insuportável, não podendo ser assegurado ao Recorrente, dada a carência de meios que se enfrenta, o acompanhamento e tratamento médicos normais que seriam exigidos.

Pelo que, não pode este Insigne Tribunal não ponderar a existência deste risco, nomeadamente as consequências previsíveis da extradição do Recorrente para o Brasil, tendo em vista a situação geral no país e das circunstâncias específicas do Recorrente.

Dada a situação atual provocada pelo COVID-19, que não tem precedentes torna-se necessário encontrar suporte legal que dê resposta às circunstâncias que vivemos».

Com base na sua situação de saúde e a pandemia covid 19 o recorrente solicitou a substituição da prisão preventiva pela obrigação de permanência na habitação prevista no art. 201º, do Código Processo Penal, que lhe foi indeferida por despacho de 21 de abril de 2020.

Contudo, não há dúvida que vive-se atualmente a nível mundial uma situação excecional decorrente da pandemia provocada pelo vírus denominado COVID 19.

Em Portugal foi declarado o estado de emergência por verificação da situação de calamidade pública pelo Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de março, renovado pelo Decreto do Presidente da República n.º 17-A/2020, de 2 de abril.

Veio agora a ser declarado o estado de calamidade pública, pelo DL 20/2020, de 1 de maio.

No Brasil, de acordo com os últimos dados do Ministério da Saúde, atingiu a 1 de maio, 91.589 casos confirmados do novo coronavírus e os óbitos pela doença já chegam a 6.329.

Não é ainda previsível o fim desta pandemia e a sua evolução.


O recorrente foi convidado a fazer prova da situação clínica que alega (doente cardíaco, tendo já sido sujeito a uma intervenção cirúrgica devido a graves problemas relacionados com os seus pulmões).

Porém, veio alegar que não dispõe de outros elementos além do boletim clínico e dos exames médicos efetuados no Estabelecimento Prisional quando já se encontrava preventivamente detido.

Os serviços médicos do EP informaram que o detido sofre de HTA e DMNID não apresentando queixas e encontrando-se com os valores controlados

Assim sendo, uma vez que o recorrente é hipertenso e diabético, o que por si só o coloca no grupo de risco, sujeito ao dever especial de proteção - art. 4º, nº 1, b), dos Decretos nº 2-A/2020, de 20 de março e n.º 2-B/2020, de 2 de abril.

Prevê o art. 35º, nº 3, da Lei 144/99, de 31 agosto como causa de adiamento da entrega do extraditado a verificação, por perito médico, de enfermidade que ponha em perigo a sua vida.

Tal como salienta a Exmº Procuradora-Geral Adjunta na Resposta ao recurso, «é a luz desta disposição legal que deve ser encontrada a resposta para a situação excecional alegada pelo recorrente, podendo ser diferida a extradição decorrente dos problemas de saúde de que padece, que colocam em causa a sua vida, se contrair Covid 19.

De resto por enquanto não é possível a realização de viagens aéreas do Portugal para o Brasil, decorrente da referida pandemia o que constitui um caso de força maior.

Entendemos, pois, que a situação excecional em que vivemos determina que a extradição possa vir a ser diferida. Não implica que a extradição seja indeferida, que o pedido de extradição seja recusado como defende o recorrente».

Pelo exposto, uma vez que se verificam todos os requisitos exigidos pelas citadas Convenção de Extradição e Lei 144/99, nada obstando formal ou substancialmente à extradição do recorrente, o pedido de extradição apresentado pelas autoridades da República Federativa do Brasil é deferido para procedimento criminal pelos crimes e factos supra descritos, relativos à Ação Penal nº 501…82019…200, pendente na ...ª Vara Federal de .... .

Contudo, deferindo-se ao requerido pelo recorrente e ao proposto pelo Ministério Público, adia-se a entrega, ao abrigo do art. 35º, nº3, da Lei 144/99, de 31 agosto, enquanto se mantiver em vigor a declaração de calamidade pública.


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IV. DECISÃO:

Termos em que acordam os juízes que compõem a 3ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em conceder provimento parcial ao recurso e em consequência:

a) Autoriza-se a extradição para a República Federativa do Brasil, de AA, que também usa a identidade de BB, nascido em … de março de 1964, em ... - Brasil, de nacionalidade brasileira, filho de CC e de DD, para procedimento criminal pelos crimes de falsificação ideológica, previsto e punível ao abrigo do disposto no artigo 299º do Código Penal do Brasil e de um crime de uso de documento falso, previsto e punível pelo disposto no artigo 304º do Código Penal do Brasil, relativos à Ação Penal n° 50…82019…200, pendente na ...ª Vara Federal de .... .

b) Ao abrigo do disposto no art. 35º, nº3, da Lei 144/99, de 31 agosto adia-se a entrega do extraditando, enquanto se mantiver em vigor a declaração de calamidade pública.

Sem tributação.

Processado em computador e revisto pela relatora (art. 94º, nº 2, do CPP).


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Lisboa, 06 de maio de 2020


Maria da Conceição Simão Gomes (relatora)

Nuno Gonçalves

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[1] O nosso sistema jurídico tem evoluído no sentido de se afastar de critérios formais, admitindo mesmo no processo civil que a remissão para o teor de documentos juntos com a petição inicial pode servir para complementar a alegação de factos (neste sentido, entre outros Ac. do STJ de 7Nov.l9, P°6414/16.7T8VIS.C1.S1, Relator Abrantes Geraldes, acessível em www-dgsi.pt). não decorrendo daqui qualquer prejuízo para os direitos de defesa do requerido pois juntamente com o requerimento do Ministério Público ele foi notificado daqueles documentos que o acompanhavam.
[2] José Joaquim Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa, Anotada, Coimbra Editora, 2007, pág. 530.
[3] Disponível in www. dgsi.pt.