Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
543/19.2PALGS-D.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: ORLANDO GONÇALVES
Descritores: HABEAS CORPUS
PRAZO DA PRISÃO PREVENTIVA
ACUSAÇÃO
NOTIFICAÇÃO
INDEFERIMENTO
Data do Acordão: 12/20/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: HABEAS CORPUS
Decisão: IMPROCEDÊNCIA/ NÃO DECRETAMENTO.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :
É jurisprudência constante do STJ, o entendimento de que o prazo máximo de duração da prisão preventiva a que se reporta o art. 215.º, n.º 1, al. a), e 2 do CPP, conta-se desde a data do início daquela medida coativa, caducando na data da dedução da acusação – que não da data em que a acusação foi notificada ao arguido ou ao respetivo mandatário.
Decisão Texto Integral:


Proc. n.º 543/19.2PALGS-D.S1

Habeas Corpus

*

Acordam, em Conferência, na 5.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça

I- Relatório

1. AA, em prisão preventiva, decretada pelo Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo de Instrução Criminal ... - Juiz ..., no âmbito dos autos de inquérito n.º 543/19...., veio requerer ao Ex.mo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, através de Advogada constituída, a providência de habeas corpus, ao abrigo das “…disposições conjugadas dos artigos 31.º, n.º1 e 32.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa e dos artigos 218.º, n.º 3,  e 215.º, 217.º e artigo 222.º, n.ºs 1 e 2 al. c) todos do Código de Processo Penal”, nos termos que se transcrevem:

“I - DOS FACTOS

1. No dia 11 de Junho de 2021 o aqui peticionante foi presente a 1º Interrogatório Judicial de arguido detido, e por despacho proferido nesse mesmo dia o Mmº Juiz de Instrução Criminal aplicou ao peticionante a medida de coacção de prisão preventiva enquanto indiciado da prática do crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art.21° do DL 15/93, de 22/01.

2. Nessa mesma data foram emitidos os competentes mandados de condução do arguido, aqui peticionante, ao Estabelecimento Prisional de ..., onde se mantém com o estatuto processual de preso preventivo até à data da entrada da presente providência que ocorre em 14-12-2021;

3. O arguido encontra-se, assim, ininterruptamente privado da sua liberdade desde o dia 11-06-2021 até à presente data (14-12-2021).

II - DO DIREITO

4. Dispõe o artigo 215.º, nº 1, al. a) do C.P.P., que “a prisão preventiva extingue-se quando, desde o seu inicio tiverem decorrido quatro meses sem que tenha sido deduzida acusação.”

5. Por seu turno o nº 2 do mesmo preceito legal vem alargar esse prazo para 6 (seis) meses quando estiverem em causa os crimes aí mencionados, entre os quais se inclui o tipo de crime de que o peticionante vem indiciado.

6. Sucede que, tal como acima ficou dito, o arguido, ora peticionante, encontra-se sujeito à medida de coacção de prisão preventiva desde o dia 11-06-2021;

7. Desde então e até à presente data (14-12-2021) já decorreram 6 (seis) meses e 3 (três) dias, sem que tenha sido notificado do teor do libelo acusatório.

Ora,

8. O artigo 31º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa, integrante do título II (Direitos, Liberdades e garantias) e capítulo I (Direitos, liberdades e garantias pessoais), determina que haverá HABEAS CORPUS contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, a requerer perante o tribunal competente.

9. Concretizando esse direito constitucional, vem o artigo 222º do Código de Processo Penal, que se refere ao HABEAS CORPUS em virtude de prisão ilegal, estabelecer no seu nº 1 que, a qualquer pessoa que se encontrar ilegalmente presa, o Supremo Tribunal de Justiça concede, sob petição, a providência do HABEAS CORPUS.

10. Segundo a alínea c) do n.º 2 do mesmo normativo, a providencia “deve fundar-se em ilegalidade da prisão proveniente de: c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial;”

11. Destarte, por força do disposto no nº 1, al. a) e nº 2 do artigo 215.º do C.P.P resulta que “A prisão preventiva extingue-se quando, desde o seu início, tiverem decorrido seis meses sem que tenha sido deduzida acusação.”

12. O que sucede no caso sub judice, porquanto desde o dia 11-06-2021, até à presente data (14-12-2021) decorreram mais de seis meses.

13. E até à presente data (14-12-2021), não foi proferido despacho de acusação.

14. Assim, salvo melhor opinião, por força das aludidas disposições legais, verifica-se a extinção da medida de coacção aplicada, porquanto o prazo máximo de seis meses sem que tenha sido deduzida acusação contra o aqui peticionante, mostra-se ultrapassado.

15. Tendo sido ultrapassado o prazo máximo legalmente previsto a medida de coacção de prisão preventiva extinguiu-se, ope legis.

16. Pelo que a manutenção do arguido com o estatuto processual de privação da liberdade viola esse dispositivo legal, assim como afronta os artigos 27.º, 28.º, nº 4 e 31.º todos da CRP.

17. Impondo-se a sua imediata restituição à liberdade.

18. O que vem impetrar junto de V. Exas.

TERMOS EM QUE Sempre com o mui douto suprimento de V. Exa., requer que seja concedido provimento à presente Providencia de HABEAS CORPUS, ordenando-se que o arguido seja imediatamente restituído à liberdade, aguardando os ulteriores termos do processo sujeito a medida de coação não privativa da liberdade, como é de Direito e inteira JUSTIÇA!

2. Pelo Exmo. Juiz do Juízo de Instrução Criminal ... - Juiz ..., foi prestada a seguinte informação, nos termos do art.223.º, n.º 1 do Código de Processo Penal:

“O arguido AA veio requerer a concessão da providência de habeas corpus, nos termos do disposto no artigo 222.º, n.º 2, alínea c), do Código de Processo Penal e artigo 31.º, n.ºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa.

Para tanto, alega, em apertada síntese, que na sequência de 1.º interrogatório judicial de arguido detido realizado em 11.06.2021 foi determinado que aguardasse os ulteriores termos do processo sujeito à medida de coacção prisão preventiva por se encontrar fortemente indiciada a prática, em autoria imediata e na forma consumada, um crime de tráfico de produtos estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22.01.

Neste seguimento invoca o arguido que, em obediência ao disposto no artigo 215.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, o prazo máximo de duração da medida de coacção prisão preventiva sem que tivesse sido deduzida acusação terminava em 11.12.2021.

Sucede, porém, que até à presente data (14.12.2021) não foi deduzida acusação, pelo que o prazo máximo de duração da medida de coacção mostra-se ultrapassado e, por conseguinte, a manutenção da sua privação da liberdade consubstancia uma prisão ilegal.

Vejamos.

De acordo com o disposto no artigo 31.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, “haverá habeas corpus contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, a requerer perante o tribunal competente.”

Exigem-se cumulativamente dois requisitos: 1) abuso de poder, lesivo do direito à liberdade, enquanto liberdade física e liberdade de movimentos e, 2) detenção ou prisão ilegal.

A essência da providência em causa reside numa afronta clara, e indubitável, ao direito à liberdade. Deve ser demonstrado, sem qualquer margem para dúvida, que aquele que está preso não deve estar e que a sua prisão afronta o seu direito fundamental a estar livre. É exactamente nessa linha que se pronuncia CLÁUDIA SANTOS, referindo, nesta senda que “confrontamo-nos, pois, com situações clamorosas de ilegalidade em que, até por estar em causa um bem jurídico tão precioso como a liberdade, ambulatória (...) a reposição da legalidade tem um carácter urgente.”[1]

Sendo o direito à liberdade um direito fundamental - artigo 27.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa - e podendo ocorrer a privação da mesma, pelo tempo e nas condições que a lei determinar, apenas nos casos elencados no n.º 3 do mesmo preceito, a providência em causa constitui um instrumento reactivo dirigido ao abuso de poder por virtude de prisão ou detenção ilegal.[2]

Por sua vez, o artigo 222.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, dispõe o seguinte:

“2- A petição é formulada pelo preso ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos, é dirigida, em duplicado, ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, apresentada à autoridade à ordem da qual aquele se mantenha preso e deve fundar-se em ilegalidade da prisão proveniente de:

a) Ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente;

b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou

c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.”

Descendo ao caso em apreço podemos constatar o seguinte.

O arguido está em prisão preventiva desde 11 de Junho de 2021 [fls. 351 e seguintes].

Por despacho proferido em 6 de Setembro de 2021 [fls. 642-643], data do primeiro reexame, foi determinada a manutenção da medida de coacção prisão preventiva.

Subsequentemente, em 6 de Dezembro de 2021 [fls. 789], aquando do novo reexame trimestral, foi (de igual modo) determinada a manutenção da medida de coacção prisão preventiva.

Foi deduzida acusação pelo Ministério Público em 9 de Dezembro de 2021 [fls. 798-805] e, consequentemente, proferido despacho de revisão da medida de coação prisão preventiva em 09 de Dezembro de 2021 [fls. 821], em cumprimento do disposto no artigo 213.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal, decidindo-se pela sua manutenção.

As imputações constantes da acusação relativamente ao arguido AA são as seguintes:

- 1 crime de tráfico de produtos estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22.01;

- 21 crimes de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3.º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 03.01.

O prazo máximo de duração da medida de coacção até à dedução da acusação era de 6 meses - artigo 215.º, n.º 2, do Código de Processo Penal -, e completava-se no dia 11 de Dezembro de 2021.

Porém, tendo sido deduzida acusação em 09.12.2021, o prazo máximo da duração da medida de coação é agora de 10 meses – completando-se em 11 de Abril de 2022 –, no caso de haver lugar à fase de instrução (artigo 215.º, n.º 2, do Código de Processo Penal), ou de 1 ano e 6 meses – completando-se em 11 de Dezembro de 2022 – no caso de o processo seguir para a fase de julgamento (artigo 215.º, n.º 2, do Código de Processo Penal).

Além do mais, diga-se, o que é relevante para efeitos do prazo máximo da prisão preventiva é a data da elaboração da acusação proferida no processo e não com o momento em que chega ao conhecimento do arguido e seu defensor.[3]

Atento o quadro fáctico acima descrito e considerando que a Ilustre defensora do arguido foi notificada da acusação pública deduzida em 13.12.2021 [ref.ª ...75] e do despacho de revisão da medida de coacção proferido na sequência da prolação do libelo acusatório em 10.12.2021 [ref.ª ...] muito se estranha a alegação de que, até à presente data, não foi ainda proferida acusação pelo Ministério Público.

Face ao exposto, e salvo o devido respeito, não se mostra ultrapassado o prazo máximo da prisão preventiva plasmado no artigo 215.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, pelo que deve manter-se o arguido sujeito à medida de coacção prisão preventiva e, por conseguinte, improceder a providência de habeas corpus.

Todavia, Vossas Excelências, Colendos Conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça, melhor decidirão. (…).”

3. O Juízo de Instrução Criminal ... – Juiz ..., certificou que a acusação deduzida pelo Ministério Público foi notificada à Ex.ma Defensora do arguido AA, em 13/12/2021, com a referência ... e registo ..., presumindo-se efetuada no terceiro dia útil posterior ao do seu envio, ou seja, 16/12/2021.

4. Convocada a Secção Criminal, notificado o Ministério Público e a Defensora do requerente, procedeu-se à audiência, de harmonia com as formalidades legais, após o que o Tribunal reuniu e deliberou como segue (artigo 223.º, n.º 3, 2.ª parte, do CPP):

II Fundamentação

4. Das peças processuais juntas aos autos e do teor da informação prestada nos termos do art.223.º do Código de Processo Penal, emergem apurados os seguintes factos relevantes para a decisão da providência requerida:

Factos

(i)- No dia 11 de junho de 2021, o arguido AA foi submetido a 1.º interrogatório judicial e, no seu final, por despacho proferido na mesma data, o Juiz de Instrução Criminal, considerando que existem forte indícios da prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art.21.º, n.º1, do DL 15/93, de 22/01, com referência às Tabelas I-A e I-B, e se verificarem os perigos de fuga e de continuação da atividade criminosa a que alude o art.204.º, alíneas a) e c) do Código de Processo Penal, determinou que o arguido ficasse sujeito à medida de coação de prisão preventiva.

(ii)- Nessa mesma data, foram emitidos os competentes mandados de condução do arguido ao Estabelecimento Prisional, onde se mantém com o estatuto processual de preso preventivo até à data da entrada da presente providência, que ocorreu em 14-12-2021;

(iii)- Por despacho proferido em 6 de setembro de 2021, data do primeiro reexame, foi determinada a manutenção da medida coativa de prisão preventiva.

(iv)- Subsequentemente, em 6 de dezembro de 2021, aquando do novo reexame trimestral, foi (de igual modo) determinada a manutenção da medida coativa de prisão preventiva.

(v)- Em 9 de dezembro de 2021, o Ministério Público deduziu acusação contra o arguido AA, imputando-lhe a prática de um crime de tráfico de produtos estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22.01 e de 21 crimes de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3.º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 03.01.

(vi)- Na sequência da dedução da acusação, em cumprimento do disposto no artigo 213.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal, foi proferido despacho de revisão da medida de coação prisão preventiva em 09 de Dezembro de 2021, decidindo-se pela sua manutenção.

(vii)- A Defensora do arguido foi notificada em 13 de dezembro de 2021, da acusação pública deduzida contra o arguido.

         

5. Questão objeto do habeas corpus

Saber se o peticionante se encontra ilegalmente em prisão preventiva, nos termos do art.222.º, n.ºs 1 e 2 al. c), do Código de Processo Penal, por a prisão preventiva se manter para além dos prazos fixados no art.215.º, n.º 1, alínea a) e 2, do C.P.P., devendo, consequentemente,  ser imediatamente restituído à liberdade.

6. Direito

Delimitado o objeto da providência requerida pelo arguido, importa tecer breves considerações sobre este instituto jurídico e as normas que invoca como fundamento do pedido visando a sua imediata restituição à liberdade (artigos 27.º, 28.º, n.º 4, 31.º, n.º 1, 32.º, n.º 1 da C.R.P. e artigos 215.º, 217.º, 218.º e 222.º, n.ºs 1 e 2, al. c), do C.P.P.).

6.1. A liberdade física, liberdade de movimentos, expressão da dignidade da pessoa humana é, desde tempos longínquos, objeto de ilegalidades e violações por abuso de poder.

Como garantia do direito à liberdade física das pessoas e à segurança, o art. 27.º, da Constituição da República Portuguesa, formula o princípio de que «todos têm direito à liberdade e à segurança» (n.º 1), «e ninguém pode ser total ou parcialmente privado da liberdade, a não ser em consequência de sentença judicial condenatória pela prática de ato punido por lei com pena de prisão» (n.º 2).

Excetua-se deste princípio, a privação da liberdade pelo tempo e nas condições que a lei determinar, nomeadamente, no caso de «prisão preventiva por fortes indícios de prática de crime doloso a que corresponda pena de prisão cujo limite máximo seja superior a três anos.» (art. 27.º, n.º 3, al. b) da C.R.P.).

Em reforço do mesmo princípio, o art. 28.º da C.R.P. estatui, designadamente, que «A prisão preventiva tem natureza excecional, não sendo decretada nem mantida sempre que possa ser aplicada caução ou outra medida mais favorável prevista na lei.» (n.º 2) e que «A prisão preventiva está sujeita aos prazos estabelecidos na lei.» (n.º 4).

A prisão ou detenção é ilegal quando ocorra fora dos casos previstos nestes preceitos constitucionais.

Para pôr termo à situação de ilegalidade da prisão, o art. 31.º da Constituição da República Portuguesa, prevê, como providência específica, o «habeas corpus», dispondo o seguinte:

«1. Haverá habeas corpus contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, a requerer perante o tribunal competente.

 2. A providência de habeas corpus pode ser requerida pelo próprio ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos.

 3. O juiz decidirá no prazo de oito dias o pedido de habeas corpus em audiência contraditória.».

O abuso de poder, referido nesta norma constitucional, traduz uma atuação especialmente gravosa no âmbito dessa ilegalidade, referindo o deputado Barbosa de Melo, em sede de Comissão Eventual para a Revisão Constitucional, no âmbito da IV Revisão Constitucional, que a ideia por trás da fórmula consagrada no art. 31.º, n.º 1, “…é que não basta que a prisão viole um aspeto menor, é necessário a violação de um princípio essencial da lei. Uma ilegalidade que é uma mera irregularidade não justifica o habeas corpus que é uma providência excecional.”.[4]

Anotando este art. 31.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, escrevem Gomes Canotilho e Vital Moreira:

Na sua versão atual, o habeas corpus consiste essencialmente numa providência expedita contra a prisão ou detenção ilegal, sendo, por isso, uma garantia privilegiada do direito à liberdade, por motivos penais ou outros, garantido nos arts. 27º e 28.º (...).

A prisão ou detenção é ilegal quando ocorra fora dos casos previstos no art.27º, quando efetuada ou ordenada por autoridade incompetente ou por forma irregular, quando tenham sido ultrapassados os prazos de apresentação ao juiz ou os prazos estabelecidos na lei para a duração da prisão preventiva, ou a duração da pena de prisão a cumprir, quando a detenção ou prisão ocorra fora dos estabelecimentos legalmente previstos, etc..

Sendo o único caso de garantia específica e extraordinária constitucionalmente prevista para a defesa dos direitos fundamentais, o habeas corpus testemunha a especial importância constitucional do direito à liberdade”.

Ainda na doutrina constitucional, Jorge Miranda e Rui Medeiros, em anotação ao art.31.º, n.º 1, da Lei Fundamental, defendem, sobre a qualificação de «providência extraordinária», atribuída ao habeas corpus, que esta “…não significa e não equivale á excecionalidade. Juridicamente excecional é a privação da liberdade (pelo menos, fora dos termos e casos de cumprimento de pena ou medida de segurança) e nunca a sua tutela constitucional. A qualificação como providência extraordinária será de assumir no seu descomprometido significado literal de providência para além (e, nesse sentido, fora – extra) da ordem de garantias constituída pela validação judicial das detenções e pelo direito ao recurso de decisões sobre a liberdade pessoal.”. [5]

Na conformação constitucional e no seu desenho normativo, o habeas corpos é uma providência judicial urgente. “Visa reagir, de modo imediato e urgente, contra a privação arbitrária da liberdade ou contra a manutenção de uma prisão manifestamente ilegal” decretada ou mantida com violação “patente e grosseira dos seus pressupostos e das condições da sua aplicação”.[6]

A natureza que a providência assume na jurisprudência tradicional do STJ, tem sido perfilhada, no essencial, pelo Tribunal Constitucional.[7] 

Na concretização do art. 32.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa - que estabelece a cláusula geral de que «O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso» - o legislador manteve, no atual Código de Processo Penal de 1987, o regime diferenciado de habeas corpus, por detenção ilegal (art.220.º) e, por prisão ilegal (art.222.º), que advém do Decreto-Lei nº 35.043, de 20 de outubro de 1945. 

6.2. Dando expressão ao art. 31.º da Constituição da República Portuguesa, o art.222.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, estabelece como pressupostos de habeas corpus, em virtude de prisão ilegal:

«a) Ter sido efetuada ou ordenada por entidade incompetente;

b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou

c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.».

No seguimento do entendimento do habeas corpus, como uma providência extraordinária, a jurisprudência deste Supremo Tribunal vem considerando que os fundamentos do «habeas corpus» são aqueles que se encontram taxativamente fixados na lei, não podendo esse expediente ser utilizado para a sindicância de outros motivos suscetíveis de pôr em causa a regularidade ou a legalidade da prisão.[8]

Em matéria de prazos da prisão preventiva, os prazos a considerar são os vertidos do art.215º do CPP, sob a epígrafe «prazos de duração máxima da prisão preventiva», onde se dispõe, nomeadamente, e com interesse para o presente caso:

«1- A prisão preventiva extingue-se quando, desde o seu início, tiverem decorrido:

a) Quatro meses sem que tenha sido deduzida acusação;

b) Oito meses sem que, havendo lugar a instrução, tenha sido proferida decisão instrutória;

c) Um ano e dois meses sem que tenha havido condenação em 1.ª instância;     

2- Os prazos referidos no número anterior são elevados, respetivamente, para seis meses, dez meses, um ano e seis meses e dois anos, em casos de terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada, ou quando se proceder por crime punível com pena de prisão de máximo superior a 8 anos, ou por crime:

(…).».

Os prazos de prisão preventiva aqui previstos são válidos para as diversas fases processuais nele consideradas.

Como consigna o acórdão do STJ de 16/03/2011, na jurisprudência uniforme deste Supremo Tribunal, são estes os prazos a que o art. 222.º, n.º 2 alínea c) do C.P.P. se refere para alegar excesso de prazo de prisão preventiva e não quaisquer outros prazos que corram durante o decurso da prisão preventiva, como os de reexame dessa medida a que alude o art. 213.º do mesmo Código.[9]

É também jurisprudência constante do Supremo Tribunal de Justiça, o entendimento de que o prazo máximo de duração da prisão preventiva a que se reporta o art. 215.º, n.º 1 alínea a) e 2 do Código de Processo Penal, conta-se desde a data do início daquela medida coativa, caducando na data da dedução da acusação – que não da data em que a acusação foi notificada ao arguido ou ao respetivo mandatário.

Sintetizando o sentido desta jurisprudência, consigna-se no acórdão deste Supremo Tribunal, de 14 de janeiro de 2021, que: “Tanto resulta, desde logo, do elemento literal que pode extrair-se da referência, na alínea a) do n.º 1 do artigo 215.º, do CPP, à dedução da acusação – ademais replicado nas restantes alíneas (proferida decisão instrutória, tenha havido condenação) do mesmo segmento normativo.

14. Todos aqueles casos se reportam à data da prática do acto processual ou da prolacção da decisão (acusação, decisão instrutória, condenação), que não ao momento em que aquela chega ao conhecimento do arguido ou do respectivo mandatário.

15. E assim, sob pena de, em caso de pluralidade de arguidos, o prazo se reportar a datas diversas, consoante os diferentes momentos de recepção da decisão, de, eximindo-se o destinatário ao recebimento da notificação, aquele prazo se prolongar indevida e indefinidamente, e mesmo de se fazer recair sobre os Serviços o cumprimento de um ónus que apenas pode imputar-se ao magistrado.

16. Neste sentido se pronunciaram, designadamente, os acórdãos, do Supremo Tribunal de Justiça, de 10 de Dezembro de 2008 (processo P3971, disponível, como os mais citandos sem menção de origem, na base de dados do IGFEJ), bem como os (ali citados) acórdãos, do Supremo Tribunal de Justiça, de 11 de Outubro de 2005 (Coletânea de Jurisprudência - STJ, 2005-3-186), de 13 de Fevereiro de 2008 (processo 522/08), e, por mais recente, o acórdão de 29 de Outubro de 2020 (processo 96/20.9PHOER-B.S1), vindo ademais tal interpretação a passar o teste da constitucionalidade – cf. acórdãos, do Tribunal Constitucional, n.ºs 404/2005, 208/2006, 2/2008 e 280/2008 (disponíveis na base de dados do TC) –, designadamente por referência aos preceitos constitucionais invocados pelo requerente.”.[10]

Por fim, importa anotar que o arguido sujeito a prisão preventiva é posto em liberdade logo que a medida se extinguir, salvo se a prisão dever manter-se por outro processo (art. 217.º, n.º 1, do C.P.P).[11]

7. Retomando o caso concreto.

É pacifico que o arguido AA ficou sujeito à medida coativa de prisão preventiva, no dia 11 de junho de 2021, por despacho judicial, na sequência de 1.º interrogatório judicial, considerando que existiam forte indícios da prática, por parte do mesmo, de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art. 21.º, n.º 1, do DL 15/93, de 22/01, com referência às Tabelas I-A e I-B.

O crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art. 21.º, n.º 1 do DL n.º 15/93 de 22 de janeiro, imputado naquele despacho ao arguido, tem uma moldura penal de 4 a 12 anos de prisão e integra o conceito de criminalidade violenta a que alude o art.1.º, al. m), do Código de Processo Penal.

Assim, considerando o disposto no art.215.º, n.ºs 1, alínea a) e 2, do Código de Processo Penal, o prazo de duração máxima da prisão preventiva a que o arguido estava sujeito, até à dedução da acusação, era de 6 meses.

Do exposto, conclui-se que a medida coativa de prisão preventiva aplicada ao ora peticionante/arguido ter-se-ia extinto se até ao dia 11 de dezembro de 2021, não tivesse sido deduzida acusação.

Estando provado que em 9 de dezembro de 2021, o Ministério Público deduziu acusação contra o arguido AA, imputando-lhe a prática de um crime de tráfico de produtos estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22.01 e de 21 crimes de condução sem habilitação legal, previstos e punidos pelo artigo 3.º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 03.01 – ponto (v) – o prazo extintivo da prisão preventiva contido no art.215.º, n.ºs 1, alínea a) e 2 do Código de Processo Penal, não ocorreu, ainda que a acusação não tenha sido levada ao conhecimento do arguido e da sua Ex.ma Defensora até ao dia 11 de dezembro de 2021.   

Assim, é manifestamente infundada a providência de habeas corpus formulada através de Advogada constituída, com o argumento de que não foi deduzida acusação até 11 de dezembro de 2021, e quando em momento algum questiona que o prazo dies ad quem do prazo de duração máxima da prisão preventiva se reporta à data da dedução da acusação.

A prudência impunha que antes de formular a providência de habeas corpus se inteirasse o arguido AA, junto do processo, se já tinha sido ou não deduzida a respetiva acusação até ao dia 11 de dezembro de 2021. Acresce até a circunstância - como realça o Sr. Juiz de Instrução na sua informação - da acusação deduzida pelo Ministério Público ter sido notificada à Ex.ma Defensora do arguido em 13/12/2021, com a referência ... (embora presumindo-se efetuada a notificação no terceiro dia útil posterior ao do seu envio, ou seja, 16/12/2021).

Deduzida acusação, concluímos, ainda, que a prisão preventiva não se mantém para além dos prazos fixados na lei, pois ainda não decorreu o prazo máximo previsto no art.215.º, n.ºs 1, alíneas b) e c) e 2, do Código de Processo Penal.

Em suma, a medida coativa de prisão preventiva do peticionante mostra-se ordenada por entidade competente; é motivada por facto pelo qual a lei o permite; e não se mantém para além dos prazos fixados na lei, pelo que não se verificam os pressupostos para deferir o habeas corpus fixados nos artigos 31.º da Constituição da República Portuguesa e 222.º do Código de Processo Penal.

Inexistindo um quadro de abuso de poder, por virtude dos fundamentos de habeas corpus invocados pelo peticionante/arguido, mais não resta que indeferir a sua petição.

III - Decisão

Nestes termos e pelos fundamentos expostos, decidem os juízes que constituem este coletivo da 5.ª Secção Criminal, em:

 a) Indeferir o pedido de habeas corpus peticionado pelo arguido AA, nos termos do art. 223.º, n.º 4, alínea a), do C.P.P., por falta de fundamento bastante;

b) Condenar o peticionante, nos termos do art. 223.º, n.º 6, do C.P.P., no pagamento de uma soma de 6 UCs; e

 b) Condenar o mesmo peticionante nas custas do processo, fixando em 2 (duas) Ucs a taxa de justiça.

*

(Certifica-se que o acórdão foi  processado em computador pelo relator e integralmente revisto e assinado pelos seus signatários, nos termos do art.94.º, n.º 2 do C.P.P.). 

         

Lisboa, 20 dezembro de 2021

Orlando Gonçalves (Relator)

Adelaide Sequeira (Adjunta)

António Clemente Lima (Presidente da Secção)  

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[1] SANTOS, Cláudia Cruz, «Prisão Preventiva – Habeas Corpus – Recurso Ordinário (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20 de fevereiro de 1997)», Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 10, fascículo 2.º, p. 309.

[2] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proc. n.º 48/09.0GEABT-B.S1, de 06.01.2020, disponível em www.dgsi.pt.

[3] Neste sentido, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proc. n.º 25/10.8MAVRS-B.S1, de 09.02.2011, disponível em www.dgsi.pt.
[4] Assim, Diário da Assembleia da República, de 12-9-1996, II série –RC, n.º 20, pág. 523 e Cons. Maia Costa, in “Julgar”, n.º 29, “ Habeas corpus: passado, presente, futuro, pág.238.
[5] Cf. “Constituição Portuguesa anotada”, Coimbra ed., 2005, tomo I, págs. 342/343.
[6] Cf. acórdão do STJ de 9/08/2017, in www.dgsi.pt.
[7] Cf. acórdão n.º 423/2003, Pº nº 571/2003, de 24.09.03, in www.tribunalconstitucional.pt
[8] Cf. acórdãos do STJ de 19-05-2010, CJ (STJ), 2010, T2, pág.196, e de 03-03-2021, proc. n.º 744/17.8PAESP-A.S1, in www.dgsi.pt.
[9] Cf. proc. n.º 155/10.6 JBLSB, in dgsi.pt
[10] Cf. Proc. n.º 3/20.9FCOLH-E.S1 - 5.ª Secção, in www.dgsi.pt
[11] O art.218.º do C.P.P., invocado pelo peticionante/arguido para fundamentar a providência de habeas corpus, não tem relevo para a questão presente, uma vez que respeita aos «prazos de duração máxima de outras medidas de coação», tendo por referência os de duração máxima da prisão preventiva.