Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | 6ª SECÇÃO | ||
| Relator: | MARIA DO ROSÁRIO GONÇALVES | ||
| Descritores: | PROCESSO URGENTE PRINCÍPIO DA CONFIANÇA PRINCÍPIO DA IGUALDADE PRINCÍPIO DA AUTORRESPONSABILIDADE DAS PARTES CONTRATO DE ARRENDAMENTO NULIDADE REVOGAÇÃO PRAZO DE CADUCIDADE | ||
| Data do Acordão: | 11/13/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | REVISTA | ||
| Decisão: | REVISTA PROCEDENTE | ||
| Sumário : | I. Os sujeitos processuais não podem sofrer quaisquer limitações de direitos processuais em que legitimamente confiaram, nem podem vir a ser surpreendidos por consequências processuais desfavoráveis com as quais razoavelmente não poderiam contar. II. Não se deve deixar de apreciar um recurso de apelação, por extemporaneidade da apresentação das alegações, num processo que embora sendo urgente, até então, os prazos não haviam sido contabilizados em função de tal qualificação. | ||
| Decisão Texto Integral: |
Acordam na 6ª. Secção do Supremo Tribunal de Justiça 1-Relatório: A autora, AA, deduziu ação declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra a ré, BB, pedindo a declaração da nulidade da revogação do contrato de arrendamento celebrado entre ambas no dia 3 de setembro de 2018, por violação da forma exigida; a declaração da ilicitude dessa revogação, por falta de fundamento; a declaração da ilicitude daquela revogação, atendendo à preclusão desse direito por caducidade; e, em consequência, a condenação da ré a pagar-lhe a quantia global de € 402.677,15. A ré apresentou contestação e deduziu também pedido reconvencional. Na 1ª. Instância foi proferida sentença, com o seguinte teor no seu dispositivo: «Termos em que e face ao exposto, o Tribunal julga; A) A ação improcedente, por não provada, e consequentemente absolve a ré BB dos pedidos deduzidos pela autora AA; B) A reconvenção parcialmente procedente, por provada nessa parte, e consequentemente declara válida a cessação do contrato de arrendamento celebrado entre a autora e a ré, datado de 03 de setembro de 2018, por carta registada com aviso de receção, datada de 24 de abril de 2020. No mais, absolve a autora/reconvinda do pedido reconvencional». Desta sentença interpôs a autora recurso de apelação, o qual foi admitido na 1ª. Instância. No Tribunal da Relação de Guimarães foi proferida decisão singular, não se admitindo o recurso, atenta a sua intempestividade. Esta decisão foi objeto de impugnação por parte da apelante, que requereu a submissão à conferência. Foi então proferido acórdão em conferência, com o seguinte teor a final: «Pelo exposto, acordam as Juízes que constituem este coletivo da 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães, em julgar improcedente a impugnação apresentada pela reclamante, confirmando em consequência a decisão proferida pela aqui relatora». Uma vez mais inconformada, veio a autora interpor recurso de revista excecional para este STJ., concluindo as suas alegações: I) Nos termos do art. 672.º, n.º 1, do CPC, a revista excecional é admissível quando: esteja em causa uma questão de especial relevância jurídica; estejam em causa interesses de particular relevância social e exista contradição entre o acórdão recorrido e outro, já transitado, proferido no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito. II) A presente revista preenche cumulativamente os três requisitos, impondo a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça. III) Quanto à alínea a), a questão suscitada – saber se a tramitação de um processo legalmente urgente como se de um processo comum se tratasse, com atos concludentes do tribunal nesse sentido, pode gerar confiança legítima quanto à aplicação dos prazos ordinários de recurso – reveste-se de inquestionável relevância jurídica, pela necessidade de assegurar coerência entre a qualificação legal e a prática processual. IV)Relativamente à alínea b), estão em causa interesses de particular relevância social, ligados à previsibilidade do sistema de justiça e à proteção da confiança que os cidadãos devem poder depositar na atuação jurisdicional, sob pena de fragilizar os pilares do Estado de Direito democrático (arts. 2.º e 20.º CRP). V) Por fim, quanto à alínea c), verifica-se contradição entre o acórdão recorrido e o Acórdão do STJ de 17.05.2016 (proc. 1185/13.1T2AVR.P1.S1), onde se entendeu que, tendo o tribunal A Quo admitido articulados extemporâneos num processo urgente, impõe-se aceitar o recurso em prazo compatível com o regime ordinário, sob pena de violação dos princípios da confiança, da boa-fé processual e da tutela jurisdicional efetiva. VI)Relativamente ao acórdão, discorda-se profundamente da fundamentação invocada, porquanto, o processo foi tramitado pelo Tribunal de Primeira instância como se de processo comum se tratasse: a contestação foi admitida apesar de intempestiva em regime urgente; o julgamento só se realizou quase quatro anos após a instauração da ação; e o próprio recurso foi admitido como tempestivo no prazo ordinário. VII) Em nenhum momento houve advertência às partes quanto à aplicação do regime urgente, nem a Ré suscitou a intempestividade do recurso nas suas alegações, o que reforça a convicção criada pela conduta do tribunal a quo. VIII) Esta atuação gerou, objetivamente, uma confiança legítima de que se aplicavam os prazos ordinários, confiança essa agora desconsiderada pelo acórdão recorrido, que responsabiliza a Recorrente por não ter arguido nulidades que resultaram de erros do próprio tribunal. IX) Tal entendimento viola os princípios constitucionais da tutela jurisdicional efetiva (art. 20.º CRP), da proteção da confiança e da segurança jurídica (art. 2.º CRP), da proporcionalidade (art. 18.º CRP) e da fiscalização da constitucionalidade (art. 204.º CRP), deslocando indevidamente para a parte o ónus de corrigir falhas do tribunal. X) E ainda os princípios da cooperação, da boa-fé processual, da igualdade, da autorresponsabilização e da proporcionalidade. XI) Em face do exposto, mostra-se imperativo que o Supremo Tribunal de Justiça conheça da presente revista, de modo a assegurar a unidade da jurisprudência, a proteção da confiança das partes e a efetividade do direito ao recurso. XII) Termos em que deve ser admitida a presente revista excecional, reconhecendo-se a tempestividade do recurso interposto pela Recorrente, com revogação do acórdão recorrido e consequente prosseguimento dos autos. Foram apresentadas contra-alegações, pugnando pelo não preenchimento dos requisitos exigidos pelo art. 672º, nº. 1 do CPC., ou, caso assim não se entenda, dever negar-se provimento ao recurso. Foram colhidos os vistos. 2- Cumpre apreciar e decidir: As conclusões do recurso delimitam o seu objeto, nos termos do disposto nos artigos 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, todos do Código de Processo Civil. Da admissibilidade do recurso: Veio a recorrente interpor recurso de revista excecional para este STJ., ao abrigo das alíneas a), b) e c) do nº. 1 do art. 672º do CPC. No Tribunal da Relação foi determinada a remessa dos autos, ao Supremo Tribunal de Justiça, a quem compete proferir despacho sobre a admissibilidade da revista excecional, ao abrigo do disposto no n.º 3 do art. 672º do CPC. O despacho proferido não vincula este tribunal, conforme preceitua o nº. 5 do art. 641º do CPC. Assim, está em apreço analisar se o recurso interposto do acórdão do Tribunal da Relação que, em conferência, não admitiu o recurso de apelação, atenta a sua extemporaneidade, admite recurso para este Tribunal. Ora, dispõe o nº. 1 do art. 671º do CPC, que cabe revista para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão da Relação, proferido sobre decisão da 1ª. instância, que conheça do mérito da causa ou que ponha termo ao processo, absolvendo da instância o réu ou algum dos réus quanto a pedido ou reconvenção deduzidos. A redação do preceito, não se apresenta muito clara, pois, num primeiro segmento alude a «acórdão que ponha termo ao processo», para prosseguir dizendo «absolvendo da instância o réu ou algum dos réus quanto a pedido ou reconvenção deduzidos». Como escreve, Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Almedina, 7ª. ed., pág.406 «Mediante uma interpretação do preceito que compatibilize ambos os segmentos normativos, podemos afirmar que, para além dos casos em que os acórdãos da Relação conheçam do mérito da causa, no todo ou em parte, admitem recurso de revista (verificados os demais requisitos), aqueles de que resulte a extinção total ou parcial da instância, em termos objetivos ou subjetivos». Desta feita, o acórdão da Relação que não admite um recurso por extemporaneidade, põe termo ao processo. Neste sentido, nomeadamente, Acs. do STJ de 8-7-2020, 30-3-2017, 7-3-2019, 7-10-2020, in www.dgsi.pt. Os autos também cumprem o valor da alçada e da sucumbência e não há dupla conforme. Assim, é o mesmo admissível como recurso de revista e não como revista excecional. A questão a dirimir consiste em aquilatar sobre a admissibilidade do recurso interposto, com o consequente prosseguimento dos autos. Consta no acórdão do Tribunal da Relação, a seguinte factualidade: - A presente ação foi intentada no dia 22 de fevereiro de 2021; - A ré foi citada no dia 24 de fevereiro de 2021; - Na carta enviada para citação da ré, consta que o prazo para contestar é de 30 dias e ainda o seguinte: “Como se contam os prazos O prazo para responder começa a contar no dia a seguir à assinatura do aviso de receção desta carta. Conta-se em dias corridos, incluindo fins de semana e feriados. O/A seu /sua advogado/a poderá dar-lhe mais informações sobre a contagem dos prazos. Se esta carta se dirige a uma pessoa e não a uma entidade e se o aviso de receção foi assinado por outra pessoa, o prazo aumenta 5 dias”; - A ré apresentou contestação com reconvenção no dia 4 de maio de 2021; - A autora replicou a 10 de junho de 2021; - Foi designada audiência prévia para o dia 27 de setembro de 2021 e a mesma veio a realizar-se nessa data; - Foi requerida pela autora e determinada a realização de prova pericial que apenas a 12.09.2024 veio a mostrar-se totalmente concluída; - A 4 de dezembro de 2024 (após nova tentativa de conciliação), foi designado julgamento para os dias 6 e 8 de janeiro de 2025; - O julgamento realizou-se nessas datas e ainda a 20 de janeiro de 2025; - A sentença foi proferida a 22 de janeiro de 2025; - A notificação da sentença às partes, foi efetuada no dia 23 de janeiro de 2025; - A autora veio recorrer a 3 de março de 2025; - Todos os despachos proferidos no processo, foram-no na data da respetiva conclusão. Vejamos: Insurge-se a recorrente relativamente ao acórdão proferido, o qual julgou intempestivo o recurso, não conhecendo do seu objeto, dado entender que os autos tinham natureza urgente e ter sido ultrapassado o prazo para a respetiva interposição. Ora, a autora intentou a presente ação declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra a ré, pedindo a declaração da nulidade da revogação do contrato de arrendamento celebrado entre ambas no dia 3 de setembro de 2018, por violação da forma exigida; a declaração da ilicitude dessa revogação, por falta de fundamento; a declaração da ilicitude daquela revogação, atendendo à preclusão desse direito por caducidade; e, em consequência, a condenação da ré a pagar-lhe a quantia global de € 402.677,15. Ao caso seria aplicável o Decreto-Lei nº. 294/2009, de 13 de outubro, referente ao Novo Regime do Arrendamento Rural. Dispondo o nº. 2 do seu art. 35º que: - Os processos judiciais referentes a litígios de cessação e transmissão do contrato de arrendamento e à realização de ações de conservação, reparação e benfeitorias dos prédios rústicos arrendados têm carácter de urgência e seguem a forma de processo sumário, salvo se outra for expressamente prevista. Daqui resulta que a ação em apreço tem a natureza de urgente. Ora, resultando a natureza do processo diretamente da lei, não havia necessidade de ser prolatado qualquer despacho judicial, para declarar tal evidência. Este conhecimento advinha para o tribunal do exercício das suas funções, o mesmo se impondo aos respetivos intervenientes processuais, no exercício de defesa dos seus legítimos interesses. Sucede que a ação seguiu a sua tramitação processual, sendo certo que, aquando da citação para a apresentação da contestação, nenhuma alusão se fez à sua natureza, mormente para efeitos do nº. 1 do art. 138º do CPC., atinente à não suspensão dos prazos durante período de férias judiciais, nos processos que a lei considere urgentes. Com efeito, na situação vertente, quer o tribunal, quer os envolvidos na lide, jamais esboçaram qualquer reação de alerta para a natureza dos autos, tendo os mesmos prosseguido as suas diversas fases legais, sem qualquer escrutínio ou alerta, gerando-se, assim, uma expetativa legítima de que estava a ser correta a atuação processual. Entende o acórdão recorrido que nenhum dos fundamentos invocados pela recorrente, demonstra qualquer conduta do tribunal a quo que tenha a capacidade de criar uma previsibilidade e uma confiança, totalmente legítimas, de que os prazos a aplicar seriam os ordinários. Não se nos afigura adequada tal orientação. Assim, tendo a autora na sua petição inicial, feito alusão concreta ao diploma que atribuía à ação a natureza de urgente, seria expetável que a tramitação seguinte, ou seja, o articulado de contestação seguisse tal configuração, mas tal não sucedeu, na medida em que, sendo diferente a contagem do prazo, este articulado teria sido apresentado para além do estipulado na lei, o que ficaria sujeito à sua não admissibilidade, o que não ocorreu. Contudo, quer o tribunal, quer a autora, quer a ré, jamais se pronunciaram sobre tal, prosseguindo, uma vez mais os autos, cimentando-se a ideia de que a sua tramitação estava a ser correta. De igual modo, não releva o argumento do acórdão, quando diz que «O processo foi sempre despachado no dia da própria conclusão, a audiência prévia e o julgamento foram marcados com brevidade, e a sentença foi proferida dois dias após o término do julgamento, e no dia da própria conclusão». Nos termos plasmados no nº. 1 do art. 6º do CPC, cumpre ao juiz, sem prejuízo do ónus de impulso especialmente imposto pela lei às partes, dirigir ativamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere, promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da ação. Efetivamente, o poder de direção do juiz do processo supõe que este adote os comportamentos inerentes a uma eficiente resposta judicial e que, a proteção jurídica através dos tribunais implique o direito de obter, em prazo razoável, uma decisão judicial, como prescreve o nº. 1 do art. 2º do CPC. O modo mais ou menos diligente, como os processos são decididos, nada contende com a sua natureza. Ao longo do desenrolar dos autos, nunca a 1ª. instância levantou qualquer problema com o cumprimento de prazos, não sendo exigível que a ora recorrente tivesse adotado qualquer cuidado específico, ou seja, confiou a mesma que os prazos a seguir seriam os ordinários. Daí que, quando interpôs recurso da sentença para o Tribunal da Relação o tivesse também apresentado no prazo de trinta dias e não de quinze dias, que a lei determina, quando se trata de processo urgente, conforme dispõe o nº. 1 do art. 638º do CPC. Tal recurso foi admitido, sem qualquer reparo na 1ª. Instância, o que, indubitavelmente fez criar na recorrente a ideia consolidada de que o seu recurso seria apreciado pelo Tribunal Superior. A rejeição do recurso pelo Tribunal da Relação, embora legítimo perante o disposto no nº. 5 do art. 641º do CPC., veio ao arrepio da expetativa legítima criada pela recorrente, violando-se-lhe o acesso ao direito, plasmado no art. 20º, nº. 1 da CRP. A não admissão do recurso num tal contexto é desproporcional, deslocando para a recorrente, toda a responsabilização resultante de uma tramitação processual inquinada desde a sua origem e não apenas a si imputável. Como se aludiu no Ac. do STJ. de 17-5-2016, in www.dgsi.pt. «Não podem os interessados sofrer quaisquer limitações, exclusão de posições ou direitos processuais em que legitimamente confiaram, nem podem, sequer, vir a ser surpreendidos por consequências processuais desfavoráveis com as quais razoavelmente não poderiam contar, o que aconteceu na espécie, com o não conhecimento, inopinado, do objeto do recurso de apelação, por extemporaneidade da apresentação das alegações, num processo que embora sendo urgente, até então, os prazos não haviam sido contabilizados em função de tal qualificação». Ora, analisado em suma, todo o percurso processual dos autos, temos que, após a entrada da petição inicial, não foi tomado em conta aquando da respetiva citação, a chamada de atenção para a contagem do prazo para a apresentação da contestação, que a mesma foi admitida e produziu os seus efeitos de contraditório, sendo que, no final, após a prolação da sentença, o recurso de apelação foi admitido para subir ao Tribunal da Relação. Implica o aludido que toda aquela sucessão de atos criou e consolidou a ideia de que estaríamos perante a adoção de prazos comuns/ordinários e que o recurso iria ser apreciado. A sua não admissão pelo Tribunal da Relação, materializou uma violação do princípio da tutela da confiança, da igualdade das partes e penalizou excessivamente uma delas, colocando-a em situação de desvantagem, repristinando prazos de um processo urgente, que até então não haviam sido observados, quando afinal estamos perante uma responsabilidade mitigada. O princípio da autorresponsabilização das partes, não poderá prevalecer perante o princípio da confiança e da segurança jurídica. Destarte, assiste razão à recorrente. Sumário: - Os sujeitos processuais não podem sofrer quaisquer limitações de direitos processuais em que legitimamente confiaram, nem podem vir a ser surpreendidos por consequências processuais desfavoráveis com as quais razoavelmente não poderiam contar. - Não se deve deixar de apreciar um recurso de apelação, por extemporaneidade da apresentação das alegações, num processo que embora sendo urgente, até então, os prazos não haviam sido contabilizados em função de tal qualificação. 3- Decisão: Nos termos expostos, acorda-se em conceder a revista, revogando-se o acórdão recorrido, o qual deverá substituído por outro que conheça do objeto do recurso interposto pela recorrente. Custas a cargo da recorrida. Lisboa, 13-11-2025 Maria do Rosário Gonçalves (Relatora) Ricardo Costa Eduarda Branquinho |