Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
318/05.6TVPRT.P1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: TOMÉ GOMES
Descritores: CONTRATO DE AGÊNCIA
INDEMNIZAÇAO DE CLIENTELA
FACTOS ESSENCIAIS
INVERSÃO DO ÓNUS DA PROVA
DEVER DE COLABORAÇÃO DAS PARTES
ÓNUS DA PROVA
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
DECISÃO SURPRESA
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
ABUSO DO DIREITO
CAUSA DE PEDIR
PRINCÍPIO DA LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
Data do Acordão: 05/24/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / PROVAS / ÓNUS DA PROVA.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – ACÇÃO, PARTES E TRIBUNAL – PROCESSO EM GERAL / INSTRUÇÃO DO PROCESSO – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / RECURSO DE REVISTA / JULGAMENTO DO RECURSO.
Doutrina:
- Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 2.ª Edição, 1985, p. 455-457;
- Luís Menezes Leitão, A Indemnização de Clientela no Contrato de Agência, Almedina, 2006, p. 23, 24, 27, 42, 43 e 52;
- Pinto Monteiro, Contrato de Agência, 6ª Edição, Almedina, 2007, p. 137 e 138;
- Vaz Serra, Provas Direito probatório material, BMJ n.º 110, 1961, p. 61-256.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 342.º, 343.º E 344.º, N.ºS 1 E 2.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 3.º, N.º 3, 5.º, N.ºS 1 E 2, 412.º, 417.º, N.º 2, 674.º, N.º 3 E 683.º, N.º 1.
CONTRATO DE AGÊNCIA, APROVADO PELO DL N.º 178/86 DE 3 DE JULHO: - ARTIGO 33.º, N.º 1, ALÍNEA B).
Sumário :
I. Para efeitos de repartição do ónus da prova nos termos do artigo 342.º do CC, importa atentar na função constitutiva ou excetiva (impeditiva, modificativa ou extintiva) dos factos essenciais em relação ao direito invocado pelo autor.

II. A função constitutiva ou excetiva dos factos essenciais é aferível no quadro da previsão normativa (facti species) aplicável ao caso e atento o efeito prático-jurídico pretendido.

III. Depois de assim concretamente definida a função constitutiva ou excetiva dos factos essenciais em causa, importa então equacionar a repartição do ónus da prova à luz das regras gerais do artigo 342.º do CC ou das regras especiais dos artigos 343.º e 344.º, n.º 1, do mesmo diploma ou dele constantes ou mesmo previstas em legislação especial ou avulsa.

IV. Será em função dessa repartição normativa do ónus da prova que, em regra, se define o ónus de alegação das partes nos termos do preceituado no artigo 5.º, n.º 1, do CPC, sem prejuízo das situações em que é lícito ao tribunal conhecer oficiosamente de factos relevantes não alegados como decorre do disposto do n.º 2 do mesmo normativo e do art.º 412.º do citado Código.

V. Todavia, a repartição do ónus da prova pode sofrer ainda alguns desvios, mormente atento o coeficiente de esforço probatório exigível a cada uma das partes, segundo as circunstâncias do caso, e o seu dever de colaborar para a descoberta da verdade.

VI. Desde logo, na ponderação concreta desse esforço probatório, poderá o tribunal valorar livremente a falta de colaboração de qualquer das partes, como decorre do art.º 417.º, n.º 2, do CPC, firmando, por exemplo, o juízo probatório do facto em causa com base nos elementos de prova, ainda que indiciários, fornecidos pela parte onerada, à luz das regras da experiência, e atendendo à falta de colaboração da contraparte que estaria em melhores condições de o proporcionar.

VII. Além disso, nas situações em que ocorra um comportamento culposo da parte não onerada que torne impossível ou extremamente dificultosa a prova pela parte onerada, a inversão do ónus de prova sobre a parte faltosa poderá ser determinada a coberto do disposto no artigo 344.º, n.º 2, do CC.

VIII. A valoração livre da prova atendendo ao esforço probatório exigível aos litigantes ou decorrente de inobservância do dever de cooperação de qualquer das partes será feita em sede de julgamento de facto, não sindicável, em princípio, por via do recurso de revista nos termos do art.º 674.º, n.º 3, do CPC.

IX. Já a inversão do ónus de prova decorrente de comportamento culposo da parte que torne impossível ou extremamente dificultosa a prova pela parte onerada, nos termos do art.º 344.º, n.º 2, do CC, assumirá, fundamentalmente, uma dimensão de questão de direito, na medida em que se inscreve na repartição normativa do ónus da prova.

X. A inversão do ónus de prova por esta via, será feita já em sede do julgamento de direito, tomando por assente um facto cuja prova cabia à parte que o alegou, mas em que, tendo essa prova sido impossibilitada ou tornada extremamente dificultosa pela contraparte, por esta não foi produzida prova a demonstrar a não verificação daquele facto.

XI. Assim, a decisão de efetivação da inversão do ónus da prova nos termos do artigo 344.º, n.º 2, do CC terá lugar depois de esgotada a possibilidade de a parte onerada com tal inversão produzir a respetiva prova e da valoração, em sede de prova livre, dos resultados probatórios desse modo obtidos, ou seja, a jusante da decisão sobre os factos controvertidos. Tal não obstará, porém, a que, em sede de revista, o STJ, para efeitos de ampliação da decisão de facto, defina, desde logo, o direito aplicável, nomeadamente quanto à repartição do ónus da prova, ao abrigo e nos termos do disposto no art.º 683.º, n.º 1, do CPC, poder esse que já não assiste às instâncias.

XII. De qualquer modo, deverão as partes ser advertidas previamente da eventualidade daquela inversão do ónus da prova, de forma a poderem gerir o esforço probatório que lhe é exigível e a evitar uma decisão-surpresa, como decorre do disposto no art.º 3.º, n.º 3, do CPC.

XIII. Num caso como o dos presentes autos em que, no âmbito de um contrato de agência, a autora, na qualidade de agente, pretende a condenação da ré, na qualidade de principal, no pagamento de comissões que lhe seriam devidas à razão de 3% sobre as vendas resultantes de negócios angariados ou promovidas por ela em benefício da mesma ré, incumbe àquela autora alegar e provar os negócios por si angariados ou promovidos, como factos constitutivos que são do invocado direito às tais comissões.

XIV. Só perante uma tal alegação é que se mostra viável ajuizar sobre a inversão do ónus da prova, nos termos do artigo 344.º, n.º 2, do CC, no sentido de fazer recair sobre a ré a prova da inexistência desses factos, em caso de ser imputável a esta um comportamento culposo que tornou impossível ou extremamente dificultosa a prova de tais factos por parte da autora.

XV. Tendo-se a autora limitado a alegar, no essencial, o montante total das comissões que seriam devidas, durante determinado período contratual, sem qualquer consubstanciação dos negócios por ela angariados ou promovidos, em execução do contrato, torna-se de todo inviável estabelecer o nexo causal entre o comportamento culposo imputado à ré pela destruição de documentos e o facto que, por essa via, a autora ficaria desonerada de provar.                                          

XVI. Não tendo ainda a autora alegado nem muito menos provado factos tendentes a demonstrar que a ré venha a beneficiar consideravelmente, após a cessação do contrato de agência, da atividade desenvolvida pelo autora como agente, não é lícito concluir pela existência do direito à indemnização de clientela, nos termos do artigo 33.º, n.º 1, alínea b), do Dec.-Lei n.º 178/86, de 03-07.

Decisão Texto Integral:
Acordam da 2.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:


 

I – Relatório


1. A sociedade AA, Lda (A.), instaurou, em 24/01/2005, ação declarativa, sob a forma de processo ordinário, contra a sociedade italiana BB, S.R.L. (R.), alegando, no essencial, que:

. A A. dedica-se à representação, agência exclusiva, divulgação e promoção de vendas, em Portugal, de produtos de fábricas estrangeiras;

. No âmbito de tal atividade, a A. celebrou com a R. um contrato de agência com vista a angariar clientela para esta, no mercado nacional, na promoção e venda de aços mediante o pagamento de uma retribuição de 3% sobre o produto das vendas;

. Tal contrato, que vigorava então há cerca de 20 anos, foi reafirmado em 07/07/1993, sendo as vendas efetuadas e faturadas tanto diretamente pela A. como pela filial da R. em Espanha;  

. Porém, a R., sem justificação e de imediato, pôs termo ao mesmo em 03/02/2003, apropriando-se da clientela angariada pela A.;

. Por carta de 26/01/2004, a A. reclamou da R. as indemnizações devidas pela referida denúncia, bem como as comissões ainda por liquidar, o que esta recusou;

. Nos últimos cinco anos que precederam a denúncia, a A. auferiria um total de comissões de € 97.763,80, numa média anual de € 19.552,76, mas desse montante ficou por pagar o montante de € 47.101,00;   

. Em face disso, assiste à A. o direito ao pagamento do montante € 47.101,00 correspondente às comissões em falta, da indemnização de € 11.134,99, equivalente ao triplo da média mensal, no valor de € 3.711,60, das comissões vencidas no decurso do ano precedente ao ano da denúncia, pela inobservância do prazo legal de três meses para o pré-aviso, e da quantia de € 19.552,76, a título de indemnização de clientela.

Concluiu pedindo a condenação da R. a pagar-lhe a quantia total de € 77.788,75 com todas as consequências legais.

2. A R. apresentou contestação, na qual, além de invocar a exceção da incompetência internacional e a caducidade dos direitos peticionados:

. Sustentou que a A., desde abril de 2001, nada angariou para a R., nem intermediou qualquer venda, o que determinou a extinção do contrato de agência por falta de qualquer atividade da agente;

. E, no mais, impugnou a maior parte dos factos alegados pela A., negando que tenha denunciado o sobredito contrato e afirmando ter pago à mesma A. todas as comissões dos contratos por ela angariados, quando vencidas, bem como tudo o que lhe devia pagar.  

Concluiu pela procedência das exceções invocadas e, em qualquer caso, pela improcedência da ação.

3. A A. deduziu réplica a pugnar pela improcedência das exceções invocadas.

4. Findos os articulados, foi proferido despacho saneador a julgar improcedente a exceção da incompetência e a relegar para final o conhecimento das exceções perentórias deduzidas, procedendo-se, de seguida, à seleção dos factos tidos por relevantes como organização da base instrutória, conforme fls. 101-104.

5. Após vicissitudes várias em sede de diligências instrutórias e finda a audiência final, no decurso da qual a A. ampliou o pedido de forma a abranger os juros de mora vencidos e vincendos, à taxa dos juros comerciais, foi proferida a sentença de fls. 1482 a 1517, datada de 10/07/2016, na qual foi inserida a decisão de facto e respetiva motivação, a julgar a ação parcialmente procedente, condenando-se a R. a pagar à A. as quantias de € 47.101,00, pelas comissões em falta, e de € 10.000,00, a título de indemnização da clientela, acrescidas de juros de mora desde a citação, à taxa decorrente dos artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 597/05, de 19/07, e absolvendo-a no mais peticionado.

6. Inconformada com tal decisão, a R. interpôs recurso para o Tribunal da Relação do Porto, no âmbito do qual foi proferido o acórdão de fls. 1599 a 1615/v.º, datado de 20/04/2017, a revogar a sentença recorrida e a absolver a R. dos pedidos por que vinha condenada.

7. Desta feita, vem agora a A. pedir revista, pugnando pela reposição da sentença da 1.ª instância, para o que identifica, nas respetivas conclusões, as seguintes questões essenciais:

1.ªO erro de julgamento do acórdão recorrido na parte em que, diversamente do julgado em 1.ª instância, concluiu não existir fundamento para a inversão do ónus da prova relativamente ao montante total de € 97.763,80 de comissões auferíveis pela A. nos últimos cinco anos que precederam a denúncia do contrato de agência - conforme por ela alegado e vertido sob o artigo 13.º da base instrutória -, com violação do disposto nos artigos 12.º e 13.º do Dec.-Lei n.º 178/ 86, de 03-07, dos artigos 342.º e 344.º, n.º 2, do CC e nos artigos 7.º, 417.º e 620.º do CPC;   

2.ªO erro de julgamento do mesmo aresto na parte em que concluiu pela insuficiência de factos que preenchessem os requisitos dos artigos 33.º e 34.º do Dec.-Lei n.º 178/86, de 03-07, na redação dada pelo Dec.-Lei n.º 118/93, de 13-04, que servem de pressupostos do invocado direito a indemnização da clientela.    

8. A Recorrida apresentou contra-alegações a pugnar pela inteira confirmação do julgado.


Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.


II – Fundamentação


1. Factualidade dada como provada nas instâncias


Vem dada como provada nas instâncias a factualidade que, para melhor clareza expositiva, se reordena nos seguintes moldes:

1.1. A A. dedica-se à representação, agência exclusiva, divulgação e promoção de vendas em Portugal de produtos de fábricas estrangeiras – resposta ao art.º 1.º da base instrutória;  

1.2. A A. celebrou com a ré R. um contrato mediante o qual se obrigou a angariar clientela e correspondentes vendas de produtos especiais de aço – alínea A) dos factos assentes;  

1.3. A comissão a que a A. tinha direito era de 3% – alínea B) dos factos assentes;   

1.4. Em 07/07/93 e na sequência do contrato referido em 1.2, que já estava em vigor entre as partes, foi enviado à A. o fax de fls. 7/8 dos autos acompanhado do doc. de fls. 393, 394, 392 e 395 a 401 [sendo a ordem de envio do fax a correspondente à paginação antes referida e cuja tradução se encontra a fls. 1436 a 1440 e 1465 e 1471 (quanto à última página daquele texto) – vide ata de fls. 1449] correspondente ao clausulado de um contrato de agência escrito em exclusividade sem representação para produtos de aço ali descriminados no “anexo A” e que a aqui A. deveria devolver à R. assinado em sinal de aceitação e confirmação do mesmo, o que esta não fez – resposta ao art.º 2.º da base instrutória

1.5. Nos termos do clausulado referido em 1.4, a A. continuava a exercer as funções referidas em 1.2, angariando clientela e promovendo a venda de forma exclusiva por referência aos produtos referidos no “anexo A”, por período indeterminado – resposta aos artigos 3.º e 4.º da base instrutória;  

1.6. A A. comprometeu-se para com a R. a não representar no mercado português outros produtores de aço inoxidável dentro dos produtos que a R. fabricava e de que a A. era representante em Portugal – resposta ao art.º 15.º da base instrutória.

1.7. A A. continuou a sua atividade referida em 1.2 após o envio do fax referido em 1.4, angariando mais clientes para a R., a quem incumbia depois outorgar os respetivos contratos, sendo a comissão referida em 1.3, calculada sobre o produto das vendas efetuadas em Portugal e promovidas pela A. – resposta aos artigos 5.º a 7.ª da base instrutória;

1.8. A R. comunicou verbalmente à A. a cessação do contrato referido em 1.2, em data não apurada mas não posterior a abril de 2002 – resposta ao art.º 8.º da base instrutória

1.9. Tendo continuado a beneficiar da clientela angariada pela autora através da atividade do seu distribuidor “CC”, incluindo nos termos referidos em 1.10 – resposta aos artigos 9.º a 11.º da base instrutória;   

1.10. Após fevereiro de 2003, a A. ficou privada da clientela por si angariada na sequência do referido em 1.8 e do mail enviado por “CC” de fls. 17, datado de 03/02/2003, através da qual passara a angariar clientes e promover a venda dos mesmos produtos à mesma clientela no período de janeiro de 2002 a fevereiro de 2003; não tendo a A. representação de qualquer outra empresa que fornecesse/forneça os mesmos produtos da R. – resposta ao art.º 12.º da base instrutória com a inclusão da data constante do indicado documento de fls. 17;

1.11. Nos últimos cinco anos que precederam o que se refere em 1.10, a A. auferiu comissões de valor não inferior a € 50.662,80, que reporta ao montante de € 97.763,80, tido por ela como o total das comissões devidas durante aquele período – alínea D) dos factos provados e resposta ao art.º 13.º da base instrutória[1];

1.12. Por carta de 26/01/04, a A. pediu à R. o pagamento de uma indemnização e das comissões que se encontravam por liquidar – alínea C) dos factos assentes


2. Factos não provados


Foi dado como não provado que:

2.1. Do alegado em 8.º da base instrutória, a R. pôs fim ao contrato referido em 1.2 sem qualquer justificativo e por correio eletrónico de 03/02/2003 nos termos de fls. 17/18;

2.2. A R. nomeou seu novo agente um empregado da A. – resposta negativa ao art.º 10.º da base instrutória;

2.3. Do alegado em 13.º da base instrutória, o valor das comissões devidas pela R. à A. no período referido em 13.º da base instrutória era de € 97.763,80 – resposta restritiva ao art.º 13.º da base instrutória;

2.4. A partir de abril de 2001, a A. não mais angariou qualquer cliente nem intermediou qualquer venda para a R. – resposta negativa ao art.º 14.º da base instrutória;

2.5. Em várias ocasiões, a A. angariou e vendeu produtos de sociedades concorrentes da R. – resposta negativa ao art.º 16.º da base instrutória.      


De referir que, enquanto a 1.ª instância, por virtude da inversão do ónus da prova, deu por provado que a R. não pagou à A. o valor alegado por esta como respeitantes às comissões devidas e não satisfeitas por aquela, nos cincos anos anteriores a fevereiro de 2003, a Relação considerou não justificada tal inversão e assim não provada a matéria, nesse domínio, controvertida. 


3. Do mérito da revista


3.1. Quadro evolutivo dos termos do litígio


Com a presente ação a A. pretendia obter a condenação da R. no pagamento da quantia total de € 77.788,75, acrescida de juros de mora, à taxa do juro dito comercial, com fundamento na alegada denúncia ilícita, por parte daquela R., de um contrato de agência que ambas “reafirmaram” em 07/07/ 1993, mas que vigorava então há cerca de 20 anos, nos termos do qual a A. receberia uma comissão de 3% sobre o produto das vendas por ela angariadas.

Para tal, invocou que a R. denunciou o referido contrato sem justificação e de imediato em 03/02/2003, apropriando-se da clientela angariada pela mesma A..

Invocou também que, nos cinco anos que precederam a aludida denúncia, lhe eram devidas comissões no total de € 97.763,80, numa média anual de € 19.552,76, do qual ficou por pagar o montante de € 47.101,00.

Perante isso, concluiu a A. que lhe assistia o direito a receber o referido montante de € 47.101,00, uma indemnização de € 11.134,99, equivalente ao triplo da média mensal das comissões vencidas no decurso do ano precedente ao ano da denúncia, pela inobservância do prazo legal de três meses para o pré-aviso, e ainda a quantia de € 19.552,76, a título de indemnização de clientela, totalizando assim a verba peticionada.


Por sua vez, a R., no que aqui releva, além de negar a invocada denúncia e de afirmar ter pago todas as comissões devidas, sustentou que, desde abril de 2001, a A. nada angariou para a R., nem intermediou qualquer venda, o que determinara a extinção do contrato por falta de atividade da agente. 


Ante a factualidade dada por prova e não provada, a 1.ª instância entendeu que a relação contratual havida entre a A. e a R. se havia extinguido, mas que ficara por demonstrar a data em que tal teria ocorrido, validamente ou por que via, concluindo daí pela improcedência do pedido de condenação da R. no pagamento da indemnização de € 11.134,99 fundada na inobservância do prazo legal de três meses para o pré-aviso.


E quanto ao pedido de condenação da mesma no pagamento da quantia de € 47.101,00 correspondente às alegadas comissões em falta, considerou a 1.ª instância que, por virtude da inversão do ónus de prova declarada no despacho de fls. 1364/1354, de 14/06/2015, incumbia à R. fazer prova do pagamento da diferença entre o montante total das comissões que seriam devidas conforme o alegado pela A., no valor de € 97.763,80, e o montante das comissões pagas na cifra de € 50.662,80, pelo que, não tendo a R. feito essa prova, ali se decidiu condená-la naquela quantia peticionada.

Relativamente à indemnização de clientela, considerou a 1.ª instância que, embora se não tivesse apurado o peso em concreto dos benefícios proporcionados pela A. à R., atendendo, porém, à longa duração do contrato, durante mais de 10 anos, e ao elevado volume de negócios angariados aferido pelo valor das comissões devidas representativas de 3% do valor das vendas, se mostrava adequado arbitrar tal indemnização em € 10.000,00.

No mais, considerou a 1.ª instância que improcedia a invocada caducidade do direito de indemnização de clientela, já que a R. não provou, como lhe incumbia, a data concreta em que, de forma válida, cessou a relação contratual em causa, observando que o facto de a A. ter iniciado a relação comercial com a “CC” não implicava, por si só, o fim daquela outra relação havida com a R..


Porém, a R., na apelação interposta da sentença final, impugnou tanto o despacho interlocutório de 14/06/2015, que determinara a inversão do ónus da prova, como, em sede de facto e de direito, os sobreditos segmentos condenatórios e o juízo de improcedência da caducidade.


Por sua vez, a Relação, depois de negar provimento à impugnação da decisão de facto impugnada, confirmou a decisão de improcedência da caducidade, essencialmente, pelas mesmas razões da 1.ª instância.

No mais, revogou o despacho de 14/06/2015, considerando que o comportamento nele imputado à R. não era de molde a tornar impossível à A. provar a matéria vertida no art.º 13.º da base instrutória e, face à factualidade concretamente dada por provada, considerou não estar demonstrada a existência do invocado crédito de € 47.101,00, concluindo pela revogação da sentença recorrida nessa parte.

E no respeitante à indemnização de clientela, considerou a Relação que a A. não logrou fazer prova da verificação dos respetivos pressupostos legais, conforme o previsto no artigos 33.º, n.º 1, do Dec.-Lei n.º 178/86, de 3-07, com as alterações introduzidas pelo Dec.-Lei n.º 118/93, de 13-04.

A tal propósito, salienta que “quase nada de concreto fora alegado de modo a permitir ao tribunal concluir que, após a cessação do contrato com a R., a mesma beneficiou consideravelmente da atividade desenvolvida pela A. e que esta deixou de receber qualquer retribuição por contrato negociados ou concluídos com clientes angariados pela A. após a cessação do contrato: nomeadamente não referiu a A. quantos eram os seus clientes e quantos continuaram a manter relações comerciais com referência aos produtos da R., qual o volume de negócios que os mesmos representam para a R.”


Posto isto, o objeto da presente revista incide apenas sobre as duas questões essenciais acima enunciadas e que, resumidamente, são as de saber:

a) – se existe fundamento legal para a inversão do ónus da prova quanto à matéria de facto vertida no ar.º 13.º da base instrutória;

b) – se estão verificados os pressupostos e requisitos legais do direito à indemnização de clientela.


         Analisemos, pois, cada uma dessas questões.

 

3.2. Quanto à questão da inversão do ónus da prova

        

3.2.1. Caraterização da relação material controvertida


A pretensão da A. em obter a condenação da R. no pagamento da quantia de € 47.101,00, a título de comissões devidas e não pagas durante o período de cinco anos alegadamente precedente a 03/02/2003, inscreve-se no quadro de uma relação comercial havida entre aquelas partes, “reafirmada” em 07/07/1993 na sequência de uma relação já pré-existente – pontos 1.2, 1.4 a 1.7 da factualidade provada.

No âmbito dessa relação, a A. obrigou-se a angariar clientela e a promover a venda, de forma exclusiva, por período indeterminado, no mercado português, de produtos especiais de aço da R. mediante o recebimento de uma comissão de 3% calculada sobre os produtos das vendas efetuadas em Portugal e promovidas pela A., incumbindo àquela R. outorgar depois os respetivos contratos - – pontos 1.2, 1.3 e 1.5 a 1.7 da factualidade provada.

Deste recorte factual resulta estarmos perante um contrato típico de agência, tal como vem qualificado pelas instâncias, à luz da noção dada pelo art.º 1.º, n.º 1, do Dec.-Lei n.º 178/86, de 03-07, com as alterações introduzidas pelo Dec.-Lei n.º 118/93, de 13/04, em que se contempla o correspetivo regime, cujo teor é o seguinte:

Agência é o contrato pelo qual uma das partes se obriga a promover por conta da outra a celebração de contratos, de modo autónomo e estável mediante retribuição, podendo-lhe ser atribuída certa zona ou determinado círculo de clientes.

 Tal contrato foi celebrado verbalmente com duração indeterminada, não tendo sido conferidos poderes de representação à A., na qualidade de agente exclusivo, para outorgar contratos em nome da R..

    No tocante ao direito à comissão o artigo 16.º do referido diploma preceitua que:

1 – O agente tem direito a uma comissão pelos contratos que promoveu e, bem assim, pelos contratos concluídos com clientes por si angariados, desde que concluídos antes do termo da relação de agência.

2 – O agente tem igualmente direito à comissão por actos concluídos durante a vigência do contrato se gozar de um direito exclusivo para uma zona geográfica ou um círculo de clientes e os mesmos tenham sido concluídos com um cliente pertencente a essa zona ou círculo de clientes.

3 – O agente só tem direito à comissão pelos contratos celebrados após o termo da relação de agência provando ter sido ele a negociá-los ou, tendo-os preparado, ficar a sua conclusão a dever-se, principalmente à actividade por si desenvolvida, contanto que em ambos os casos sejam celebrados num prazo razoável subsequente ao termo da agência.


   Dos factos provados colhe-se que a A., desde 07/07/1993, continuou a angariar mais clientes para a R. (ponto 1.7 dos factos provados) e que auferiu nos últimos cinco precedentes a fevereiro de 2003 comissões de valor não inferior a € 50.662,80 (pontos 1.10 e 1.11 dos factos provados).

    Porém, a R. comunicou à mesma A. verbalmente a cessação do referido contrato em data não apurada mas não posterior a abril de 2002 (ponto 1.8 dos factos provados).

    Na mesma altura, mais precisamente no período de janeiro de 2002 a fevereiro de 2003, a A. passou a angariar clientes e a promover a venda dos mesmos produtos e à mesma clientela mas através da atividade da sociedade “CC” distribuidora da R., sociedade essa que comunicou à A. através do fax reproduzido a fls. 17, datado de 03/02/2003, que cessasse qualquer tipo de atividade em nome dela a partir dessa data (ponto 1.10 dos factos provados com referência ainda ao teor do documento de fls. 17).

    Foi também dado como provado que a R. continuou a beneficiar da clientela angariada pela A. através da atividade daquela sua distribuidora (ponto 1.9).      

      Nessas circunstâncias, após fevereiro de 2003, a A. ficou privada da clientela por si angariada, não tendo representação de qualquer outra empresa que fornecesse os mesmos produtos da R. (ponto 1.10 dos factos provados).


    Perante tais ocorrências, as instâncias consideraram que a denúncia do contrato efetuada verbalmente pela R. à A. em data não apurada mas não posterior a abril de 2002 era formalmente inválida nos termos conjugados do artigo 28.º, n.º 1, do Dec.-Lei n.º 178/86, onde se exige comunicação escrita, e do artigo 220.º do CC e que, por virtude disso, embora estando assumida pelas partes a extinção da relação contratual, não se sabia qual a data em que fora posto termo ao referido contrato entre a A. e a R., nem que por via.

     Foi nessa base que a 1.ª instância absolveu a R. quanto ao pedido de indemnização de € 11.134,99, fundado na inobservância do prazo legal de três meses para o pré-aviso, com o que a A. se conformou. Foi também nessa base que, em ambas as instâncias, se concluiu pela improcedência da exceção da caducidade do pedido de indemnização de clientela, questão que também não vem impugnada na presente revista.

      Consequentemente, o assim julgado em termos de denúncia e da extinção do contrato entre a A. e a R. é matéria que se encontra arrumada e que, por isso, nos é vedado retomar.


     Todavia, já não se mostra tão líquida a questão de saber se a angariação feita pela A., no período decorrido entre janeiro de 2002 e fevereiro de 2003 através da atividade da distribuidora da R. e com benefício desta se inscreve numa relação comercial distinta (ou paralela) da que existia entre a A. e a R. ou se deve ser tida ainda como extensão desta relação como sustenta a A., ao considerar que a sociedade “CC” era uma mera filial da R..

     A questão foi objeto da prova e da discussão em sede de julgamento de facto, mas daí apenas resultou o que ficou consignado no ponto 1.9 e 1.10 dos factos provados, face ao que a 1.ª instância, embora de forma não inteiramente consequente, expressasse a convicção de que aquela distribuidora não atuara como mera representante/filial da R. e de que se iniciara uma nova relação entre a A. e a “CC”, como se depreende das considerações da motivação da decisão de facto constantes de fls. 1504 a 1506.

     Por seu turno, a Relação, de forma perentória e mais consequente, considerou que a relação comercial entre a A. e a “CC”, iniciada em janeiro de 2002 e finda em fevereiro de 2003, se traduzia numa relação juridicamente distinta da relação que existia entre a A. e a R., admitindo mesmo que esta última relação se pudesse ter ainda prolongado por algum tempo a par daquela.        

    Seja como for, o certo é que a A. não logrou provar, como lhe incumbia, que a sociedade “CC” tenha desenvolvido a sua atividade, mesmo na qualidade de distribuidora da R., como mera representante ou filial desta. De resto, nem sequer ficou provado que aquela sociedade, ao pôr termo à sua relação com a A. através do documento de fls. 17/18, datado de 03/02/2003, o fizesse em nome e como representante da R., como se alcança do facto dado como não provado constante de 2.1.

     Tanto basta para concluir que a atividade de angariação de clientela dos produtos da R. pela A. através da sociedade “CC” não se inscreve no âmbito do contrato de agência celebrado entre aquelas e que o benefício, por essa via, proporcionado à R. só pode ser considerado como indireto.  

     Além disso, ter-se-á de admitir que, pelo menos, uma parte do total das comissões alegado pela A., na cifra de € 97.763,80, e até do valor não inferior a € 50.662,80 das comissões por ela auferidas nos últimos cinco anos que precedentes a fevereiro de 2003, não respeita a comissões devidas pela R. à A., na medida em que incluem comissões respeitantes à angariação feita A. à sociedade “CC” no período que decorreu entre janeiro de 2002 e fevererio de 2003.

      Posto isto, importa saber em que medida é que se poderá ter por demonstrado o valor das comissões que, segundo o alegado pela A., lhe seriam devidas pela R. e se é lícito fazer tal apuramento por via da inversão do ónus da prova contra a mesma R..    


3.2.2. Quadro geral da repartição do ónus da prova


Como é sabido, as regras de repartição do ónus da prova respeitam ao domínio do direito probatório material e encontram-se abstratamente definidas na lei, quer nas disposições gerais dos artigos 342.º a 348.º do CC, quer em disposições especiais ou avulsas.

Basilar nesta matéria é o disposto no artigo 342.º do CC, segundo o qual cabe àquele que invoca um direito fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado e àquele contra quem a invocação é feita incumbe provar os factos excetivos (impeditivos, modificativos ou extintivos) do direito invocado. Em caso de dúvida, os factos devem ser considerados como constitutivos do direito.

Os factos não são por natureza constitutivos ou excetivos; são-no no contexto e em função da pretensão em causa. Para saber se estamos perante uma ou outra categoria de factos há que atender à previsão normativa aplicável (facti species) e ao efeito prático-jurídico pretendido de modo a determinar qual a função desses factos na economia do pedido[2].

Assim, em regra, quando o facto em causa, à luz daqueles parâmetros, se mostrar favorável à pretensão deduzida, será constitutivo. Quando for desfavorável, poderá ser meramente impugnativo, se for factualmente incompatível com um facto constitutivo ou com um facto excetivo e, portanto, instrumental em sede de contraprova (art.º 346.º do CC); ou será facto essencial impeditivo, modificativo ou extintivo se potenciar, respetivamente, um efeito jurídico que impeça, modifique ou extinga o efeito pretendido pelo autor.  

Depois de assim concretamente definida a função constitutiva ou excetiva dos factos essenciais em causa, importa então equacionar a repartição do ónus da prova à luz das regras gerais do artigo 342.º do CC ou das regras especiais dos artigos 343.º e 344.º, n.º 1, do mesmo diploma ou dele constantes ou mesmo previstas em legislação especial ou avulsa.

Será também em função dessa repartição normativa do ónus da prova que, em princípio, se define o ónus de alegação das partes nos termos do preceituado no artigo 5.º, n.º 1, do CPC, sem prejuízo das situações em que é lícito ao tribunal conhecer oficiosamente de factos relevantes não alegados como decorre do disposto do n.º 2 do mesmo normativo e do art.º 412.º do citado Código[3]. Mas importa não confundir o ónus de alegação com o ónus de prova, havendo certos casos em que o ónus de alegar incumbe a uma parte e o respetivo ónus da prova à parte contrária[4].  

Acresce que a repartição normativa do ónus da prova pode sofrer ainda alguns desvios, mormente atento o coeficiente de esforço probatório exigível a cada uma das partes, segundo as circunstâncias do caso, e o seu dever de colaborar para a descoberta da verdade.

Desde logo, na ponderação concreta desse esforço probatório, poderá o tribunal valorar livremente a falta de colaboração de qualquer das partes, como decorre do art.º 417.º, n.º 2, do CPC, firmando, por exemplo, o juízo probatório do facto em causa com base nos elementos de prova, ainda que indiciários, fornecidos pela parte onerada, à luz das regras da experiência, e atendendo à falta de colaboração da contraparte que estaria em melhores condições de o proporcionar.

Além disso, nas situações em que ocorra um comportamento culposo da parte não onerada que torne impossível ou extremamente dificultosa a prova pela parte onerada, poderá determinar-se a inversão do ónus de prova sobre a parte faltosa, nos termos do preceituado no artigo 344.º, n.º 2, do CC.

A este propósito, convém referir que a valoração livre da prova atendendo ao esforço probatório exigível aos litigantes ou decorrente de inobservância do dever de cooperação de qualquer das partes será feita em sede de julgamento de facto, não sindicável, em princípio, por via do recurso de revista nos termos do art.º 674.º, n.º 3, do CPC.

Já a inversão do ónus de prova decorrente de comportamento culposo da parte que torne impossível ou extremamente dificultosa a prova pela parte onerada, nos termos do art.º 344.º, n.º 2, do CC, assumirá, fundamentalmente, uma dimensão de questão de direito, na medida em que se inscreve, de certo modo, na repartição normativa do ónus da prova. A inversão do ónus da prova por esta via far-se-á já em sede do julgamento de direito, dando por assente um facto cuja prova cabia à parte que o alegou, mas em que, tendo essa prova sido impossibilitada ou tornada extremamente dificultosa pela contraparte, por esta não foi produzida prova a demonstrar a não verificação daquele facto.

Assim, a decisão de efetivação da inversão do ónus da prova nos termos do artigo 344.º, n.º 2, do CC terá lugar depois de esgotada a possibilidade de a parte onerada com tal inversão produzir a respetiva prova e da valoração, em sede de prova livre, dos resultados probatórios desse modo obtidos, ou seja, a jusante da decisão sobre os factos controvertidos. Tal não obstará, porém, a que, em sede de revista, o STJ, para efeitos de ampliação da decisão de facto, defina, desde logo, o direito aplicável, nomeadamente quanto à repartição do ónus da prova, ao abrigo e nos termos do disposto no art.º 683.º, n.º 1, do CPC, poder esse que já não assiste às instâncias.     

De qualquer modo, deverão as partes ser advertidas previamente da eventualidade daquela inversão do ónus da prova, de forma a poderem gerir o esforço probatório que lhe é exigível e a evitar uma decisão-surpresa, como decorre do disposto no art.º 3.º, n.º 3, do CPC.   

No caso vertente, quanto à pretensão de obter a condenação da R. no pagamento da quantia de € 47.101,00 a título de comissões alegadamente devidas e não pagas pela mesma R. de 1998 a 03/02/2003, cabia, desde logo, à A. alegar e provar, além do teor essencial do contrato de agência, os negócios por ela angariados ou promovidos em execução desse contrato, em função dos quais seria devida a estipulada comissão de 3%, como factos constitutivos que são do direito às referidas comissões, em conformidade como o disposto no artigo 342.º, n.º 1, do CPC.

Sucede que a 1.ª instância considerou que incumbia à R. fazer prova do pagamento da diferença entre o montante total das comissões que seriam devidas conforme o alegado pela A., no valor de € 97.763,80, e o montante das comissões pagas na cifra de € 50.662,80, pelo que, não tendo a R. feito essa prova, ali se decidiu condená-la naquela quantia peticionada.

Salvo o devido respeito, este raciocínio incorre num equívoco ao confundir o ónus de prova do pagamento das comissões reclamadas com o ónus de prova dos factos constitutivos do direito de crédito àquelas comissões.

Com efeito, recaía já sobre o R. o ónus de provar o pagamento das comissões peticionadas, como facto extintivo que é desse crédito, nos termos do art.º 342.º, n.º 2, do CC.

Mas antes disso, incumbia à A. alegar e provar os factos constitutivos do crédito, para o que não basta a mera alegação e prova do contrato de agência, tornando-se necessária ainda a prova da realização da prestação típica dos atos de promoção do agente, em execução do contrato, donde decorrerá então o direito de crédito à respetiva comissão.

E seria então em face dessa alegação que se colocaria a questão de saber em que medida é que a R., por via de um comportamento culposo, tornou impossível ou dificultosa a prova de tais factos.  

Será, pois, nessa linha e atento o contexto concreto dos presentes autos que iremos proceder à análise da questionada inversão do ónus de prova.


3.2.3. Da inversão do ónus de prova no caso em apreço


Importa, antes de mais, no que aqui interessa, ter presente que a A. alegou, na petição inicial, o seguinte:

Art.º 15.º

(…) sem qualquer motivo justificativo e por e.mail de 3-2-2003, a demandada denunciou e pôs termo imediato ao falado contrato de agência.

Art..º 25.º

(…) nos últimos cinco anos, que precederam a denúncia, a A. auferiu um total de comissões de € 97.763,80.

Art..º 26.º

Mas desse montante ficaram por pagar € 47.101,00.


Por sua vez, a R. na contestação, negou que tivesse denunciado o contrato em causa, afirmando que o mesmo se extinguira por falta de qualquer atividade da A. desde abril de 2001 e que tinha pago à mesma todas as comissões dos contratos por ela angariados, quando vencidas, bem como tudo o que lhe devia pagar.



Nessa base, em sede de despacho de condenação de fls. 102 a 104, foi selecionada a seguinte matéria:

Alínea D) dos Factos Assentes

   Do montante referido em 13), a autora recebeu, pelo menos, € 50.662,80.

Base instrutória

Art.º 8.º

   A ré, sem qualquer justificativo, e por correio eletrónico, pôs termo ao aludido contrato em 3/2/03?

Art.º 13.º

Nos últimos cinco anos que precederam o que se refere em 8), a autora auferiu um total de comissões de € 97.763,80?

        

     Subsequentemente, ocorreram as seguintes vicissitudes processuais:

i) - Já em sede de audiência final, em 28/02/2007, a requerimento da R. visando a contraprova da matéria constante do art.º 13.º da base instrutória, foi determinada a notificação da A. para juntar aos autos todas as faturas de vendas de produtos da R. realizadas nos 5 anos anteriores a fevereiro de 2003, bem como de toda a faturação que tivesse emitido respeitante a comissões pagas à R. durante o mesmo período, conforme despacho consignado a fls. 405;

ii) - Na sequência desse despacho, a A. deduziu, em 18/04/2007, o requerimento de fls. fls. 422, sustentando que:

- no período em referência, a R. não lhe enviou muitas das faturas das vendas dos seus produtos, enviando-lhe fotocópias praticamente ilegíveis e incompletas de outras; 

- a A. não faturava as comissões que recebia da R. por transferências bancárias ou cheques e que ela própria calculava e enviava à A. quando recebia o preço dos produtos vendidos aos seus clientes.

Nessa base, ainda que tenha apresentado os 50 documentos juntos a de fls. 423 e seguintes, a A. concluiu que não poderia dar cumprimento à determinação da junção dos documentos para que fora notificada e requereu, por sua vez, a notificação da R. para juntar os originais ou fotocópias autenticadas de todas as faturas de vendas dos seus produtos em Portugal no período de cinco anos anteriores a fevereiro de 2003.


iii) - Por despacho de fls. 506, datado de 07/05/2007, foi indeferido o requerimento da A. no respeitante à pretendida notificação da R., despacho esse que foi objeto de agravo, no âmbito do qual foi anulado tal despacho, bem como todo o processado ulterior, incluindo a sentença entretanto proferida, determinando-se o prosseguimento dos autos com a junção dos elementos probatórios requeridos pela A., conforme o acórdão de fls. 668-675, de 22/04/2008.

iv) - Na sequência do assim ordenado, veio a R. alegar a fls. 767 que, a partir de 31/12/2001, deixara de vender diretamente os seus produtos em Portugal, pelo que, após tal data, lhe não era possível juntar os documentos ordenados, solicitando prazo para juntar as faturas das vendas realizadas no período de 1998 a 31/12/2001 e verificar se o podia fazer, uma vez que poderiam ter sido destruídas algumas delas, já que, de acordo com a lei italiana, não está obrigada a manter documentos com mais de 10 anos.

v) - Em 26/10/2009, veio a R., após notificação do tribunal, juntar aos autos documentos que refere serem comprovativos dos seus negócios em Portugal até fevereiro de 2003, intermediados e debitados pela A., informando que as comissões que a A. lhe faturou foram pagas por si, conforme os documentos bancários que identifica.

E a fls. 830 e seguintes, veio a R. juntar a documentação existente nos seus arquivos referente às vendas em Portugal (faturas, notas de comissões da AA, Lda, e documentos comprovativos dos pagamentos das comissões) dos anos de 1999, 2000 e 2001, referindo que não lhe era possível juntar as faturas de vendas dos anos de 1998, por já terem sido destruídas, e que, a partir de 31/12/2001, deixou de vender os seus produtos em Portugal.

vi) - A A. pronunciou-se sobre os documentos constantes de fls. 832 a 907, conforme fls. 913 e seguintes, dizendo, em síntese, que os mesmos são insuficientes, requerendo a inversão do ónus da prova por considerar que a R. agiu com culpa ao destruir documentos relativos à relação comercial em causa, violando o princípio da cooperação, bem como um exame à contabilidade da R..

vii) - Em 20/05/2010, foi proferido despacho de fls. 939 a indeferir o pedido de exame pericial à contabilidade da R., o qual foi objeto de agravo, por parte da A., tendo o tribunal procedido à reparação do agravo, conforme despacho de fls. 984-985, datado de 17/12/2010.

viii) - Após sucessivo desenvolvimentos processuais, por despacho de fls. 1116 a 1122, datado de 10/02/2012, foi ordenada a realização de perícia à contabilidade da R. com vista ao apuramento das vendas por ela realizadas em Portugal nos 5 anos anteriores a fevereiro de 2003 e da faturação que tivesse emitido respeitante a comissões pagas à R. no mesmo período, de modo a permitir a resposta ao art.º 13.º da base instrutória.

Foi solicitada tal diligência probatória ao abrigo do Regulamento (CE) n.º 1206/2001, de 28/05/2001, tendo o exame sido inconclusivo, porquanto, segundo o perito nomeado, a R. já não tinha em arquivo a documentação da contabilidade relativa aos anos de 1998 a 2003 (fls. 1331 e seguintes).

ix) - Por despacho de fls. 1364 e 1365, datado de 14/06/2015, foi entendido que a R. atuou de forma culposa, tornando impossível à A. a prova que a esta incumbia por referência à matéria do art.º 13.º da base instrutória, implicando a inversão do ónus da prova, nos termos do art.º 344.º, n.º 2, do CC e do art.º 519.º, n.º 2, correspondente ao atual 417.º do CPC, mais se entendendo não existirem outras diligências úteis a ordenar.


E foi por efeito deste despacho que a 1.ª instância, já no âmbito da sentença final, considerou invertido o ónus de prova, com as consequências acima expostas.


Mais precisamente, da factualidade provada colhe-se o seguinte:  

i) - A A. celebrou com a R. um contrato mediante o qual se obrigou a angariar clientela e correspondentes vendas de produtos especiais de aço mediante uma comissão de 3% – ponto 1.2 e 1.3;  

ii) – Na sequência desse contrato e em face de negociações ocorridas em 07/07/93, a A. continuava a angariar clientela e a promover a venda, de forma exclusiva e por período indeterminado, dos produtos da R. referidos no “anexo A”, por período indeterminado, comprometendo-se a não representar no mercado português outros produtores de aço inoxidável dentro dos produtos que a R. fabricava e de que a A. era representante em Portugal – ponto 1.4. a 1.6;

iii) – Assim, continuou a A. a angariar mais clientes para a R. a quem incumbia depois outorgar os respetivos contratos, sendo a sobredita comissão calculada sobre o produto das vendas efetuadas em Portugal e promovidas pela A. – pontos 1.7;

iv) – Porém, em data não apurada mas não posterior a abril de 2002, a R. comunicou verbalmente à A. a cessação do referido contrato – ponto 1.8

v) – Não obstante isso, a R., por via da atividade da sua distribuidora “CC”, continuou a beneficiar da clientela angariada pela A. (ponto 1.9), passando esta, inclusivamente, a angariar clientes e a promover a venda dos mesmos produtos à mesma clientela, através daquela distribuidora, no período de janeiro de 2002 a fevereiro de 2003 – ponto 1.10;     

vi) - Após fevereiro de 2003, a A. ficou privada da clientela por si angariada, na sequência do referido em iv) e do mail enviado por “CC” de fls. 17, não tendo a A. representação de qualquer outra empresa que fornecesse os mesmos produtos da R.  – ponto 10

vii) - Nos últimos cinco anos precedentes a fevereiro de 2003, a A. recebeu comissões em valor não inferior a € 50.662,80 – ponto 1.11.


A par disso, foi dado por não provado que:

- a R. tenha posto termo ao contrato sem qualquer justificativo e por correio eletrónico de 03/02/2003 nos termos de fls. 17/18;

   - A partir de abril de 2001, a A. não mais tenha angariado qualquer cliente nem intermediado qualquer venda para a R..


Perante tal universo factológico, como já foi dito, a 1.ª instância considerou que, em face da inversão do ónus de prova declarada no despacho de fls. 1364/1354, de 14/06/2015, incumbia à R. fazer a prova do pagamento da diferença entre o montante total das comissões que seriam devidas conforme o alegado pela A., no valor de € 97.763,80, e o montante das comissões pagas na cifra de € 50.662,80, pelo que, não tendo a R. feito essa prova, ali se decidiu condená-la na peticionada quantia de € 47.101,00.


Porém, o referido despacho de 14/06/2015 foi objeto de impugnação em sede de apelação da sentença final, tendo sido revogado pelo acórdão recorrido o sobredito segmento condenatório.

Tal revogação estribou-se nas seguintes considerações:

«O facto em questão, relativamente ao qual o tribunal a quo decidiu inverter o ónus da prova, é o expresso no art.º 13.º da base instrutória que tem a seguinte redacção: “Nos últimos cinco anos que precederam o que se refere em 8) a autora auferiu um total de comissões de € 97.763,80 ?”

O ónus da prova desta matéria é da A., já que estamos perante um facto constitutivo do direito de crédito que a mesma alega ter sobre a R., tendo em conta o disposto no art.º 342.º n.º 1 do C.P.C.

Desde logo não se vislumbra como é que para a A. que é uma sociedade comercial com obrigatoriedade de dispor contabilidade organizada, esta prova se revela impossível sem recorrer aos elementos contabilísticos da parte contrária.

A alegação feita pela A. na sua petição inicial é muito precisa e é no sentido de que auferiu o valor de € 97.763,80 de comissões da R., sendo que a A. nunca diz nos autos que não sabe qual o valor de comissões que lhe é devido pela celebração dos contratos que mediou. Ora, para chegar a tal valor a A. tem necessariamente de se socorrer dos seus documentos e do seu suporte contabilístico, senão, onde iria buscar a determinação de tal valor? Tratando-se de montantes por ela auferidos ou devidos de comissões, tal suporte documental tem de existir através de notas de comissões, de notas de encomenda ou de facturas, sendo obrigatório para empresa ter contabilidade organizada e manter os seus documentos de contabilidade pelo menos durante o período de 10 anos, conforme estipula o art.º 40 do C.Comercial, o mesmo prazo que a Lei Italiana estabelece como obrigatório para as suas empresas manterem os documentos de contabilidade no art.º 2220 do C.Civil Italiano.

Constata-se aliás que a alegação da A. quanto ao valor das comissões relativas ao período em questão é muito precisa, não podendo deixar de revelar que a mesma dispõe de elementos que permitem alcançá-lo. Verifica-se que a A. ao pronunciar-se sobre os documentos juntos pela R. vem dizer que os mesmos não estão completos, que no ano de 2000 auferiu pelo menos € 13.201,00 de comissões impugnando o valor avançado pela R. nos seus documentos de € 5.743,69, o que revela que a A. não pode deixar de ter elementos de informação que lhe permitem avançar com tais valores.

Constata-se ainda que dos documentos juntos a fls. 790 ss. pela CC constam diversas facturas emitidas pela A. no ano de 2002, não sendo por isso credível a sua alegação de que não facturava as comissões à R. O legal representante da A., em declarações prestadas em audiência de julgamento refere que, embora nem sempre emitam factura, emitem “nota de comissão”. Também a testemunha DD, que foi funcionária da A. ligada à contabilidade, quando ouvida em audiência de julgamento diz “conhecer” a R. através de contratos e facturas e relativamente ao valor total das comissões diz tê-lo confirmado através de dossiers da A., dizendo desconhecer porque não foram juntos aos autos.

Afigura-se que a prova dos factos alegados pela A. a ela competia, tendo a mesma a obrigação de ter os elementos contabilísticos e de suporte que permitem a verificação dos factos alegados, tais como notas de encomenda ou de comissões, facturas, notas de débito ou documentos bancários, já que se trata, alegadamente, da prova de comissões por vendas por si angariadas e que pelo menos em parte lhe foram pagas pela R., sendo que a postura da mesma nos autos revela que a mesma deles dispõe.

Não pode por isso dizer-se que foi a R. que tornou impossível a prova de tal matéria quando, no momento em que é solicitada a perícia à sua contabilidade refere já não ter na sua posse os documentos que a lei Italiana não obriga a manter, sendo certo que, em momento anterior procedeu à junção aos autos de diversos elementos e documentos que lhe foram solicitados pelo tribunal.

Verifica-se aliás uma atitude de cooperação da R. que, na sequência do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto que determinou a sua notificação para juntar os documentos que haviam sido requeridos pela A. e após solicitar prazo para a pesquisa de tais elementos, veio juntar a 02/03/2010 o que referiu serem os comprovativos dos pagamentos das comissões feitas à A. nos anos de 1999 a 31/12/2001, apenas referindo estarem em falta os documentos relativos ao ano de 1998 por já os ter destruído e não estar obrigada a mantê-los de acordo com a legislação Italiana e não ter documentos posteriores, por ter sido em 31/12/2001 que cessou a sua actividade com a A., conforme aliás vem sempre alegando nos autos.

Em conclusão, não pode dizer-se que a R. com o seu comportamento tornou impossível à A. a prova da matéria em questão, na medida em que o exame à sua contabilidade não seria a única forma da A. demonstrar o valor das comissões por si auferidas, conforme se viu, nem tão pouco que aquela actuou de forma culposa ou censurável, recusando a colaboração que lhe foi solicitada pelo tribunal, ao referir já não ter a documentação relativa aos anos pretendidos no momento em que foi determinada aquela perícia, o que não permite concluir por uma recusa de colaboração da mesma, não estando por isso justificada a alteração do ónus da prova, à luz do art.º 344.º n.º 2 do C.Civil, como determinou o tribunal a quo.

Impõe-se por isso a revogação do despacho de 14/06/2015 que assim o decidiu.»


Revogado, desse modo, o despacho de 14/06/2015, a Relação prosseguiu na análise da pretensão do pagamento da quantia de € 47.101,00, convocando o disposto nos artigos 16.º, n.º 1, e 18.º, n.º 1, do Dec.-Lei n.º 178/86 de 03-07, com as alterações introduzidas pelo Dec.-Lei n.º 118/93 de 13-04, tecendo as seguintes considerações: 

«No contrato de agência que se discute nos autos, a remuneração do agente consiste numa retribuição pela actividade desenvolvida no interesse do principal, não podendo falar-se, no caso, de retribuição em sentido estrito como contrapartida de uma actividade, mas antes de uma remuneração que é obtida pela venda de cada produto, através do pagamento de uma comissão na percentagem acordada de 3% do valor das vendas.

Na situação em presença, não ficou provado que a A. angariou clientes e vendas de produtos para a R. que lhe permitiram auferiu o valor de comissões que reclama nos autos, de € 97.763,80, já que apenas se apurou que a mesma auferiu no período dos 5 anos anteriores a Fevereiro de 2003 a quantia de € 50.662,80 a título de comissões, sendo que este valor foi por ela recebido.

Como se referiu, não há justificação para a inversão do ónus da prova quanto à matéria do art.º 13.º da base instrutória, que contempla a matéria alegada pela A. relativa às comissões a que, na sua perspectiva, tem direito, competindo-lhe, nos termos do disposto no art.º 342.º, n.º 1, do C.Civil, a prova do valor das mesmas, no âmbito da relação contratual mantida com a R.

Resultando apenas apurado que a A. auferiu o valor de € 50.662,80 a título de comissões, nos cinco anos anteriores a 03/02/2003, valor que recebeu, já se vê que se impõe a revogação da sentença proferida, na parte em que condena a R. no pagamento de € 47.101,00 a título de comissões, acrescido de juros de mora desde a citação, por não ter ficado provada a existência deste direito de crédito que reclama da R.»


     Contrapondo o assim julgado, vem a A./Recorrente sustentar que:

 1.ª - A jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores tem equiparado a impossibilidade à grave dificuldade da prova, entendendo que, neste último caso, há também lugar à inversão do ónus da prova se o onerado não puder produzi-la por culpa da contraparte. (vide ac. RC, de 19/12/2012, Proc.º n.º 31156/10.3YIPRT.C1, in www.dgsi.pt onde vêm citados outros três acórdãos no mesmo sentido, a saber, Ac. RP, de 18/5/78, in CJ, 78, IIÍ, pág. 847 e de 9/10/79, in CJ, 79, IV, pág. 1276 e Ac. STJ, de 18/3/83, in BMJ n° 324, pág. 584);

2.ª - Tem-se doutrinado que, quando a prova não for possível ou se tornar extremamente difícil, àquele que, segundo as regras do art.º 342.º do CC, teria de o fazer, o ónus da prova deixa de impender sobre ele, passando a recair sobre a outra parte - cfr. Vaz Serra, RLJy Ano 106, 314, Ano 103, 509 e Estudo sobre Provas, no BMJ 110 a 112, n.º 17.

3.ª - Esta é a solução que resulta de várias disposições legais, designadamente dos artigos 343.º, n.º 1, 344.º e 345.º do CC e a que melhor se harmoniza com a razão de ser das regras do art.º 342.º do mesmo diploma, segundo a qual como ensina o mesmo Professor

«o encargo da prova cabe à parte que se encontra em melhor situação de a produzir, e auxiliar a descoberta da verdade, mostrando a experiência que, em regra, quem tem a seu favor certo facto se acautela com os meios da sua prova: assim se explica que, se o autor invocar um direito contra o demandado, não tenha de provar que esse direito não está impedido, modificado ou impedido por qualquer causa (art.º 342.º, n.º 2), prova que seria ou poderia ser-Ihe impossível.»

4.ª - Ainda segundo o mesmo Autor, in RLJ, Ano 105, pág 315:

«Mostram estas várias soluções legais que, quando a prova não for possível ou for extremamente difícil àquele que, segundo as regras do art.º 342.º, teria de a fazer, o ónus da prova deixa de impender sobre ele, passando a recair sobre a outra parte».

5.ª - Parece claro que, ao contrário do que foi decidido pelo Tribunal “a quo”, um dos casos, mas não o único, em que se operará a inversão do ónus da prova será quando a contraparte tiver tornado culposamente impossível a prova;

6.ª - De resto, assim ensina Vaz Serra, in Provas (Direito Probatório Material), in BMJ 110 - 1961 - pág. 165, ao referir que

«parece, pois, poder formular-se o princípio de que o ónus da prova se inverte quando for inexigível ao onerado que faça a prova. E um dos casos em que esse princípio se aplicaria seria o de a outra parte ter tornado culposamente impossível aprova.»

   7.ª - Devemo-nos ainda ater ao disposto n o art.º 12.º do Dec.-Lei n.º 178/86, de 03-07 que comina que, "o agente tem o direito de exigir da outra parte um comportamento segundo a boa-fé, em ordem à realização plena do fim contratual" e o art.º 13.º, nomeadamente alíneas c), d) e e), do mesmo diploma legal, que comina que "o agente tem direito, designadamente: a ser informado, sem demora, da aceitação ou recusa dos contratos negociados a receber, periodicamente, uma relação dos contratos celebrados e das comissões devidas, o mais tardar até ao último dia do mês seguinte ao trimestre em que o direito à comissão tiver sido adquirido a exigir que lhe sejam fornecidas todas as informações, nomeadamente um extrato dos livros de contabilidade da outra parte, que sejam necessárias para verificar o montante das comissões que lhe serão devidas ao pagamento da retribuição nos termos acordados.

   8.ª - No caso vertente, verifica-se que, por iniciativa da R., foi por esta requerido ao Tribunal, na audiência de julgamento de 28/2/ 2007, “... que seja solicitado à A. para juntar aos autos todas as facturas de vendas de produtos da Ré feitas nos 5 anos anteriores a Fevereiro de 2003...”, o que foi deferido, como vem referido no acórdão da Relação do Porto, de 22/4/2008 de fls., destes autos – consequentemente, demonstra que a entendeu como útil para a descoberta da verdade.

   9.ª - A Recorrente, em cumprimento deste despacho, a fls. 422 dos presentes autos, juntou 50 documentos, alegou e requereu que:

(...) A Ré, principalmente no período referido na notificação que coincidiu com o fim da relação de agência existente entre a A. e aquela, não enviou muitas das faturas de vendas dos seus produtos à Autora; enviou fotocópias de outras praticamente ilegíveis; enviou ainda fotocópias de outras incompletas e, precisamente no ano em que o funcionário da Autora se despediu e passou a ser o agente da Ré em Portugal, que foi em 2002, certamente por coincidência desapareceram, nessa altura, várias pastas de documentos relativos às vendas de produtos da Ré. Por isso, a Autora só pode cumprir parcialmente com o que foi notificada, juntando aos autos as fotocópias de que dispõe e que muitas delas padecem dos vícios supra mencionados, conforme fotocópias das facturas que adiante se juntam e aqui se dão por inteiramente reproduzidas para todos os efeitos legais. Doc. n.ºs 1 a 50.

Porém, a Ré sabe muito bem que vendas é que fez para Portugal nesse período de tempo e, é possuidora de todas essas facturas que titularam essas vendas, já que foi ela mesmo quem as emitiu e enviou aos seus clientes;

Por conseguinte, tendo em vista o apuramento da verdade material e a justa composição do litígio, bem como o princípio da cooperação das partes, nos termos do disposto nos artigos 265.º, 266.º, designadamente do seu n.º 4 e 519.º ambos do CPC, notifique-se a R. para juntar aos autos os originais ou fotocópias, devidamente autenticadas, de todas as faturas de vendas dos seus produtos para Portugal no período de cinco anos anteriores a Fevereiro de 2003...

10.ª - Na sequência do requerido tanto pela A. como pela R., o referido acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 22/4/2008, teve em linha de conta:

- “o fito último do processo civil, que é a descoberta da verdade material;

- os direitos e deveres do agente consagrados no diploma que regula o contrato de agencia, rectius os previstos no seu art.º 13.º;

- o núcleo essencial fáctico da causa petendi atinente aos pedidos formulados, qual seja o apurar-se do número e dimensão dos contratos celebrados pela ré com intervenção da autora e quais os novos clientes por esta angariados para aquela;

 - ter sido a própria ré a tomar a iniciativa de querer ver juntos aos autos os elementos probatórios que solicitou à autora, o que o tribunal considerou relevante e sufragou" pelo que, havia que levar esta iniciativa até às suas últimas consequências;

- os princípios da cooperação, da boa-fé e do inquisitório;

E decidiu, que:

- “deve a ré juntar todos os elementos probatórios que tenha em seu poder no sentido de se apurar da dimensão e alcance da actuação da autora no âmbito do contrato em causa, importando, no mínimo, que dê cumprimento ao disposto no art.º 13.º do Dec. Lei n.º 178/86, alíneas b), c) e d), fornecendo, designadamente, um extracto dos seus livros de contabilidade.

Se, por qualquer motivo, tais elementos não forem juntos ou o forem em termos insuficientes ou deficitários, deverão ser ordenadas as diligências tidas por convenientes, rectius o exame a tal contabilidade”.

  11.ª - Com o caminho traçado nesta decisão proferida pelo Tribunal da Relação do Porto, transitada em julgado, decretou-se implicitamente a inversão do ónus da prova relativamente ao facto constante do quesito 13.º da BI, já que a prova deste facto passou a recair sobre a outra parte (a R.), sendo que esta decisão só tem sentido, desde que o Tribunal tivesse entendido que, face à iniciativa da R. e aos argumentos expendidos pela A., deixou de ser exigível à A. que fizesse essa prova, certamente, por ter constatado que essa prova lhe seria impossível ou extremamente difícil e também, como ensina o Vaz Serra acima citado, porque «o encargo da prova cabe à parte que se encontra em melhor situação de a produzir, e auxiliar a descoberta da verdade», senão abster-se-ia de tomar esta decisão e aguardaria que a A. provasse esse facto, como lhe incumbia

  12.ª - A R., na sequência desta decisão, em vez de a cumprir de imediato, interpôs recursos e reclamações desta decisão, que foram todos indeferidos, e com expedientes dilatórios, só dois anos depois, em 2/3/2010, juntou algumas, poucas, faturas de vendas dos seus produtos para Portugal respeitantes aos anos de 1999, 2000 e 2001, algumas notas de comissões emitidas pela A. e alguns documentos bancários e, deploravelmente, mais informou que os documentos respeitantes a vendas dos seus produtos para Portugal no ano de 1998 já haviam sido destruídos;

   13.ª - Em relação ao ano de 2001, pelo requerimento de fls. 830 a R. teve mesmo a "coragem" de juntar somente uma fatura (!!!) E, em relação ao ano de 1999, a R. também não juntou as faturas que a A., no seu requerimento de fls. 422, juntou fotocópias aos autos, designadamente, as que foram juntas sob os n.ºs 28, 32 e 33 e outras.

   14.ª - Acresce que, a R. concordou que, entre 1998 e 2003 pagou de comissões à A. o montante de pelo menos € 50.662,80 [alínea D) da Especificação] e que a comissão a que a A. tinha direito era de 3% [alínea B) da Especificação] e se aplicarmos essa percentagem de 3% ao somatório das faturas que a R. juntou, obtém-se a quantia de somente € 11.336,37. Isto é, nem sequer aquilo que a R. concordou que pagou de comissões à A. logrou provar com a junção de tais documentos.

   15.ª - Com esta postura, ao contrário do decidido pelo Tribunal "a quo " ao juntar somente estes documentos não mostrou uma atitude de cooperação;

   16.ª - Certamente por ter tido o mesmo entendimento, o Tribunal, por despacho de 17/12/2010, que reparou o agravo que havia sido interposto pela A., notificou a R. para juntar em 15 dias um extrato dos seus livros de contabilidade (relativos ao período em causa nos autos - 5 anos anteriores a fevereiro de 2003), tendo deste despacho a Recorrida interposto reclamação para o Exm.º Presidente da Relação do Porto, que foi indeferida e a seguir veio pedir esclarecimentos sobre o decidido no acórdão da Relação do Porto de 22/4/ 2008, que já havia transitado em julgado há muito;

  17.ª - Em 26/9/2011, pelo despacho de fls., a R. foi novamente notificada para em 15 dias juntar um extrato dos seus livros de contabilidade, entendendo o Tribunal que, caso não o fizesse tal seria entendido como recusa a cumprir o determinado.

  18.ª - A R. não cumpriu com o ordenado neste despacho e informou o Tribunal que havia eliminado toda a sua documentação contabilística respeitante aos anos de 1998 a 2001

  19.ª - Face ao que precede em súmula, é evidente e notório que a R. não colaborou com a A. nem com o Tribunal para a descoberta da verdade e à justa composição do litígio já que não se submeteu às inspeções necessárias e eliminou os documentos contabilísticos respeitantes aos anos de 1998 a 2001;

  20.ª - O Tribunal e bem, uma vez que a R. referiu no seu requerimento de fls., de 18/10/2011, que ainda mantinha em sua posse a sua documentação contabilística relativa aos anos de 2002 e 2003, por despacho de fls. de 10/2/2012, decretou a inversão do ónus da prova por referência ao quesito que estava em causa com a junção/ análise da documentação em menção – 13.º da BI - e ordenou a perícia à contabilidade da Recorrida, que teve como objeto apurar todas as faturas de vendas de produtos da ré para Portugal feitas nos cinco anos anteriores a fevereiro de 2013, bem como toda a faturação que tivesse feito de comissões à A. durante o mesmo período, com vista a permitir a resposta ao quesito 13.º da BI. Incidindo a perícia sobre a escrituração da R. referente aos anos de 2002 e 2003 e também sobre os anos anteriores a fevereiro de 1998, se o perito que para o efeito viesse a ser nomeado constatasse que existia tal documentação, apesar do então já declarado pela Recorrida;

  21.ª - Posteriormente, com vista à realização da perícia à contabilidade da R., o Sr. Perito que foi nomeado para a executar, em 17/6/2014 enviou uma carta à R. para que lhe entregasse a documentação da sua contabilidade relativa ao quinquénio de 3/2/ 1998 a 3/2/2003 realizada nos seus escritórios, bem como na filial espanhola BB SL, competente para a área de Portugal, tendo a R. respondido por carta de 25/6/ 2014 que já não possuía essa documentação porque a mesma já não existia, tornando, assim, inconclusiva a referida perícia, conforme tradução do relatório da perícia, junto a estes autos em 10/2/2015, por requerimento com a referência n.º 2627288;

  22.ª - Perante este cenário, não restou outra solução senão pelos mesmos motivos por que se havia decidido no despacho de 10/2/ 2012 considerar a atuação da R. como culposa, já que tornou impossível à A. a prova que a esta incumbia por referência ao artigo 13.º da BI e, por despacho de 14/6/2015, decretou a inversão do ónus da prova, nos termos do disposto no art.º 344.º, n.º 2 do CC e 519.º, n.º 2, do CPC (hoje 417.º, n.º 2 do CPC).

  23.ª - O Tribunal "a quo" entendeu que a A., sendo uma sociedade com contabilidade organizada, tinha de ter o suporte documental completo que justificaria o montante de € 97.763,80 através de notas de comissões, de notas de encomenda ou de faturas, mas elaborou num erro, pois a A. não é, nem nunca foi a contraparte das vendas dos produtos da R. para Portugal, mormente, no período compreendido entre 3/2/1998 e 3/2/2003.

  24.ª - A A. era e sempre foi uma mera intermediária entre a R. e os seus clientes em Portugal. E, por isso, não controlava tudo, pois bastava que o cliente fizesse a encomenda diretamente à R., ou que esta não enviasse essas notas de encomenda e as faturas à A., como o fez principalmente nesse período, para que a A. já não possuísse esse suporte documental. Por isso é que nos artigos 12.º e 13.º do Dec.-Lei n.º 178/86, de 3/7, vêm estipuladas vários mecanismos de proteção do agente contra estas eventuais situações;

  25.ª - Surpreendentemente, o Tribunal "a quo " entendeu que a R. com o seu procedimento não atuou com culpa, nem tornou impossível à A. a prova que lhe incumbia por referência ao artigo 13.º da BI.

  26.ª - Mas o certo é que, a R. atuou culposamente nestes autos, pois com uma atitude deplorável não acatou nem cumpriu o ordenado pelo Tribunal, tendo usado e abusado de expedientes dilatórios, o que não devia ter feito, não se submeteu às inspeções necessárias e finalmente eliminou os documentos necessários à realização da perícia à sua contabilidade, desrespeitando, assim, gravemente o Tribunal, pelo que, não colaborou de todo com a contraparte e com o Tribunal para a descoberta da verdade material e à justa composição do litígio e agiu com culpa grave;

   27.ª - Não é verdade que a CC a fls. 790 e ss tenha juntado uma única fatura sequer de comissões devidas à A., pois só juntou notas de comissões, pelo que, ao referir o contrário o Tribunal “a quo” elaborou num erro de apreciação da prova.

  28.ª - O Tribunal “a quo”, ao não dar qualquer importância à eliminação de todos os obstáculos injustificados à obtenção de uma decisão de mérito, acabou por privilegiar uma decisão de forma em vez de ter sufragado uma decisão de fundo não cumprindo, assim, com os objetivos da reforma do CPC de 1995, como o prevê o preâmbulo do DL n.º 329-A/95, de 12/12 e, também assim, o decidiu o acórdão da Relação do Porto de fls., de 22/4/2008

  29.ª - Deve, pois, ser revogado este segmento do acórdão em crise, mantendo-se a decisão proferida em 1.ª Instância, pois "in casu" verificam-se todos os requisitos que implicam a inversão do ónus da prova por referência ao art.º 13.º da BI, pois a R. atuou com culpa grave e intensa e, com essa sua atitude, ao contrário do decidido pelo Tribunal “a quo” que entendeu que daí só resultou uma maior dificuldade para a A. da demonstração de tal facto, o certo é que tornou a prova que a esta incumbia por referência ao artigo 13.º da BI impossível ou, pelo menos, excessiva ou extremamente difícil, o que, como supra se alegou, é suficiente para implicar a inversão do ónus da prova.

  30.ª - A R. não logrou provar o facto inserto no art.º 13.º da BI que lhe incumbia nos termos do art.º 342.º, n.º 1, do CC e, como resultou provado que naquele período a A. recebeu de comissões a quantia de € 50.662,80, então a R. deve ser condenada a pagar à A. a diferença entre estes dois valores, no montante de € 47.101,00, acrescida de juros legais de mora desde a citação até efetivo e integral pagamento à taxa decorrente dos artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 597/05, de 19/7 a título de comissões, como assim foi decidido pelo Tribunal de 1.ª Instância que deve ser mantida.

      Vejamos.

     Como decorre do que acima se deixou exposto, para ajuizar em definitivo pela inversão do ónus da prova contra a R. sobre a matéria vertida no art.º 13.º da base instrutória, mais precisamente sobre a alegada e controvertida falta de pagamento das comissões que seriam devidas pela R. à A. nos cinco anos precedentes a fevereiro de 2003, impunha-se, desde logo, saber que comissões seriam devidas em função dos negócios, em concreto, angariados ou promovidos pela A. a favor da R., ou melhor dizendo, saber quais os negócios, alegadamente, assim negociados ou promovidos pela A. ao longo do período de tempo contratual em foco. Só perante uma tal alegação de facto é que se tornaria viável ajuizar em que medida é que o comportamento faltoso imputado à R. tornou impossível ou extremamente dificultosa a prova desses factos constitutivos do invocado direito àquelas comissões. 

     Sucede que a A., no essencial, se limitou a afirmar, de forma algo conclusiva, que “nos últimos cinco anos, que precederam a denúncia, auferiu um total de € 97.763,80”, dos quais ficaram por pagar € 47.101,00.

     Porém, não poderia a A. desconhecer, pelo menos, qual a clientela e negócios por si angariados ou promovidos por si para a R., durante o referído período temporal, em termos de ter consubstanciado adequadamente uma tal alegação, mesmo que, porventura, lhe fosse impossível ou difícil saber quais desses negócios foram outorgados pela R. em ordem a calcular a comissão de 3% sobre o respetivo valor das vendas, dados estes que incumbiria então à R. prestar-lhes nos termos do artigo 13.º, alíneas b) a d), do Dec.-Lei n.º 178/86, de 3-07.  

     De resto, na linha do salientado no acórdão recorrido, não se compreende como é que a A. apurou os cálculos tão precisos das alegadas quantias de € 97.763,80 e de € 47.101,00 sem estar na posse dos elementos sobre os negócios concluídos e seus valores. O certo é que nada disso foi alegado nos articulados e mesmo, em sede de julgamento, não se descortina que tenha logrado fazê-lo.

A este propósito, note-se que, conforme se consignou na motivação da decisão de facto da sentença da 1.ª instância (fls. 1499) a testemunha DD, que trabalhara para a A. de 2002 a 2008, exercendo as funções de empregada de escritório, ligada à contabilidade, quando questionada sobre as comissões alegadamente não pagas, respondeu que: o volume total de comissões pelas vendas dos produtos somavam 97 mil euros, dos quais foram pagos 50 e tal mil euros, ficando a diferença por pagar, tendo afirmado que o confirmara através de dossiers e que desconhecia por que razão os mesmos não foram juntos aos autos. Também a testemunha EE (fls. 1502-1503), que trabalha para a A. como técnico de marketing desde 1993, quanto ao valor das comissões de 1998 a 2003, disse ser de 100 mil euros, dos quais parte foi pago, não sabendo quanto.

Acresce que da prova produzida extrai-se que a A. não logrou sequer provar que as comissões alegadamente devidas de janeiro de 2002 a fevereiro de 2003 e incluídos nos sobreditos montantes respeitassem a negócios ou promoções angariadas pela A. para a R.. Como se observa no acórdão recorrido, dos documentos juntos a fls. 790 ss. pela CC constam diversas faturas emitidas pela A. no ano de 2002, mas que não respeitam à relação jurídica firmada com a R..

Por sua vez, a R., como também se salienta no acórdão recorrido, na sequência do acórdão do Tribunal da Relação do Porto que determinou a sua notificação para juntar os documentos que haviam sido requeridos pela A., veio juntar a 02/03/2010, o que referiu serem os comprovativos dos pagamentos das comissões feitas à A. nos anos de 1999 a 31/12/2001, apenas referindo estarem em falta os documentos relativos ao ano de 1998 por já os ter destruído e não estar obrigada a mantê-los de acordo com a legislação italiana e não ter documentos posteriores, por ter sido em 31/12/2001 que cessou a sua atividade com a A., conforme sempre alegou nos autos.

Seja como for, independentemente da imputação à R. de comportamento culposo na destruição dos documentos em referência, o certo é que não se mostra viável estabelecer uma relação de causalidade no sentido de considerar que a mesma R. tenha, desse modo, tornado impossível ou extremamente dificultosa a prova de factos que incumbia a A. produzir, pela simples razão de esta nem tão pouco ter alegado minimamente tais factos nem logrado a sua inclusão superveniente durante a instrução da causa, a coberto do disposto no artigo 5.º, n.º 2, alínea b), do CPC.

Com efeito, a inversão do ónus de prova a determinar nos termos do art.º 344.º, n.º 2, do CC, requer, antes de mais, a delimitação factual do objeto sobre que deva recair essa inversão probatória, para o que não se afigura suficiente a mera alegação genérica do total das comissões que seriam devidas nos últimos cinco anos precedentes a fevereiro de 2003.

Competia assim à A. alegar, pelo menos, os negócios por ela angariados e promovidos nos diversos anos em que perdurou a sua atividade a partir de 1998, em relação aos quais não lhe foram, alegadamente, pagas as respetivas comissões, de modo a permitir uma definição mínima do objeto sobre que pudesse então recair a inversão do ónus da prova contra a R..

E, pelo que já acima foi dito, não se afigura que a A. estivesse impossibilitada de o fazer, dado tratar-se de atividade por ela própria desenvolvida e tanto mais que apurou, em termos precisos, os valores em causa. Isto independentemente de saber se tais negócios por ela angariados ou promovidos chegaram a ser concluídos pela R., sobre o que poderia então ser determinada a inversão do ónus probatório.         

Assim, a dita “inversão do ónus da prova” determinada pela 1.ª instância não se traduz propriamente numa inversão do ónus da prova sobre factos que incumbia à A. alegar e provar, mas consistiria antes numa inversão do respetivo ónus alegatório, o que não se afigura que seja consentido, sem mais, pelo artigo 344.º, n.º 2, do CC.

Basta considerar que, a ter-se por efetivada uma tal inversão, jamais se poderia saber, afinal, a que negócios angariados ou promovidos pela A. respeitava a quantia em que a R. foi condenada a esse título pela 1.ª instância, o que inviabilizaria a determinação objetiva do alcance do caso julgado, nos termos e para os efeitos do artigo 621.º do CPC; já tal seria viável se a A. tivesse, pelo menos, alegados tais factos sobre os quais então recairia a inversão do respeito ónus probatório contra a R..

Termos em que se conclui pela improcedência da revista neste particular.    


3.3. Quanto à pretensão relativa à indemnização de clientela     

      

A A. pediu também a condenação da R. no pagamento da quantia de € 19.552,76, a título de indemnização de clientela, correspondente à média anual das comissões auferidas e devidas durante os últimos cinco anos que precederam fevereiro de 2003.

A 1.ª instância julgou parcialmente procedente tal pretensão, considerando que dos factos provados resultava que, ao longo da relação de agência estabelecida entre a A. e a R., aquela angariou para esta novos clientes, de que a mesma R. continuou a beneficiar e de que a A. ficou privada desde fevereiro de 2003, sem qualquer retribuição pelos negócios assim negociados ou concluídos.

Nessa base, muito embora considerando que da matéria de facto provada não se apurasse qual o peso concreto dessa angariação na atividade da R., dada o longo período de vigência do contrato e o elevado volume de negócios refletido no valor das comissões devidas, a 1.ª instância teve por equitativa o valor de € 10.000,00.


Por sua vez, a Relação revogou tal decisão, tecendo as seguintes considerações:

«Os últimos cinco anos que precederam a data que se refere em 11) em que a A. auferiu comissões de valor não inferior a € 50.662,80 reportam-se em parte a um período do tempo em que a mesma angariava clientes e promovia a venda dos produtos para a CC, depois da R. lhe ter comunicado a cessação do contrato, como resulta do ponto 11 dos factos provados, verificando-se aliás que o e-mail que consta de fls. 17 dos autos, declarando pôr fim ao contrato, foi enviado não pela R. mas antes pela CC, respeitando por isso a contrato com ela celebrado e não ao contrato de agência a que aludem os pontos 1 e 8 dos factos provados celebrado com a R.

Do valor das comissões auferidas pela A. não está sequer descriminado qual o montante que resulta de angariações e promoção de vendas feita para a R. no âmbito do contrato de agência com ela celebrado, das que foram feitas para a CC, empresa para a qual a A. passou a angariar clientes e a promover as vendas dos mesmos produtos, o que fez no período de Janeiro de 2002 a Fevereiro de 2003, como ficou apurado.

Em face do exposto, já se vê que os factos que resultaram provados são manifestamente insuficientes para termos como preenchidos os requisitos previstos no art.º 33.º e 34.º que permitem concluir pelo direito da A. a haver uma indemnização de clientela por parte da R.

Além do mais, a A. invoca que o contrato de agência celebrado com a R. cessou em 03/02/2003 com o envio do documento junto aos autos a fls. 17, o que não ficou provado, na medida em que tal documento não lhe foi enviado pela R., mas pela empresa CC, pessoa jurídica distinta da R., para quem a A. passou a angariar clientela e a promover a venda dos mesmos produtos, após Janeiro de 2002, tendo-lhe a R. comunicado a cessação do contrato (ainda que de forma não válida) em data não posterior a Abril de 2002; por outro lado, não ficou provado que, pela clientela que a R. veio a beneficiar indirectamente, através da actividade do seu distribuidor CC (ponto 10 dos factos provados), a A. não tenha recebido retribuição, já que o valor que se apurou das comissões por ela auferidas se reportam ao período de 5 anos antes da cessação do contrato com aquela empresa, não tendo a A. descriminado o valor das comissões auferidas em cada ano dos cinco anos anteriores, não tendo ficado apurado qualquer elemento que permita dizer qual a medida do alegado benefício da R., depois da cessação do contrato com a A.

A A. não logrou fazer prova da verificação dos elementos constitutivos do seu alegado direito à indemnização de clientela, como lhe competia, nos termos do art.º 342.º n.º 1 C.Civil, constatando-se aliás, neste aspecto, que quase nada de concreto foi alegado de modo a permitir ao tribunal concluir que após a cessação do contrato com a R. a mesma beneficiou consideravelmente da actividade desenvolvida pelo A. e que esta deixou de receber qualquer retribuição por contratos negociados ou concluídos com clientes angariados pela A. após a cessão do contrato: nomeadamente não referiu a A. quantos eram os seus clientes e quantos continuaram a manter relações comerciais com referência aos produtos da R., qual o volume de negócios que os mesmos representam para a R., etc.

A lei não se basta com a existência de um qualquer beneficio para a R. antes exigindo que a mesma venha a beneficiar de forma considerável da actividade desenvolvida pela A. e os factos provados quanto a esta questão são escassos e insuficientes para nos poderem levar a concluir que houve esse benefício considerável para a R. A mera angariação de clientela para a R. insere-se no requisito previsto na alínea a) e neste caso, embora um juízo de prognose nos dê conta da probabilidade da ocorrência de um beneficio para a R. por alguns clientes da A. terem continuado a adquirir os seus produtos ao novo fornecedor, o que é certo é que a lei exige especificamente um benefício considerável, o que implica que o ganho da R., alicerçado na actividade da A., após a cessação do contrato, se revista de alguma dimensão.

Tal como nos diz Menezes Leitão, in. A Indemnização de Clientela do Contrato de Agência, pág. 52 : “Trata-se de um pressuposto essencial, já que o fundamento da indemnização de clientela é o facto de a actividade do agente, embora enquadrada numa relação contratual duradoura, poder ter efeitos benéficos para a outra parte”.

   Ora, os factos apurados não nos permitem quantificar nem caracterizar a clientela, nem diferenciar os negócios eventualmente celebrados ou perspectivados celebrar de forma a podermos concluir que a R. teve um benefício considerável, após a cessação do contrato, devido à actividade desenvolvida pela A., conforme é requisito da alínea b) do art.º 33.º ou sequer que a mesma não tenha recebido comissões pelas vendas angariadas posteriormente, como é previsão da al. c) já que a partir de Janeiro de 2002 passou a angariar clientes e a promover a venda dos produtos da R. para outra empresa.

Finalmente, não se apuraram sequer os factos a que alude o art.º 34.º e que devem servir de ponto de partida para a fixação da indemnização de clientela, não podendo considerar-se, como se fez na sentença proferida, as comissões auferidas pela A. nos últimos 5 anos anteriores a Fevereiro de 2003, já que de acordo com os factos provados estas se referem também à angariação de clientes e promoção das vendas que a A. a partir de Janeiro de 2002 passou a fazer para a CC e não para a R., não havendo qualquer descriminação dos valores das comissões auferidas em cada ano pela A., o que também não foi alegado de forma concretizada.

Nestes termos, impõe-se a revogação da decisão recorrida que determinou o valor de € 10.000,00 a título de indemnização de clientela a prestar à A. pela R.»


     Vejamos.


O direito de indemnização de clientela encontra-se consagrado no artigo 33.º do Dec.-Lei n.º 178/86, de 03-07, na redação dada pelo Dec.-Lei n.º 118/93, de 13-04, para o que aqui releva, nos termos seguintes: 

1. Sem prejuízo de qualquer outra indemnização a que haja lugar, nos termos das disposições anteriores, o agente tem direito, após a cessação do contrato, a uma indemnização de clientela, desde que sejam preenchidos, cumulativamente, os seguintes requisitos:

a) – O agente tenha angariado novos clientes para a outra parte ou aumentado substancialmente o volume de negócios com a clientela já existente;

b) – A outra parte venha a beneficiar consideravelmente, após a cessação do contrato, da actividade desenvolvida pelo agente;

c) – O agente deixe de receber qualquer retribuição por contratos negociados ou concluídos, após a cessação do contrato, com os clientes referidos na alínea a).

         ------------------------------------------------------------------   

   3. Não é devida indemnização de clientela se o contrato tiver cessado por razões imputáveis ao agente ou se este, por acordo com a outra parte, houver cedidoa terceiro a sua posição contratual. 


Discute-se na doutrina qual a natureza ou a ratio da dita “indemnização de clientela”, propendendo uns para considerá-la como uma compensação ao agente da mais-valia por ele proporcionada ao principal através da angariação da clientela, na medida em que este continue, após o contrato, a aproveitar-se da clientela angariada; enquanto que outros lhe conferem função ressarcitória pela perda das remunerações do agente com a cessação do contrato. A primeira orientação está subjacente ao modelo alemão, ao passo que a segunda encontra-se refletida no modelo francês[5]. A legislação portuguesa alinhou claramente pelo modelo alemão[6].


Abreviando razões, seguimos de perto o ensinamento de Pinto Monteiro[7] quando afirma que a indemnização de clientela ao agente constitui:

«uma compensação pela mais-valia que este proporciona ao principal, gra­ças à actividade desenvolvida pelo primeiro, na medida em que o princi­pal continue a aproveitar-se dos frutos dessa actividade, após o termo do contrato …».

Nas palavras daquele ilustre Professor:

«não se trata, em rigor, de uma verdadeira indemnização, até porque não depende da prova, pelo agente, de danos sofridos. O que conta são os benefícios proporcionados pelo agente à outra parte, benefícios esses que, na vigência do contrato, eram de proveito comum, e que, após o seu termo, irão aproveitar apenas, unilateralmente ao principal …Mesmo que o agente não sofra danos, haverá um enriquecimento do principal que legitima e justifica uma compensação … Trata-se, pois, de uma medida mais próxima do instituto do enriquecimento sem causa do que da responsabilidade civil.»

Nessa conformidade, a cessação do contrato traduz-se num facto constitutivo do direito à dita indemnização de clientela, como decorre da locução após a cessação do contrato inserta no corpo do n.º 1, do transcrito artigo 33.º, a par dos demais pressupostos exigidos por aquele normativo[8].

Feito este breve enquadramento normativo, debrucemo-nos agora sobre o caso dos autos.


Tendo em presença o sobredito quadro de pressupostos do chamado direito de indemnização da clientela, dos factos provados, no que aqui releva, apenas se colhe que:

i) - A A. celebrou com a R. um contrato mediante o qual se obrigou a angariar clientela e correspondentes vendas de produtos especiais de aço mediante uma comissão de 3% – ponto 1.2 e 1.3;  

ii) – Na sequência desse contrato e em face de negociações ocorridas em 07/07/93, a A. continuava a angariar clientela e a promover a venda, de forma exclusiva e por período indeterminado, dos produtos da R. referidos no “anexo A”, por período indeterminado, comprometendo-se a não representar no mercado português outros produtores de aço inoxidável dentro dos produtos que a R. fabricava e de que a A. era representante em Portugal – ponto 1.4. a 1.6;

iii) – Assim, continuou a A. a angariar mais clientes para a R. a quem incumbia depois outorgar os respetivos contratos, sendo a sobredita comissão calculada sobre o produto das vendas efetuadas em Portugal e promovidas pela A. – pontos 1.7;

Provou-se também que, nos últimos cinco anos que precederam a fevereiro de 2003, a A. auferiu comissões de valor não inferior a € 50.662,80, mas não se apura qual a parcela que deste valor era devida pela R..

Desde logo, apesar de se dar por provado, genericamente, que a A. continuava a angariar mais clientes e a promover a venda dos produtos da R., não se revela totalmente claro que novos clientes ou negócios foram angariados ou promovidos, nem se terá ocorrido um aumento substancial do volume de negócios da R. com clientes já existentes, o que se deve fundamentalmente à falta de alegação concreta da A. nesse sentido.

Acresce que também não se afigura possível ajuizar se a R. veio a beneficiar, de forma considerável, dessa angariação ou promoção após a cessação do contrato, já que nem tão pouco se apura o valor das comissões devidas ou pagas pela R., no período que decorreu de 1998 até à aludida cessação do contrato entre a A. e a mesma R., pois nem se divisa qual a parcela integrada no valor de € 50.662,80 que corresponderá às comissões pagas à A. pela própria R..

Nessas circunstâncias, não existem elementos de facto minimamente suficientes que permitam concluir pelo preenchimento do requisito previsto na alínea b) do n.º 1 do citado art.º 33.º do Dec.-Lei n.º 178/86, de 03-07, o que obsta, por si só, a concluir pela existência do pretendido direito de indemnização de clientela, não se tratando assim de uma mera questão de cálculo que ainda pudesse vir a ser liquidada ulteriormente, a coberto do disposto nos artigos 358.º, n.º 2, e seguintes e 609.º, n.º 2, do CPC.       

Assim sendo, não nos resta senão concluir também aqui pela improcedência da revista nesta parte.

   

III – Decisão


Pelo exposto, acorda-se em negar a revista, confirmando-se a decisão recorrida, ainda que com fundamentação não totalmente coincidente.

As custas do recurso ficam a cargo da Recorrente.  

 Lisboa, 24 de maio de 2018


Manuel Tomé Soares Gomes (Relator)

Maria da Graça Trigo

Maria Rosa Tching

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[1] A reformulação deste enunciado impõe-se por forma a conjugar os factos dados, separadamente, como assentes na alínea D) e na resposta restritiva ao art.º 13.º da base instrutória, respeitando-se assim a substância dos juízos probatórios ali insertos.
[2] A este propósito, vide Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 2.ª Edição, 1985, pp. 455-457.   
[3] Sobre o princípio da coincidência entre o ónus de alegação e o ónus da prova, vide Vaz Serra, Estudo intitulado Provas (Direito probatório material, publicado no BMJ n.º 110, 1961, pp. 61-256 (pp. 112 e seguintes).
[4] Vide, a este propósito, Vaz Serra, Estudo citado, BMJ n.º 110, p. 112.
[5] Sobre o confronto entre os dois modelos referidos, vide Prof. Luís Menezes Leitão, A Indemnização de Clientela no Contrato de Agência, Almedina, 2006, pag. 23 e 24. 
[6] Neste sentido, vide vide Prof. Luís Menezes Leitão, ob. cit. pag. 27. 
[7] Contrato de Agência, 6ª Edição, Almedina, 2007, pag. 137 e 138.
[8] Neste sentido, vide Luís Menezes Leitão, A Indemnização de Clientela no Contrato de Agência, Almedina, 2006, pag. 42 e 43.