Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
13375/02.8TDLSB.L1.S1
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: HENRIQUES GASPAR
Descritores: PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL
CAUSA DE PEDIR
OMISSÃO DE ACTOS MÉDICOS E DE ENFERMAGEM
ESTABELECIMENTO DE SAÚDE PÚBLICO
LEGITIMIDADE PASSIVA
ARGUIDO
DEMANDADO
ESTADO
ABSOLVIÇÃO DA INSTÂNCIA
Data do Acordão: 03/08/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REJEITADO O RECURSO EM MATÉRIA PENAL
NEGADO PROVIMENTO NA MATÉRIA CÍVEL
Área Temática: DIREITO PENAL - INDEMNIZAÇÃO DE PERDAS E DANOS POR
CRIMES.
DIREITO PROCESSUAL PENAL - SENTENÇA / RECURSOS.
Doutrina: - Freitas do Amaral, Direito Administrativo, Lisboa, 1989, Vol. III,
pp. 471 e ss., p. 494.
Legislação Nacional: CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 26.º, N.º 3, 493.º,
N.º 2, 494, AL. E).
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 400.º, N.º 1, AL.
C), 414.º, N.º 2, 420.º, Nº 1, AL. B), 432.º, N.º 1, AL. B).
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGO 129.º.
DL 48051, DE 21/11/67: - ARTIGOS 2.º, 3.º.
DL 19/88, DE 21/O1: - ARTIGOS 1.º, 2.º.
DL 278/2002, DE 9/12: ARTIGO 1.º, 3.º.
LEI 67/2007, DE 31/12.
Jurisprudência Nacional: ACORDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
- DE 3/12/2009, PROC. º 73/99.7TAVIS.
- DE 14/7/2010, PROC. º 128/99.8TAVIS.
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO:
- DE 08/07/2004, PROC. º 01129/03.
- DE 07/07/2005, PROC. º 0561-05.
- DE 25/05/2005, PROC. º 0855-04.
- DE 06/06/2007, PROC. º 0295-05.
Sumário :

I - A causa de pedir no pedido cível deduzido no presente processo penal procede da prática e da omissão de actos médicos e de enfermagem, mais concretamente da omissão de cuidados e de observância de normas relativas às leges artis no tratamento da vítima no hospital; com isso, as arguidas-demandadas deram causa à morte de CM, praticando um facto ilícito qualificado como crime, sendo este facto ilícito que, na construção processual que se apresenta nos autos, estrutura a causa de pedir.
II - Ao tempo dos factos o Hospital X constituía um estabelecimento de saúde público com a natureza de pessoa colectiva de direito público, integrado do Sistema Nacional de Saúde, nos termos dos arts. 1.º e 2.°, n.º 1, do DL 19/88, de 21-01. Actualmente, aquele Hospital constitui uma sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos, nos termos do art. 1.° do DL 278/2002, de 09-12, mas sucedendo pelo art. 3° «em todos os direitos e obrigações» ao Hospital X.
III - Actos como os referidos na causa de pedir – actos materiais de prestação de cuidados de saúde em hospital público – classificavam-se, ao tempo dos factos, de acordo com a jurisprudência e a doutrina dominantes, como actos de gestão pública: a actividade dos médicos e enfermeiros ao serviço de pessoas colectivas públicas, no exercício da sua profissão tem de qualificar-se como gestão pública, não porque a sua natureza seja distinta da actividade exercida no sector privado, mas porque os primeiros estão integrados num serviço administrativo cujas regras os condicionam a ponto de só poderem actuar em equipa segundo o que for determinado pelo respectivo chefe.
IV - A responsabilidade por factos decorrentes da defeituosa prestação de cuidados de saúde em unidades hospitalares públicas estava regulada no DL 48051, de 21-11-67, que estabelecia o regime da responsabilidade por actos de gestão pública (na terminologia do diploma e da conceptualização da época), mas que, em identificação em parte substancial, tem continuidade na actual disciplina constante do «Regime» aprovado pela Lei 67/2007, de 31-11.
V - A relação jurídica que emerge na situação factual descrita na petição, e que constitui a causa de pedir, assume nos termos da lei uma formatação própria – a forma jurídica que enquadra os actos que ofendem os direitos dos demandantes, praticados por agentes públicos, em instituição pública, no âmbito de uma relação de serviço público, e no exercício das respectivas funções. Num tal enquadramento, a responsabilidade civil perante os lesados cabe ao Estado, regulada especificamente ao tempo dos factos invocados pelos arts. 2.° e 3.° do mencionado DL 48051, de 21-11-67.
VI - Invocado no pedido cível que os actos e omissões foram praticados no âmbito da prestação de cuidados de saúde em estabelecimento público de saúde, a natureza da relação jurídica que eventualmente se estabeleça, regulada no quadro do art. 2.° do referido diploma, determina que o pedido tenha de ser formulado apenas contra o Estado que, nos termos constitutivos da específica relação, será, segundo dispõe aquela norma, o único responsável.
VII - Na definição da legitimidade processual do art. 26.°, n.º 3, do CPC, os sujeitos da relação controvertida, tal como vêm configurados pelos autores, titulares do interesse relevante para efeitos de determinação da legitimidade, são os demandantes pelo lado activo, e pelo lado passivo o responsável nos termos da lei, que é o Estado, e não as arguidas na qualidade processual civil de demandadas. A circunstância de os actos ou omissões que ocorram no exercício de funções, praticados por agentes administrativos, integrarem eventualmente um crime, não modifica a natureza da relação legalmente formatada relativamente à responsabilidade civil; o regime de responsabilidade civil decorrente de facto ilícito que também constitua um crime é independente do regime e das consequências penais e é regulado pela lei civil: a indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil como dispõe o art. 129.º do CP.
VIII - Mas, «regulada pela lei civil» significa, no contexto e na economia da norma, regulada nos termos, condições, pressupostos, fontes, consequências, efeitos, imputação e responsáveis, pelos campos normativos não penais que dispuserem especificamente sobre o tipo, espécie e forma de responsabilidade civil que estiver em causa como fonte da obrigação de indemnizar; e, no caso, a relação específica – como, na essência, vem descrita, desde logo pela natureza do estabelecimento de saúde e da qualidade dos agentes – está regulada, como se salientou, nas disposições específicas que regulam a responsabilidade extracontratual do Estado e demais pessoas colectivas públicas, que são, para este feito, a «lei civil» a que se refere o art. 129.º do CP.
IX - Isto é, as demandadas não são partes legítimas, uma vez que a lei defere exclusivamente ao Estado (ao estabelecimento público de saúde que constituía, ao tempo, uma pessoa colectiva de direito público), perante os lesados, a responsabilidade, constituindo-o no lado passivo da relação configurada na petição. E nem é caso de solidariedade com os agentes administrativos, que no regime do DL 48051 só existia para os casos de terem «excedido os limites das suas funções ou se, no desempenho destas e por sua causa, tiverem procedido dolosamente», o que não vem alegado. A falta de legitimidade determina a absolvição da instância das demandadas – arts. 493.°, n.° 2, e 494.º, al. e), do CPP.



Decisão Texto Integral:

                        Acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:

             1. Em processo comum com intervenção do tribunal singular, AA, casada, médica, nascida em 04 de Março de 1948, filha de BB e de CC, natural da freguesia de S. Jorge de Arroios, Lisboa, de nacionalidade portuguesa sendo portadora do bilhete de identidade com o n°... e residente na ... e DD, viúva, enfermeira, nascida em 29 de Março de 1941, filha de EE e de FF, natural da freguesia de Carnaxide, Oeiras, de nacionalidade portuguesa sendo portadora do bilhete de identidade n°... e residente na Rua ... foram julgadas e, por decisão de 20.6.08:

— A arguida AA absolvida da prática como autora material de um crime de intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos em violação das leges artis previsto e punido pelo artigo 150° n°l e n°2 do Código Penal e condenada pela prática como autora material de um crime de homicídio por negligência previsto e punido pelo artigo 137° n° l do Código Penal na pena de duzentos e quarenta dias de multa à taxa diária de vinte e dois euros, no montante global de €5280,00.
— A arguida DD condenada pela prática como autora material de um crime de homicídio por negligência previsto e punido pelo artigo 137° n°l do Código Penal na pena de duzentos e vinte dias de multa à taxa diária de oito euros no montante global de €1760,00.

Relativamente ao pedido de indemnização cível deduzido pelos assistentes GG e HH e a lesada II, após reabertura da audiência para julgamento do pedido de indemnização civil determinada pelo Tribunal da Relação de Lisboa foi proferida decisão de 21.3.2011:

a) Condenando as demandadas AA e DD solidariamente a pagar aos assistentes HH e GG a importância de sessenta e cinco mil euros a título de indemnização pela perda do direito à vida de JJ acrescida de juros à taxa legal e anual de 4% e desde a data da presente decisão até integral pagamento. Condenando as demandadas AA e DD solidariamente a pagar aos assistentes HH e GG a importância de vinte e cinco mil euros a título de indemnização pelos danos não patrimoniais (sofrimento, dor e presciência de morte) de JJ antes de morrer acrescida de juros à taxa legal e anual de 4% e desde a data da presente decisão até integral pagamento.
b) Condenando as demandadas AA e DD solidariamente a pagar à assistente HH a importância de trinta mil euros a título de indemnização por danos não patrimoniais acrescida de juros à taxa legal e anual de 4% e desde a data da presente decisão até integral pagamento.
c) Condenando as demandadas AA e DD solidariamente a pagar ao assistente GG a importância de trinta mil euros a título de indemnização por danos não patrimoniais acrescida de juros à taxa legal e anual de 4% e desde a data da presente decisão até integral pagamento.
d) Absolvendo as demandadas AA e DD de todo o demais peticionado pelos assistentes HH e GG e demandante II.

Relativamente à co-arguida e demandada LL foi declarado extinto o procedimento criminal por prescrição e homologada desistência de instância cível.

2. Interpuseram recurso destas decisões, quanto à matéria criminal, os assistentes GG, HH e II e a arguida AA e da questão cível, ambas as arguidas.

Recurso penal interposto pela arguida AA.

Intempestividade da discordância do recorrente relativamente à nulidade da sentença

por violação do disposto nos art°s 358° e 359° do Código de Processo Penal.

Nulidade da sentença por violação do disposto nos art.s 358°, 359° e 379° do Código de

Processo Penal

Nulidade por omissão de pronuncia (art. 379° al c) do Código de Processo Penal).

Recurso de impugnação da matéria de facto provada (factos 70, 72, 73, 74 e 93).

Contradição insanável da decisão sobre a matéria de facto.

Erro notório.

Violação do Principio in dúbio pro reo.

Imputação do elemento subjectivo do crime de homicídio negligente.

Recurso penal interposto pelos assistentes.

Nulidade por omissão de pronúncia sobre o pedido de indemnização civil. Ilegitimidade ou falta de interesse em agir. Medida das penas.

Recurso da parte cível interposto pelas arguidas/demandadas AA e DD.

Questão Prévia: Ilegitimidade passiva das arguidas/demandadas.

 Valores indemnizatórios.

A ordem lógico-jurídica de conhecimento das questões impõe que se comece por conhecer das questões prévias ou incidentais, pela seguinte ordem:

Nulidade por omissão de pronúncia sobre o pedido de indemnização civil.

Ilegitimidade ou falta de interesse em agir.

Questão Prévia: Ilegitimidade passiva das arguidas/demandadas.
Intempestividade da discordância do recorrente relativamente à nulidade da sentença por violação do disposto nos art.s 358° e 359° do Código de Processo Penal.

3. O Tribunal da Relação de Lisboa decidiu:

— Não conhecer da questão da omissão de pronúncia sobre o pedido de indemnização civil;

— Por carecerem de legitimidade, rejeitar o recurso interposto pelos assistentes relativamente à escolha e medida das penas;

— Conceder provimento aos recursos relativos à condenação em indemnização cível interpostos pelas Demandadas AA e DD, julgando-as partes ilegítimas e absolvendo-as da instância, com a consequente condenação dos Assistentes/Demandantes nas custas cíveis;
— Conceder provimento ao recurso interposto por AA da parte criminal e, consequentemente, declarar nula a sentença, nos termos do art. 379° n° 1 al. b) do Código de Processo Penal, na parte respeitante à responsabilidade criminal da arguida AA, devendo a MMa juiz do tribunal a quo, dar cumprimento ao disposto no art. 359°do Código de Processo Penal, para os efeitos ali previstos e decidir em conformidade.

No  mais -  condenação  penal  da arguida DD  -  manteve a sentença recorrida.

4. Não se conformando, os assistentes GG e HH interpõem recurso para o Supremo Tribunal, com os fundamentos constantes da motivação que apresentam e que terminam com a formulação das seguintes conclusões:

1   - Do acórdão do Tribunal da Relação, proferido em 15/5/2008, que declarou competente o tribunal a quo para apreciação do pedido de indemnização cível, não resulta apenas apreciada a questão da competência territorial, mas também a questão da legitimidade, no sentido de haver legitimidade passiva das demandadas.

2    - Conforme decidiu o douto acórdão "a indiciada actuação das arguidas/demandadas, que reveste relevante censura e responsabilidade penal, não foi efectuada no âmbito do exercício de poderes de natureza pública, porquanto, o que constitui a causa de pedir e bem assim está na base do exercício da acção penal, é a clara violação dos deveres de diligência e cuidado por parte daquelas por violação das legis artis. Ou seja, o que se discute em tribunal é a actuação das arguidas por alegada falta de diligência na assistência médica e de enfermagem que conduziu à morte de uma pessoa."
3 - "A decisão recorrida parece ter ignorado que a causa de pedir tem uma origem cuja natureza é intrinsecamente privada por estar directamente relacionada com a actuação pessoal de cada uma das arguidas no exercício da sua função que por se inserir num local público não transforma a responsabilidade penal, que é subjectiva, e consequente obrigação de indemnizar numa demanda apreciável nos tribunais administrativos.

4 - "Resumindo: Concordamos que "o processo penal é, por definição, suficiente, com capacidade para acolher e decidir todas as questões relacionadas com a responsabilidade criminal do indivíduo, sendo que os benefícios decorrentes dessa solução global integrada protagonizada pelo princípio da adesão -possibilitando um menor dispêndio de meios, uma concentração da produção de prova numa só sede e evitando a contradição de julgados - são incomensuravelmente superiores ao apelo da especialização quando as normas de direito público são aqui chamadas apenas em segunda linha para definir, não a responsabilidade do funcionário, que decorre da prática de um crime mas, apenas, como forma de enquadrar a responsabilidade solidária do Estado apenas para efeitos de ser sujeito passivo da obrigação de indemnizar"."

5- Face ao teor supratranscrito, atenta a noção de legitimidade (art.26.°CPC), mediante a qual o réu é parte legítima quando tem interesse em contradizer, exprimindo-se este interesse pelo prejuízo que dessa procedência advenha, teremos forçosamente que concluir que as demandadas são parte legítima na acção tal como foi configurada pelos Assistentes e demandantes.

6- O referido acórdão transitou em julgado e por conseguinte, não pode ser alterado.
7 - Os factos que foram mais tarde objecto de concretização e precisão de circunstâncias constavam já da pronúncia.

8 - Da pronúncia consta a seguinte factualidade:
No entanto, e porque o estado de queixas e agitação do doente era tal, cerca das I9h30, a segunda arguida contactou a primeira arguida, Dra AA, a qual o tinha assistido no Recobro, sendo tal contacto efectuado telefonicamente.
A segunda arguida transmitiu então a primeira arguida que o doente continuava bastante ansioso, sentado na cama, com tossicula, referindo falta de ar e a afirmar que ia morrer.
Perante tal informação, por telefone, a primeira arguida, deu indicação à segunda arguida para administrarem ao doente 1/2 fórmula de Hidroxizina IM, ou seja, 50 mg de Atarax IM, o que foi feito.
A primeira arguida Dr.ªAA em obediência ao dever de cuidado e diligência a que estava obrigada e de que era capaz, deveria e poderia ter-se informado da extensão da cirurgia a que o doente tinha sido sujeito, e de acordo com tal informação, manter o doente em observação no recobro durante pelo menos, 24 horas com vista a despistar possíveis situações de edema da glote ou embebição hemorrágica da região epiglótica, as quais como era do seu conhecimento são raras, mas possíveis, no tipo de cirurgia a que foi sujeito o doente JJ.
A morte de JJ foi causada pela falta de cuidado e diligência da I.° arguida, Dr.ª AA que não respeitou as mais elementares regras de cuidado e prudência que regem a sua profissão - e que tinha obrigação de conhecer e respeitar - colocando assim em perigo, como colocou, a vida do doente que se encontrava ao seu cuidado.
A arguida tinha consciência de que lhe era exigida conduta conforme com essas normas, sendo-lhe previsível, como possível as consequências descritas nos autos, caso não agisse em conformidade, tendo confiado, no entanto, que tal desfecho não se daria.

Ao actuar do modo descrito bem sabia que a sua conduta era proibida por lei.

9  - Da comunicada alteração de factos consta:
(3) No que respeita ao telefonema descrito na pronúncia como tendo ocorrido entre as arguidas ... cerca das I9h30m em audiência de julgamento resultou que a segunda arguida transmitiu ainda à primeira arguida que o doente estava agitado.
4) Ainda relacionado com tal telefonema em audiência resultou que perante a informação prestada pela segunda arguida à primeira esta não se deslocou à enfermaria para observar JJ, não deu instruções para o fazer regressar ao recobro a fim de aí o observar e serem avaliados os seus parâmetros vitais, designadamente, com recurso ao monitor nem deu instruções para que fosse solicitada a presença na enfermaria de outro médico de serviço a fim de observar aquele.
5) Relacionado com a indicação, pelo telefone, de administração de V2 fórmula de hidroxizina intra muscular em audiência de julgamento resultou que a primeira arguida depois de ter dado tal indicação e ate ao momento em que a sua presença na enfermaria foi solicitada através de bip não se deslocou à mesma para observar JJ nem contactou a segunda arguida ou a enfermeira LL a fim de saber o efeito naquele da terapia por si indicada pelo telefone.

10 - O facto essencial já constava da pronuncia - o ter mandado administrar medicação por telefone, sem aferir pessoal e previamente o verdadeiro estado de saúde do paciente,
11-O que se acrescentou, na alteração de factos produzida em audiência, foi a circunstância da arguida não ter observado o paciente após ter mandado ministrar a medicamentação, o que é conclusivo.

12 - A falta de observação do doente pela arguida afere-se da restante factualidade e não carece de ser descrito autonomamente na pronúncia, por ser conclusivo.
13 - A omissão do dever de cuidado e de diligência de que era capaz e a que estava obrigada em virtude da sua qualidade de médica e funções exercidas naquele dia e naquele hospital esteve presente em toda a conduta da arguida, constando tanto da pronúncia como na douta decisão da primeira instância.
14 - Não se tratou de alteração de factos mas sim de diferente descrição e pormenorização dos factos praticados pela arguida,
15 - Na fundamentação da douta decisão, o tribunal a quo manifestou apenas uma opinião, conforme pode ler-se da sentença "na óptica deste tribunal", e tratando-se apenas de uma opinião, não pode nem deve admitir-se que extravase os seus efeitos para se proceder à qualificação da alteração como substancial.
16 - Esta opinião demonstrada de que o comportamento tido no recobro não seria revelador de uma actuação negligente, é algo com que não podemos estar mais em desacordo, pois caso a arguida tivesse actuado com a diligência que lhe era exigida durante o período do recobro, o doente não teria tido alta, uma vez que apresentou as queixas desde logo na saída do recobro para a enfermaria, vindo a falecer cerca de duas horas depois, apresentando sempre as mesmas queixas mas com crescente gravidade.
17 - É apenas a opinião do julgador manifestada na fundamentação de que no conjunto dos factos praticados pela arguida, determinado comportamento foi considerado mais hábil a provocar o desfecho produzido.
18 - Caso JJ não tivesse tido alta tão precipitada, era desnecessário faze-lo descer novamente ao recobro a fim de ser monitorizado,
conforme descrito na douta decisão, pois logo no recobro a arguida evitava a produção daquele resultado.

19 - Assim como posteriormente, caso a arguida ao ter sido contactada telefonicamente, cerca das 19h30, fosse verificar o estado do paciente em lugar de lhe mandar ministrar telefonicamente uma injecção de hidroxizina sem observar pessoalmente qual o estado de saúde dele, já aí poderia ter observado o quadro clínico e decidir qual o melhor tratamento a dar-lhe, evitando a morte do mesmo.
20 - Em toda a sua actuação a arguido agiu sem a diligência que lhe era devida, contrariamente às legis artis, tendo sido o seu comportamento causa da morte de JJ.
21 - A fundamentação da douta decisão de primeira instancia traduz a opinião de que a conduta da arguida assumiu maior gravidade após a transferência do recobro, mas trata-se apenas de fundamentação de determinados factos já existentes e descritos na pronúncia.
22 - No decurso da produção da prova não resultaram factos novos, mas tão-somente a necessidade de os descrever de determinada forma, e de os descrever mais pormenorizadamente.


23 - Acresce que a matéria da alteração resultou dos depoimentos das testemunhas apresentadas pela arguida em sua defesa.
24 - Falece também a alegação de que a conduta da arguida tenha sido praticada por omissão e apenas durante o período da enfermaria, nada mais errado, pois a omissão do dever de cuidado resultou desde sempre, e logo na alta do recobro dado pela arguida, pois de acordo com os factos constantes da pronuncia e dadas como provados, a agitação e ansiedade eram patentes no momento da transferência do recobro e conforme prova pericial prestada nos autos, num pós-operatório a ansiedade e agitação podem antever complicações muito graves e por isso, tem que se fazer uma observação directa a fim de serem despistadas.
25 - Não se pode, como pretende a arguida e o douto acórdão, dividir a actuação daquela em dois momentos distintos (recobro e enfermaria), pois interveio no processo de "assistência" do doente desde o recobro até à enfermaria, estando provada a sua omissão de cuidado em todo o processo de assistência.
26 - Existe uma assistência médica continuada da parte da arguida que deu origem ao agravamento também continuado do estado de saúde do doente, que culminou na morte deste.

27-O art. lº, f) do CPP tem de ser interpretado no seu sentido natural, de que uma alteração dos factos é substancial se vier a ter por efeito a imputação de crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis; não sucedendo isso, ela não é substancial, ficando sujeita ao regime do art. 358.°.
28 - A alegação da decisão em crise falece por completo por, desde logo, não ter qualquer correspondência legal.
29 - Ao que acresce, o facto de ter sido dado prazo para preparação da defesa, e não o ter havido oposição da arguida no prosseguimento do julgamento.

30 - Os requerimentos apresentados pela defesa, seguidamente à notificação do douto despacho que comunica alteração dos factos, vão no sentido de concordar com a natureza não substancial dos factos.
31 - Por outro lado, mesmo que de alteração substancial se tratasse, o que por mera hipótese se admite, sem conceder, a arguida deu o seu consentimento à continuação do julgamento pelos novos factos na audiência de julgamento realizada em 23/05/2008.
32 - Com efeito, no segundo requerimento que a arguida apresentou na referida audiência (23/05/2008), torna-se clara a sua concordância na continuação do julgamento pelos novos factos, nomeadamente quando diz "de facto tais factos carecem de ser provados ou não provados e portanto caberá à defesa da arguida analisar, face ao elenco das provas já produzidas e que, eventualmente, haja necessidade de produzir em face da presente alteração a defesa a tomar quanto aos mesmos".
33 - Após o que, foi-lhe dado o prazo de 10 dias para a preparação da sua defesa, com o consequente adiamento da audiência, dando cumprimento ao disposto no n.°4 do art. 359.°CPP.
34 - Por conseguinte, em razão do disposto no n.°3 do art.359.°CPP, não existe qualquer nulidade na sentença.

35    -  Deve   concordar-se   com  já     doutamente   decidido   no  Ac  STJ   de

31/10/2002, proc 03P373, in www.dgsi.pt, no sentido em que:

"... se o tribunal, ao anunciar aquela alteração do objecto do processo, deu conhecimento ao arguido, nomeadamente, dos novos factos que integrariam o crime de receptação, e, não obstante, aquele nada opôs nem nada requereu, prosseguindo, por isso, o julgamento até final, ficou garantido o exercício do contraditório e salvaguardado o direito de defesa,

E porque, nessas circunstâncias - nada tendo oposto também o MP e demais sujeitos processuais - o arguido deu o seu assentimento tácito a que o julgamento prosseguisse, o caso passou a lograr previsão adequada no artigo 359°. n.° 2, do Código de Processo Penal. Logo, o arguido ao não se ter oposto, logo, à anunciada «alteração», nem nada tendo requerido depois de dela ter sido notificado, legitimou o prosseguimento do processo, doravante com o objecto modificado.

36   - Os factos não são autonomizáveis, pois segundo Sousa Mendes "o conceito de factos autonomizáveis resume-se à possibilidade de os desligar
daqueloutros que já constituem o objecto do processo, de tal sorte que, sem prejudicar o processo em curso, sejam criadas condições para se iniciar um outro processo penal sem violação do principio
ne bis in idem (que ninguém seja julgado, no todo ou em parte, mais do que uma vez pelos mesmos factos).
37 - Ao considerar que não se pode condenar pelos factos alterados, equivale a transformar a decisão numa farsa e a descredibilizar-se o exercício da acção judicial.
38 - Desta forma não se assegura suficientemente a protecção dos bens necessária de bens jurídicos constitucionalmente tutelados, à luz do princípio da legalidade.
39 - Quanto ao princípio da legalidade, e no seguimento da problemática da alteração dos factos constantes na acusação, atente-se no seguinte excerto da autoria de Souto Moura: "Se o juiz não pudesse conhecer os factos novos e ninguém mais os pudesse vir a ter em conta, chegaríamos à conclusão de que o mecanismo processual encontrado pelo art.303.° do NCPP, estaria muito aquém duma justiça penal, dominada no aspecto substantivo também, pelo princípio da legalidade".
40 - Por conseguinte, não se constata que a arguida se tenha visto confrontada com situação nova ou diferente da vertida na pronúncia, e também não se mostra que tenha sido prejudicada ou afrontada nos seus direitos de defesa, constitucional e processualmente definidos.
41 - Tanto assim é que, no requerimento que realizou em sequencia, mostrou o seu consentimento à continuação do julgamento, requerendo prazo para preparação da defesa,
42 - E tendo-lhe sido concedido prazo para preparação da cabal defesa relativamente à alteração de factos comunicada, não se vislumbra existir qualquer nulidade em todo o procedimento, quer se considere que estejamos perante uma alteração substancial ou não.

43 - Deverá entender-se que "Não viola o princípio das garantias da defesa a norma constante do art. 358.°, n.° l CPP, interpretado em termos de - surgindo durante a audiência de julgamento em processo penal factos relevantes para a decisão de causa e que não alterem o crime tipificado na acusação, nem levem à agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis - poder o tribunal investigar oficiosamente esses factos, indicados ex novo, integrando-os no processo, desde que se faculte ao arguido a oportunidade processual de organizar, quanto a eles a sua defesa. (Ac. Do Trib Constitucional de 5 de Fevereiro de 1998, proc. N.° 373/96; BMJ, 474, 69).
44 - É de defender a opinião de José Manuel Saporiti Machado da Cruz Bucho "o direito existe para ultrapassar tensões e não para as aumentar, não podendo converter-se ele próprio numa fonte de conflitos".
45 - Ao decidir desta forma, violou o Tribunal da Relação de Lisboa o disposto nos art. l.°, al.f), art.74.°, art. 359.° n.°3, do CPP, bem como o art. 203.° (2.a parte) e art. 205.° n.°l da Constituição da Republica Portuguesa.
46 - Ao entender que houve alteração de crime praticado pela arguida, a douta decisão padece de vício de contradição da fundamentação, bem como de ilegalidade, ao abrigo do disposto no art.410.° n.°2 b) e n.°3 do CPP, devendo ser declarado tal vicio e nulidade e ordenada a sua revogação.
47 - Com efeito, não tendo havido alteração do tipo de crime, nem da medida da pena, considerando-se ter havido acordo na continuação do julgamento pelos factos novos, deve manter-se a decisão da primeira instancia e revogar-se o douto acórdão do Tribunal da Relação.
Terminam pedindo o provimento ao recurso, revogando-se o acórdão do tribunal da Relação e mantendo-se a decisão proferida em primeira instância.

5. O M°P° respondeu ao recurso interposto
pelos assistentes GG e HH.

No que respeita à vertente criminal da causa, atendendo a que "o acórdão proferido pelo TRL, em recurso, não conheceu, a final, do objecto do processo", nos termos do disposto na alínea c) do n° 1 do art. 400° do CPP, considera que não é admissível recurso do acórdão para o STJ.

6. As arguidas respondem também à motivação dos assistentes, terminando a resposta com a formulação de 54 conclusões que, em síntese, referem pelo modo seguintes a sua posição:

Que seja declarado prescrito o procedimento criminal, decretando-se a sua extinção e o consequente arquivamento, com as legais consequências; ou

            O recurso apresentado pelos assistentes relativo à decisão de ilegitimidade passiva da arguida seja julgado improcedente, mantendo-se o acórdão recorrido nos seus exactos termos, com as legais consequências;

            O recurso apresentado pelos assistentes relativo à nulidade da sentença por violação dos art.°s 358.°, 359.° e 379.° do C.P.P. seja julgado improcedente, mantendo-se o acórdão recorrido nos seus exactos termos, com as legais consequências.

7. No Supremo Tribunal, o Exmº Procurador-Geral Adjunto teve intervenção nos termos do artigo 416º do CPP, pronunciando-se pela inadmissibilidade do recurso no que respeita à matéria penal.

Notificados, as recorrentes mantêm a posição assumida sobre a recorribilidade da decisão.

8.  Na motivação, as recorrentes deferem ao objecto do recurso duas questões:

-  matéria penal: não verificação da nulidade da sentença por violação dos artigos 358.°, 359.° e 379.° do CPP, pedindo a revogação da acórdão da Relação e manutenção da decisão condenatória de 1ª instância - conclusões 7ª a 48ª,

- matéria cível: legitimidade das recorrentes – conclusões 1ª a 6ª.

9. Como salientam os magistrados do Ministério Público, o recurso relativamente à matéria penal não é admissível.

Determinando a nulidade da decisão da 1ª instância, o acórdão recorrido não conheceu, e muito menos a final, do objecto do processo.

Desse modo, o acórdão da Relação é irrecorrível, como impõem os artigos 432º, nº 1, alínea b) e 400º, nº 1, alínea c) do CPP.

Na parte em que a decisão recorrida não determinou a nulidade, mantendo a condenação da arguida DD, o recurso também não é admissível, vista a conformidade e na natureza da pena – artigo 400º, nº 1, alíneas e) e f) do CPP.

Na parte penal, o recurso tem de ser, consequentemente, rejeitado – artigos 420º, nº 1, alínea b), e 414º, nº 2 do CPP.

10. Na petição para dedução do pedido cível a causa de pedir vem construída através da alegação de uma série de acções e omissões, praticadas por pessoal médico e de enfermagem, no âmbito da prestação de cuidados de saúde no Hospital Egas Moniz – artigos 4; 6-69 e 71-80.

A causa de pedir no pedido cível deduzido no processo penal procede, assim, da prática e da omissão de actos médicos e de enfermagem, mais concretamente da omissão de cuidados e de observância de normas relativas às leges artis no tratamento da vítima no hospital; com isso, as arguidas-demandadas deram causa à morte de JJ, praticando um facto ilícito qualificado como crime, sendo este facto ilícito que, na construção processual que apresentam, estrutura a causa de pedir.

            Ao tempo dos factos o Hospital Egas Moniz constituía um estabelecimento de saúde público com a natureza de pessoa colectiva de direito público, integrado do Sistema Nacional de Saúde, nos termos dos artigos 1º e 2º, nº 1 do Decreto-Lei nº 19/88, de 21 de Janeiro. Actualmente, o Hospital Egas Moniz constitui uma sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos, nos termos do artigo 1º do Decreto-Lei nº 278/2002, de 9 de Dezembro, mas sucedendo pelo artigo 3º «em todos os direitos e obrigações» ao Hospital Egas Moniz.
Actos como os referidos na causa de pedir - actos materiais de prestação de cuidados de saúde em hospital público - classificavam-se, ao tempo dos factos, de acordo com a jurisprudência e a doutrina dominantes, como actos de gestão pública: a actividade dos médicos e enfermeiros ao serviço de pessoas colectivas públicas, no exercício da sua profissão tem de qualificar-se como gestão pública, não porque a sua natureza seja distinta da actividade exercida no sector privado, mas porque os primeiros estão integrados num serviço administrativo cujas regras os condicionam a ponto de só poderem actuar em equipa segundo o que for determinado pelo respectivo chefe (cf, v. g., FREITAS DO AMARAL, Direito Administrativo, Lisboa 1989, Vol. III, pp. 471 e ss., p. 494; e, entre ouros, os Acórdãos do STA de 08-07-2004, Proc. n.° 01129/03; de 07-07-2005, Proc. n° 0561-05; de 25-05-2005, Proc. n.° 0855-04 e de 06-06-2007, Proc. n.° 0295-05).

A responsabilidade por factos decorrentes da defeituosa prestação de cuidados de saúde em unidades hospitalares públicas estava, assim, regulada no Decreto-Lei nº 48051, de 21 de Novembro de 1967, que estabelecia o regime da responsabilidade por actos de gestão pública (na terminologia do diploma e da conceptualização da época), mas que, em identificação em parte substancial, tem continuidade na actual disciplina constante do «Regime» aprovado pela Lei nº 67/2007, de 31 de Dezembro.

A relação jurídica que emerge na situação factual descrita na petição, e que constitui a causa de pedir, assume nos termos da lei uma formatação própria – a forma jurídica que enquadra os actos que ofendem os direitos dos demandantes, praticados por agentes públicos, em instituição pública, no âmbito de uma relação de serviço público, e no exercício das respectivas funções.

Num tal enquadramento, a responsabilidade civil perante os lesados cabe ao Estado, regulada especificamente ao tempo dos factos invocados pelos artigos 2º e 3º do Decreto-Lei nº 48051, de 21 de Novembro de 1967. Dispõem:

1. “O Estado e demais pessoas colectivas públicas respondem civilmente perante terceiros pelas ofensas dos direitos destes ou das disposições legais destinadas a proteger os seus interesses resultantes de actos ilícitos culposamente praticados pelos respectivos órgãos ou agentes administrativos no exercício das suas funções e por causa do seu exercício.

2. Quando satisfizerem qualquer indemnização nos termos do número anterior, o Estado e demais pessoas colectivas públicas gozam de direito de regresso contra os titulares do órgão ou os agentes culpados, se estes houverem procedido com diligência ou zelo manifestamente inferiores àqueles a que se acham obrigados em razão do cargo” - artigo 2º, e

1. “Os titulares do órgão e os agentes administrativos do Estado e demais pessoas colectivas públicas respondem civilmente perante terceiros pela prática de actos ilícitos que ofendam os direitos destes ou as disposições legais destinadas a proteger os seus interesses, se tiverem excedido os limites das suas funções ou se, no desempenho destas e por sua causa, tiverem procedido dolosamente.
2. Em caso de procedimento doloso, a pessoa colectiva é sempre solidariamente responsável com os titulares do órgão ou agente” – artigo 3º

Invocado no pedido cível que os actos e omissões foram praticados no âmbito da prestação de cuidados de saúde em estabelecimento público de saúde, a natureza da relação jurídica que eventualmente se estabeleça, regulada no quadro do artigo 2º do referido diploma, determina que o pedido tenha de ser formulado apenas contra o Estado que, nos termos constitutivos da específica relação, será, segundo dispõe aquela norma, o único responsável (cf., v. g., acórdãos do STJ, de 3/12/2009, proc. nº 73/99.7TAVIS, e de 14/7/2010, proc. nº nº 128/99.8 TAVIS).

Na definição da legitimidade processual no artigo 26º, nº 3 do CPC, os sujeitos da relação controvertida, tal como vem configuradas pelos autores, titulares do interesse relevante para efeitos de determinação da legitimidade, são os demandantes pelo lado activo, e pelo lado passivo o responsável nos termos da lei, que é o Estado, e não as arguidas na qualidade processual civil de demandadas.

A circunstância de os actos ou omissões que ocorram no exercício de funções, praticados por agentes administrativos, integrarem eventualmente um crime, não modifica a natureza da relação legalmente formatada relativamente à responsabilidade civil; o regime de responsabilidade civil decorrente de facto ilícito que também constitua um crime é independente do regime e das consequências penais e é regulado pela lei civil: a indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil como dispõe o artigo 129º do Código Penal.

Mas, «regulada pela lei civil» significa, no contexto e na economia da norma, regulada nos termos, condições, pressupostos, fontes, consequências, efeitos, imputação e responsáveis, pelos campos normativos não penais que dispuserem especificamente sobre o tipo, espécie e forma de responsabilidade civil que estiver em causa como fonte da obrigação de indemnizar; e, no caso, a relação específica – como, na essência, vem descrita, desde logo pela natureza do estabelecimento de saúde e da qualidade dos agentes – está regulada, como se salientou, nas disposições específicas que regulam a responsabilidade extracontratual do Estado e demais pessoas colectivas públicas, que são, para este feito, a «lei civil» a que se refere o artigo 129º do Código Penal.

            Isto é, como decidiu o acórdão recorrido, as demandadas não são partes legítimas, uma vez que a lei defere exclusivamente ao Estado (ao estabelecimento público de saúde que constituía, ao tempo, uma pessoa colectiva de direito público), perante os lesados, a responsabilidade, constituindo-o no lado passivo da relação configurada na petição.

            E nem é caso de solidariedade com os agentes administrativos, que no regime do Decreto-Lei nº 48051 só existia para os caos de terem «excedido os limites das suas funções ou se, no desempenho destas e por sua causa, tiverem procedido dolosamente», o que não vem alegado.

            Saliente-se que está documentado no processo (fls. 1270) que, com base nos mesmos factos e em igual construção da causa de pedir, as demandantes propuseram em 24 de Julho de 2007, no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, contra o Hospital Egas Moniz, acção administrativa comum para efectivação da responsabilidade civil extracontratual.

A falta de legitimidade determina a absolvição da instância das demandadas – artigos 493º, nº 2, e 494, alínea e) do CPP.

11. Nestes termos:

- rejeita-se o recurso relativamente à matéria penal - artigos 432º, nº 1, alínea b) e 400º, nº 1, alínea c), 420º, nº 1, alínea b) e 414º, nº 2 do CPP.

 - nega-se provimento ao recurso, confirmando-se o acórdão recorrido relativamente à matéria cível.

Supremo Tribunal de Justiça, 8 de Março de 2012

Henriques Gaspar (relator)
Armindo Monteiro