Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3460/11.0TBVFR.P1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: LOPES DO REGO
Descritores: IMPUGNAÇÃO DE PATERNIDADE PRESUMIDA
CADUCIDADE
PRAZO DA ACÇÃO INTENTADA PELA MÃE
CONSTITUCIONALIDADE
Data do Acordão: 06/20/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - DIREITO DA FAMÍLIA / FILIAÇÃO.
DIREITO CONSTITUCIONAL - DIREITOS E DEVERES FUNDAMENTAIS.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 1842.º, N.º1 ALÍNEAS A), B) E C).
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 31/1/07, P. N.º 06A4303;
-DE 21/2/08, P. N.º 07B4668;
-DE 7/7/09, P. N.º 1124/05.3TBLGS.S1;
-DE 25/3/10, P. N.º 144/07.8TBFVN.C1.S1;
-DE 19/6/12, P. N.º 297/08.8TBPVL.G1.S1.
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ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:
-N.ºS 589/07, 73/09, 593/09, 179/10 E 643/11.
Sumário :
1. A específica constelação de interesses subjacente à acção de impugnação da paternidade presumida - obrigando a articular o interesse dos cônjuges (ou ex-cônjuges) em eliminarem uma paternidade registral biologicamente inverídica com o interesse do filho, necessariamente demandado nessa acção, e cujo direito à identidade pessoal se não alcança integralmente com a sentença de impugnação, envolvendo ainda a necessidade de propor, ele próprio,  uma ulterior acção de reconhecimento judicial da paternidade, que deixe fixado juridicamente o vínculo de filiação – legitima e justifica que a acção proposta pela mãe possa ser legalmente submetida a um prazo de caducidade, não se configurando, deste modo, como necessariamente imprescritível.

2. O prazo de 3 anos, contados do nascimento do filho, não se configura como desproporcionado ou irrazoável, pelo que não é materialmente inconstitucional a norma constante da al. b) do nº1 do art. 1842º do CC.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. AA intentou, em 20 de Junho de 2011, acção de impugnação de paternidade presumida contra BB e CC, pedindo que se declarasse que o 1.º réu não é pai do 2.º réu; que se anulasse o registo de paternidade presumida do 2.º réu, constante do assento de nascimento n.º ..., do ano de 19.., e que se ordenasse o cancelamento da inscrição de paternidade do 1.º réu no referido assento de nascimento.
Como fundamento da sua pretensão, alegou a autora, em síntese, que foi casada com o réu, tendo o casamento sido dissolvido no ano de 20…; o menor CC (2.º réu) nasceu em … de Novembro de 20…, na constância do casamento da autora com o 1.º réu, pelo que, em conformidade com o disposto no n.º 1 do artigo 1826.º do Código Civil, foi lavrado assento de nascimento, onde consta que o 1.º réu é pai do menor; posteriormente, foi regulado o exercício das responsabilidades parentais, por decisão de 17.12.2009, cabendo a ambos os “progenitores” (autora e 1.º réu) o exercício de tais responsabilidades; porém, o 1.º réu não é pai do menor CC (2.º réu), já que o menor CC é filho de DD, com quem a autora mantém, desde 2007, relações sexuais regulares.
Foi nomeada curadora provisória ao menor e réu CC (fls. 38), após o que os réus foram citados, não tendo havido contestação.



Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, sendo proferida sentença a julgar verificada a excepção da caducidade do direito da autora em intentar a presente acção e, em consequência, julgando improcedente a acção.

Não se conformou a autora e interpôs recurso de apelação, que, todavia, a Relação julgou improcedente, começando por fixar a seguinte factualidade relevante:
1. Autora e réu BB foram casados entre si tendo tal casamento sido dissolvido por divórcio decretado pela Conservatória do Registo Civil de ..., por decisão de 17 de Setembro de 2009, proferida no âmbito do processo de divórcio por mútuo consentimento 10171/2009;
2. No dia 12 de Novembro de 2007 nasceu o CC, o qual tem a paternidade registada em nome do aqui réu BB e a maternidade registada em nome da aqui autora AA; (fls. 40 e 41)
3. O réu CC não nasceu fruto de relações sexuais de cópula completa entre autora e réu BB; (relatório pericial de fls. 57 e seguintes).
4. A acção foi intentada no dia 12 de Junho de 2011.

2. De seguida, pronunciando-se sobre a questão jurídica subjacente ao recurso, considerou a Relação, no acórdão ora recorrido:
A recorrente começa por admitir que a acção deu entrada decorridos mais de três anos sobre o nascimento do menor (conclusão 5.ª), restringindo o objecto do recurso à questão da constitucionalidade do referido prazo de caducidade, previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 1842.º do Código Civil.
Preceitua o artigo 1842.º do Código Civil, na redacção que lhe conferiu a Lei 14/2009, de 1 de Abril:

1 - A acção de impugnação de paternidade pode ser intentada:

a) Pelo marido, no prazo de três anos contados desde que teve conhecimento de circunstâncias de que possa concluir-se a sua não paternidade;

b) Pela mãe, dentro dos três anos posteriores ao nascimento;

c) Pelo filho, até 10 anos depois de haver atingido a maioridade ou de ter sido emancipado, ou posteriormente, dentro de três anos a contar da data em que teve conhecimento de circunstâncias de que possa concluir-se não ser filho do marido da mãe.

2 - Se o registo for omisso quanto à maternidade, os prazos a que se referem as alíneas a) e c) do número anterior contam-se a partir do estabelecimento da maternidade.
Os prazos previstos no normativo em apreço são de caducidade, de conhecimento oficioso, nos termos do n.º 1 do artigo 333.º do Código Civil, considerando que está em causa matéria excluída da disponibilidade das partes[1].
No decurso do prazo previsto na alínea b) do n.º 1 da disposição legal citada, a 2 de Abril de 2009, entrou em vigor a Lei n.º 14/2009, de 01 de Abril (art. 2.º), que alterou o referido prazo, de dois para três anos, estipulando expressamente o seu artigo 3.º, que a nova lei se aplica aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor[2].
A questão que se coloca é a de saber se o estabelecimento de um prazo de caducidade para a investigação da maternidade ou de paternidade constitui uma restrição ao direito fundamental à identidade pessoal[3] (artigo 26.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa), restrição vedada pelo artigo 18.º, n.º 2[4], da Lei Fundamental e, consequentemente, materialmente inconstitucional.


A resposta a esta questão obriga a distinguir entre restrição de um direito fundamental e um mero limite desse tal direito, distinção proposta pelo Professor Jorge Miranda nestes termos[5]:

«A restrição não se confunde com outras realidades normativas como o limite ou limite de exercício, o dever, a auto‑ruptura e, noutro plano, com a regulamentação, a concretização e a suspensão de direitos.

A restrição tem que ver com o direito em si, com a sua extensão objectiva; o limite ao exercício de direitos contende com a sua manifestação, com o modo de se exteriorizar através da prática do seu titular. A restrição afecta certo direito (em geral ou quanto a certa categoria de pessoas ou situações), envolvendo a sua compressão ou, doutro prisma, a amputação de faculdades que a priori estariam nele compreendidas; o limite reporta-se a quaisquer direitos. A restrição funda‑se em razões específicas; o limite decorre de razões ou condições de carácter geral, válidas para quaisquer direitos (a moral, a ordem pública e o bem‑estar numa sociedade democrática, para recordar, de novo, o art. 29.º da Declaração Universal).

O limite pode ser absoluto (vedação de certo fim ou de certo modo de exercício de um direito) ou relativo. Neste caso, desemboca em condicionamento, ou seja, num requisito de natureza cautelar de que se faz depender o exercício de algum direito, como a prescrição de um prazo (para o seu exercício) […]. Uma coisa é regulamentar, por (como já se disse) razões de certeza jurídica, de clarificação ou de delimitação de direitos; outra coisa é restringir com vista a certos e determinados objectivos constitucionais […]».
No caso dos autos, está em causa, como já se disse, o estabelecimento de um prazo de caducidade para o exercício de uma faculdade legal que se funda no direito fundamental à identidade pessoal (artigo 26º, nº 1 da CRP), cabendo-nos averiguar se o estabelecimento de tal prazo, considerando a sua duração, contende ou não com a extensão objectiva desse direito.



 Na apreciação da constitucionalidade material dos prazos de caducidade no domínio da investigação de paternidade, o Tribunal Constitucional tem posto o acento tónico na questão de saber se o prazo fixado permite, em concreto, o exercício do direito em tempo útil ou, pelo contrário, se é de tal modo exíguo que inviabiliza ou dificulta gravemente esse exercício, tornando-se numa verdadeira restrição ao direito fundamental à identidade pessoal[6].
Nas conclusões de recurso, a recorrente funda essencialmente no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 23/2006[7], a sua pretensão recursória de recusa de aplicação da alínea b) do n.º 1 do artigo 1842.º do Código Civil, com base em inconstitucionalidade material.
No entanto, na fundamentação do aresto citado enfatiza-se o facto de a inconstitucionalidade não se reportar à existência do prazo de caducidade, mas apenas ao “concreto limite temporal” nele previsto, que sofrerá do vício imputado, apenas na eventualidade de se revelar exíguo ao ponto de inviabilizar o exercício do direito.
Mais uma vez, não falamos de restrição do direito, mas apenas dos limites desse direito, legitimados por outros valores, como a segurança jurídica.
No acórdão invocado, enfatiza-se a questão nestes termos:
«Importa começar por deixar bem vincado que, na averiguação da conformidade constitucional da solução limitativa, actualmente consagrada na norma ora em apreço, o que está em questão não é qualquer imposição constitucional de uma “ilimitada (…) averiguação da verdade biológica da filiação”. Pese embora a tese defendida pelo recorrente, de que qualquer caducidade da acção de investigação de paternidade é inconstitucional, no presente recurso está apenas em questão o concreto limite temporal previsto no artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil, de dois anos a contar da maioridade ou emancipação (portanto, no máximo, os vinte anos de idade do investigante). Não constitui, assim, objecto do presente processo apurar se a imprescritibilidade da acção corresponde à única solução constitucionalmente conforme. Antes o que está em causa é, apenas, a constitucionalidade da específica limitação prevista nesta norma, que (salvo casos excepcionais, como o da existência de “posse de estado”) exclui o direito a averiguar a paternidade depois dos 20 anos de idade: a acção “só pode ser proposta durante a menoridade do investigante ou nos dois primeiros anos posteriores à sua maioridade ou emancipação”. É este limite temporal de “dois anos posteriores à maioridade ou emancipação”, e não a possibilidade de um qualquer outro limite, que cumpre apreciar – e, consequentemente, só sobre aquele específico limite temporal, previsto actualmente no artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil, se poderá projectar o juízo de (in)constitucionalidade a proferir».
Apesar de no acórdão citado se circunscrever o seu âmbito de apreciação à questão do juízo de exiguidade do prazo [e à consequente possibilidade de tal exiguidade restringir o direito] e não à existência de prazos de caducidade nas acções de investigação e de impugnação de paternidade[8], a verdade é que se verificou uma inflexão na jurisprudência do STJ, que reiteradamente passou a emitir juízos de inconstitucionalidade sobre os aludidos prazos de caducidade, por os considerar “limitadores da possibilidade de impugnação a todo o tempo”[9].
Não é, entanto, essa a posição maioritariamente assumida pelo Tribunal Constitucional, que, várias vezes chamado a pronunciar-se, reiteradamente o fez no sentido de considerar que a fixação de prazos de caducidade para a impugnação e investigação de paternidade não fere princípios constitucionais, sendo tais princípios susceptíveis de violação, isso sim, pela exiguidade dos referidos prazos, se a mesma condicionar o exercício do direito de forma a configurar uma verdadeira restrição desse direito[10].
Refere-se no já citado acórdão do Tribunal Constitucional, n.º 626/2009, que as razões avançadas para a previsão de prazos limitativos da acção de investigação da paternidade encontram-se há muito identificadas pela doutrina portuguesa e prendem-se com a segurança jurídica dos pretensos pais e seus herdei­ros, o progressivo “envelhecimento” das provas e com a prevenção da “caça às fortunas”, e conclui-se:

«Na verdade, tendo o titular deste direito conhecimento dos factos que lhe permitem exercê-lo é legítimo que o legislador estabeleça um prazo para a propositura da respectiva acção, após esse conhecimento, de modo a que o interesse da segurança jurídica não possa ser posto em causa por uma atitude desinteressada daquele.

O estabelecimento de um prazo de caducidade para o exercício do direito à investigação de paternidade nestes casos, revela-se, em abstracto, uma limitação adequada, necessária e proporcional deste direito, para satisfação do interesse da segurança jurídica, como elemento essencial de Estado de Direito (artigo 2.º, da C.R.P.)».
 Em suma, sopesando os vários direitos e os legítimos interesses, num juízo de proporcionalidade e de adequação, tem o Tribunal Constitucional concluído pela conformidade com a Constituição, do estabelecimento de prazos de caducidade, sem prejuízo da possibilidade de censura constitucional dos mesmos, desde que não garantam o cabal exercício do direito fundamental à identidade pessoal, previsto no artigo 26º, nº 1 da CRP.
Foi esse o entendimento expresso no Acórdão 401/2011[11], onde o Plenário daquele Tribunal conclui que “a norma do artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil, na redacção da Lei n.º 14/2009, de 1 de Abril, na parte em que, aplicando-se às acções de investigação de paternidade, por força do artigo 1873.º, do mesmo Código, prevê um prazo de dez anos para a propositura da acção, contado da maioridade ou emancipação do investigante, não se afigura desproporcional, não violando os direitos constitucionais ao conhecimento da paternidade biológica e ao estabelecimento do respectivo vínculo jurídico, abrangidos pelo direitos fundamentais à identidade pessoal, previsto no artigo 26.º, n.º 1, e o direito a constituir família, previsto no artigo 36.º, n.º 1, ambos da Constituição”.
Posteriormente, no Acórdão n.º 247/2012[12], para além de reiterar o juízo de não inconstitucionalidade do artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil, na redacção da Lei n.º 14/2009, de 1 de Abril, na parte em que, aplicando-se às acções de investigação de paternidade, prevê um prazo de dez anos para a propositura da acção, o Tribunal Constitucional não julgou inconstitucional a norma da alínea b) do n.º 3 do artigo 1817º do Código Civil, quando impõe ao investigante, em vida do pretenso pai, um prazo de três anos para interposição da acção de investigação de paternidade.
Anteriormente, no acórdão n.º 65/2010[13] o mesmo Tribunal havia considerado que “a norma constante do n.º 4 do artigo 1817.º do Código Civil (na redacção da Lei n.º 21/98, de 12 de Maio), aplicável por força do artigo 1873.º do mesmo Código, na medida em que prevê, para a proposição da acção de investigação de paternidade, o prazo de um ano a contar da data em que tiver cessado voluntariamente o tratamento como filho, traduz uma restrição desproporcionada ao direito fundamental à identidade pessoal, em violação do disposto nos artigos 26.º, n.º 1, e 18.º, n.º 2, da Constituição”.
No entanto, tal juízo de inconstitucionalidade não incide sobre a existência de um prazo de caducidade, mas antes sobre a insuficiência desse prazo, traduzida numa “restrição desproporcionada ao direito fundamental à identidade pessoal”, censurada pelo Tribunal nestes termos: «precisamente pelas razões que fundamentaram a previsão de um prazo “mais alargado” para as situações em que o investigante beneficiava do tratamento como filho, se tem de concluir que o prazo de 1 ano a contar da cessação voluntária desse tratamento é, à luz dos critérios de proporcionalidade e adequação exigidos pelo artigo 18º, n.º 2, da Constituição, manifestamente insuficiente e desadequado»[14].
Regressando ao caso que nos ocupa, não merecendo censura, à luz dos princípios constitucionais, a fixação pelo legislador de prazos de caducidade para a impugnação da paternidade, haverá que questionar se o prazo em apreço, de três anos, previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 1842.º do Código Civil, é susceptível do pretendido juízo de inconstitucionalidade, por inviabilizar ou dificultar excessivamente o exercício dos direitos fundamentais à identidade pessoal e a constituir família, previstos nos artigos 26º, nº 1 e 36º, nº 1, ambos da Constituição da República Portuguesa.
Vejamos.
De acordo com o preceito em causa, a acção de impugnação de paternidade pode ser intentada pela mãe, dentro dos três anos posteriores ao nascimento.
A recorrente alegou na petição, que o 1.º réu não é pai do menor CC (2.º réu), mas sim de DD, com quem a autora mantém desde 2007 relações sexuais regulares.
Decorre do exposto que a autora sempre soube[15] que o menor CC, seu filho, era fruto das relações sexuais regulares que manteve com DD.
Dispôs de três anos para impugnar a paternidade. Eventualmente não lhe terá interessado essa impugnação nos dois anos subsequentes ao nascimento do menor, devido ao facto de a relação matrimonial se ter prolongado durante esse período.
No entanto, mesmo após a dissolução do casamento (em 17.09.2009), ainda dispôs de mais de um ano para o exercício do direito (o menor nasceu em 12.11.2007).
Como refere o Professor Mota Pinto[16], na caducidade só o aspecto objectivo da certeza e segurança jurídica é tomado em conta, o que explica a insusceptibilidade da sua suspensão, perante situações e acontecimentos justificadores da inércia do titular do direito, apenas relevantes na apreciação da prescrição.
O que assume particular relevância, face às considerações que se teceram, é o facto de os três anos se revelarem um prazo que garante o cabal exercício do direito fundamental à identidade pessoal, previsto no artigo 26º, nº 1 da CRP, traduzindo-se, em abstracto, numa limitação adequada, necessária e proporcional deste direito, para satisfação do interesse da segurança jurídica, como elemento essencial de Estado de Direito (artigo 2.º, da C.R.P.).

Foi este o entendimento prevalecente no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 523/2009[17], onde se decidiu não julgar inconstitucional a norma do artigo 1842.º, n.º 1, alínea a), do Código Civil, na medida em que limita a possibilidade de impugnação, a todo o tempo, pelo presumido progenitor, da sua paternidade.
É este o entendimento que perfilhamos, confortados pelo facto de, in casu, do mesmo não decorrer a absoluta preclusão do direito fundamental à identidade pessoal (art. 26.º, n.º 1 da CRP), considerando o disposto na alínea c) do n.º 1 do citado normativo, onde se estabelece a favor do menor, a faculdade de impugnar a paternidade até 10 anos depois de haver atingido a maioridade ou de ter sido emancipado, ou posteriormente, dentro de três anos a contar da data em que teve conhecimento de circunstâncias de que possa concluir-se não ser filho do marido da mãe.
Perante o exposto, concluímos que não merece qualquer reparo ou censura a douta decisão recorrida, não se justificando a recusa da aplicação da alínea b) do n.º 1 do artigo 1482.º do Código Civil, com fundamento em inconstitucionalidade material.

3. Inconformada com este sentido decisório, interpôs a A. a presente revista excepcional, que foi admitida com fundamento em ter como objecto questão de particular relevância social, que encerra com as seguintes conclusões:

1) No presente recurso, esta - se perante a necessidade de assegurar que a apreciação da caducidade ou não do direito de impugnar pela autora(mãe) necessária para uma melhor aplicação do direito, em virtude da não existência nos Supremo Tribunal de Justiça, acórdão que se pronuncie sobre a caducidade ou imprescritibilldade da impugnação de paternidade quando a acção é proposta pela mãe, na medida em que optando por essa última, se defende a verdade biológica quanto à paternidade (presumida) do então seu

marido, a verdade biológica e o direito à identidade do seu filho - questão cuja a apreciação é relevante juridicamente e portanto necessária para uma melhor aplicação do direito nos termos do artigo 721-A n° 1 a) do CPC

2) A relevância social perante o alarme social perante a injustiça que a tese da caducidade implica, considerando que os testes de ADN e respectivos relatórios periciais são de fácil acesso e de prova fidedigna e que a justiça por uma questão meramente formal seja incapaz de reconduzir à verdade biológica e o problema a resolver dos direitos sucessórios dos herdeiros legitimários relativamente ao pai biológico, podemos afirmar que estamos perante interesses de particular relevância social nos termos do artigo 721-A n° 1 b).

3) Este requisito, interesse de particular relevância social nos termos do artigo 721-A n° 1  b),    está tanto ou mais verificado por um argumento de maioria de razão num sistema que permite a interposição de recurso até ao Supremo quando se trata de discutir questões processuais como seja, a competência absoluta do tribunal, o caso julgado ou o valor da causa ou de um incidente (cfr. art°678.°, n.° 2, alas a) e b)), não é fácil defender que, por exemplo, uma questão relativa ao estabelecimento ou à impugnação da maternidade ou da paternidade ou uma questão respeitante ao divórcio não tenha a "particular relevância social" que justifica a revista excepcional, (neste sentido Teixeira de Sousa Reflexões sobre a reforma de recursos em processo civil (Texto correspondente à intervenção realizada na Relação de Coimbra em 12/2/2007 p. 18)

4) Estabelece a lei a presunção de paternidade, no artigo 1826 n° 1 do c. Civil, na qual se presume que o filho nascido na constância do matrimónio da Mãe tem como pai o seu Marido.

5) Contudo, o réu CC não nasceu fruto das relações de cópula completa entre a autora e o réu BB, conforme facto provado 3 da sentença e relatório pericial de fls 57 e seguintes dos autos

6) De acordo com o disposto nos art.(s) 1839° e 1841° do Código Civil pode a Paternidade do filho ser impugnada pela Mãe.

7) Podendo a acção de impugnação de paternidade ser intentada no prazo de três anos posteriores ao nascimento, conforme disposto no art. 1842° n° 1 ai. b) do Código Civil.

8) Certo que a autora intentou a acção passado 3 anos do nascimento do filho, contudo, não se pode esquecer a inércia do Ministério Público que deixou passar o prazo de caducidade de 3 anos para se julgar ilegítimo para intentar a acção de impugnação de paternidade, (conforme copia da decisão junta nos autos), estando a ser penalizada com a caducidade da acção, pela inércia de terceiros.

9) No caso concreto, estamos perante a a questão essencial a resolver no âmbito deste recurso é o da fixação do prazo de caducidade de 3 anos, nos termos do artigo 1842 n° 1 alínea b) do Código Civil, padece de inconstitucionalidade material com o fundamento no limite desproporcional, irrazoável ou inadequado face ao direito à verdade biológica que a mãe(autora) tem em ver afastada a presumida paternidade, do então seu marido, não deixa de garantir o direito à identidade do seu filho nos termos do artigo 26 n° 1 da CRP, e por via disso o afastamento da norma e não verificação da caducidade da acção

10) Ora o entendimento do acórdão recorrido propugna a não limitação desse prazo de caducidade como desproporcional, irrazoável ou inadequado, pois não decorre a absoluta preclusão do direito fundamental à identidade pessoal(artigo 26 n° 1 CRP), considerando que o preceituado na alinea c) do artigo 1842 do Código Civil, recusando a verificação da inconstitucionalidade material da referida norma com a consequente caducidade da acção.

11) A jurisprudência, de um modo geral, defende, que ao caso previsto no artigo 1842.° CC se deveria aplicar a mesma solução, uma vez que se o filho pode impugnar a paternidade, sem limitação de prazo, também o presumido pai o poderá fazer, sob pena de discriminação de um dos elos da, relação jurídico-filial, argumentando-se que o respeito pela verdade biológica sugere a imprescritibilidade não só do direito de investigar como o de impugnar, tratando-se, pois, tanto num caso como no outro, de estabelecer a paternidade biológica seguindo a doutrina do Acórdão n.° 23/2006 do Tribunal Constitucional

12) O argumento essencial do referido acórdão é que não se podem colocar desproporcionadas restrições aos direitos fundamentais à identidade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade, sustentando que "as razões que estiveram na origem da declaração da inconstitucionalidade do mencionado artigo 1817.°, n.°1, do Código Civil estão, outrossim para a disposição contida no artigo 1842.°, n.° 1 alínea c), do

mesmo Código", acabando assim por decidir pela "inconstitucionalidade da norma prevista no artigo 1842.°, n.° 1, alínea c), do Código Civil, na medida em que prevê, para a caducidade do direito do filho maior ou emancipado de impugnar a paternidade presumida do marido da mãe, o prazo de um ano a contar da data em que teve conhecimento de circunstâncias de que possa concluir-se não ser filho do marido da mãe,   por  violação  dos  artigos  26°,   n.°1,   36.°,   n.°s   1   e  18°,   n.° 2  da   CRP.

13)       Neste sentido veja se também os Acórdãos do STJ, de 14.12.2006, de 31/01/2007, de 07.07.2009 e de 25/03/2010, disponíveis in www.dqsi.pt/. de 07/07/2009, in CJ/ STJ, T. II, 2009, a pág. 168 e segs. e os Acórdãos da Relação do Porto de 24/11/2008, 15.03.2010 e de 19/04/2012 (para o caso da mãe impugnar a paternidade passado o prazo de 3 anos) também disponíveis in www.dgsi.pt/

14)       O Acórdão do STJ, de 07.07.2009, salienta o ponto primordial nesta problemática: "a valorização dos direitos fundamentais da pessoa, como o de saber quem é e de onde vem, na vertente da ascendência genética, e a inerente força redutora da verdade biológica fazem-na prevalecer sobre os prazos de caducidade para as acções de estabelecimento da filiação".

15)       Ao nível de doutrina no que diz respeito à imprescritibilidade das acções de filiação, a propósito da caducidade do direito a investigar, afirmam os professores Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira in "Curso de Direito de Família", vol. II, tomo I, 2006, pág. 139, que os tempos correm a seu favor, afirmando que:" não tem sentido, hoje, acentuar o argumento do enfraquecimento das provas; e não pode atribuir-se o relevo antigo à ideia de insegurança prolongada, porque este prejuízo tem de ser confrontado com o mérito do interesse e do direito de impugnar a todo o tempo, ele próprio tributário da tutela dos direitos fundamentais à identidade e ao desenvolvimento da personalidade. Diga-se, numa palavra, que o respeito puro e simples pela verdade biológica sugere claramente a imprescritibilidade".

16) Assim, sendo o apuramento da paternidade biológica uma dimensão do "direito fundamental à identidade pessoal".

17) Afixação deste prazo para a propositura da acção de impugnação de paternidade pela mãe do menor enferma de inconstitucionalidade, com o fundamento em que o mesmo possa estabelecer um limite desproporcional, irrazoável e/ou inadequado tendo

em vista o direito quer da mãe em ver afastada a presumida paternidade, pondo em causa, a salvaguarda do direito fundamental ao conhecimento da paternidade biológica e ao estabelecimento do respectivo vínculo jurídico.

18)       0 direito ao conhecimento das origens genéticas, e que cabem no âmbito de protecção quer do direito fundamental à identidade pessoal, consagrado no art.º 26.°, n.° 1, da CRP, quer de constituir família, plasmado no art° 36.°, n.° 1 da mesma CRP.

19)       Assim, o direito à identidade pessoal, que tal como está consagrado no art.º 26.° n.° 1 da Constituição, abrange, não apenas o direito ao nome, mas também o direito à historicidade pessoal, enquanto conhecimento da identidade dos progenitores, e poderá fundamentar por si, um direito à investigação da paternidade e da maternidade, como referem Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa Anotada, 4a Ed. Revista, Vol. I, pág. 462

20)       E sendo o "direito à identidade" um direito fundamental, de aplicação directa - art. 18° CRP - a sua valorização como direito fundamental da pessoa fazem-no prevalecer sobre os prazos de caducidade para as acções de estabelecimento da filiação.

21)       Assim, apesar do preceito formal- artigo 1842 n° 1 b), o respeito pela verdade biológica sugere a imprescritibilidade não só do direito de investigar, como o de impugnar.

22)       Estando em causa o instituto da filiação, invoca-se, pois, o direito à identidade -na vertente de se saber de onde se vem, ou de quem se vem - dos art.º s 25° n° 1 e 26° n° 1 da Constituição - que não seria devidamente acautelado se a acção que o concretiza estivesse sujeita ao dito prazo de caducidade.

23)       Não pode, também, atribuir-se relevo à antiga ideia de insegurança prolongada, porque este prejuízo tem de ser confrontado com o mérito do interesse e do direito de impugnar a todo o tempo, ele próprio tributário da tutela dos direitos fundamentais à identidade e ao desenvolvimento da personalidade.

24)       Deve assim a valorização dos direitos fundamentais da pessoa, como o de saber quem é e de onde vem, na vertente da ascendência genética e a inerente força redutora da verdade biológica, fazer-se prevalecer sobre os prazos de caducidade para as acções de estabelecimento da filiação.

25)       Princípios e disposições legais violadas ou incorretamente aplicadas (art.º 685.°-A, n.° 2 do CPC): Artigos 1839.°, 1842°, n.° 1 alínea b) do Código Civil; Artigos 18.° n° 2 , 25.°, n.° 1, 26.°, n.° 1 e 36.°, n.°s 1  da Constituição da República Portuguesa.

TERMOS EM QUE NOS MELHORES DE DIREITO: que V. Exa. (s) doutamente suprirão.

1. Deve -se julgar procedente a revista excepcional e revogar a decisão recorrida

2. Recusar a aplicação, por inconstitucionalidade material do art.º 1842°, n.° 1, alínea b), do CC, por violação do art.0 26.°, n.° 1 da CRP.

3. Em consequência do referido nos números anteriores e tendo em conta os factos provados na sentença 1ª instancia (conforme facto provado 3 da sentença e relatório pericial de fls 57 e seguintes dos autos): declarar-se que o 1º Réu não é o pai do 2º Réu; Anular-se o registo de paternidade presumida do 2º Réu, constante do Assento de nascimento n° ... do ano 20… e ordenar-se a respectiva rectificação ou cancelamento da paternidade do 1º Réu no supra referido assento de nascimento.

O MºPº apresentou contra alegação, em que sustenta a tese da não inconstitucionalidade da norma em causa.

4. O objecto do presente recurso de revista circunscreve-se, pois, à questão da constitucionalidade da norma constante da al. b) do nº1 do art. 1842º do CC ( na redacção emergente da Lei 14/09), enquanto estabelece um prazo de caducidade da acção de impugnação da paternidade presumida, desencadeada pela mãe do menor, impondo que tal acção deva ser proposta no prazo de 3 anos a contar do nascimento.
Saliente-se que, apesar do aumento da duração dos prazos de que dispõem os vários legitimados para proporem acção de impugnação da
paternidade presumida, operado pelo legislador em 2009, tal acção continua a não ser legalmente prevista como imprescritível: na verdade, os progenitores dispõem do prazo de 3 anos para desencadearem a acção, contando-se tal prazo – no caso do marido da mãe/presumido pai - do momento em que este teve conhecimento das circunstâncias de que possa concluir-se a sua não paternidade biológica; no caso da mãe, tal facto subjectivo de que depende o início da contagem do prazo respectivo ´é substituído pelo facto objectivo/ nascimento do filho ( já que o legislador justificadamente entendeu que, tendo a mãe o domínio e conhecimento dos seus contactos sexuais durante o período legal da concepção, não poderá ignorar ou desconhecer a identidade do pai biológico do seu filho); pelo contrário, no que respeita à acção movida pelo próprio filho, embora esta continue a não ser tida como imprescritível, estabelece-se uma clara ampliação do prazo de caducidade, permitindo que seja intentada nos 10 anos subsequentes à maioridade ou emancipação ou – mesmo para além de tal limite temporal – nos 3 anos subsequentes ao conhecimento subjectivo pelo filho de factos que indiciem a não paternidade biológica do pai presumido.
Ou seja: o regime vigente tutela especialmente o direito do filho a impugnar uma paternidade presumida carecida de suporte biológico, outorgando-lhe um prazo claramente maior do que aquele que concedeu aos progenitores formalmente estabelecidos para impugnarem a paternidade presumida – sem, todavia, no caso da acção do filho, ter tornado imprescritível o direito de impugnação.



A questão da constitucionalidade da norma que estabelece o prazo de caducidade do direito de impugnar tem sido suscitada particularmente a propósito da acção intentada pelo pai presumido, decorrente da previsão normativa constante da al. a) do nº1 do art. 1842º do CC.
O STJ tem-se pronunciado, em vários arestos, no sentido da inconstitucionalidade – afirmando, nomeadamente, no Ac. de 25/3/10, proferido no P. 144/07.8TBFVN.C1.S1 , a que aderiu inteiramente o recente Ac. de 19/6/12 , proferido no P. : 297/08.8TBPVL.G1.S1:

Porém, a questão crucial que a presente revista suscita tem antes a ver com a pretensa inconstitucionalidade deste prazo de caducidade da propositura da acção de impugnação da paternidade, na consideração de que o mesmo possa estabelecer um limite desproporcional ao significado que o exercício do direito de acção em causa pretende salvaguardar, na acepção de poder não garantir, adequadamente, esse valor constitucional.
No âmbito da acção de investigação de paternidade, foi declarada a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 1817º, nº 1, do CC, que prevê a extinção, por caducidade, do direito de investigar a paternidade, a partir dos 20 anos de idade do filho, em conformidade com o disposto pelo artigo 26º, nº 1, reconhecendo que o direito do filho ao apuramento da paternidade biológica é uma dimensão do “direito fundamental à identidade pessoal”, na vertente de se saber de onde se vem, ou de quem se vem, a que se reportam os artigos 25º, nº 1 e 26º, nº 1, ambos da Constituição da República (CRP), que não seria, devidamente, acautelado se a acção que o concretiza estivesse sujeita ao dito prazo de caducidade (5).
Estipula o artigo 1817º, nº 1 (6), aplicável à acção de investigação de paternidade, com as necessárias adaptações, por força do preceituado pelo artigo 1873º, ambos do CC, que “a acção de investigação de maternidade só pode ser proposta durante a menoridade do investigante ou nos dez anos (7) posteriores




à sua maioridade ou emancipação”.
Assim sendo, a questão que se coloca, no fundo, está em saber se esta doutrina é aplicável, com base no princípio ou argumento do paralelismo ou da identidade de razão, por interpretação extensiva, às acções de impugnação de paternidade, que o artigo 1842º nº 1, a), b) e c), do CC, sujeita a prazos distintos de caducidade, consoante sejam propostas pelo marido, pela mãe, ou pelo filho, respectivamente.

A propósito da hipótese concreta de a acção de impugnação de paternidade ser movida pelo filho maior ou emancipado, foi decidido, neste particular, pelo Tribunal Constitucional, que “as razões que estiveram na origem da declaração da inconstitucionalidade do mencionado artigo 1817º, nº 1, do Código Civil estão outrossim para a disposição contida no artigo 1842º nº 1, alínea c) do mesmo Código, não se antevendo que o mencionado prazo de caducidade se justifique, quer dizer, que seja necessário e proporcional face aos valores que estão em causa, sempre que uma questão de filiação é colocada e que se afaste a possibilidade do direito ser conforme à realidade em homenagem a essas restrições”.
Nesta decisão, o direito constitucional que se procurou salvaguardar foi, por isso, também, o direito à identidade, mas sem distinguir entre as situações de investigação e as de impugnação, ou seja, como aí se refere, «sempre que uma questão de filiação é colocada»”(8), sendo certo, outrossim, que a limitação temporal não encontra grande apoio na natureza, predominantemente, moral e pessoal, do estado civil, com larga repercussão de interesse geral.
Relativamente à hipótese paralela da acção de impugnação de paternidade, intentada pelo marido da mãe, decidiu, por seu turno, o Tribunal Constitucional, que “há inevitavelmente uma diferença de grau entre a investigação da paternidade, em que patentemente está em causa o direito à identidade pessoal do investigante (e relativamente ao qual a imposição de um limite temporal pode implicar a violação do direito ao conhecimento da identidade dos progenitores), e a impugnação da paternidade, em que releva a definição do estatuto jurídico do investigante em relação a um vínculo de filiação que lhe é atribuído por presunção legal”, acrescentando-se que “...não estará aqui em causa um direito à identidade pessoal, entendida no sentido há pouco explanado do direito ao conhecimento da identidade dos




progenitores (que tem apenas relevo para a acção de investigação da paternidade), mas o direito ao desenvolvimento da personalidade na dimensão de um direito de auto-conformação da identidade que não poderá deixar de ser reconhecido em relação ao presumido pai...”.
Seria, pois, como que se o direito à identidade do filho, apesar de questionado na acção, não fosse o seu objecto directo ou imediato, porquanto o processo destinar-se-ia, sobretudo, a fazer prevalecer o direito à auto-conformação da identidade do pai.


Por outro lado, diz-se, igualmente, nesta decisão, que se justificaria uma restrição à verdade biológica, que deixaria de assumir um «valor absoluto», em detrimento de outros princípios, tais como o da protecção da família conjugal, e ainda que não esteja em causa o direito à identidade do filho, justificar-se-iam os limites a esse direito, na acção de impugnação, com a prevalência de determinados outros valores (9).
De todo o modo, importa indagar se as razões aduzidas para a declaração de inconstitucionalidade do prazo de caducidade, reportada, unicamente, à modalidade da acção de impugnação de paternidade proposta pelo filho maior ou emancipado, devem valer, igualmente, para o caso de o autor da impugnação da paternidade ser o pai.
É que, também, agora, para além do autor defender um direito próprio à verdade biológica, em matéria de paternidade, e pretender esclarecer a sua posição social e jurídica, quer em relação ao filho presumido, quer em relação ao agregado familiar, quer ainda ao meio social em que se insere, está, igualmente, a garantir o direito à identidade do presumido filho, em especial, tratando-se de menor, apesar deste assumir a posição processual de réu, sendo, portanto, uma questão de filiação.
Efectivamente, o Código Civil Português entende a relação paterno-filial, no sentido restrito de filiação, exclusivamente, biológica, senão real, pelo menos, presumida (10).
Na acção de impugnação de paternidade, é, sempre, o direito à identidade da filiação, o direito a ter um pai, que está em causa, embora repartido pelo direito de o pai presumido ilidir a presunção de





paternidade que sobre ele incide, enquanto duas faces opostas de uma mesma realidade.
E, nem se diga, em sentido contrário, em nome da defesa de valores como a da segurança das relações familiares que, uma vez estabelecida uma paternidade, por presunção legal, já não é assim tão relevante saber da sua correspondência com a realidade biológica, como se à tranquilidade da boa consciência apenas interessasse a paternidade, independentemente da fonte de onde a mesma provenha.
Nem, por outro lado, se afirme, como argumento adverso, que a caducidade da acção de impugnação proposta pelo pai não impede que o filho venha, mais tarde, a instaurar a sua própria acção de

impugnação, agora sem qualquer prazo de caducidade a limitá-lo.
É que este não pode constituir um argumento decisivo, devendo antes funcionar em favor da tese da imprescritibilidade, porquanto se o filho pode impugnar a paternidade, sem limitação de prazo, também, a impugnação do presumido progenitor pode sempre ser intentada, sob pena de inaceitável discriminação de um dos elos da relação jurídico-filial.
Efectivamente, as razões de segurança jurídica, fundadas na paz social que advém dum quadro jurídico-familar estabilizado, mesmo não correspondendo à verdade biológica, deixam de fazer sentido perante o devir social.
Numa altura em que a sorte da relação jurídica de paternidade se joga na certeza da prova científica, e em que os testes de ADN são um instrumento privilegiado para alcançar esse fim, fora do sortilégio da prova testemunhal, constituiria fonte de incompreensão e de surpresa social que aquela prova ficasse prisioneira da prova por presunção, alcançada num contexto em que a realidade nada tem a ver com a verdade sociológica que está subjacente à presunção de paternidade que decorre do estipulado pelo artigo 1826º, nº 1, do CC.
Veja-se a situação inquietante em que o marido, sujeito a um acto de infidelidade da esposa, gerador de um filho, abdica de impugnar a paternidade deste, preferindo a defesa do casamento e da estabilidade familiar futura, mas é surpreendido por um novo adultério, anos depois, que o determina, então, a





impugnar aquela paternidade.
Trata-se de uma nova ética, mas que, no fundo, se reconduz à ética primordial do primado da família ou da comunidade natural, que sobreleva o escândalo de uma situação familiar com, porventura, dezenas de anos, poder vir a ser abalada, por uma acção de impugnação tardia, quando os interessados na destruição da paternidade presumida entendam não dever continuar a manter a discrepância entre a paternidade presumida e a realidade biológica, devendo, então, “a perempção ceder perante alterações excepcionais e graves da vida familiar que tornem injusta e inútil a subsistência do vínculo”(11).
É que a permanência de um vínculo que o impugnante não quer pode trazer mais inconvenientes do que vantagens para o filho, em virtude da presença de um pai contrafeito e da impossibilidade de investigar a paternidade verdadeira (12), prejudicando o marido a quem a mulher foi infiel e o próprio filho, que fica


com um pai que impugnou a paternidade (13).
Com efeito, os desenvolvimentos da genética vêm acentuado a importância dos vínculos biológicos e do seu determinismo, tendo o “direito fundamental à identidade pessoal” e o “direito fundamental à integridade pessoal” adquirido uma dimensão mais nítida, associados ao “direito ao desenvolvimento da personalidade”, introduzido pelo artigo 26º, nº 1, da CRP, oriundo da revisão constitucional de 1997, consubstanciando-se num direito de conformação da própria vida, num direito de liberdade geral de acção, cujas restrições têm de ser, constitucionalmente, justificadas, necessárias e proporcionais (14).
É, por isso, que, valendo o direito ao livre desenvolvimento da personalidade (15), quer para o pretenso filho, como para o suposto progenitor, aquele princípio constitucional significa que para o primeiro o exercício do direito de investigar é indispensável para determinar as suas origens, a sua família e a sua “localização” no sistema de parentesco (16), enquanto que para o pai se traduz no direito de ilidir a presunção de paternidade atentatória da verdade biológica que se impunha afastar.
De facto, os tempos correm a favor da imprescritibilidade das acções de filiação, por imperativo da




verdade biológica, não tendo sentido, hoje, acentuar o argumento do enfraquecimento das provas, nem da insegurança prolongada, porque este prejuízo tem de ser confrontado com o mérito do interesse e do direito de impugnar a paternidade, a todo o tempo, ele próprio tributário da tutela dos direitos fundamentais à identidade e ao desenvolvimento da personalidade (17).
Efectivamente, os prazos de caducidade nas acções de estabelecimento de filiação estão em crise ou tornaram-se menos sedutores, sobretudo quando a caducidade não visa proteger uma realidade com consistência familiar efectiva, um vínculo de filiação “social” que desempenhe as suas funções, um vínculo que se exprima por «posse de estado», apesar de lhe faltar o fundamento biológico, tornando-se a previsão de um prazo com os fins típicos e abstractos da defesa e segurança, pouco convincente nestas matérias (18).
Deste modo, o respeito puro e simples pela verdade biológica sugere, claramente, a imprescritibilidade não só do direito de investigar como do direito de impugnar.
Enquanto a ordem jurídica nacional continuar a ser de matriz, essencialmente, biologista, é espectável que o direito de pesquisar a verdade não caduque, devendo o Direito da Filiação adequar-se à verdade

biológica, por, apesar de tudo, ser ainda a “mais verdadeira”(19), ou, então, dito de outro modo, a menos imprevisível, que busca a coincidência entre o Direito e as realidades do sangue, em vez de procurar garantir o estatuto de filho “legítimo” e um certo entendimento da “paz das famílias”.
Esta é a solução que está de acordo com a tendência moderna e dominante, embora não pacífica, em direito comparado, de sobrepor às exigências da segurança jurídica, da eficácia das provas e da estabilidade das situações familiares adquiridas aquele interesse público da procura da verdade biológica, quando, não obstante a subsistência jurídica da família conjugal e do vínculo da paternidade, o estado civil do filho não tem correspondência social, familiar e afectiva (20).
Assim sendo, as razões que estiveram na origem da declaração da inconstitucionalidade do artigo 1817º, nº 1, estão, outrossim, presentes na disposição contida no artigo 1842º, nº 1, a), ambos do CC.
Ora, não se antevê que o mencionado prazo de caducidade se justifique, seja necessário e proporcional, face aos valores que estão em causa, sempre que uma questão de filiação é colocada, e que se afaste a possibilidade do direito ser conforme à realidade, em homenagem a essas restrições.
O prazo para o exercício do direito de impugnação traduz mais uma hora de reflexão para a opção a tomar pelo interessado do que o tempo de preparação da prova para lograr em juízo o triunfo da verdade (21).
A valorização dos direitos fundamentais da pessoa, tais como o de saber quem é e de onde vem, na vertente da ascendência genética, e a inerente força redutora da verdade biológica, prevalecem sobre a ideia da existência de prazos de caducidade nas acções de estabelecimento da filiação.
Por seu turno, a impugnação deduzida pelo autor, relativamente à paternidade presumida da ré menor, no que concerne à substância de um casamento que não chegou a durar sete anos e de uma coabitação inferior a quatro, não agride um estado jurídico e social prévio, dotado de uma longevidade e densidade consideráveis (22), não se mostrando sujeito a uma particular censura jurídico-constitucional, face à justificação de fundo apresentada, em que não releva sobremaneira a inércia ou o desinteresse daquele (23).
O único interesse que poderia invocar-se em contraponto ao direito fundamental do marido da mãe em determinar, juridicamente, a verdadeira paternidade biológica da menor CC, seria o da «harmonia e estabilidade da vida e da família conjugal», se o mesmo, porém, devesse prevalecer, face ao princípio da proporcionalidade, pois que tais limitações específicas ao direito de agir contra os supostos filhos de progenitores casados, ao tempo do nascimento ou apenas no momento do seu reconhecimento, não se traduzem em efeitos discriminatórios, constitucionalmente, vedados.
Efectivamente, as desvantagens que advêm para a menor da perda da possibilidade de vir a ter a paternidade fundada em presunção legal são menores e, claramente, proporcionadas, perante os benefícios resultantes para o autor de uma paternidade assente na correspondência com a verdade biológica, estabelecida e, devidamente, registada, em relação à menor, mas que depende, impreterivelmente, do afastamento daquela presunção legal que, uma vez removida, permitirá a fixação de outra, desta vez, biológica, e não já por presunção.
Caso procedesse a caducidade do direito de impugnação, por parte do marido da mãe, cercear-se-ia, em definitivo, o direito fundamental do autor à identidade pessoal e, correlativamente, do filho a ver reconhecida a paternidade biológica.
Aliás, face à pluralidade das pessoas a quem a lei hoje confere legitimidade para impugnar a paternidade presumida e à diversidade de prazos dos vários titulares da legitimidade activa para o efeito, isto é, três anos contados desde que teve conhecimento de circunstâncias de que possa concluir-se a sua não paternidade, para o marido da mãe, dentro dos três anos posteriores ao nascimento, para a mãe, e até 10 anos depois de haver atingido a maioridade ou de ter sido emancipado, ou, posteriormente, dentro de três anos a contar da data em que teve conhecimento de circunstâncias de que possa concluir-se não ser filho do marido da mãe, para o filho, por força do disposto pelo artigo 1842º, nº 1, a), b) e c), do CC, a opção pela paternidade presuntiva não poderá ter-se como consolidada antes de terem caducado todos os direitos de impugnação atribuídos aos seus diferentes titulares.
E, a aceitar-se, tão-só, a inconstitucionalidade do prazo de caducidade da acção de impugnação de paternidade, por parte do filho, então, jamais se perfeccionaria a opção pela paternidade presuntiva.
Escoam-se, assim, com o devido respeito, os argumentos que ainda pretendem sustentar a constitucionalidade do prazo de impugnação da paternidade presumida nas acções intentadas pelo marido da mãe.
Conclui-se, pois, que a norma prevista no artigo 1842º, n.º 1, a), do CC, na dimensão interpretativa explicitada, é inconstitucional, por violação do direito à tutela judicial efectiva, na parte em que prevê o prazo de três anos para o marido da mãe intentar a acção de impugnação da paternidade, desde que teve conhecimento de circunstâncias de que possa concluir-se que não era o pai biológico, e bem assim como do estipulado pelos artigos 26º, nº 1, 36º, nº 1, e 18º, nº 2, da CRP.
Logo, o prazo do artigo 1842º, nº 1, a), do CC, na medida em que é limitador da possibilidade de o presumido progenitor impugnar, a todo o tempo, a sua paternidade, constituindo uma salvaguarda desproporcional dos valores de certeza e segurança jurídica que visam evitar a manutenção de uma situação de pendência ou dúvida acerca da filiação, por períodos, excessivamente, longos, face à defesa do direito constitucional à identidade, consagrado pelo artigo 26º, nº 1, da CRP, é inconstitucional, razão pela qual não ocorre a caducidade da acção (24).


No mesmo sentido, podem citar-se ainda os Acs. do STJ de 7/7/09 (P. 1124/05.3TBLGS.S1), de 21/2/08 (P.07B4668) e de 31/1/07 ( P.06A4303).

Esta orientação jurisprudencial acabou, porém, por não se consolidar na ordem jurídica, já que a recusa de aplicação, fundada em inconstitucionalidade, originou naturalmente a obrigatória interposição do recurso de fiscalização concreta previsto na al. a) do nº1 do art. 70º do TC, firmando-se no TC entendimento oposto sobre tal matéria, ao decidir que o prazo referido na referida al. a) do nº1 do art. 1842º não viola qualquer preceito ou princípio constitucional: vejam-se, nomeadamente, os Acs. 589/07, 73/09, 593/09, 179/10 e 643/11, proferidos pelo TC precisamente  sobre precedentes juízos desaplicativos daquela norma pelo STJ – e em
que reiteradamente se vem concluindo no sentido da sua não inconstitucionalidade.

Saliente-se, por exemplo, a linha argumentativa seguida no Ac.589/07, a que têm aderido muitos arestos posteriormente proferidos pelo TC:

A questão que se coloca no presente processo é, pois, a de saber se as considerações que conduziram o Tribunal Constitucional a declarar a inconstitucionalidade da norma do artigo 1817º, n.º 1, do mesmo Código, aplicável à acção de investigação de paternidade, são plenamente transponíveis para a apreciação do prazo de caducidade previsto naquela outra disposição legal, que, diferentemente, se refere à propositura de acção de impugnação de paternidade.

3. Antes de mais, afigura-se necessário sublinhar – tal como faz o Exmo magistrado do Ministério Público na sua alegação – que as acções com incidência no estabelecimento da paternidade estão subordinadas a um regime jurídico diferenciado, mormente no tocante aos prazos de caducidade.

Quanto ao reconhecimento judicial da paternidade, através da falada acção de investigação, o artigo 1869º atribui legitimidade activa apenas ao filho, que, nos termos do artigo 1817º (por via da remissão operada pelo artigo 1873º) poderia propor a acção durante a menoridade ou nos dois primeiros anos posteriores à sua maioridade ou emancipação. O prazo limite, que corresponde, em regra, ao momento em que o investigante atinge 20 anos de idade, é estritamente objectivo, na medida em que se conta a partir de um evento pré-determinado (o momento em que o investigante atinge a plena capacidade jurídica) e que torna irrelevante, em princípio, um conhecimento subjectivo tardio do vínculo biológico em que assenta a filiação que o filho pretende estabelecer juridicamente. Só nos casos excepcionais, regulados nos nºs 2 a 6 desse preceito legal, é que poderia relevar juridicamente, para efeitos de caducidade, certo facto produzido ulteriormente ao momento em que se consumou a maioridade ou a emancipação do investigante, caso em que o prazo para a propositura da acção (que fica então reduzido a um ano) se conta a partir desse evento: a remoção de registo inibitório, por efeito da rectificação, declaração de nulidade ou cancelamento do registo (n.º 2); o acesso a escrito em que se declara inequivocamente a paternidade (n.º 3); alteração da relação fáctica ou social que pressuponha o reconhecimento informal de tal vínculo, seja por efeito da morte da mãe ou do investigante, quando este em vida fosse tratado voluntariamente como filho, seja por efeito da cessação voluntária do tratamento como filho (n.ºs 4 e 5).

No que se refere à acção de impugnação de paternidade – que visa a impugnação da paternidade presumida do filho nascido ou concebido na constância do matrimónio da mãe –, o artigo 1842º do Código Civil, não só amplia o critério de legitimidade, uma vez que permite que a acção possa ser proposta autonomamente pelos diversos titulares da relação jurídica (o marido, a mãe e o filho), como também estabelece prazos de diferente duração e modo de contagem. O marido da mãe beneficia de um prazo de 2 anos, contado da data em que teve conhecimento de factos ou circunstâncias de que possa concluir-se a sua não paternidade, e, portanto, sem qualquer limite objectivo. A mãe do menor dispõe do mesmo prazo de 2 anos, mas contado do facto objectivo do nascimento, pressupondo o legislador, naturalmente, que a mãe do menor não poderá razoavelmente ignorar a inexistência do vínculo biológico por parte do marido. O filho poderá propor a acção no prazo de 1 ano, que se conta a partir do momento em que atingiu a maioridade ou a emancipação ou, uma vez adquirida essa situação jurídica, a contar do conhecimento das circunstâncias de que possa concluir-se não ser o impugnante filho do marido da mãe.

Por sua vez, para a acção de impugnação da perfilhação – visando a impugnação do acto jurídico de reconhecimento de filho não nascido na constância do matrimónio -,  o artigo 1859º prevê um regime aberto de legitimidade activa e de imprescritibilidade da acção, em que se destacam os seguintes aspectos: (a) a impugnação tem como fundamento a falta de correspondência à verdade no acto de perfilhação (e, portanto, a inexistência de uma filiação biológica); (b) a acção poderá ser proposta a todo o tempo, e mesmo depois da morte do perfilhado; (c) tem legitimidade para a propor o perfilhante, o perfilhado, o Ministério Público, e qualquer pessoa com interesse moral ou patrimonial na procedência da acção, aqui se incluindo as pessoas que sejam prejudicadas nos seus direitos sucessórios com o chamamento do perfilhado à herança do perfilhante e quaisquer parentes do perfilhante que, independentemente da sua posição como seus herdeiros, tenham interesse em afastar o perfilhado da família comum.

A lei, por outro lado, distingue a impugnação da perfilhação (que tem como fundamento autónomo a falta de verdade biológica) dos casos de anulação, a que se referem as disposições subsequentes, e que se baseia na existência de vícios de consentimento (erro ou coacção) ou na falta de capacidade do perfilhante (artigos 1860º e 1861º).

Assiste-se, por conseguinte, no âmbito da impugnação da perfilhação, a um alargamento da legitimidade activa ao Ministério Público e a pessoas que tenham um mero interesse moral na procedência da pretensão (bem como a própria inexistência de um prazo de caducidade para a propositura da acção), que é bem demonstrativo do interesse público de que se reveste, na área da filiação fora do casamento, a regra da coincidência da filiação com a realidade biológica da procriação (neste sentido, Pires de Lima/Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. V, Coimbra, 1995, pág. 267).

A diversidade de regimes, acabada de expor, e, em especial, o confronto da solução legal prevista para a impugnação da perfilhação com os critérios mais restritivos do artigo 1842º (em que se mantém a regra da caducidade do direito de impugnação da paternidade presuntiva e se restringe o direito de acção ao núcleo de pessoas mais directamente interessadas), põe em destaque o relevo que o legislador confere ao interesse geral da estabilidade das relações sociais e familiares e ao sentimento de confiança em que deve basear-se a relação paternal, quando se trate de filhos nascidos na vigência do matrimónio.

Na perspectiva do legislador, nas situações de paternidade presumida, a necessidade de salvaguardar a harmonia e paz familiar explicam que a ordem jurídica aceite a relação de filiação como definitivamente adquirida, a partir de determinado momento, embora sabendo que ela pode não corresponder à realidade biológica normalmente subjacente ao vínculo de paternidade (Pires de Lima/Antunes Varela, ob. cit., pág. 210); ao contrário, a descoberta da verdade é erigida em interesse público, numa área de filiação em que se não coloca em perigo a estabilidade da família legalmente constituída, como ocorre em relação à impugnação da perfilhação. 

Por outro lado, como vimos, são, não já exigências cautelares da família conjugal, mas considerações ligadas à certeza e segurança jurídica, enquanto valores de organização social - a que se associam outros aspectos atinentes à eficácia das provas e à possível instrumentalização do direito de acção - que justificaram, do ponto de vista legislativo, o estabelecimento de um prazo de caducidade para investigação da paternidade, surpreendendo-se, por isso, aqui também, uma diferença específica na razão de ser da lei que motivou a fixação de um limite temporal quer para a acção de investigação de paternidade, tal como previsto no citado artigo 1817º (aplicável por força do artigo 1873º), quer para a acção negatória de paternidade, a que se refere o artigo 1842º, n.º 1, alínea a).

E foram aquelas considerações que, no acórdão n.º 486/04, se entendeu não poderem hoje prevalecer relativamente ao conteúdo essencial do direito fundamental à identidade pessoal, que inclui o direito ao conhecimento da ascendência paterna, quando está em causa a investigação da paternidade.

4. O acórdão recorrido delimita o objecto do recurso de revista como sendo respeitante à questão de saber se o direito de acção de investigação de paternidade por parte do progenitor presumido se encontra limitado pelo prazo de caducidade do artigo 1842º, n.º 1, alínea a), do Código Civil quando se encontre cientificamente provado que o menor não é filho do demandante.

Embora a questão surja assim equacionada, o certo é que a decisão proferida, ao formular um juízo de inconstitucionalidade da referida norma, não reflecte essa dimensão normativa.

Isto é, o acórdão recorrido desaplicou a norma apenas para o caso em que tenha ficado demonstrado que o impugnante não é o pai natural do menor, mas declarou a inconstitucionalidade por entender que o preceito, fixando um prazo de caducidade, viola o direito fundamental à identidade pessoal e o direito ao desenvolvimento da personalidade.

Neste contexto, o princípio da verdade biológica, a que o acórdão faz alusão, funciona apenas como um argumento redutor de quaisquer considerações de política legislativa que pudessem justificar o estabelecimento de um prazo de caducidade para a acção de impugnação, permitindo assim afastar as razões que, na óptica do legislador, poderiam ter determinado a perempção do direito de acção.

Ainda que a lei consagre, hoje, a possibilidade de realização extrajudicial de exames científicos que possam conduzir, com um grande índice de segurança, a uma afirmação pericial de paternidade (artigos 2º, alínea i), e 29º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 11/98, de 24 de Janeiro), o certo é que a destruição de um vínculo de filiação já estabelecido ficará sempre dependente da competente acção de impugnação de paternidade, pelo que o esclarecimento da verdade biológica (quando alcançado extrajudicialmente) poderá ficar sem consequências práticas se o presumido pai não intentar a acção destinada a demonstrar judicialmente a falsidade do vínculo (Pereira Coelho/Guilherme de Oliveira, Curso de Direito de Família, vol. II. Tomo I, Coimbra, pág. 40).

A procedência ou improcedência da acção depende, por sua vez, da utilização que as partes possam fazer de meios de prova que sejam susceptíveis de dissipar a dúvida do julgador relativamente aos factos carecidos de demonstração, tendo pleno cabimento, independentemente do grau de fiabilidade das provas, os princípios do funcionamento do ónus da prova (artigo 516º do Código de Processo Civil) e da livre convicção do juiz (artigo 655º do Código de Processo Civil).

Nestes termos, embora se possa afirmar, no domínio do direito da filiação, a existência de um princípio de verdade biológica, que decorre desde logo da abertura que o legislador deu, na reforma do Código Civil de 1977, à utilização como meios de prova, nas acções relativas à filiação, de «exames de sangue e quaisquer outros métodos cientificamente comprovados» (artigo 1801º do Código Civil), o certo é que esse princípio, ainda que possa entender-se como um critério estruturante do regime legal, não assume dignidade constitucional (idem, pág. 52) e não pode fundamentar, por si só, um juízo de inconstitucionalidade relativamente à norma que fixa um prazo de propositura da acção de impugnação da paternidade.

O enfoque em que se poderá colocar a questão de constitucionalidade é, portanto, o da possível violação, na fixação normativa desse prazo, dos falados direitos fundamentais à identidade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade.

5. Como tem sido entendido, o direito à identidade pessoal, tal como está consagrado no artigo 26º, n.º 1, da Constituição, abrange, não apenas o direito ao nome, mas também o direito à historicidade pessoal, enquanto conhecimento da identidade dos progenitores, e poderá fundamentar, por si, um direito à investigação da paternidade e da maternidade (Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4ª edição revista, vol. I, Coimbra, pág. 462). Num outro registo, a identidade pessoal, sendo o que caracteriza cada pessoa enquanto unidade individualizada que se diferencia de todas as outras pessoas por uma determinada vivência pessoal, inclui também o direito à identidade genética própria e, por isso, ao conhecimento dos vínculos de filiação, no ponto em que a pessoa é condicionada na sua personalidade pelo factor genético (Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, Coimbra, 2005, págs. 204-205).

Como se afirmou no acórdão n.º 456/03, já mencionado, «[T]al direito inclui no seu conteúdo essencial a possibilidade de qualquer pessoa tomar conhecimento da sua ascendência, nomeadamente, da sua filiação natural. Nessa medida, a lei consagra os mecanismos judiciais que visam efectivar o exercício de tal direito, permitindo a investigação da filiação (maternidade, paternidade), de modo a que todos os indivíduos tenham a possibilidade de identificar os seus progenitores para, entre outros fins, ser estabelecido o vínculo de filiação jurídica com base no vínculo biológico».

A revisão constitucional de 1997 passou também a consagrar constitucionalmente, no mesmo preceito, o direito ao desenvolvimento da personalidade. Este assegura uma tutela mais abrangente da personalidade, que inclui duas diferentes dimensões: (a) um direito à formação livre da personalidade, que envolve a liberdade de acção de acordo com o projecto de vida e capacidades pessoais próprias; (b) a protecção da integridade da pessoa em vista à garantia da esfera jurídico-pessoal no processo de desenvolvimento. Neste plano, o desenvolvimento da personalidade comporta uma liberdade de autoconformação da identidade, da integridade e da conduta do indivíduo, e nele se pode incluir, além de muitos outros elementos, um direito ao conhecimento da paternidade e da maternidade biológica (Gomes Canotilho/Vital Moreira, ob. cit., pág. 463-464).

Como vimos, a lei prevê a prescritibilidade da acção de investigação de paternidade tal como da acção de impugnação de paternidade. As razões que terão estado na definição desse regime jurídico prendem-se, como se anotou, com o inconveniente da manutenção de uma situação prolongada de insegurança e o perigo de enfraquecimento das provas com a passagem do tempo, a que acresce, no que toca especialmente à impugnação da paternidade do marido, um outro motivo relacionado com a necessidade de proteger a unidade familiar.

Como se concluiu no aresto há pouco citado, como decorrência do direito fundamental à identidade pessoal, a consagração de limites ao exercício do direito a ver reconhecida a filiação natural não poderá inutilizar esse direito. Isto é, independentemente de ser ou não constitucionalmente criticável a possibilidade de consagração de limites, nomeadamente temporais, ao exercício do direito de instaurar a acção de investigação de paternidade, não é já, seguramente, admissível a criação de um limite que, na prática, vede, em absoluto, a possibilidade de o sujeito averiguar o vínculo de filiação natural.

Esse princípio foi reafirmado pela jurisprudência constitucional, de forma mais abrangente, em relação ao prazo-regra do artigo 1817º, n.º 1, do Código Civil (aplicável à acção de investigação de paternidade por força do artigo 1873º), em termos tais que veio, mais tarde, a ser declarada, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade dessa referida norma.

O acórdão n.º 486/04, que inaugurou essa jurisprudência, não deixou, todavia, de vincar que o que estava então em causa era o concreto limite temporal previsto no artigo 1817º, n.º 1, do Código Civil (pelo qual ao investigante está vedado propor uma acção de investigação de paternidade para além do prazo de dois anos a contar da maioridade ou emancipação), e não a questão de saber se a imprescritibilidade da acção corresponde à única solução constitucionalmente conforme.

Do referido acórdão não se pode, portanto, extrair a ilação de que qualquer regime de prescritibilidade legalmente consagrado para as acções relativas ao estabelecimento do vínculo de filiação se encontra ferido de inconstitucionalidade. E não é possível, sem mais, aceitar o princípio de que as considerações avançadas para sustentar a inconstitucionalidade do prazo de caducidade previsto para a acção de investigação de paternidade são também válidas para o prazo fixado no artigo 1842º, n.º 1, alínea a), para a impugnação de paternidade por parte do pai presumido.

O próprio acórdão n.º 486/04 reconhece – no excerto há pouco transcrito - que, embora tanto o pretenso filho como o suposto progenitor possam invocar um direito à identidade pessoal ou ao desenvolvimento da personalidade, a tutela da personalidade e da liberdade de acção pesa mais para o lado do filho, para quem o exercício de investigar é indispensável para determinar as suas origens, dando assim guarida à ideia de que os prazos de caducidade da acção de investigação de paternidade e da acção de impugnação de paternidade não têm de ser analisados necessariamente sob o mesmo prisma .

Este ponto de vista é também realçado pelo magistrado do Ministério Público na sua alegação de recurso. Sendo a acção de impugnação de paternidade intentada pelo marido da mãe, não pode invocar-se, como obstáculo potencial à respectiva caducidade, o direito fundamental do filho ao apuramento da respectiva filiação biológica, porquanto a eventual caducidade de direito de acção pelo transcurso do prazo previsto no artigo 1842º, n.º 1, alínea a), em nada afecta naturalmente a possibilidade de o filho, ulteriormente, através de quem o represente ou por iniciativa própria, no prazo de 1 ano a contar da maioridade ou emancipação, intentar a sua própria acção, não necessitando de suportar na sua esfera jurídica a preclusão derivada do “atraso” na impugnação por parte do outro sujeito legitimado (o marido da mãe).

O que está, deste modo, em causa é saber se a norma que constitui objecto do presente recurso viola um direito fundamental à identidade pessoal do marido da mãe, susceptível de fundar a conclusão de que a respectiva acção poderia e deveria, por imposição constitucional, ser proposta a todo o tempo, independentemente do momento em que tal sujeito, legitimado para impugnar, teve conhecimento das circunstâncias que permitem razoavelmente duvidar da sua paternidade.

Parece, todavia, que não estará aqui em causa um direito à identidade pessoal, entendida no sentido há pouco explanado de direito ao conhecimento da identidade dos progenitores (que tem apenas relevo para a acção de investigação de paternidade), mas o direito ao desenvolvimento da personalidade na dimensão de um direito de autoconformação da identidade, que não poderá deixar de ser reconhecido em relação ao presumido pai, quando este tenha motivos para duvidar da sua paternidade biológica e pretenda esclarecer a sua posição social e jurídica quer em relação ao filho presumido, quer em relação ao agregado familiar, quer ainda ao meio social em que se insere.

Há, no entanto, inevitavelmente, uma diferença de grau entre a investigação de paternidade, em que patentemente está em causa o direito à identidade pessoal do investigante (e relativamente ao qual a imposição de um limite temporal pode implicar a violação do direito ao conhecimento da identidade dos progenitores), e a impugnação de paternidade, em que o releva é a definição do estatuto jurídico do investigante em relação a um vínculo de filiação que lhe é atribuído por presunção legal.   

Assim se compreende que sistemas jurídicos que admitem a investigação de paternidade sem limite, mostrando dar preferência à tutela do direito inviolável à identidade pessoal, já imponham a caducidade do direito de impugnação, aceitando assim que, decorrido o prazo fixado na lei, se consolide a paternidade presumida ainda que não corresponda à verdade biológica (notícia desta diferenciação de regimes em Pereira Coelho/Guilherme de Oliveira, ob. cit., pág. 139; Guilherme de Oliveira, O Critério Jurídico da Paternidade (reimpressão), Coimbra, 1998, pág.372).

Deve notar-se que o princípio da verdade biológica não tem aqui um valor absoluto. Sabe-se que as razões que justificam a fixação de um prazo de caducidade para a acção de impugnação de paternidade não são inteiramente coincidentes com as que tinham determinado a perempção da acção de investigação de paternidade, pois que para além das considerações de natureza pragmática que se prendem com a certeza e segurança jurídica e a eficácia das provas, releva ainda com particular acuidade, naquele primeiro caso, a protecção da família conjugal. É esse interesse que explica que um terceiro (pretenso progenitor) não tenha legitimidade ex novo para afastar a presunção de paternidade do marido da mãe e obter o reconhecimento da sua paternidade, e só possa intervir processualmente através ao Ministério Público (mediante requerimento que lhe deverá ser apresentado em prazo muito curto) e depois de previamente reconhecida a viabilidade do pedido (artigo 1841º do Código Civil). O direito de impugnação da paternidade está, assim, apenas, na disponibilidade directa dos membros da família, no sentido de que só o marido, a mãe e o filho é que se encontram autonomamente legitimados a intentar a acção. E não está, por isso, excluído que a situação de discrepância entre a paternidade presumida e a realidade biológica se mantenha sempre que não haja interesse concreto por parte dos interessados na destruição da paternidade presumida.

Certo é que o legislador poderá, à semelhança de outros sistemas jurídicos, dar primazia a considerações de política legislativa fazendo prevalecer o princípio da verdade biológica sobre o eventual prejuízo para a unidade familiar, permitindo que a acção de impugnação possa ser proposta  a todo o tempo.  Há, no entanto, condicionalismos objectivos que permitem  distinguir entre a investigação de paternidade e a impugnação de paternidade  e que podem justificar que as pretensões de constituição de vínculos novos venham a merecer um tratamento jurídico diferenciado em relação a pretensões que tenham a vista a destruição de vínculos pré-existentes (admitindo expressamente esta possibilidade de conformação legislativa, Pereira Coelho/Guilherme de Oliveira, ob. cit., pág. 139).

Sublinhe-se que o prazo para a propositura da acção de investigação de paternidade, cominado através da inconstitucionalizada norma do artigo 1817º, n.º 1, do Código Civil, se contava a partir de um facto objectivo (a aquisição da maioridade ou emancipação do investigante), a ponto de ficar inviabilizado o exercício do direito de acção quando o interessado apenas tivesse tido conhecimento efectivo da situação que justifica o impulso processual já depois de transcorrido o prazo de dois anos a contar desse momento. Poderá facilmente concluir-se, nesse contexto, que  é desproporcionada e violadora do direito à identidade pessoal a norma que impede a investigação de paternidade em função de um critério de prazos objectivos, quando os fundamentos para instaurar a acção surgem pela primeira vez em momento ulterior ao termos desses prazos. Tal norma consagra, nesses termos, uma efectiva negação da possibilidade de conhecimento da paternidade.

Ao contrário, o prazo definido no artigo 1842º, n.º 1, alínea a), para a impugnação da paternidade por parte do pai presumido – que está agora em causa -, sendo de duração idêntica à daquele, conta-se, todavia, a partir de um facto subjectivo, que se traduz no «conhecimento de circunstâncias de que possa concluir-se a sua não paternidade». Este parece ser um prazo razoável e adequado à ponderação do interesse acerca do exercício do direito de impugnar e que permitirá avaliar todos os factores que podem condicionar a decisão. E o presumido pai não pode sequer invocar uma situação de impossibilidade de exercer o direito, já que, a partir do conhecimento pessoal de factos que indiciem a inexistência de um vínculo real de filiação, dispõe sempre de tempo útil para afastar a presunção de paternidade.

Neste contexto, não parece que a fixação de um prazo de caducidade para a impugnação de paternidade pelo pai presumido, nos termos em que se encontra previsto na referida norma do artigo 1842º, n.º 1, alínea a), do Código Civil, represente uma intolerável restrição ao direito de desenvolvimento da personalidade entendido com o alcance de um direito de conformar livremente a sua vida, quando é certo que a preclusão do exercício do direito de impugnar pode justamente ter correspondido a uma opção que o interessado considerou ser em dado momento mais consentâneo com o seu interesse concreto e o seu condicionalismo de vida.

Por tudo, não pode entender-se – contrariamente ao que se consignou no acórdão recorrido – que exista uma paridade de situação entre os prazos de caducidade dos artigos 1817º, n.º 1, e 1842º, n.º 1, alínea a), do Código Civil em termos de se poder aplicar neste último caso as razões que conduziram o Tribunal Constitucional a declarar a inconstitucionalidade daquele outro preceito.



5. Na particular situação dos autos, em que estamos confrontados com acção da iniciativa da mãe/ cônjuge ou ex-cônjuge do presumido pai, a norma convocável e aplicável é, porém, a que consta da al. b) do nº1 do referido art. 1842º - não parecendo, porém, que tal diferença normativa altere substancialmente os dados da questão, na verdade, o prazo de caducidade é, também aqui, de 3 anos, contados, porém, do facto objectivo nascimento e não – como ocorre com os prazos atribuídos aos outros sujeitos legitimados – do facto subjectivo conhecimento de circunstâncias que inculquem a conclusão da não paternidade biológica.
Considera-se, porém, esta diferenciação de regimes materialmente fundada, já que, pela natureza das coisas, o juízo acerca da inexistência do vínculo biológico está facilitado quanto à mãe: não podendo esta plausivelmente ignorar o seu comportamento sexual durante o período legal da concepção, está seguramente em condições de formular um juízo sobre a paternidade biológica logo no momento em que nasce o seu filho – sabendo inelutavelmente que o seu cônjuge não é o pai biológico ( nos casos em que não teve, no período relevante, quaisquer contactos sexuais com ele) ou, pelo menos, logo surgindo dúvida fundada acerca da paternidade, nos casos de ter mantido no período legal da concepções contactos sexuais também com outros homens – dispondo do prazo de 3 anos , manifestamente suficiente e adequado para remover tais dúvidas possíveis e avançar com a acção de impugnação, caso o queira fazer.

Importa, antes de mais, salientar que – sendo manifestamente a impugnação da paternidade presumida uma acção negatória da paternidade que, a proceder, irá eliminar a filiação juridicamente constituída com base em presunção legal, deixando a filiação paterna omissa – não procede inteiramente a analogia que se pretende estabelecer com a acção de reconhecimento judicial de paternidade e com as razões substanciais que estiveram na base da jurisprudência constitucional que ditou a eliminação do prazo de caducidade originariamente previsto no art. 1817º, nº1, do CC.


Note-se que, no caso dos autos, em que nos confrontamos com acção movida pela mãe contra o próprio filho, não pode obviamente invocar-se como base da possível inadmissibilidade de fixação legal de um prazo de caducidade o direito à identidade pessoal do filho; na verdade, este direito fundamental é especificamente tutelado através da acção para que o filho está pessoalmente legitimado, estando esta acção sujeita ao prazo de caducidade – manifestamente mais longo – da al. c) do nº1 do art. 1842º.( podendo, consequentemente, vir a ser ainda intentada durante largos anos, apesar da improcedência da presente acção, movida pela mãe). Ou seja: não pode a mãe que propõe acção negatória da paternidade contra o seu filho - réu nessa causa – actuando em nome próprio (e não como representante legal do menor) invocar como direito tutelado o direito à identidade pessoal do filho demandado: o que está na base desta acção é antes o direito de personalidade da mãe do menor, afectado pelo facto de figurar no registo uma paternidade presumida, alicerçada num vínculo conjugal já destruído e sem que tivesse subjacente um vínculo biológico do menor com o seu pai presumido.
O interesse tutelado através da acção proposta pela mãe é, deste modo, o interesse pessoal desta – e não o direito de personalidade do filho – que, por via das regras de aferição da legitimidade, tem de figurar nessa causa como demandado, enquanto titular do interesse directo em contradizer a pretensão negatória formulada pela mãe.
E daqui decorre que, ao contrário do que sucede com as acções de reconhecimento judicial da paternidade – em que o interesse realizado é apenas o do próprio filho no apuramento e estabelecimento da sua verdadeira filiação biológica – nas acções de impugnação é necessário proceder a uma ponderação entre os interesses da mãe ( ou, sendo caso disso, do seu cônjuge, presumido pai, quando seja este a impulsionar a acção) e o interesse do próprio filho, réu nessa acção, e que verá a paternidade estabelecida – e porventura sedimentada ao longo de muitos anos - ser destruída ou eliminada pela procedência da acção : é que, nesta situação particular das acções negatórias, o direito à identidade pessoal do filho não se consuma com a mera procedência do pedido de impugnação formulado pela mãe, envolvendo ainda a propositura posterior de acção de investigação da paternidade que deixe estabelecida juridicamente a sua verdadeira filiação. Ou seja: nestes casos, a plena realização do direito à identidade pessoal do filho passa e envolve necessariamente a procedência de dois pedidos sucessivos, o primeiro visando eliminar a paternidade presumida, biologicamente inexistente, e o segundo visando estabelecer a verdadeira e real paternidade.
Ora, é essencialmente este peculiar circunstancialismo que legitima a fixação de prazos razoáveis de caducidade, particularmente para a acção movida por algum dos progenitores contra o filho. É que, a não ser assim, tornando-se tal acção imprescritível, os cônjuges acabariam, de forma manifestamente injustificada, por – através da propositura injustificadamente tardia da acção de impugnação – afectar a confiança que o filho porventura tinha depositado, ao longo de muitos anos, na consistência da filiação resultante do registo civil, ampliando o dano moral que resultará de a paternidade passar a estar, com a procedência da acção, omissa .
E, muito em particular, a imprescritibilidade da acção movida pela mãe, ao levar directamente à possibilidade de só ao fim de muitos anos vir a ser proposta uma acção de impugnação da paternidade presumida ( quando aquela sempre soube perfeitamente que o seu então cônjuge não era o verdadeiro pai do menor/R.), acabaria por dificultar seriamente ou mesmo inviabilizar na prática o ulterior estabelecimento da paternidade ( já que, como é notório, a viabilidade desta segunda acção, indispensável para a realização integral do direito à identidade pessoal do filho, pode naturalmente ficar gravemente comprometida por só ao fim de muitos anos ou décadas ter sido eliminado o registo inibitório da averiguação e estabelecimento da paternidade).


Significa isto que nos parece materialmente adequado e justificado impor – em nome do interesse do próprio filho – um ónus de propositura, em prazo razoável, da acção de impugnação da paternidade presumida impulsionada pelos progenitores para tal legitimados, logo que tenham plausivelmente conhecimento de que a paternidade presumida não tem na sua base um vínculo biológico, evitando, por um lado, a sedimentação e consolidação, ao longo de anos ou de décadas, da paternidade presumida que se pretende apagar do registo civil ( minimizando o dano de confiança necessariamente sofrido pelo filho, ao passar a constar no registo uma paternidade omissa); e, muito em particular, evitando que a acção negatória da paternidade, tardiamente interposta, de modo manifestamente injustificado ( porque o progenitor/A.. há muito sabia perfeitamente que o pai presumido não era o verdadeiro pai biológico, podendo ter agido em juízo no momento oportuno), acabe por poder inviabilizar, na prática, a ulterior propositura pelo filho de acção de reconhecimento judicial da paternidade, cuja viabilidade prática (decisivamente dependente de se saber factualmente quem é o pai biológico e dispor das provas necessárias) poderá ser, em muitos casos, negativamente afectada por uma desproporcionada dilação relativamente ao momento do nascimento do investigante.

Considera-se, deste modo, que a específica constelação de interesses subjacente à acção de impugnação da paternidade presumida - obrigando a articular o interesse dos cônjuges (ou ex-cônjuges) em eliminarem uma paternidade registral biologicamente inverídica com o interesse do filho, necessariamente demandado nessa acção, e cujo direito à identidade pessoal se não alcança integralmente com a sentença de impugnação, envolvendo ainda a necessidade de propor, ele próprio,  uma nova acção de reconhecimento judicial da paternidade, que deixe fixado juridicamente o vínculo de filiação – legitima e justifica que a acção proposta pela mãe possa ser legalmente submetida a um prazo de caducidade, não se configurando, deste modo, como necessariamente imprescritível.


Resta analisar se o prazo de 3 anos, actualmente estabelecido, se conforma com o princípio da proporcionalidade, sob pena de, sendo qualificado como desproporcional ou irrazoável, traduzir ilegítima restrição ao direito de personalidade da demandante.
Ora, no caso concreto dos autos, não se vislumbra qualquer razão que possa conduzir a um juízo de inadequação do prazo de 3 anos, já que a própria A. reconhece na petição que manteve, de forma reiterada, um relacionamento sexual com o indivíduo a que imputa a paternidade – bem sabendo, deste modo, logo no momento do nascimento, que o seu então marido não era seguramente o pai biológico do seu filho; nada a impedia, pois, de actuar em nome próprio, independentemente do juízo que o MºPº fizesse sobre a propositura de acção de impugnação no interesse pessoal do filho: saliente-se, aliás, que esta acção, cujo prazo ampliado decorre da al. c) do nº1 do referido art. 1824º, continuará a ser possível por longos anos – não se podendo, deste modo, afirmar que a improcedência da presente acção afecta relevantemente o direito de personalidade do filho a conhecer e estabelecer a sua verdadeira origem e ascendência biológica.

6. Nestes termos e pelos fundamentos apontados nega-se provimento à revista, julgando não inconstitucional a norma constante da alínea b) do nº1 do art. 1842º do CC.
Custas pela recorrente, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário.


Lisboa, 20 de Junho de 2013.

Lopes do Rego (Relator)
Orlando Afonso
Távora Victor


____________________________
[1] Como refere o Professor Vaz Serra [Prescrição Aquisitiva e Caducidade, in BMJ, n.º 107, páginas 258/259], a solução legal é justificada por motivos de ordem pública que obstam a que o direito seja exercido depois de findo o prazo legalmente previsto para esse exercício.
[2] O artigo 3.º da Lei n.º 14/2009 foi objecto de juízo de inconstitucionalidade no acórdão do TC, n.º 24/2012, proferido no Processo n.º 382/10. A questão não se coloca na situação em apreço, considerando que a acção não estava pendente à data de entrada em vigor da nova lei, e o novo prazo (3 anos), por ser mais longo que o anterior sempre seria aplicável nos termos do n.º 2 do artigo 297.º do CC.
[3] O Direito à identidade pessoal, tal como está consagrado no art.º 26.º, n.º 1 da Constituição, abrange, não apenas o direito ao nome, mas também o direito à historicidade pessoal, enquanto conhecimento da identidade dos progenitores, e poderá fundamentar por si, um direito à investigação da paternidade e da maternidade, como referem Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa Anotada, 4.ª Ed. Revista, Vol. I, pág. 462.
[4] De acordo com o normativo constitucional citado, “A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”.
[5] O Princípio da Eficácia Jurídica Dos Direitos Fundamentais, estudo publicado no site “CJLP”, acessível em http://www.cjlp.org/principio_eficacia_juridica_direitos_fundamentais.html [Comunidade de Juristas de Língua Portuguesa].
[6] Nesse sentido, veja-se o acórdão n.º 626/2009, proferido no Processo n.º 271/09, Relatado pelo Conselheiro João Cura Mariano, onde, nomeadamente, se refere: “O estabelecimento de um prazo de caducidade para o exercício do direito à investigação de paternidade nestes casos, revela-se, em abstracto, uma limitação adequada, necessária e proporcional deste direito, para satisfação do interesse da segurança jurídica, como elemento essencial de Estado de Direito (artigo 2.º, da C.R.P.). Contudo, para além do modo como se processa a contagem desse prazo, importa também saber se este permite, em concreto, o exercício do direito em tempo útil, ou se, pelo contrário, é de tal modo exíguo que inviabiliza ou dificulta grave­mente esse exercício, tornando-se numa verdadeira restrição ao conteúdo daquele direito fundamental”. Este, como todos os acórdãos do TC que doravante serão citados, está acessível no site do referido Tribunal: http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/.
[7] Proferido no Processo n.º 885/05, relatado pelo Conselheiro Mota Pinto.
[8] A este propósito, refere-se no já referido acórdão do TC, n.º 626/2009, que em toda a jurisprudência constitucional anterior, sempre o TC encarou os prazos de caducidade como” meros condicionamentos do exercício do direito de investigação da paterni­dade, inerente ao direito à identidade pessoal, e não como verdadeiras restrições desse direito fundamental”.
[9] Nesse sentido, para além dos acórdãos citados na conclusão 9.ª do recurso, veja-se o acórdão do STJ, de 07.07.2009, proferido no Processo n.º 1124/05.3TBLGS.S1 (acessível em http://www.dgsi.pt), onde se decidiu que “o prazo previsto no art. 1842º, nº1, alínea a), do C. Civil, mesmo na actual redacção (Lei nº 14/2009, de 1 de Abril), na medida em que é limitador da possibilidade de impugnação, a todo o tempo, pelo presumido progenitor, da sua paternidade, é inconstitucional”.
[10] Nesse sentido, veja-se o acórdão do TC, n.º 98/88, proferido no Processo n.º 101/85, relatado pelo Conselheiro Cardoso da Costa, onde se consignou que nas normas que estabelecem prazos de caducidade para as acções de reconhecimento e impugnação de paternidade “devem ver-se, não propriamente «restrições» ao direito fundamental em causa, mas antes, simplesmente, «condicionamentos» a que tem de obedecer o respectivo exercício”.
[11] Proferido em Plenário, no âmbito do Processo n.º 497/10, do qual foi relator o Conselheiro João Cura Mariano.
[12] Proferido no Processo n.º 638/10, relatado pelo Conselheiro Carlos Pamplona de Oliveira.
[13] Proferido no Processo n.º 339/09, do qual foi relator o Conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro.
[14] Refere-se no acórdão em apreço: “Os acórdãos citados [jurisprudência anterior do TC] não censuraram a existência de prazos de caducidade, mas apenas consideraram constitucionalmente desconforme o prazo concreto aí em questão, por inviabilizar ou dificultar excessivamente a possibilidade de o interessado averiguar o vínculo de filiação natural”.
[15] Bem como o seu ex-marido BB, que participou tal facto ao MP (vide despacho de fls. 14) - o casamento foi dissolvido apenas em 17 de Setembro de 2009, e terá sido na sequência dessa dissolução que a participação foi efectuada.
[16] Teoria Geral do Direito Civil, 3.ª edição, Coimbra Editora, 1996, pág. 376.
[17] Proferido no Processo n.º 783/09, relatado pelo Conselheiro Benjamim Rodrigues. Consta da respectiva fundamentação: “não parece que a fixação de um prazo de caducidade para a impugnação de paternidade pelo pai presumido, nos termos em que se encontra previsto na referida norma do artigo 1842º, n.º 1, alínea a), do Código Civil, represente uma intolerável restrição ao direito de desenvolvimento da personalidade entendido com o alcance de um direito de conformar livremente a sua vida, quando é certo que a preclusão do exercício do direito de impugnar pode justamente ter correspondido a uma opção que o interessado considerou ser em dado momento mais consentâneo com o seu interesse concreto e o seu condicionalismo de vida”.