Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
146/13.5TCFUN-A.L1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: NUNO CAMEIRA
Descritores: CONTRATO DE ABERTURA DE CRÉDITO
ABERTURA DE CRÉDITO EM CONTA CORRENTE
CONTRATO SINALAGMÁTICO
INTERPRETAÇÃO DA DECLARAÇÃO NEGOCIAL
SENTIDO NORMAL DA DECLARAÇÃO
LIVRANÇA EM BRANCO
AVAL
Data do Acordão: 01/05/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO BANCÁRIO - ACTOS BANCÁRIOS EM ESPECIAL ( ATOS BANCÁRIOS EM ESPECIAL ) / CRÉDITO BANCÁRIO.
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGÓCIO JURÍDICO.
DIREITO COMERCIAL - TÍTULOS DE CRÉDITO / LIVRANÇAS.
Doutrina:
- Abel Delgado, “Lei Uniforme Sobre Letras e Livranças”, Anotada, 7.ª ed., pp. 167 a 176.
- Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. II, 7.ª ed., p. 477 e ss..
- Ferrer Correia, Lições de Direito Comercial, vol. III, 1975, pp. 205 a 219.
- José Alberto Vieira, Negócio Jurídico, Anotação ao Regime do Código Civil, artigos 217.º a 295.º, p. 43.
- Oliveira Ascensão, Direito Civil, Teoria Geral, II, 2.ª edição, p. 435.
- Paulo Mota Pinto, Declaração Tácita e Comportamento Concludente no Negócio Jurídico, p.208.
- Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil” Anotado, I, anotação ao art.º 236.º, p. 222.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 236.º, 238.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 542.º, N.º2.
LULL: - ARTIGO 30.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 28/10/1997, BMJ 470, 597.
-DE 26/10/2010, PROCESSO N.º 447/2001.C1.S1, DISPONÍVEL EM WWW.DGSI.PT.
-DE 9/5/2011, PROCESSO N.º 6275/07.7TBVFX.L1, DISPONÍVEL EM WWW.DGSI.PT
-DE 12/6/2012, PROC.º Nº 14/06.7TBCMN.G1, DISPONÍVEL EM WWW.DGSI.PT
Sumário :
I – A interpretação do negócio jurídico de acordo com os critérios fixados nos arts. 236.º e 238.º, ambos do CC, constitui matéria de direito – e sujeita, por isso, ao controle do STJ – sempre que não tenha sido possível às instâncias apurar a vontade real dos contraentes.

II – Se, da interpretação conjugada das cláusulas de um contrato de abertura de crédito em conta corrente resultar, segundo o critério do art.º 236.º, n.º 1, do CC, que apenas a sociedade de que o recorrido foi sócio gerente assumiu as obrigações dela decorrentes, o banco fica impedido de o executar com base em tal contrato, ainda que aquele tenha avalizado uma livrança em branco e subscrito o respectivo pacto de preenchimento para assegurar o cumprimento das obrigações contratuais da sociedade creditada.
Decisão Texto Integral:                                                                      

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I. Síntese dos termos essenciais da causa e do recurso

AA deduziu oposição à execução comum para pagamento de quantia certa que lhe foi movida e a outros - BB - …, Ldª, CC e DD -  pela Caixa EE, SA.

Alegou, em resumo, que é parte ilegítima porque não interveio no contrato de abertura de crédito em conta-corrente executado, apenas tendo assinando um pacto de preenchimento, e que nunca exerceu de facto qualquer função na sociedade executada, tendo assinado o contrato na qualidade de sócio da mesma; e alegou ainda que não lhe foi entregue qualquer duplicado do mesmo, nem explicado o seu teor e as responsabilidades dele decorrentes, o que o torna nulo, por força do DL nº 446/85, de 25.10, e do DL nº 359/91, de 15.9.

Contestando, a exequente afirmou que o opoente subscreveu o contrato em representação da sociedade e em nome próprio, na qualidade de avalista, tendo participado nas negociações com vista à respetiva celebração; e disse ainda que foi entregue ao devedor cópia do contrato, bem como explicado às partes o seu conteúdo.

Realizado o julgamento, foi proferida em 30/6/14 sentença que julgou a oposição totalmente improcedente e ordenou o prosseguimento da execução.

Por acórdão de 19/5/15, no entanto, a Relação de Lisboa  julgou procedente a apelação do opoente, revogando a sentença e julgando extinta a execução contra ele.

Agora é a exequente que, inconformada, pede revista, sustentando a reposição da sentença com base em quarenta e duas conclusões assim resumíveis:

1ª - Com a cláusula 13.2 do contrato dado à execução as partes quiseram que o recorrido respondesse em simultâneo e solidariamente com a empresa devedora, responsabilizando-o, assim, como devedor, pelo cumprimento das obrigações dele resultantes;

2ª - Estão preenchidos, no caso, todos os requisitos mencionados no artº 46º, nº 1, c), do CPC, que fazem do contrato dado à execução um título executivo;

3ª - A identificação do executado no contrato como “avalista” não releva, pois somente vale o alcance das cláusulas /rectius, das responsabilidades assumidas) estabelecido em função do texto contratual, das negociações que o antecederam e da vivência da relação negocial stabelecida;

4ª - O título executado é um contrato e não um pacto de preenchimento de uma livrança;

5ª - A livrança constitui somente uma garantia adicional e não um afastamento da exequibilidade do contrato que, aliás, as partes não quiseram.

O recorrido contra alegou, defendendo a manutenção do julgado pela Relação e a condenação da recorrente a título de má fé por alegar no recurso de modo a entorpecer conscientemente a acção da justiça e a retardar sem fundamento sério o trânsito em julgado da decisão.

Cumpre decidir.

II. Fundamentação

Reduzidos ao seu núcleo essencial, e considerando o âmbito do recurso definido pelas conclusões, interessa destacar os seguintes factos, de entre todos os que as instâncias apuraram em definitivo:

1) - BB - …, Lda., como primeira contratante, na qualidade de devedora ou cliente; CC e cônjuge DD e AA, como segundos contratantes, designados como avalistas e Caixa EE, SA, como terceira contratante, subscreveram, com data de 30/12/08, o documento intitulado “Contrato de Abertura de Crédito em Conta Corrente para Gestão Automática de Tesouraria”, n.º …, que consta de fls. 6 a 8 dos autos de execução e 34 a 40 destes autos, com data de perfeição do contrato de 14/1/09, mostrando-se reconhecidas as assinaturas de AA e CC por acto executado a 7/1/09.

2) - De acordo com a cláusula 3., 5., 6.1. e 6.2. do contrato referido em 1) o crédito concedido destina-se ao apoio de tesouraria da cliente a efectuar exclusivamente através de um circuito de gestão automática (Circuito de Gestão Automática de Tesouraria), até ao montante de € 250.000,00 e pelo prazo de seis meses, com início na data da sua perfeição automaticamente prorrogado por períodos iguais e sucessivos.

3) - De acordo com as cláusulas 7.1 e 7.2 a movimentação da conta corrente é efectuada mediante a gestão automática e em associação a uma conta de depósito à ordem e a uma conta de depósito poupança investimento, não sendo permitida qualquer outra forma de movimentação; o Circuito de Gestão Automática de Tesouraria efectua no final do dia a transferência automática de verbas entre a presente conta corrente, a conta de depósito à ordem e a conta poupança investimento, em função da escassez ou excesso de liquidez, tendo em conta o saldo mínimo da conta de depósito à ordem, que não poderá ser inferior a € 2.500,00, uma “tranche base para transferência de fundos” no montante de € 1.000,00 ou seus múltiplos de acordo com os critérios determinados nos pontos seguintes dessa cláusula.

4) - Na cláusula 21. a Cliente confessa-se devedora das quantias disponibilizadas através desta abertura de crédito, dos respectivos juros, comissões, despesas e demais encargos previstos no contrato, convencionando as partes na cláusula 22.1. o seguinte: “Fica convencionado que o extracto de conta do empréstimo e, bem assim, todos os documentos de débito emitidos pela CEE e relacionados com o presente contrato serão havidos para todos os efeitos legais como documentos suficientes para prova e determinação dos montantes em dívida, tendo em vista a exigência, a justificação ou a reclamação judiciais dos créditos que delas resultem em qualquer processo” e acordando ainda que o registo informático ou a sua reprodução em qualquer suporte constituem meios de prova das operações ou movimentos efectuados.

5) - Estipularam ainda as partes na cláusula 13.1 o seguinte: “Sem prejuízo do circuito de gestão automática atrás mencionado, todos os pagamentos a que a Cliente fica obrigada por força deste contrato serão efectuados através de débito na sua conta de depósitos à ordem atrás referida, que a mesma se obriga a manter devida e atempadamente provisionada para o efeito, ficando desde já a CEE autorizada a proceder às respectivas movimentações.”

6) - E na cláusula 13.2. o seguinte: “No caso de não se mostrar possível o pagamento integral dos créditos emergentes do presente contrato nas datas convencionadas e pelo meio indicado no número anterior, fica igualmente a CEE autorizada a debitar pelo valor dos montantes em dívida e, independentemente de declaração, quaisquer outras contas existentes em nome da Cliente e/ou dos Avalistas, de que a CEE seja depositária, para o que os mesmos Avalistas dão também e desde já o respectivo acordo e autorização de movimentação”.

7) - Da cláusula 20 do contrato, sob a epígrafe “Garantia-Aval”, consta que:

“Todas e quaisquer quantias que sejam ou venham a ser devidas à CAIXA pela CLIENTE no âmbito do presente contrato, quer a título de capital, quer de juros, remuneratórios ou moratórios, comissões, despesas ou quaisquer outros encargos ficam garantidas pelo aval prestado na livrança prevista no nº 23, caso a CAIXA decida proceder ao seu preenchimento de acordo com o pacto de preenchimento ali convencionado.”

8) – E da cláusula 23, sob a epígrafe “Livrança em Branco”, consta:

“23.1- Para titular e assegurar o pagamento de todas as responsabilidades decorrentes do empréstimo, a CLIENTE e os AVALISTAS atrás identificados para o efeito entregam à CAIXA, neste acto uma livrança com montante e vencimento em branco, devidamente datada, subscrita pela primeira e avalizada pelos segundos, e autorizam desde já a CAIXA a preencher a sobredita livrança quando tal se mostre necessário, a juízo da própria CAIXA, tendo em conta, nomeadamente, o seguinte:

a) A data de vencimento será fixada pela CAIXA quando, em caso de incumprimento pela CLIENTE das obrigações assumidas, a CAIXA decida preencher a livrança.

b) A importância da livrança corresponderá ao total das responsabilidades decorrentes do presente empréstimo, nomeadamente em capital, juros remuneratórios e moratórios, comissões, despesas e encargos fiscais, incluindo os da própria livrança.

c) A CAIXA poderá inserir cláusula «sem protesto» e definir o local de pagamento.

23.2 - A livrança não constitui novação do crédito, pelo que se mantêm as condições do empréstimo incluindo as garantias.

23.3 - EM ANEXO: LIVRANÇA EM BRANCO.”

9) - A sociedade BB – …, Ldª, foi constituída em 29/8/08, com o capital social de € 5.000,00 distribuído por duas quotas no valor de € 2.500,00 cada uma, tituladas por AA e CC, com sede à Rua …, n.º …, tendo por objecto social o comércio e distribuição de produtos próprios ou de terceiros na área das telecomunicações e conexas e a prestação de serviços de logística e armazenamento em Portugal e no estrangeiro, sendo a forma de obrigar com a intervenção conjunta de dois gerentes, então os respectivos sócios.

10) - Em 8/7/09 cessou funções de gerência, por renúncia, o sócio AA, data em que a sua quota foi transmitida a FF, S.A.

11) - O pedido de financiamento consistente em contrato de abertura de crédito foi apresentado pela sociedade BB - …, Lda. junto de uma agência da Caixa EE, S.A. no Funchal, identificada no aludido contrato.

12) - O opoente assinou o contrato referido em 1) por si e como sócio-gerente da sociedade BB - …, Ldª.

13) - O opoente participou, como sócio-gerente da empresa BB - …, Ldª, nas negociações estabelecidas entre esta empresa e a CEE, S.A. com vista à constituição do empréstimo referido em 1).

14) - Com data de 16/11/12, a CGD, SA, dirigiu uma carta ao opoente, com referência ao assunto “Cobrança por via judicial: Dívida em 16/11/2012 – Empréstimo conta corrente PT … - € 132 109,43”, com o seguinte teor: “Na qualidade de Avalista do crédito em assunto, referente as empresas BB – …, Lda., informamos V. Exa. de que a Caixa EE, decidiu recorrer à via judicial para cobrança do mesmo face ao incumprimento que registam e insucesso da via negocial. A acção executiva será intentada não só contra a empresa referida, mas também contra V. Exa., a menos que, no prazo de 15 dias, procedam à regularização ou ao pagamento em dívida, ficando assim devidamente interpelado, para esse efeito”.

15) - Com data de 6/10/09 o opoente dirigiu uma carta à exequente, que consta de fls. 43, em que formula um pedido de esclarecimentos, dando conta que tinha vendido a sua participação na empresa BB, Ldª, ao grupo FF, SA, em que teria acordado a sua exoneração de responsabilidades junto da banca, pelo que solicita com a maior brevidade um ponto de situação sobre o processo ou, em alternativa, a sua exoneração imediata dos avales.

16) - Entre Outubro e Dezembro de 2009 o opoente solicitou junto da exequente vários esclarecimentos e em 11/12/09 a CEE, SA, indicou-lhe as condições em que autorizava a libertação do seu aval, isto é, que a libertação, que coincide com a liquidação da conta corrente, só ocorrerá com a contratação de uma nova operação.

17) - A desvinculação do opoente dos avales nunca foi concretizada.


****

A questão essencial que se coloca no presente recurso prende-se exclusivamente com a interpretação do contrato que serviu de base à execução instaurada, isto é, com a fixação do sentido juridicamente relevante das declarações negociais contidas no respectivo clausulado.

Sobre o assunto, escreveu-se na sentença o seguinte:

“O executado/opoente AA argumenta que não existe título executivo que suporte a sua demanda nesta execução porquanto é apenas avalista de uma livrança que não foi apresentada à execução.

É certo que do teor do contrato de abertura de crédito à primeira contratante – BB, Lda. – resulta que lhe foi conferida a qualidade de devedora ou cliente. Logo do ponto 3. decorre que o crédito concedido pela Caixa EE, S. A. se destina ao apoio de tesouraria da cliente, logo, da sociedade BB, Lda., a efectuar exclusivamente através de um circuito de gestão automática (aferindo-se do ponto 7. que este circuito funciona através de transferências automáticas de verbas entre a conta corrente e a conta de depósito à ordem, em função da escassez ou excesso de liquidez, sendo que esta conta de depósito está aberta em nome da cliente, ou seja, da BB, Lda., de acordo com a cláusula 12. do contrato).

Contudo, não obstante a qualidade de avalistas que foi atribuída aos segundos contratantes há que atentar no teor da cláusula 13.2 onde consta o seguinte: [segue-se a transcrição da cláusula reproduzida no ponto 6) da matéria de facto ].

Face ao teor desta cláusula é evidente que os demais executados que subscreveram o aludido contrato, ainda que com a mencionada designação de avalistas, se responsabilizaram solidariamente, logo como principais pagadores.

O pagamento estipulado, à partida, seria através da conta de depósitos à ordem associada ao contrato de abertura de crédito que a executada sociedade deveria manter devidamente provisionada para o efeito.

Contudo, logo o ponto 2. da cláusula 13. acrescenta que se tal pagamento não for possível, o banco poderá utilizar quaisquer valores existentes em quaisquer outras contas em nome quer da sociedade, quer dos segundos contratantes, ou seja, estes passam a responder simultaneamente com a devedora, sendo igualmente responsáveis pelo cumprimento das obrigações decorrentes deste contrato.

O executado/opoente é, pois, também ele, devedor, pelo que o documento em causa constitui, também quanto a ele, título executivo.”

A Relação viu as coisas de modo assaz diverso.

Efectivamente, escreveu-se no acórdão impugnado:

“Como se disse, o documento dado em execução corresponde a um “Contrato de Abertura de Crédito em Conta Corrente para Gestão Automática de Tesouraria” celebrado entre a Caixa EE, S.A., e BB-…, Lda, ali designada por “Cliente”, destinando-se o crédito concedido pela primeira ao apoio de tesouraria da segunda a efetuar “exclusivamente, através de um circuito de gestão automática (Circuito de Gestão Automática de Tesouraria” conforme estipulado no dito contrato (cláus. 1). Cumpre ainda considerar o que resulta dos pontos 1 a 6 supra dos factos assentes quanto ao clausulado.

Não há também dúvidas de que o ora opoente, juntamente com CC e DD, subscreveram o dito contrato em nome próprio, na qualidade de “Avalistas”.

Devem, no entanto, destacar-se aqui outras disposições contratuais indispensáveis à cabal compreensão da posição assumida pelos designados “Avalistas”.

Assim, consta da cláus. 20 do contrato, sob a epígrafe “Garantia-Aval”... [segue-se a a transcrição da cláusula reproduzida no ponto 7)  da matéria de facto].

Por seu turno, consta da cláus. 23, sob a epígrafe “Livrança em Branco”:  [segue-se a transcrição da cláusula reproduzida no ponto 8) da matéria de facto].

Da análise integral do contrato sub judice resulta que apenas estas duas cláusulas 20 e 23 e a acima já transcrita cláusula 13.2 (ponto 6 dos factos assentes), aludem aos “Avalistas”.

Nas cláus. 20 e 23 define-se, expressamente, a respetiva posição: os mesmos garantem a responsabilidade da BB assumida no contrato mediante “aval prestado na livrança prevista no nº 23, caso a CAIXA decida proceder ao seu preenchimento de acordo com o pacto de preenchimento ali convencionado”, prevendo, depois, a referida cláus. 23 as condições desse preenchimento.

Isto é, aqueles que subscrevem o contrato enquanto “Avalistas” fazem-no, sem qualquer dúvida e necessariamente, por referência a uma livrança em branco anexa àquele escrito e em razão do pacto de preenchimento que integra esse mesmo contrato.

Nem outra coisa poderia suceder.

O aval é o ato pelo qual um terceiro ou signatário da letra ou livrança garante o pagamento da mesma por parte de um dos subscritores (cfr. arts. 30 e 77 da L.U.L.L.). Constitui, por isso, um verdadeiro ato cambiário, uma garantia cambial de natureza comercial, em que o dador do aval é responsável da mesma maneira que a pessoa por ele avalizada.

O fim próprio do aval, a sua função específica, é garantir ou caucionar a obrigação de certo obrigado cambiário, dando origem a uma obrigação materialmente autónoma, pelo que o dador de aval não se limita a responsabilizar-se pela pessoa garantida, antes assumindo a responsabilidade abstrata e objetiva pelo pagamento da obrigação correspondente ([1]).

O aval não tem, assim, aplicação nos contratos em geral, destinando-se antes a garantir títulos de crédito.

Acresce que avalista não pode entender-se sequer como sinónimo de fiador.

Apesar do aval se apresentar, essencialmente, como uma fiança, existem diferenças relevantes entre ambos, exatamente decorrentes da natureza cambiária do primeiro. Assim, por exemplo, a fiança tem de ser expressamente declarada pela forma exigida para a obrigação principal (art. 628 do C.C.), enquanto o aval pode ser em branco ou incompleto, resultando da mera assinatura do dador aposta em certo lugar do título (art. 31 da L.U.L.L.), o fiador goza, em regra, do benefício da excussão (art. 638 do C.C.), enquanto o avalista responde, com os outros firmantes do título, solidária e subsidiariamente, perante o portador (art. 47 da L.U.L.L.), o fiador pode contratar especiais condições ou prazo de validade da fiança (art. 631 do C.C.), o que não acontece no aval, e pode requerer a sua liberação em determinados casos legalmente previstos (art. 648 do C.C.), sem que o possa fazer o dador de aval.

De quanto se deixa dito resulta evidente que, nos termos da lei e do contrato, a menção a “Avalistas” deste constante não pode compreender-se com abrangência diversa da referida à livrança indicada, sendo certo que a subscrição do contrato pelos indicados garantes de tal título de crédito se justifica, designadamente, pelo pacto de preenchimento que deste consta.

Isto posto, verificamos, por outro lado, que também não pode retirar-se da cláus. 13 o entendimento seguido na sentença de que os “Avalistas” se obrigaram no contrato como principais pagadores.

Na verdade, nesta cláus. 13, sob a epígrafe “Forma dos Pagamentos”, estipula-se que, além do mais, a sociedade Cliente se obriga...[segue-se a transcrição parcial da cláusula reproduzida nos pontos 5) e 6) da matéria de facto].

O que efetivamente resulta destas disposições é que os “Avalistas” autorizam que os pagamentos devidos pela Cliente se possam fazer também à custa de contas de depósito à ordem por eles tituladas na C.EE., afinal uma verdadeira autorização de débito em conta conforme salienta o apelante, não assumindo através da dita cláusula 13.2 os indicados “Avalistas”, de modo algum, a responsabilidade de satisfazer genericamente as obrigações da devedora emergentes do contrato através do seu património, como sucederia se de uma vulgar fiança se tratasse ([2]).

Por conseguinte, mediante a cláus. 13.2, os “Avalistas” autorizaram a ora exequente a fazer-se pagar pelas dívidas da BB, Lda, apenas através das contas bancárias por si detidas naquela instituição de crédito e não, fora desse quadro e para além destas, através de quaisquer outros bens de sua pertença. Ou seja, contra o que se entendeu em 1ª instância, os ditos “Avalistas” não assumiram na cláus. 13.2 a integral responsabilidade pelo cumprimento das obrigações da Cliente, não ficando, por isso, a exequente autorizada a exigir dos mesmos a satisfação do seu crédito sobre a BB, Lda, por outro meio.

Em suma, os referidos “Avalistas” subscreveram o acordo escrito dado em execução porque deste constava o pacto de preenchimento de livrança ao mesmo associada (que terá sido assinada e entregue em branco à exequente) e uma autorização de débito em conta.

Não resulta, por isso, que os referidos “Avalistas”, mormente o opoente/apelante, tenham no contrato assumido qualquer outro encargo ou responsabilidade.

....

No caso, os “Avalistas” apenas se constituiriam como obrigados perante a exequente mediante o preenchimento da livrança decorrente do incumprimento da dita sociedade e por força do aval ali prestado.

Não apresentando a livrança, devidamente assinada e completada nos termos acordados, a exequente não acionou a garantia.

E, assim sendo, não dispõe de título executivo contra o apelante/executado, já que o documento oferecido não implica, como vimos, a efetiva constituição da obrigação pecuniária nos termos contra si reclamados, em conformidade com o disposto no art. 46, nº 1, al. c), do C.P.C. de 1961”.

Vejamos.

Seguindo de perto o que referimos noutro acórdão desta conferência de 12/6/12 (Procº nº 14/06.7TBCMN.G1, disponível em www.dgsi.pt), diremos que os factos concretos apurados no processo não permitem afirmar com certeza qual foi a comum vontade real das partes no que respeita à correcta determinação do conteúdo da obri­gação que se discute; comum vontade, sim, pois está-se em presença de um con­trato, no qual, por definição, existe um mútuo acordo de vontades diversas que se ajustam em ordem à obtenção de uma finalidade também comum; e vontade real, como de igual modo referimos, porquanto o seu apuramento no quadro da inter­pretação dos negócios jurídicos apenas constitui matéria de direito - e sujeita, portanto, ao controle do STJ en­quanto tribunal de revista – quando, sendo ela des­co­nhecida, devam seguir-se para o efeito os critérios fixados nos artºs 236º/238º do CC (neste preciso sentido cfr. o acórdão desta conferência proferido em 26/10/10 na Revª nº 447/2001.C1.S1, cujo texto integral também pode ser consultado em www.stj.pt).

Assim sendo, em ordem a determinar o sentido juridicamente relevante das declarações negociais que no caso dos autos recorrente e recorrido produziram, há que interpretar o estipulado no documento que formalizou o contrato celebrado em obediência às directrizes fixadas naqueles preceitos, como as instâncias, aliás, procuraram fazer, chegando embora a resulta­dos não coincidentes. E isto porque a função de tais directrizes, como refere José Alberto Vieira (Negócio Jurídico, Anotação ao Regime do Código Civil (artigos 217º a 295º, pág. 43) é preci­samente a de vincular o intérprete a um dos sentidos propiciados pela actividade interpre­tativa. Ora, como pusemos em relevo noutro acórdão desta conferência (Revª nº 6275/07.7TBVFX.L1, de 9/5/11), os princípios essenciais a ter em consideração nesta matéria são os seguintes:

- A declaração negocial valerá de acordo com a vontade real do declarante, se esta for co­nhe­cida do declaratário - artº 236, nº2, CC;

- Não o sendo, valerá com o sentido que possa ser deduzido por um declaratário normal, colocado na posição do declaratário real, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele (teoria da impressão do destinatário) - artº 236, nº1;

- Nos negócios formais, a declaração não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto - artº 238, nº1; dito doutra forma: para que possa va­ler, o sentido atribuído pelo “declaratário normal” deverá estar expresso, ainda que de forma imperfeita, no próprio texto do documento que corporiza a garantia prestada;

- O sentido sem correspondência mínima no texto poderá ainda valer se traduzir a vontade real das partes e as razões determinantes da forma do negócio se não opuserem e essa vali­dade - artº 238º, nº2.

Estas regras, no fundo, não são mais do que critérios interpre­tativos dirigidos ao juiz e às partes contratantes. E o que basicamente se retira do artº 236º é que, em homenagem aos princípios da protecção da confiança e da segurança do tráfico jurídico dá-se prioridade, em tese geral, ao ponto de vista do declaratário (receptor). A lei, no entanto, não se basta com o sentido compreendido realmente pelo declaratário (enten­dimento subjectivo deste) e, por isso, concede primazia àquele que um declaratário nor­mal, típico, colocado na posição do real declaratário, depreenderia (sentido objectivo para o decla­ratário) – acordão deste STJ de 28.10.97, BMJ 470, 597. Há que imaginar - escreve o Prof. Paulo Mota Pinto em Declara­ção Tácita e Comportamento Con­cludente no Negócio Jurídico, 208 - uma pessoa com razoabilidade, sagacidade, conhecimento e diligência medianos, considerando as circunstâncias que ela teria conhecido e o modo como teria raciocinado a partir delas, mas figurando-a na posição do real declaratário, isto é, acres­centando as circunstâncias que este efectivamente conhe­ceu (mesmo que um declaratário normal delas não tivesse sabido - por exemplo, devido ao facto de o real declara­tário ser portador de uma cultura invulgarmente vasta e superior à média) e o modo como aquele concreto declaratário poderia a partir delas ter depreendido um sentido declarativo. Ainda segundo este mesmo autor,  “… a interpretação da declaração negocial não tem em vista apurar a vontade do declarante ou um sentido que este tenha querido declarar, estando antes em causa o sentido objec­tivo que se pode depreender do seu comportamento”. Importa por fim acrescentar que estando-se no caso sub judice em presença dum contrato, e dum con­trato sinalagmático, há que atender, simultâneamente, às declarações de ambas as partes porque ambas são, também simultaneamente, declarante e declaratário (neste sentido, Oliveira Ascensão, Direito Civil, Teoria Geral, II, 2ª edição, pág. 435). Tudo isto significa em termos práticos que o intérprete deve, relativamente a ambos os contraentes, tentar de­finir a posição em que se encontram perante a declaração da contraparte, e colocar um de­claratário ideal (normal) na posição de declaratário real.

Dentro desta mesma linha de orientação, os Prof. Pires de Lima e Antunes Varela, na anotação ao artº 236º do CC (CC Anotado, I, pág. 222) escrevem o seguinte:

“A regra estabelecida no nº l, para o problema básico da interpretação das declarações de vontade, é esta: o sentido decisivo da declaração negocial é aquele que seria apreendido por um declaratário normal, ou seja, medianamente instruído e diligente, colocado na posição do declaratário real, em face do comportamento do declarante. Exceptuam-se apenas os casos de não poder ser imputado ao declarante, razoavelmente, aquele sentido (nº 1), ou o de o declaratário conhecer a vontade real do declarante (nº 2)”.

....

O objectivo da solução aceite na lei é o de proteger o declaratário, conferindo à declaração o sentido que seria razoável presumir em face do comportamento do declarante, e não o sentido que este lhe quis efectivamente atribuir.

Consagra-se assim uma doutrina objectivista da interpretação, em que o objectivismo é, no entanto, temperado por uma salutar restrição de inspiração subjectivista.

....

A normalidade do declaratário, que a lei toma como padrão, exprime-se não só na capacidade para entender o texto ou conteúdo da declaração, mas também na diligência para recolher todos os elementos que, coadjuvando a declaração, auxiliem a descoberta da vontade real do declarante”.

Tendo presentes as considerações que antecedem e analisadas as cláusulas do contrato em apreciação, designadamente as transcritas na matéria de facto, não temos dúvida em afirmar que a decisão adoptada pela Relação foi acertada e é de manter, tal como são de acolher os fundamentos em que se baseou.

Parece-nos muito claro que estamos em presença dum contrato de crédito bancário, na modalidade de abertura de crédito em conta corrente, visto que o crédito é disponibilizado em parcelas (“tranches”) variáveis e até um determinado montante (no caso, 250 mil €), por certo prazo renovável (seis meses, nas condições fixadas na cláusula 6ª); e claro é também que se trata de uma abertura de crédito caucionada, e não a descoberto, visto que o cumprimento das obrigações do cliente creditado se mostra garantido através do aval prestado na livrança em branco identificada nas cláusulas 20ª e 23ª.

Ora – e aqui reside o fulcro do litígio – o sentido que se retira do conjunto das cláusulas acima transcritas é o de que o cliente creditado foi a sociedade de que o opoente e os restantes executados eram ao tempo sócios gerentes (a executada BB, Ldª). A vinculação do opoente é somente a resultante, por um lado, da autorização que concede para que a entidade creditante (a exequente CEE, SA) debite contas em nome dele pelo valor dos montantes em dívida pela sociedade executada e, por outro, do aval prestado na livrança em branco que a sociedade subscreveu, bem como do respectivo pacto de preenchimento. É isto o que se extrai da conjugação das cláusulas 13), 20) e 23), que, como se salienta no acórdão recorrido, têm de ser analisadas articuladamente e conjugadas entre si. Porém, ainda que se aprecie a cláusula 13.2 de modo isolado, desligada das restantes, a interpretação levada a cabo na sentença e sustentada pela recorrente não é de acolher, pois, efectivamente, um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário (no caso, o recorrido) não entenderia o que ali se estipula como sendo a consagração da sua responsabilidade solidária e, logo, como principal pagador. Dificilmente se poderá admitir que a designação do opoente como “avalista” no contrato de abertura de crédito celebrado entre a recorrente e a sociedade executada não se refira tão somente à livrança em branco que avalizou e cujo pacto de preenchimento subscreveu. Na verdade, a recorrente, o maior Banco nacional, e cujo principal acionista é o Estado, dispõe de vários departamentos altamente especializados na preparação e concretização de contratos, muitos deles complexos e sofisticados, através dos quais se processa a concessão de crédito a particulares e às empresas, envolvendo quantias e responsabilidades muito avultadas; e com um corpo tão diversificado de economistas, de gestores e de juristas experientes e sabedores ao seu serviço, não é verosímil – não faz, mesmo, qualquer sentido – que ao identificar o opoente e os restantes sócios da sociedade como “avalistas”, e ao pactuar o contrato de abertura de crédito nos termos em que o fez (retratados, no essencial, na matéria de facto provada), tenha ignorado, ou inadvertidamente esquecido, que o aval é um negócio jurídico estritamente cambiário que tem por conteúdo a promessa de pagar uma letra e por função a garantia desse pagamento (artº 30º da LULL); que tenha ignorado, em suma, destinar-se o aval a garantir títulos de crédito, sendo dado por uma pessoa a favor de outra que já é obrigada na letra, e não se aplicando “nos contratos em geral”, como observa a Relação. Por fim, cumpre assinalar que só nas já referidas cláusulas 13.2) 20) e 23 se faz alusão aos “avalistas”, retirando-se, ou melhor, podendo um declaratário normal, colocado na posição do opoente, retirar do conjunto de todas as estipulações contratuais que foi a sociedade executada BB, Ldª, e só ela, quem assumiu as obrigações decorrentes da conclusão da abertura de crédito caucionada negociada com a recorrente. Neste sentido veja-se, por exemplo, a cláusula 21), na qual a “cliente”, e apenas ela, se confessa devedora das quantias disponibilizadas através da abertura de crédito; a cláusula 3), onde se estabelece que o crédito se destina ao apoio de tesouraria da “cliente”; a cláusula 6), relativa ao prazo do contrato, e onde só à “cliente” e à recorrente se concede a faculdade de denunciar o contrato; e, de novo, as cláusula 20) e 23), onde as partes assumem expressamente que a devedora no âmbito do contrato celebrado é somente a “cliente” – pois a ela, e só a ela, foi concedido o empréstimo através da abertura de crédito  em conta corrente ajuizada.

Improcedem, assim, ou mostram-se deslocadas as conclusões do recurso.

Improcede, de igual modo, a condenação da recorrente a título de má fé pretendida pelo recorrido, pois não há nos autos elementos concretos que permitam subsumir a sua conduta no processo a qualquer uma das alíneas do artº 542º, nº 2, do CPC.

III. Decisão

Nos termos expostos acorda-se em negar a revista, mantendo-se o acórdão recorrido.

Custas pela recorrente.

05/01/2016

Nuno Cameira (Relator)

Salreta Pereira

João Camilo

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[1] Cfr., Abel Delgado, “Lei Uniforme Sobre Letras e Livranças, Anotada”, 7ª ed., págs. 167 a 176, e Ferrer Correia, “Lições de Direito Comercial”, vol. III, 1975, págs. 205 a 219.
[2] Sobre a figura da fiança, ver Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, vol. II, 7ª ed., págs. 477 e sgs.