Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0176/11.1BEFUN
Data do Acordão:04/10/2024
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:NUNO BASTOS
Descritores:IMPOSTO ESPECIAL DE CONSUMO
TABACO
LIMITES
DIREITO COMUNITÁRIO
DECISÃO
REENVIO PREJUDICIAL
Sumário:I - O artigo 106.º, n.º 7 do CIEC aprovado pelo Decreto-Lei n.º 73/2010 de 21 de junho, na parte em que determina que as quantidades de cigarros que excedam o limite quantitativo referido no seu n.º 4 ficam sujeitas ao pagamento do imposto à taxa em vigor na data da apresentação da declaração de apuramento, é incompatível com as normas constantes dos artigos 7.º e 9.º da Diretiva 2008/118/CE do Conselho, de 16 de dezembro de 2008;
II - A incompatibilidade entre uma norma interna e uma norma comunitária que deva prevalecer importa a inaplicabilidade da norma interna.
Nº Convencional:JSTA00071834
Nº do Documento:SA2202404100176/11
Recorrente:A..., S.A.
Recorrido 1:AT - AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:RECURSO JURISDICIONAL
Objecto:SENTENÇA DO TAF DO FUNCHAL
Decisão:CONCEDER PROVIMENTO AO RECURSO; REVOGAR A SENTENÇA; JULGAR A IMPUGNAÇÃO JUDICIAL DA LIQUIDAÇÃO PROCEDENTE
Área Temática 1:IMPOSTOS ESPECIAIS SOBRE O CONSUMO
Área Temática 2:IMPOSTO SOBRE O TABACO
Legislação Nacional:ARTIGO 106.º CIEC, LEI N.º 73/2010, 21.06; DECRETO-LEI N.º 155/2005, 08.09
Legislação Comunitária:ARTIGOS 28.º E 34.º TFUE; ARTIGOS 7.º e 9.º DIRECTIVA 2008/118/CE DO CONSELHO, 16.12.2008
Aditamento:
Texto Integral: Acordam em conferência na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:

1. Relatório

1.1. B..., S.A. (SUCURSAL EM PORTUGAL), atualmente denominada A..., S.A., com o número de identificação de pessoa coletiva ...66, com sede no Edifício ..., ... do ..., ..., ..., recorreu para o Tribunal Central Administrativo Sul da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal que julgou improcedente a impugnação judicial da liquidação adicional de imposto especial sobre o consumo de tabaco a que alude o impresso de liquidação n.º ...62, de 15 de junho de 2011, no valor de € 4.607,69.

O recurso foi admitido com subida imediata nos próprios autos e com efeito suspensivo.

Notificada da sua admissão, a Recorrente apresentou alegações, que condensou nas seguintes conclusões: «(…)

A. O presente recurso tem por objeto a sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) do Funchal, com data de 24 de junho de 2016, que veio julgar improcedente, por não provada, a impugnação da liquidação adicional de imposto especial sobre o consumo de tabaco (IT), no valor de € 4.607,69 acrescida de € 1,80 do impresso de liquidação, determinada ao abrigo do art. 106º nº 1, 2 e 7 do Código dos Impostos Especiais do Consumo (CIEC), na redação em vigor entre 21 de Julho de 2010 e 31 de Dezembro de 2013.

B. A Recorrente entende que a decisão em causa, salvo o devido respeito, padece de erro na interpretação e aplicação de normas constantes da Diretiva 2008/118/CE do Conselho, de 16 de dezembro de 2008, relativa ao regime geral dos impostos especiais de consumo, da Diretiva 2011/64/UE, de 21 de junho e do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (em particular as referentes à liberdade de circulação de mercadorias), propugnando uma interpretação do artigo 106º CIEC em clara violação de normas do Direito da União Europeia citadas.

C. A legislação Portuguesa em matéria de imposto sobre o tabaco impõe a operadores económicos como a Recorrente um duplo limite à comercialização de tabaco: o “período de condicionamento” previsto no artigo 106º do CIEC e a proibição de comercialização do tabaco (“proibição de comercialização”), constante da Portaria 1295/2007, de 1 de outubro e do disposto no artigo 110º do CIEC.

D. O sistema descrito no parágrafo precedente leva a que seja imposta, por via administrativa, uma autêntica planificação e programação da atividade económica do operador, ao impor limites máximos à quantidade de tabaco que pode ser introduzida no consumo num determinado período e um limite com um prazo artificial de validade para comercialização do produto no mercado (através da aposição de uma estampilha fiscal), transformando o que o direito comunitário representa como uma decisão livre dos operadores económicos num ato subordinado à programação financeira do Estado Português.

E. A Diretiva 2008/118/CE do Conselho, relativa ao regime geral dos impostos especiais de consumo estabelece, entre outros objetivos, o de “garantir o estabelecimento e funcionamento do mercado interno”, motivo pelo qual dispõe que “importa manter harmonizadas as condições de exigibilidade dos impostos especiais de consumo” (cf. Considerando 2º do Preâmbulo da Diretiva).

F. É entendimento pacífico da jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) que dentro de um sistema harmonizado de impostos, os Estados-Membros não podem impor mais restrições do que aquelas permitidas pelas Diretivas.

G. À luz dos princípios constantes da Diretiva 2008/118/CE e da jurisprudência do TJUE, é evidente que a limitação imposta pelo artigo 106º do CIEC e as medidas tomadas ao abrigo do regime descrito nos parágrafos precedentes - das quais constitui um exemplo claro a decisão impugnada - são contrárias ao regime da Diretiva 2008/118/CE, por criarem condições de diferenciação entre o mercado dos produtos de tabaco manufaturado português e dos restantes países comunitários.

H. Ao impor quantidades máximas de introdução no consumo a legislação portuguesa viola o disposto nos artigos 7º e 9º da Diretiva 2008/118/CE na medida em que impede o agente de introduzir no consumo, quando entender, as quantidades que pretende vender, o que determina que o pagamento do imposto não seja feito quando o agente decide introduzir no consumo o produto, mas sim quando, por força das restrições quantitativas, o produto é efetivamente colocado no consumo ou ainda, quando exista ultrapassagem dos limites, lhe seja imposto o pagamento do adicional de imposto, como no caso dos presentes autos.

I. Nos termos do disposto no preâmbulo da Diretiva n.º 2011/64/UE do Conselho, relativa à estrutura e taxas dos impostos especiais sobre o consumo de tabacos manufaturados, os objetivos fundamentais deste diploma são Estabelecer uma União Económica em que “exista uma concorrência sã” e que “apresente características análogas às de um mercado interno”; que, no entanto, “no que se refere ao setor dos tabacos manufaturados, a realização deste objetivo pressupõe que a aplicação, nos Estados-membros, dos impostos que incidem sobre o consumo dos produtos deste setor não falseie as condições de concorrência e não crie obstáculos à livre circulação na União” (considerando 3º do Preâmbulo) e garantir que a concorrência das diferentes categorias de tabacos manufaturados pertencentes a um mesmo grupo não seja falseada em consequência da tributação e que, concomitantemente, se concretize a abertura dos mercados nacionais dos Estados-membros (considerando 9º do Preâmbulo).

J. O CIEC estabelece limites legais às introduções no consumo de produtos de tabaco manufaturado, apenas permitindo que, em situações justificadas, a Administração Tributária autorize os operadores económicos a ultrapassarem tais limites, o que não sucedeu no caso vertente (apesar do pedido efetuado nesse sentido). Se a isto se somar o limite temporal à venda dos produtos no mercado (“proibição de comercialização”) temos implementado em Portugal um sistema que cria artificialmente, quer a montante, quer a jusante, condicionalismos à liberdade de circulação de mercadorias, em violação do disposto no artigo 34º do TFUE (sendo o mesmo insuscetível de justificação ao abrigo do art. 36.º TFUE e/ou da jurisprudência comunitária que resulta da sua interpretação).

K. Os motivos invocados pela República Portuguesa para justificar as limitações legais criadas (combate ao comércio ilícito de tabaco e garantia de receita fiscal) não são aptos para fundamentar o entorse criado, o que implicaria sempre uma violação do princípio da proporcionalidade, como bem nota a Comissão Europeia na ação intentada em 12 de março de 2015 contra a República Portuguesa (Processo C-126/15).

L. O artigo 267.º TFUE cumpre a função necessária para a harmonização comunitária ao permitir (e em certos casos impor) que se leve ao TJUE questões relativas à interpretação dos atos de direito europeu. Tal reenvio deve sempre acontecer quando um tribunal nacional se vê confrontado com uma situação de interpretação de uma norma comunitária cuja resolução se torne necessária para o julgamento do caso sub judicio – como sucede no caso dos presentes autos, tal como resulta de toda a alegação precedente – devendo ainda ter natureza obrigatória sempre que o tribunal nacional seja a última instância de recurso ordinário.

M. Na medida em que nos presentes autos apenas estão em causa questões contraditórias relativas à aplicação do direito comunitário, o presente Tribunal deverá utilizar o mecanismo do reenvio prejudicial para que o TJUE possa clarificar se, como a aqui Recorrente defende, normas como as constantes do artigo 106º CIEC, números 1, 2 e 7 com a redação em vigor à data dos factos violam ou não o disposto nos artigos 7º e 9º, da Diretiva n.º 2008/118/CE do Conselho, nos Considerandos (3) e (9) da Diretiva n.º 2011/64/UE do Conselho, no art. 28º e 34º do TFUE e o princípio da proporcionalidade, o que desde já se requer com caráter obrigatório, uma vez que o TCAS é a última instância de recurso no presente caso.

N. As normas contidas no artigo 106º, n.º 1, 2 e 7 do CIEC são, pois, ilegais e inconstitucionais (inconstitucionalidade indireta), pois violam o disposto nos artigos 7º e 9º, da Diretiva n.º 2008/118/CE do Conselho, nos Considerandos (3) e (9) da Diretiva n.º 2011/64/UE do Conselho, nos arts. 28º e 34º do TFUE e nos artigos 8.º, n.º 2 a 4, da Constituição da República Portuguesa (CRP).

O. Os Tribunais nacionais não poderão aplicar in casu o disposto no artigo 106º, n.ºs 1, 2 e 7 do CIEC, nem tão-pouco qualquer norma punitiva associada a estas normas, atendendo ao facto de lhes estar vedado - como dispõem os artigos 204.º da CRP e 1.º, n.º 2 do ETAF - a aplicação de normas direta ou indiretamente inconstitucionais.».

Pediu fosse concedido provimento ao recurso e fosse revogada a sentença recorrida.

A Recorrida apresentou contra-alegações, que resumiu nas seguintes conclusões:

1. Nestes autos discute-se a decisão de liquidação de €4607,69 de Imposto sobre o Tabaco (IST), efectuada pela Alfândega do Funchal por a Recorrente ter introduzindo no consumo cigarros, não respeitando o limite quantitativo mensal fixado, para os meses de setembro, outubro novembro e dezembro de 2010, conforme determina o art. 106° do Código dos Impostos Especiais de Consumo (CIEC), aprovado pelo DL n° 73/2010, de 21 de junho, que transpôs para a ordem jurídica interna portuguesa a Diretiva n° 2008/118/CE, do Conselho, de 16 de dezembro, relativa ao regime geral dos impostos especiais de consumo e que revogou a Diretiva n° 92/12/CEE, do Conselho, de 25 de fevereiro.

2. A Recorrente não respeitou o limite mensal de 1.644.005 cigarros fixado para o período de condicionamento de setembro a dezembro de 2010, o que justificou a liquidação de €4607,69 de Imposto sobre o Tabaco, conforme determina o n° 7 do art° 106° do CIEC.

3. A introdução no consumo de produtos sujeitos a impostos especiais não se confunde com a sua comercialização/venda ou consumo efetivo do produto, conforme se depreende do CIEC, em particular nos seus artigos 8°, 9° e 10°.

4. O art° 106° do CIEC específica as regras de introdução no consumo para o período que decorre de setembro a dezembro de cada ano, sendo que neste período, o operador económico deve respeitar os limites que lhe são fixados em função desse condicionamento, sob pena de lhe ser liquidado imposto à taxa em vigor na data da apresentação da declaração de apuramento, quanto às quantidades que excedam o limite, conforme determina o n° 7.

5. No período de janeiro a agosto de cada ano, cada operador económico pode introduzir no consumo toda quantidade de cigarros sem qualquer limitação quantitativa, pelo que não corresponde à verdade que o regime do art° 106° não permita que a introdução no consumo cresça mais de 10% ao ano.

6. A média mensal aplicável para os meses de setembro a dezembro reflete as introduções no consumo verificadas entre 1 de setembro do ano anterior até 31 de agosto do ano subsequente, acrescida de 10%.

7. E são os operadores económicos que, no exercício da sua atividade, decidem quais as suas opções em matéria comercial e de gestão.

8. A especificidade legal para o período de setembro a dezembro visa assegurar o regular funcionamento do mercado e a sã concorrência entre operadores económicos, de modo a evitar as distorções provocadas pela conduta dos operadores económicos que durante os meses que antecedem o aumento das taxas do imposto, resultante da aprovação da Lei do Orçamento do Estado para o ano seguinte, antecipam a introdução no consumo de cigarros nesses meses do ano, com vista à acumulação de stocks de cigarros, de forma a beneficiar de taxas mais baixas, comercializando os cigarros no ano seguinte, quando já está em vigor uma taxa mais elevada decorrente da entrada em vigor do Orçamento do Estado.

9. Conduta que prejudica os operadores económicos que introduzem os cigarros no consumo em função das suas necessidades, não acumulando stocks excedentários para o ano seguinte, e que provoca elevados prejuízos para a receita fiscal resultantes dessas introduções no consumo antecipadas.

10. O regime aplica-se a todos os operadores económicos que pretendam introduzir no consumo no mercado português cigarros durante os meses de setembro a dezembro.

11. Conclui-se que estamos perante um quadro legal adequado, necessário e equilibrado face aos interesses que se pretende salvaguardar, que não põe em causa o respeito do Direito da União Europeia.

12. O Art° 106° do CIEC não viola o art° 34° do TFUE porquanto não consubstancia nenhuma restrição quantitativa ou medida de efeito equivalente que possa impedir a livre circulação de mercadorias entre os Estados membros.

13. Também não configura qualquer violação da Diretiva n° 2008/118/CE e da Diretiva n° 2011/64/EU, pois a legislação nacional continua a referir que o imposto especial de consumo é exigível no momento da introdução no consumo em conformidade com os arts. 7.° e 9° da Diretiva 2008/118/CE.

O Ex.mo Senhor Procurador-Geral Adjunto, junto daquele Tribunal, teve vista dos autos e lavrou douto parecer, no sentido da improcedência do recurso.

Por decisão sumária da Ex.ma Relatora, o Tribunal Central Administrativo Sul julgou-se incompetente em razão da hierarquia e para conhecer do recurso e ordenou a remessa dos autos ao Supremo Tribunal Administrativo.

Neste Tribunal, o Ex.mo Senhor Procurador-Geral Adjunto remeteu para o parecer já elaborado e promoveu o prosseguimento dos autos.

1.2. Por acórdão proferido por este Supremo Tribunal em 12 de janeiro de 2022 foi determinado proceder ao reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça da União Europeia, para que este desse resposta às seguintes questões:

1.ª- Os limites quantitativos à introdução no consumo impostos pelo artigo 106.º do CIEC, na medida em que tenham por efeito condicionar os operadores, no último quadrimestre de cada ano, a introduzir no mercado as quantidades que não excedam as equivalentes à quantidade média mensal de cigarros introduzidos no consumo ao longo dos 12 meses imediatamente anteriores, podem constituir restrições quantitativas à importação ou medidas de efeito equivalente, para os efeitos do disposto no artigo 34.º do TFUE?

2.ª- A sujeição das quantidades de cigarros que excedam o limite quantitativo de introdução no consumo a que alude o n.º 2 do artigo 106.º do CIEC à taxa em vigor na data da apresentação da declaração de apuramento, nos termos do n.º 7 do mesmo dispositivo legal, contraria as regras relativas à exigibilidade dos impostos especiais sobre o consumo, introduzidas pelos artigos 7.º e 9.º da Diretiva 2008/118/CE do Conselho, de 16 de dezembro de 2008?

1.3. No acórdão de 21 de dezembro de 2023, prolatado no processo C-96/22, o Tribunal de Justiça da União Europeia declarou o seguinte:

1) Os artigos 34.° e 36.° TFUE devem ser interpretados no sentido de que não se opõem a uma legislação de um Estado-Membro que, para combater a evasão fiscal e as práticas abusivas e para proteger a saúde pública, prevê que a quantidade de cigarros introduzidos mensalmente no consumo por um operador económico no período que medeia entre 1 de setembro e 31 de dezembro de cada ano civil não pode exceder a quantidade média mensal de cigarros introduzidos no consumo por esse operador ao longo dos doze meses precedentes, acrescida de 10 %.

2) Os artigos 7.º e 9.º da Diretiva 2008/118/CE do Conselho, de 16 de dezembro de 2008, relativa ao regime geral dos impostos especiais de consumo e que revoga a Diretiva 92/12/CEE, devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma legislação nacional por força da qual a quantidade de cigarros que exceda o limite quantitativo de introdução no consumo previsto nessa legislação fica sujeita à taxa do imposto especial de consumo em vigor em data posterior à da sua introdução no consumo.

Notificadas da junção do acórdão do Tribunal de Justiça, as partes nada disseram.

Foram dispensados os vistos legais, pelo que cumpre decidir.


◇◇◇

2. Da factualidade relevante

No Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal foram dados como provados os seguintes factos: «(…)

A) Em 15-09-2010 a B..., S.A (Sucursal em Portugal) (impugnante) apresentou junto da Alfândega do Funchal declaração inicial das quantidades introduzidas no consumo de 1 de Setembro de 2009 a 31 de Agosto de 2010, para efeitos do disposto no n° 4 do art° 106° do CIEC (fls 3 a 6 do PA);

B) O limite quantitativo fixado para o período de condicionamento de 01-09-­2010 a 31-12-2010 foi de 1644005 cigarros (1494550 + (1494550 x 50%), nos termos dos n°s 1 e 2 do art° 106° do CIEC, conforme foi notificada a impugnante a 22-09-2010 (fls 10, do PA);

C) Em 18-01-2011 a impugnante informou a Alfândega do Funchal, para efeitos do n° 6 do art° 106° do CIEC, que de Setembro a Dezembro de 2010 tinha introduzido no consumo 21935000 cigarros (igual a 1096750 maços) (fls 16 a 19 do PA);

D) Em 18-11-2010 a impugnante solicitou uma autorização para os meses de Setembro a Dezembro de 2010 (fls 46 a 50, do PA);

E) Por despacho de 07-01-2011 o pedido referido no ponto anterior foi indeferido por ter sido ultrapassado os limites fixados e os fundamentos invocados não constituírem os requisitos exigidos pela lei: alteração brusca e limitada no tempo (fls 70 a 73, do PA);

F) Em 28-01-2011 a impugnante apresentou recurso hierárquico que foi indeferido (fls 78 a 96, do PA);

G) Foi efectuada a liquidação de imposto referente à introdução no consumo de cigarros no período do condicionamento (Setembro, Outubro e Novembro) previsto no art° 106° n° 1 do CIEC, em valores superiores ao limite estabelecido no n° 2, no montante de €4.607,69, acrescido de 1,80 do impresso de liquidação;».


◇◇◇

3. De direito

A questão fundamental a decidir é a de saber se o Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal incorreu em erro de julgamento ao concluir que as normas em que se baseia a liquidação impugnada não são incompatíveis com o direito da União Europeia.

A Recorrente entende que sim, porque também entende que a regra especial de sujeição dos cigarros ao pagamento do imposto à taxa em vigor na data de apresentação da declaração de apuramento [que deriva do artigo 106.º, n.º 7 do Código dos Impostos Especiais de Consumo (CIEC), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 73/2010, de 21 de junho] é incompatível com o regime geral dos impostos especiais de consumo estabelecido na Diretiva 2008/118/CE do Conselho, de 16 de dezembro de 2008 e, em particular, com os seus artigos 7.º e 9.º, relativos às condições de exigibilidade e a taxa a aplicar [ver as conclusões ”E” a “H” do recurso]

E porque entende que a regra de condicionamento que deriva do artigo 106.º, n.ºs 1 e 2, do CIEC, ao estabelecer limites quantitativos à introdução no consumo de cigarros, falseia a concorrência e atenta, por isso, contra os objetivos estabelecidos na Diretiva n.º 2011/64/UE do Conselho, relativa à estrutura e taxas dos impostos especiais sobre o consumo destes produtos, sendo ainda suscetível de entravar o comércio intracomunitário e, por isso, de constituir uma medida de efeito equivalente a restrições quantitativas à importação, expressamente proibida pelos artigos 28.º e 34.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE) e insuscetível de justificação ao abrigo do seu artigo 36.º [ver as conclusões “I” a “L” do recurso].

Assim, a Recorrente formulou junto do tribunal de recurso duas questões dependentes:

a) A questão de saber se a regra especial de sujeição do imposto prevista no n.º 7 do artigo 106.º do CIEC é incompatível com as regras relativas às condições de exigibilidade e a taxa a aplicar que derivam dos artigos 7.º e 9.º da referida Diretiva 2008/118;

b) A questão de saber se a regra de condicionamento que deriva dos n.ºs 1 e 2 do mesmo artigo 106.º é incompatível com as regras comunitárias que garantem a liberdade de circulação de mercadorias e proíbem as restrições quantitativas à importação.

Para responder a estas questões, o tribunal de recurso, através de acórdão proferido nos autos em 12 de janeiro de 2022, submeteu ao Tribunal de Justiça da União Europeia um pedido de decisão prejudicial relativo à interpretação dos artigos 34.º e 36.º do TFUE e dos artigos 7.º e 9.º do Diretiva 2008/118.

Assim, foi pedido ao órgão jurisdicional de reenvio que se pronunciasse sobre a questão de saber se os artigos 34.º e 36.º do TFUE devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma regra de condicionamento que se traduza no estabelecimento de um limite quantitativo à introdução no consumo de cigarros no último quadrimestre do ano civil como aquele que decorre daquela norma.

E foi pedido ao mesmo órgão jurisdicional que se pronunciasse sobre a questão de saber se os artigos 7.º e 9.º da Diretiva 2008/118 devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma regra especial que se traduza em sujeitar a quantidade de cigarros que exceda o limite quantitativo acima referido à taxa de imposto especial de consumo que esteja em vigor numa data posterior à da sua introdução no consumo.

À primeira questão, o Tribunal de Justiça respondeu que os artigos 34.º e 36.º do TFUE devem ser interpretados no sentido de que não se opõem a uma legislação de um Estado-Membro que, para combater a evasão fiscal e as práticas abusivas e para proteger a saúde pública, prevê que a quantidade de cigarros introduzidos mensalmente no consumo por um operador económico no período que medeia entre 1 de setembro de 31 de dezembro de cada ano civil não pode exceder a quantidade média mensal de cigarros introduzidos no consumo por esse operador ao longo dos doze meses precedentes, acrescida de 10%.

Assim, embora o Tribunal de Justiça tivesse concluído que uma medida que consista em impor limites à quantidade de cigarros que os operadores podem introduzir no consumo constitui uma medida de efeito equivalente a restrições quantitativas na aceção do artigo 34.º do TFUE (§ 35), também concluiu que tal medida pode ser justificada pelo objetivo de combater eventuais abusos (§§ 36 e 39) e, por essa via, justificar uma restrição à livre circulação de mercadorias (§ 41).

Por outro lado, o Tribunal de Justiça também esclareceu que a introdução no consumo de quantidades excessivas de maços de cigarros no final do ano, face a previsões de um aumento do imposto especial do consumo era suscetível de constituir uma forma de abuso para este efeito (§ 39).

E o que daqui decorre, desde já, é que a Recorrente não tem razão ao concluir que os motivos invocados pela República Portuguesa para introduzir o regime de condicionamento não seriam «aptos para fundamentar o entorse criado» [conclusões “J” e “L” do recurso].

É verdade que o Tribunal de Justiça também ressalvou que competia ao órgão de jurisdicional de reenvio verificar se esta medida se destinou a combater essa prática e a salvaguardar as receitas fiscais do Estado português (§§ 37 e 41). E que havia ainda que verificar se a medida em análise seria adequada para garantir a realização dos identificados objetivos e não ia além do necessário para os alcançar (§ 42).

Deve, porém, observar-se desde já que a Recorrente nunca pôs em causa que o regime de condicionamento à introdução no consumo de cigarros tivesse por objetivo combater a prática generalizada de antecipação da introdução no consumo de produtos de tabaco, durante os meses que antecedem o aumento das taxas do imposto e de, por essa via, evitar o pagamento da taxa em vigor na data em que, em condições normais, ela teria lugar.

Aliás, é a própria Recorrente a assumir que foi isso mesmo que o legislador pretendeu, ao invocar, no artigo 22.º da douta petição inicial, o preâmbulo do Decreto-Lei n.º 155/2005, de 8 de setembro, que introduziu o regime de condicionamento no ordenamento jurídico nacional (de resto, transcrito e reafirmado no parecer que juntou aos autos).

O que a Recorrente desde sempre defendeu, foi que uma gestão eficiente dos seus stocks de forma a minimizar os custos (fiscais) em que incorre não podia consubstanciar uma prática abusiva suscetível de justificar uma restrição à liberdade de circulação de mercadorias.

E foi esse entendimento que o Tribunal de Justiça inequivocamente infirmou no acórdão em análise.

Quanto ao problema de saber se a medida adotada é proporcionada aos objetivos prosseguidos pelo legislador nacional, não pode deixar de convocar-se o teor dos parágrafos 44 a 50 do aresto, onde o Tribunal de Justiça também concluiu que a legislação em causa é apropriada para alcançar, além do mais, o anunciado objetivo de combater as práticas abusivas, que a estrutura da norma não revela ter-se ido além do necessário para alcançar os objetivos prosseguidos e que o limite quantitativo imposto conjugado com a previsão da possibilidade da sua derrogação em caso de alteração brusca e limitada no tempo do volume de vendas apontam para o caráter proporcional do regime, que também não pode ser afetado pela possibilidade de instaurar um processo por infração contra o operador económico quando o limite for ultrapassado, nem pela circunstância de os maços de cigarros introduzidos no mercado não poderem ser vendidos além do terceiro mês do ano seguinte.

Todavia, a respeito da segunda questão, o Tribunal de Justiça respondeu que os artigos 7.º a 9.º da Diretiva 2008/118/CE do Conselho, de 16 de dezembro de 2008, relativa ao regime geral dos impostos especiais de consumo, devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma legislação nacional por força da qual a quantidade de cigarros que exceda o limite quantitativo de introdução no consumo previsto na nessa legislação fica sujeita à taxa do imposto especial de consumo em vigor em data posterior à da sua introdução no consumo.

Na essência, porque o poder dos Estados-Membros de determinação das condições de exigibilidade do imposto conferido pelo artigo 9.º, primeiro parágrafo, da Diretiva, não pode ser interpretado no sentido de que lhes é permitido derrogar as condições que dizem respeito ao momento em que o imposto especial de consumo se torna exigível, bem como à data relevante para a determinação da taxa de consumo aplicável (§§ 63 e 64).

Assim, o Tribunal de Justiça considera que a Diretiva impõe «de forma incondicional» que a exigibilidade do imposto esteja associada ao momento da introdução no consumo do produto sujeito a imposto e que a taxa aplicável seja «necessariamente» a vigente no momento dessa introdução no consumo (§ 65).

E especifica que o poder dos Estados-Membros de adotarem medidas destinadas a combater eventuais fraudes, evasões, e abusos fiscais, não pode prejudicar o objetivo de harmonização em conformidade com o objetivo prosseguido pela Diretiva indicado no seu considerando 8: o de uniformizar as condições relativas ao próprio conceito de exigibilidade (§ 68).

A este respeito, a Recorrida alega e conclui (conclusão 13.º das contra-alegações do recurso) que o artigo 106.º do CIEC não configura qualquer violação da Diretiva n.º 2008/118/CE, porque a legislação nacional continua a referir que o imposto especial de consumo é exigível no momento da introdução no consumo em conformidade com os artigos 7.º e 9.º da mesma Diretiva.

É verdade que as regras gerais do CIEC dispõem que o imposto é exigível no momento da introdução no consumo dos produtos a ele sujeitos e que a taxa a aplicar é a que estiver em vigor nesse momento.

Todavia, não são as regras gerais que estão aqui em causa. O que aqui está em causa é a regra especial que decorre do n.º 7 do referido artigo 106.º (conjugada com o seu n.º 6).

Dela decorre que a taxa de imposto incidente sobre cigarros cuja introdução no consumo exceda o limite quantitativo aplicável ao período de condicionamento é que vigora depois de findar o período de condicionamento, ou seja, a do ano seguinte.

E é este regime que o Tribunal de Justiça considera ser incompatível com os artigos 7.º e 9.º da referida Diretiva.

Existindo incompatibilidade entre disposições nacionais e comunitárias, deve prevalecer o regime que deriva do direito comunitário.

«Com efeito, tal como o TJUE tem salientado, designadamente no P. nº 106/77-“Simmenthal”, a sanção do primado do Direito Comunitário é a inaplicabilidade da norma estadual em questão, pois «todo o juiz nacional, demandado no quadro da sua competência, tem a obrigação de aplicar integralmente o Direito Comunitário e de proteger os direitos que este confere aos particulares, deixando inaplicável toda a disposição eventualmente contrária da lei nacional, seja anterior ou posterior à regra comunitária. (...) e impedir a formação válida de novos atos legislativos nacionais» na medida da sua incompatibilidade com o direito comunitário» - cit. acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 22 de março de 2017, processo n.º 0165/2013.

Pelo que o tribunal de primeira instância deveria ter julgado inaplicável a norma em que se baseia a liquidação impugnada. E, por conseguinte, ilegal a decisão administrativa que a aplicou no caso.

Não o tendo feito incorreu em erro de julgamento.

Pelo que o recurso merece provimento, por aqui.


◇◇◇

4. Conclusões

I. O artigo 106.º, n.º 7 do CIEC aprovado pelo Decreto-Lei n.º 73/2010 de 21 de junho, na parte em que determina que as quantidades de cigarros que excedam o limite quantitativo referido no seu n.º 4 ficam sujeitas ao pagamento do imposto à taxa em vigor na data da apresentação da declaração de apuramento, é incompatível com as normas constantes dos artigos 7.º e 9.º da Diretiva 2008/118/CE do Conselho, de 16 de dezembro de 2008;

II. A incompatibilidade entre uma norma interna e uma norma comunitária que deva prevalecer importa a inaplicabilidade da norma interna;

5. Decisão

Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os juízes da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo em conceder provimento ao recurso e, em consequência revocar a sentença recorrida e julgar a impugnação judicial procedente, anulando a liquidação impugnada com todas as consequências legais.

Custas em ambas as instâncias pela Recorrida.

Lisboa, 10 de abril de 2024. - Nuno Filipe Morgado Teixeira Bastos (relator) – Pedro Nuno Pinto Vergueiro – Jorge Miguel Barroso de Aragão Seia.