Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01603/08.0BEBRG
Data do Acordão:10/27/2021
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:FRANCISCO ROTHES
Descritores:REVISTA
APRECIAÇÃO PRELIMINAR
CPPT
Sumário:I - O recurso de revista excepcional previsto no art. 285.º do CPPT não corresponde à introdução generalizada de uma nova instância de recurso, funcionando apenas como uma “válvula de segurança” do sistema, pelo que só é admissível se estivermos perante uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental, ou se a admissão deste recurso for claramente necessária para uma melhor aplicação do direito, incumbindo ao recorrente alegar e demonstrar os requisitos da admissibilidade do recurso.
II - Por expressa disposição legal, «[o] erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova» (cf. art. 285.º, n.º 4, do CPPT).
Nº Convencional:JSTA000P28424
Nº do Documento:SA22021102701603/08
Data de Entrada:09/24/2021
Recorrente:A.................
Recorrido 1:AT – AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Apreciação preliminar da admissibilidade do recurso excepcional de revista interposto no processo n.º 1603/08.0BEBRG
Recorrente: A……………………
Recorrida: Autoridade Tributária e Aduaneira (AT)

1. RELATÓRIO

1.1 O acima identificado Recorrente, inconformado com o acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo Norte em 27 de Maio de 2021 (Disponível em http://www.dgsi.pt/jtcn.nsf/-/07acefa67b34b75e802586e7003e0631.) – que, concedendo provimento ao recurso interposto pela Fazenda Pública, revogou a sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, que, julgando procedente a impugnação judicial deduzida pelo ora Recorrente, anulara as liquidações adicionais de IVA e de IRS dos anos de 2003, 2004 e 2005 –, dele interpôs recurso para o Supremo Tribunal Administrativo, ao artigo do disposto no art. 285.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), apresentando as alegações de recurso, com conclusões do seguinte teor:

«1. Vem o presente recurso do douto acórdão do Tribunal Central Administrativo do Norte que revogou a douta sentença de 1.ª instância, por entender que esta padecia de erro de julgamento em matéria de facto.

2. Entende o ora recorrente que o TCA Norte decidiu relativamente a esta matéria em clara violação da lei substantiva ou processual, designadamente no que ao princípio da livre apreciação da prova e à modificabilidade da decisão de facto diz respeito, princípios previstos no art. 607.º n.º 5 do C.P.C. e no art. 662.º do C.P.C.

3. Acresce que o recurso não deveria ter sido sequer recebido pelo TCA Norte, devendo antes ter sido imediatamente rejeitado por incumprimento do art. 640.º do C.P.C.

4. Na verdade, para efeitos do disposto nos arts. 640.º do CPC, a exigência da concretização dos pontos de facto incorrectamente julgados, da especificação dos concretos meios probatórios convocados e da indicação da decisão a proferir, previstas nas als. a), b) e c) do n.º 1 do citado art. 640.º, integram um ónus primário, na medida em que têm por função delimitar o objecto do recurso e fundamentar a impugnação da decisão da matéria de facto. Nesta conformidade, a falta de especificação dos requisitos enunciados no n.º 1, als. a), b) e c) do referido art. 640.º implica a imediata rejeição do recurso na parte infirmada.

5. Em termos de impugnação da matéria de facto, a lei consagra assim um importante ónus de alegação, tendo por finalidade fundamental permitir, por um lado, o exercício eficaz do contraditório e, por outro, o julgamento adequado e seguro da impugnação da matéria de facto pelo tribunal ad quem, sendo insuficiente a referência meramente genérica dos factos, acarretando o incumprimento deste ónus de alegação, sem mais, a rejeição do recurso da impugnação da matéria de facto.

6. No caso dos autos, não tem qualquer sustentação ou fundamento o argumento do TCAN ao considerar que a Fazenda Pública “não pretende propriamente a reapreciação da prova gravada, mas antes que os depoimentos prestados não são bastantes para dar como provados os pontos 7) e 19) da matéria de facto assente na Sentença” (pág. 14), critério que aparenta erro ostensivo.

7. As alegações de recurso da Fazenda Pública deram entrada 38 dias após o início do prazo para interposição de recurso, pelo que necessariamente tinham por objecto a reapreciação da prova gravada, nos termos conjugados do disposto no art. 282º n.º 1 n.º 4 do CPPT (ex vi. art.. 144º n.º 1 e 4 do CPTA).

8. Se, como refere o TCAN, a Fazenda Pública não pretendia propriamente a reapreciação da prova gravada, o recurso teria de ser rejeitado por extemporâneo; versando o recurso a reapreciação da prova gravada, teria ser rejeitado por incumprimento da obrigação de impugnação especificada que resulta do artigo 640.º n.º 1 e 2 do C.P.C.

9. É inequívoco que a Fazenda Pública alicerçou a sua convicção relativamente à existência do alegado erro de julgamento da matéria de facto na prova testemunhal e declarações prestadas pelas testemunhas – Motivação, pontos 12, 18 e 20 e Conclusões – 2, 4 e 5.

10. Porém, fê-lo de forma meramente genérica, não cumprindo minimamente a obrigação de impugnação especificada que sobre si impendia e resulta do artigo 640.º do C.P.C.

11. Não tendo o recorrente dado cumprimento ao referido ónus de impugnação especificada, estava o Tribunal de recurso impossibilitado de proceder à modificação da decisão proferida em sede de matéria de facto pelo Tribunal a quo, devendo o recurso ser rejeitado.

12. O erro de julgamento tanto pode começar na interpretação e subsunção dos factos e do direito, como estender-se à sua própria qualificação, o que, em qualquer das circunstâncias, afecta e vicia a decisão proferida pelas consequências que acarreta, em resultado de um desacerto, de um equívoco ou de uma inexacta qualificação jurídica ou, como enuncia a lei, de um erro, não se confundindo a diferente valoração da prova com o erro de julgamento.

13. No julgamento da matéria de facto e na sequência dos princípios da imediação, da oralidade e da concentração, o tribunal aprecia livremente as provas, segundo a sua prudente convicção, art. 607.º, n.º 5 do CPC (princípio da livre apreciação da prova), ou seja, depois da prova produzida, o tribunal tira as suas conclusões, em conformidade com as suas impressões recém-colhidas e com a convicção que através delas se foi gerando no seu espírito, de acordo com as regras da ciência, do raciocínio, e das máximas da experiência, que forem aplicáveis, salvo previstos no n.º 2 do mesmo artigo.

14. A livre convicção tem que ser objectiva e motivada de modo a permitir um controlo pelos destinatários da mesma, pela sociedade e pelos tribunais de recurso, mas, verificada tal motivação, a mesma só nos casos excepcionais legalmente previstos (erro de julgamento e vícios) ou situações de arbitrariedade ou juízos puramente subjectivos e imotiváveis, é possível ser sindicada por um tribunal de recurso, de acordo com um critério de rigor que vise impedir que a impugnação da decisão da matéria de facto se banalize numa mera manifestação de inconsequente inconformismo.

15. Da leitura do texto da decisão de 1.ª instância, conjugada com as regras da experiência comum, facilmente se percebe que a mesma é escorreita, doutamente fundamentada e os juízos que são feitos são apreendidos pelo leitor comum, isto é, são lógicos, prudentes, não arbitrários e estribam-se nas referidas regras da experiência.

16. O TCAN, contrariando a convicção da Mma. Juíza de 1.ª instância que referiu ser assertivo e coerente o depoimento da testemunha …………, aqui posta em crise, limita-se a tecer considerações genéricas sobre a situação da testemunha, construindo uma teoria assente numa alegada vulnerabilidade da testemunha sem qualquer fundamento, pois não aponta em concreto, qualquer contradição ou falta de coerência, por menor que seja no depoimento desta, socorrendo-se exclusivamente do relatório inspectivo, elaborado ainda em sede de procedimento tributário, por 2 funcionários da Fazenda Pública, cujo depoimento, aliás, a Mma. Juíza de 1.ª instância, entendeu não valorar, de acordo com a sua interpretação e convicção formada em sede de julgamento.

17. Conforme se refere no Ac. TCAS P.º 3177/12.9BELRS CT-2º JUÍZO 12-12-2017: «Se a decisão do julgador, no que diz respeito à prova testemunhal produzida, estiver devidamente fundamentada e for uma das soluções plausíveis, segundo as regras da lógica, da ciência e da experiência, ela será inatacável, visto ser proferida em obediência à lei que impõe o julgamento segundo a livre convicção».

18. E no Ac. TCAS P.º 08238/14 CT- 2.º JUÍZO 22-10-2015: “Os depoimentos testemunhais, que a Recorrente pretende que sejam agora valorados diversamente do que o foram pelo Juiz a quo, de molde a levarem à alteração da matéria de facto, são, consabidamente, elementos de prova a apreciar livremente pelo Tribunal (artigos. 396.º do Código Civil e 607.º n.º 5 do Código de Processo Civil).
Se o julgador de 1.ª instância entendeu valorar diferentemente do ora Recorrente tais depoimentos, não pode este Tribunal Central de ânimo leve pôr em causa a convicção que aquele livremente formou, considerando, para além do mais, que dispôs de outros elementos ou mecanismos de ponderação da prova global que este Tribunal de recurso não detém”.

19. No caso dos autos, o que verdadeiramente sucede é que o recorrente entende que existe erro de julgamento porque o Tribunal a quo valorou de forma diferente, do por si defendido, os depoimentos prestados em audiência, o que não consubstancia um erro de julgamento mas, antes, uma diferente valoração da prova.

20. Conforme melhor consta no Ac. TCA Sul, 07/05/2020, P.º 615/12.4BEALM, “a crítica à convicção do Tribunal «a quo» sustentada na livre apreciação da prova e nas regras da experiência não pode ter sucesso se se alicerçar apenas na diferente convicção da recorrente sobre a prova produzida”.

21. Relativamente à questão que a recorrente Fazenda Pública suscitou no recurso, o TCAN não revelou o cumprimento das regras por que deve orientar-se um tribunal de instância, tendo em consideração os parâmetros que estão condensados no art. 662.º do CC, com destaque para o seu n.º 1, tendo procedido à reapreciação da matéria de facto com base em subterfúgios sustentados em meros argumentos de natureza genérica.

22. O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.

23. A necessidade da revista para a melhor aplicação do Direito há-de resultar (i) da possibilidade de repetição da questão em apreço noutros casos (ii) da necessidade de garantir a uniformidade na aplicação do Direito ou (iii) da circunstância de a decisão ser juridicamente insustentável.

24. «A admissão para uma melhor aplicação do direito justifica-se quando questões relevantes sejam tratadas pelas instâncias de forma pouco consistente ou contraditória, com recurso a interpretações insólitas, ou por aplicação de critérios que aparentem erro ostensivo, de tal modo que seja manifesto que a intervenção do órgão de cúpula da justiça administrativa é reclamada para dissipar dúvidas acerca da determinação, interpretação ou aplicação do quadro legal que regula certa situação» (ac. do STA - Secção do Contencioso Administrativo - de 9/10/2014, proc. n.º 01013/14).

25. «A exigência jurisprudencial de decisões expressas radica na circunstância de a decisão implícita não corresponder, normalmente, à ponderação das várias soluções jurídicas plausíveis da mesma questão o que leva à conclusão lógica de não se poder afirmar que se decidiu em termos opostos pois bem poderia acontecer que se o julgador equacionasse a questão, analisando a mesma à luz de outra ou outras soluções jurídicas, acabasse por perfilhar uma diferente (...)». - Acórdão do STA, proferido no processo n.º 1335/02 de 03.10.2002:

26. O recurso de revista para a melhor aplicação do Direito será verdadeiramente útil nas situações em que a questão em apreço foi decidida de maneira juridicamente insustentável e, mesmo não havendo ainda jurisprudência sobre determinada matéria, o STA pretende intervir para assim evitar que uma interpretação jurisprudencial menos correcta se comece a formar.

27. No caso dos autos, o TCAN decidiu de forma inconsistente e contraditória, por aplicação de critérios que aparentam erro ostensivo, em clara violação da lei processual, designadamente no que diz respeito ao ónus de impugnação a cargo do recorrente, previsto no art. 640.º n.º 1 e 2 do C.P.C., ao princípio da livre apreciação da prova, previsto no art. 607.º do C.P.C. e à modificabilidade da decisão de facto, prevista no art. 662.º do C.P.C., como decidiu ainda em sentido oposto às exigências legais que decorrem de tais normas, justificando-se plenamente a intervenção do STA para dissipar dúvidas acerca da interpretação do seu quadro legal e evitar que qualquer interpretação jurisprudencial menos correta se comece a formar.

TERMOS em que ao presente recurso deve ser dado provimento, revogando-se o douto acórdão recorrido, repondo-se o decidido na douta sentença de 1.ª instância, fazendo-se assim JUSTIÇA».

1.2 A Fazenda Pública não apresentou contra-alegações.

1.3 Dada vista ao Ministério Público, a Procuradora-Geral-Adjunta neste Supremo Tribunal Administrativo emitiu parecer no sentido da não admissão da revista.

1.4 Cumpre apreciar, preliminar e sumariamente, e decidir da admissibilidade do recurso, nos termos do disposto no n.º 6 do art. 285.º do CPPT.


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2. FUNDAMENTAÇÃO

2.1 DE FACTO

Nos termos do disposto nos arts. 663.º, n.º 6, e 679.º do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi do art. 281.º do CPPT, remete-se para a matéria de facto constante do acórdão recorrido.


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2.2 DE FACTO E DE DIREITO

2.2.1 DOS PRESSUPOSTOS DE ADMISSIBILIDADE DO RECURSO

2.2.1.1 Em princípio, as decisões proferidas em 2.ª instância pelos tribunais centrais administrativos não são susceptíveis de recurso para o Supremo Tribunal Administrativo; excepcionalmente, tais decisões podem ser objecto de recurso de revista em duas hipóteses: i) quando estiver em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, assuma uma importância fundamental ou ii) quando a admissão da revista for claramente necessária para uma melhor aplicação do direito (cf. art. 285.º, n.º 1, do CPPT).
Como decorre do próprio texto legal e a jurisprudência deste Supremo Tribunal tem repetidamente sublinhado, trata-se de um recurso excepcional, como de resto o legislador cuidou de sublinhar na Exposição de Motivos das Propostas de Lei n.ºs 92/VIII e 93/VIII, considerando-o como uma «válvula de segurança do sistema», que só deve ter lugar naqueles precisos termos.

2.2.1.2 Como a jurisprudência também tem vindo a salientar, incumbe ao recorrente alegar e demonstrar essa excepcionalidade: que a questão que coloca ao Supremo Tribunal Administrativo assume uma relevância jurídica ou social de importância fundamental ou que o recurso é claramente necessário para uma melhor aplicação do direito. Ou seja, em ordem à admissão do recurso de revista, a lei não se satisfaz com a invocação da existência de erro de julgamento no acórdão recorrido, devendo o recorrente alegar e demonstrar que se verificam os referidos requisitos de admissibilidade da revista (cf. art. 144.º, n.º 2, do Código de Processo dos Tribunais Administrativos e art. 639.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, subsidiariamente aplicáveis).

2.2.1.3 Por outro lado, a lei exclui expressamente do âmbito da revista o «erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa», «salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova» (cf. art. 285.º, n.º 4, do CPPT).

2.2.1.4 Na interpretação dos conceitos a que o legislador recorre na definição do critério qualitativo de admissibilidade deste recurso, constitui jurisprudência pacífica deste Supremo Tribunal, que «(…) o preenchimento do conceito indeterminado de relevância jurídica fundamental verificar-se-á, designadamente, quando a questão a apreciar seja de elevada complexidade ou, pelo menos, de complexidade jurídica superior ao comum, seja por força da dificuldade das operações exegéticas a efectuar, de um enquadramento normativo especialmente intricado ou da necessidade de concatenação de diversos regimes legais e institutos jurídicos, ou quando o tratamento da matéria tem suscitado dúvidas sérias quer ao nível da jurisprudência quer ao nível da doutrina. Já relevância social fundamental verificar-se-á quando a situação apresente contornos indiciadores de que a solução pode constituir uma orientação para a apreciação de outros casos, ou quando esteja em causa questão que revele especial capacidade de repercussão social, em que a utilidade da decisão extravasa os limites do caso concreto das partes envolvidas no litígio. Por outro lado, a clara necessidade da admissão da revista para melhor aplicação do direito há-de resultar da possibilidade de repetição num número indeterminado de casos futuros e consequente necessidade de garantir a uniformização do direito em matérias importantes tratadas pelas instâncias de forma pouco consistente ou contraditória – nomeadamente por se verificar a divisão de correntes jurisprudenciais ou doutrinais e se ter gerado incerteza e instabilidade na sua resolução a impor a intervenção do órgão de cúpula da justiça administrativa e tributária como condição para dissipar dúvidas – ou por as instâncias terem tratado a matéria de forma ostensivamente errada ou juridicamente insustentável, sendo objectivamente útil a intervenção do STA na qualidade de órgão de regulação do sistema» (Cf., por todos, o acórdão deste Supremo Tribunal Administrativo de 2 de Abril de 2014, proferido no processo n.º 1853/13, disponível em http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/-/aa70d808c531e1d580257cb3003b66fc.).

2.2.1.5 Vejamos, pois, se o recurso pode ser admitido para melhor aplicação do direito, que foi o requisito de admissibilidade ao abrigo do qual foi efectuado o pedido, designadamente se, como alegado pelo Recorrente, o Tribunal Central Administrativo Norte «decidiu de forma inconsistente e contraditória, por aplicação de critérios que aparentam erro ostensivo», relativamente às questões que o Recorrente enunciou como sendo as do «ónus de impugnação a cargo do recorrente, previsto no art. 640.º n.º 1 e 2 do C.P.C.», a do «princípio da livre apreciação da prova, previsto no art. 607.º do C.P.C.» e a da «modificabilidade da decisão de facto, prevista no art. 662.º do C.P.C.».

2.2.2 O CASO SUB JUDICE

2.2.2.1 A Fazenda Pública interpôs recurso da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, assacando-lhe erro de julgamento da matéria de facto, designadamente considerando que a prova produzida nos autos não permitia que a sentença considerasse provados, como considerou, os factos vertidos no probatório sob os n.ºs 7 e 19.
O Tribunal Central Administrativo Norte, apreciando o invocado erro de julgamento, após aprofundada apreciação da prova documental e testemunhal produzida nos autos, concluiu que esta não permitia dar como provada a matéria de facto que a sentença registou como provada sob os n.ºs 7 e 19.
Em consequência, considerou que a impugnação judicial, contrariamente ao que decidira o Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, não podia ser julgada procedente.

2.2.2.2 O Recorrente, inconformado com esse acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte que, concedendo provimento ao recurso interposto pela Fazenda Pública, revogou a sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga e, em substituição, julgou improcedente a impugnação judicial por ele deduzida contra diversas liquidações adicionais, vem pedir a este Supremo Tribunal que admita recurso excepcional de revista, relativamente às questões que se prendem com a inadmissibilidade do recurso interposto pela Fazenda Pública para o Tribunal Central Administrativo Norte, por incumprimento do ónus de impugnação previsto nos n.ºs 1 e 2 do art. 640.º do CPC (de que resultaria a intempestividade desse recurso), e com a impossibilidade de o Tribunal Central Administrativo Norte alterar a matéria de facto que a 1.ª instância deu como provada, por violação do princípio da livre apreciação da prova, previsto no art. 607.º do CPC, e dos pressupostos da modificabilidade da decisão de facto enumerados no art. 662.º do CPC.
Alegou o Recorrente, extensa e longamente, no sentido de demonstrar os erros de julgamento em que, a seu ver, incorreu o acórdão recorrido.

2.2.2.3 No entanto, antes de se conhecer da correcção do julgamento efectuado pelo Tribunal Central Administrativo Norte e como condição para esse conhecimento, é preciso verificar se estão verificados os requisitos da admissibilidade da revista.
A esse respeito, o ora Recorrente, após enunciar esses requisitos e teorizar em torno dos mesmos, bem como referir o entendimento jurisprudencial dos mesmos, concluiu: «Manifestamente a situação dos autos».
Se bem interpretamos a alegações de recurso e respectivas conclusões, o Recorrente considera que a admissibilidade da revista se impõe para melhor aplicação do direito em face do tratamento jurídico manifestamente errado (nas suas palavras, o Tribunal Central Administrativo Norte «decidiu de forma inconsistente e contraditória, por aplicação de critérios que aparentam erro ostensivo, em clara violação da lei processual»), a impor a intervenção do Supremo Tribunal Administrativo.
Acontece, porém, que esse alegado erro ostensivo ou insustentável não se verifica. Senão vejamos:
Relativamente à primeira questão suscitada pelo Recorrente – da admissibilidade do recurso interposto para o TCAN por incumprimento do ónus de impugnação previsto nos n.ºs 1 e 2 do art. 640.º do CPC e da consequente intempestividade desse recurso –, ela não foi suscitada perante o Tribunal Central Administrativo Norte, que também dela não conheceu.
Não pode, pois, agora ser objecto de recurso, uma vez que estes não se destinam a conhecer de questões novas.
Já as duas questões seguintes reconduzem-se ao julgamento da matéria de facto e à valoração da prova. A pretensão do Recorrente é, em última análise, que se sindique o julgado relativamente à factualidade que a sentença deu como provada sob os n.ºs 7 e 19 do probatório e que o Tribunal Central Administrativo Norte, no uso do poderes que lhe estão legalmente cometidos, considerou não ter suporte bastante na prova documental e testemunhal, a cuja reapreciação procedeu.
Ora, como deixámos já dito, resulta expressamente do n.º 4 do art. 285.º do CPPT, que «[o] erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova».
Na verdade, não pode este Supremo Tribunal em sede de recurso de revista sindicar o julgamento da matéria de facto efectuado pelas instâncias.
O recurso não pode, pois, ser admitido.

2.2.3 CONCLUSÕES

Preparando a decisão, formulamos as seguintes conclusões:

I - O recurso de revista excepcional previsto no art. 285.º do CPPT não corresponde à introdução generalizada de uma nova instância de recurso, funcionando apenas como uma “válvula de segurança” do sistema, pelo que só é admissível se estivermos perante uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental, ou se a admissão deste recurso for claramente necessária para uma melhor aplicação do direito, incumbindo ao recorrente alegar e demonstrar os requisitos da admissibilidade do recurso.

II - Por expressa disposição legal, «[o] erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova» (cf. art. 285.º, n.º 4, do CPPT).


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3. DECISÃO

Em face do exposto, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Supremo Tribunal Administrativo acordam, em conferência da formação prevista no n.º 6 do art. 285.º do CPPT, em não admitir o presente recurso.


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Custas pelo Recorrente.
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Lisboa, 27 de Outubro de 2021. – Francisco Rothes (relator) – Aragão Seia – José Gomes Correia.