Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01556/10.5BELRA
Data do Acordão:04/10/2024
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:ANÍBAL FERRAZ
Descritores:MUNICÍPIO
Sumário:Não é ilegal, nomeadamente nula, cláusula, constante de Protocolo, onde se estabeleceu que o “Município de … concederá, única e exclusivamente, aos actuais proprietários ou a sociedades de que estes sejam fundadores, isenção total de pagamento de todas as taxas e licenças, designadamente as relativas às infra-estruturas e ao loteamento urbano”.
Nº Convencional:JSTA000P32096
Nº do Documento:SA22024041001556/10
Recorrente:MUNICÍPIO DE SANTARÉM
Recorrido 1:AA E OUTROS
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (STA), com sede em Lisboa;

1

Município de Santarém, …, recorre de sentença, proferida no Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) de Leiria, em 8 de novembro de 2023, que julgou, além do mais, improcedente ação administrativa comum (Proposta, “contra AA, BB e DD, … , peticionando que seja declarada a nulidade da clausula 26.ª do Protocolo junto aos autos como documento n.º 1”.).
O recorrente (rte) produziu alegação e concluiu: «

A. A questão controvertida é exclusivamente questões de direito.

B. E contém ingredientes legais e constitucionais que permitem classificá-la com questão de relevo jurídico essencial para a Ordem Legal tributária e para apurar a autonomia da Câmara Municipal face aos poderes do próprio Município.

C. Tal controvérsia prende-se com a inclusão num Protocolo outorgado entre a Câmara Municipal de Santarém, uma clausula com o seguinte teor “O Município de Santarém concederá, única e exclusivamente, aos actuais proprietários ou a Sociedades de que estes sejam fundadores, isenção total de pagamento de todas as taxas e licenças, designadamente as relativas às infra-estruturas e ao loteamento urbano”.

D. A questão controvertida afigura-se de simples enunciação, sendo a seguinte:

1. O Município de Santarém outorgou com os Autores (nesta Acção) um Protocolo;

2. Acontece que nenhuma contrapartida dos Demandados, incluía qualquer infra-estruturação e, muito menos, qualquer loteamento, pois ficou tudo a cargo do Município.

3. Acontece igualmente que não se fixou, no indicado Protocolo, qualquer conexão entre um benefício para o Município e a correspondente isenção de pagamento,

4. O que se formalizou foi uma isenção “por grosso e a granel” (desculpe-se a descortesia…) pois consagrou-se “uma isenção total de pagamento de todas as taxas e licenças” (sic).

5. E a questão legal que se coloca é, na verdade, de simples enunciação: as isenções fiscais (de taxas e licenças) obedecem, ou não, ao princípio da legalidade?

6. Dito de outra forma: uma isenção de pagamento de uma taxa ou de um imposto tem, ou não, de obedecer ao princípio da tipicidade (ou seja, incompatível legalmente com a abstração ínsita na expressão “todas”);

7. Por outro lado, exprimindo as preocupações do Recorrente de outra forma: a mediação legal é, ou não, um pressuposto da isenção vocacionando o legislador, para além de tipicidade, indo mais longe, exigindo-se o respeito pela taxatividade?

8. Perante a omissão de norma legal, de identificação da concreta contrapartida para cada isenção, será lícito e legal que um Município possa isentar do pagamento:

- Total?

- De todas as taxas?

- De todas as licenças?

9. Independentemente do benefício concedido por um particular ao Município?

10. Mesmo que estejamos perante um elevado benefício, é lícito e legal, isentar totalmente de todas as taxas de licenças, devidas ao Município?

11. É esta, prima facie, a magna questão suscitada ao Venerando Supremo Tribunal.

E. Além do mais, a interpretação e aplicação que a Sentença recorrida confere ao Artigo 5.º do Regulamento Municipal de Liquidação e cobrança de taxas de Operações de Loteamento e de Obras de Urbanização e compensações, bem como ao Art.º 32 do DL 448/91 de 29 de Novembro na redacção dada pela Lei 26/96 de 1 de Agosto, bem como o Art.º 39, n.º 2 alínea l) e ainda os Art.ºs 19, A) E B), 2.º, N.º 3, alínea c), 16, n.º 1, alínea c); Art.º 33, 4.º, n.º 4 da Lei das Finanças Locais, e também o Art.º 39, n.º 2 alínea i) do DL 100/84, mostram-se materialmente inconstitucionais, por violação dos Artigos 18, n.º 2, 101, 103 e 238, n.º 2 da CRP, se interpretados no sentido de conferirem competência e faculdade para isentar total e absolutamente um munícipe de pagar todas e quais taxas, sem contrapartida adequada e, mesmo com contrapartida de vulto, renunciando prodigamente ao poder de tributar.

Termos em que a presente Revista deve ser admitida e, por consequência:

a) Declarar a ilegalidade e a consequente nulidade da clausula 26.ª do Protocolo sub judicio;

b) Declarar a ilegalidade e a inconstitucionalidade material das normas invocadas na Sentença e identificadas em sede de “Conclusões” quando interpretadas no sentido de facultarem aos Municípios, por via contratual, o poder de isentar irrestritamente os munícipes de pagar todas as taxas, em termos totais, repete-se, independentemente do benefício a conferirem por estes à comunidade e ao interesse público, assim se concedendo provimento ao presente Recurso. Para que se faça JUSTIÇA. »


*

A recorrida (rda) BB, …, formalizou contra-alegação com estas conclusões: «

i. Estamos perante um recurso de revista per saltum, pelo que apenas cabe ao Tribunal pronunciar-se sobre questões de direito, nos termos do artigo 151.º, n.º 1 do CPTA.

ii. Não entra no âmbito deste recurso o debate das vantagens e desvantagens obtidas pelas partes através do Protocolo celebrado.

iii. A questão controvertida apresentada e apenas a da validade das isenções acordadas entre as partes, dispostas na Cláusula 26.º do Protocolo por estas celebrado.

iv. A Cláusula 26.º tem por fundamento o artigo 5.º do Regulamento Municipal de Liquidação e Cobrança de Taxas e Operações de Loteamento e de Obras de Urbanização e Compensações (“Regulamento”).

v. O Regulamento foi aprovado pela Câmara Municipal de Santarém e pela Assembleia Municipal de Santarém.

vi. A Câmara tem competência para estipular tal isenção, tendo como base o Regulamento e as suas normas habilitantes.

vii. Das normas habilitantes em causa retira-se a capacidade e competência da Assembleia Municipal para aprovar o Regulamento.

viii. Uma leitura conjugada das normas da Lei das Finanças Públicas referidas ao longo destas alegações, permite concluir que o Município tem poder tributário próprio, tendo capacidade para criar taxas e dispor delas, uma vez que o montante com estas arrecadado se trata de receita sua.

ix. As autarquias têm poder para dispor de receitas que lhes cabem, como no presente caso.

x. Não estamos perante qualquer inconstitucionalidade.

xi. A CRP determina expressamente no seu artigo 238.º, n.º 4 que “as autarquias locais podem dispor de poderes tributários, nos casos e nos termos previstos na lei”.

xii. Não existe uma reserva de competência relativa quanto a criação específica de taxas, mas apenas quanto a criação do seu regime geral, nos termos do artigo 165.º, alínea i) da CRP.

xiii. O Protocolo celebrado, nomeadamente a Cláusula 26.º, corresponde a uma atuação por parte da Câmara Municipal dentro daquilo que são os seus poderes e a sua competência.

xiv. A Cláusula em discussão não sofre de qualquer vício de validade.

Nestes termos, e nos mais de direito que V. Exa. doutamente suprirá, se requer que o Tribunal não aceite o presente recurso, mantendo a decisão recorrida. »


*

O Exmo. Procurador-geral-adjunto emitiu parecer, no sentido de que, visto o valor da causa ser inferior a € 500.000,00, “o STA deve ser julgado incompetente, em razão da hierarquia, para conhecer do presente recurso jurisdicional, ordenando-se a baixa dos autos ao TCA SUL nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 151.º/4 do CPTA”.

*******


2

Na sentença recorrida, em sede de julgamento factual, consta: «

Com relevância para a decisão da causa, consideram-se provados os seguintes factos:

1) Em 30-03-1999, foi publicado no Diário da República, através do Aviso n.º ...9, o Regulamento Municipal de Liquidação e Cobrança de Taxas de Operações de Loteamento e de Obras de Urbanização e Compensações, aprovado pela Câmara Municipal de Santarém, em 10-02-1999, e pela Assembleia Municipal de Santarém, em 26-02-1999, no qual se prevê o pagamento de taxas, nomeadamente, por pedidos de informação, pedidos de licenciamento de loteamento e obras de urbanização, concessões de alvará, bem como, os respetivos montantes/formas de cálculo, constando, também, desse regulamento, designadamente, o seguinte:

(…)

Artigo 1.º

Lei habilitante

O Regulamento Municipal de Liquidação e Cobrança de Taxas de Operações de Loteamento e de Obras de Urbanização e Compensações tem o seu suporte legal no disposto nos artigos 32.º e 68.º-B do Decreto-Lei n° 448/91, de 29 de Novembro, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 25/92, de 31 de Agosto, pelo Decreto-Lei n.º 302/94, de 19 de Dezembro, pelo Decreto-Lei n.º 334/95, de 28 de Dezembro, e pela Lei n.º 26/96, de 1 de Agosto, bem como nas alíneas a) e b) do artigo 11.º da Lei n.º 42/98, de 6 de Agosto, e ainda na alínea a), do n.º 3, do artigo 51.º, conjugado com a alínea a), do n.º 2, do artigo 39.º do Decreto-Lei n.º 100/84, de 29 de Março, com a redação introduzida pela Lei n.º 18/91, de 12 de Junho;

(…)

Artigo 5.º

Isenções

1- Estão isentos da aplicação de taxas:

1.1 - Os loteamentos cuja execução tenha sido objecto de acordo celebrado entre o município e particulares, nomeadamente, os decorrentes da associação com os mesmos particulares nos termos da Lei dos Solos e desde que fique estabelecido no acordo a efetuar com a entidade loteadora. (…)” – cfr. documento a fls. 162 a 164 dos autos, que se dá aqui por integralmente reproduzido;

2) Em 09-12-1999, o Município de Santarém, representado pelo Senhor Presidente da Câmara Municipal de Santarém (1.º Outorgante), e os RR., comproprietários do prédio misto denominado “Quinta ...”, sito na Freguesia ..., Concelho de Santarém, o qual inclui os artigos rústicos n.ºs ... e ... e urbanos n.º ...92 e ...67, descrito na Conservatória do Registo Predial ..., sob o n.º ...06, conjuntamente com a Senhora CC, usufrutuária do dito prédio, entretanto falecida (2.ºs Outorgantes), celebraram um Protocolo no âmbito do qual as partes outorgantes assumiram um conjunto de compromissos referentes à Quinta ... – cfr. documento a fls. 29 a 43 dos autos (numeração do suporte físico, a que correspondem futuras referências sem menção de origem) que se dá aqui por integralmente reproduzido;

3) Na Cláusula 26.ª do Protocolo mencionado no ponto antecedente, ali incluída ao abrigo do disposto no artigo 5.º, ponto 1.1, do Regulamento mencionado no ponto 1) supra, consta o seguinte:

a. “O Município de Santarém concederá, única e exclusivamente, aos actuais proprietários ou a sociedades de que estes sejam fundadores, isenção total de pagamento de todas as taxas e licenças, designadamente as relativas às infra-estruturas e ao loteamento urbano”.

b. “Este benefício caduca em caso de transmissão ou cessão a terceiros de alguma parte social das sociedades de que os actuais proprietários sejam únicos fundadores, salvo se a transmissão for «mortis causa» ou a sociedades constituídas com os cônjuges, sucessores na linha recta ou entre irmãos.” – cfr. documento a fls. 29 a 42 dos autos, e por acordo, cfr. artigos 59.º e 60.º da p.i. e artigos 17.º a 20.º da contestação;

4) Em 26-02-2003, instaurou a Ré, BB, no, então, Tribunal Administrativo de Círculo de Coimbra, contra o Município de Santarém uma ação de responsabilidade contratual, por alegado incumprimento definitivo do Protocolo a que respeitam os dois pontos antecedentes, peticionando a condenação do Município de Santarém no pagamento de uma indemnização, a qual se encontra a correr termos na Secção do Contencioso Administrativo, do TAF de Coimbra, sob o n.º 81/03.5BTCBR - cfr. documento a fls. 43 a 87 dos autos que se dá aqui por integralmente reproduzido, e 129 a 161 dos autos;

5) O Município de Santarém contestou a ação mencionada no ponto antecedente, requerendo a sua total improcedência - cfr. documento a fls. 88 a 109 dos autos que se dá aqui por integralmente reproduzido;

6) Em 07-03-2005, o Município de Santarém apresentou, no âmbito do processo a que respeita o ponto 4) supra, um requerimento autónomo suscitando várias exceções - cfr. documento a fls. 110 a 117 dos autos que se dá aqui por integralmente reproduzido;

7) Ao requerimento mencionado no ponto antecedente, e a respeito da aí alegada invalidade da Cláusula 26.ª do Protocolo, anexou o Município de Santarém o ofício-circular n.º ...9 – 99.09.20, da DGAL - Direcção-Geral das Autarquias Locais, nos termos do qual se analisavam os poderes dos municípios para cobrar taxas e isentar do pagamento destes tributos - cfr. documento a fls. 118 dos autos que se dá aqui por integralmente reproduzido;

8) Em 24-05-2005, foi realizada, no âmbito do processo a que respeita o ponto 4) supra, audiência preliminar, tendo por despacho sido admitida a junção do referido requerimento, limitando, contudo, o seu teor apenas à matéria relativa à exceção da incompetência material do tribunal, considerando-se como não escritos os demais factos alegados e as exceções suscitadas, entre as quais se incluía a alegada invalidade da Cláusula 26ª do Protocolo - cfr. documento a fls. 119 dos autos, que se dá aqui por integralmente reproduzido;

9) O Município de Santarém interpôs recurso deste despacho para o Supremo Tribunal Administrativo por entender que as demais exceções por si suscitadas eram de conhecimento oficioso, nomeadamente a questão da invalidade da Cláusula 26.ª do Protocolo - cfr. Acórdão a fls. 132 a 150 dos autos;

10) Na sequência da interposição do recurso mencionado no ponto antecedente, os autos prosseguiram, tendo sido, em 6-10-2005, proferido despacho saneador, nos termos do qual as partes foram julgadas legítimas e julgada improcedente a exceção da incompetência material do tribunal - cfr. despacho saneador a fls. 120 a 131 dos autos, que se dá aqui por integralmente reproduzido;

11) Do despacho saneador mencionado no ponto antecedente o Município de Santarém interpôs novo recurso para o Supremo Tribunal Administrativo (STA) - cfr. Acórdão a fls. 132 a 150 dos autos;

12) Por Acórdão proferido a 22-05-2007, transitado em julgado, no qual foram apreciados os dois recursos mencionados nos pontos 9) e 11) supra, o STA concedeu parcial provimento ao recurso a que respeita o ponto 9), concretamente no que respeita à questão da alegada invalidade da Cláusula 26.ª do Protocolo nos seguintes termos:

(…)

“Neste quadro, de acordo com a alegação, apenas a invalidade indicada em último lugar, isto é, a que diz respeito á isenção fiscal, é susceptível de, em abstracto, configurar a nulidade da estipulação, em razão de o réu ter invadido a esfera das atribuições de outra pessoa colectiva de direito público (art. 133º/2/b) CPA). As demais, a provarem-se, serão causa de mera anulabilidade com origem no vício de incompetência relativa.

Posto isso, diremos que das excepções peremptórias deduzidas, em tese, só uma é susceptível de dar causa à nulidade do clausulado. É a matéria relativa á isenção fiscal que, assim, é do conhecimento oficioso (art. 286.º do C. Civil) e pode ser deduzida depois da contestação (art. 489.º/2 do C. P.Civil) ainda que como questão prejudicial por ser da competência do tribunal fiscal (cfr. arts. 51.º/3 do ETAF e 7º da LPTA).

Não pode, pois, manter-se a decisão recorrida na parte em que não aceitou a respectiva dedução.

(…)

“Na medida do exposto o recurso procede nesta parte devendo anular-se os termos subsequentes do processo que se mostrem inconciliáveis com esta decisão.”

(…)” - cfr. Acórdão a fls. 132 a 150 dos autos, que se dá aqui por integralmente reproduzido; »


***

Preliminarmente, importa registar que o STA é competente, maxime, na vertente da hierarquia, porque, constando da sentença recorrida “Fixa-se à presente ação o valor de 30.000,01 EUR - cfr. artigo 34.º, n.ºs 1 e 2 do CPTA (« Artigo 34.º


Critério supletivo
1 - Consideram-se de valor indeterminável os processos respeitantes a bens imateriais e a normas emitidas ou omitidas no exercício da função administrativa, incluindo planos urbanísticos e de ordenamento do território.
2 - Quando o valor da causa seja indeterminável, considera-se superior ao da alçada do Tribunal Central Administrativo.(…). »), tal como, em outras situações, iguais, já assumido por esta Secção de Contencioso Tributário, se tem de considerar estarmos na presença de “valor da causa indeterminada” e, consequentemente, preenchida a condição, quantitativa, prevista no art. 151.º n.º 1 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA).

Nada mais havendo que impeça prosseguir, continuando a ter por referência a decisão visada, conferimos que, aí, a par do julgamento e da fixação dos factos provados, acima transcritos, os quais, nesta sede, não são discutíveis (Não bastando, para tal, o manifestado, pelo rte, nos pontos 2. e 3. da conclusão D. (como aduz a rda, “ii. Nao entra no âmbito deste recurso o debate das vantagens e desvantagens obtidas pelas partes através do Protocolo celebrado”), face à sua, inequívoca, pretensão de, apenas, discutir “questões de direito” (conclusão A.); aliás, se assim não fosse, o STA seria incompetente…), em matéria “De direito” foi expendido: «

(…).

No âmbito dos presentes autos peticiona o Autor que seja declarada a nulidade da clausula 26.ª do Protocolo a que respeitam os pontos 2) e 3) supra.

Fundamenta, tal pedido, essencialmente alegando, para tanto, que o Município de Santarém não detinha poderes tributários para conceder isenções, que o princípio da legalidade (em geral), enquanto primariedade ou precedência da lei, impõe que a criação de novas taxas e a atribuição de isenções às mesmas deve constar de diploma legal ou, pelo menos, de regulamento em conformidade com a lei fundadora, não podendo ser, pois, tais tributos previstos e regulados por mera disposição contratual, referindo, ainda, que tais isenções, constantes do artigo 5º do Regulamento careciam de mediação legislativa, que não havia na altura, tendo em conta as leis habilitantes do Regulamento em causa, nas quais nada se prevê quanto à possibilidade de os particulares beneficiarem de quaisquer isenções do pagamento de taxas fixadas por via regulamentar, nem, subsequentemente, por ato administrativo ou por via contratual.

Vejamos.

Conforme resulta dos pontos 2) e 3) da fundamentação de facto em 9-12-1999, o Autor celebrou com os Réus um Protocolo no âmbito do qual as partes outorgantes assumiram um conjunto de compromissos referentes à Quinta ..., propriedade destes, tendo-se estabelecido no mesmo que o “Município de Santarém concederá, única e exclusivamente, aos actuais proprietários ou a sociedades de que estes sejam fundadores, isenção total de pagamento de todas as taxas e licenças, designadamente as relativas ás infra-estruturas e ao loteamento urbano”.

Ademais, no Regulamento Municipal de Liquidação e Cobrança de Taxas de Operações de Loteamento e de Obras de Urbanização e Compensações, aprovado pela Câmara Municipal de Santarém, em 10-02-1999, e pela Assembleia Municipal de Santarém, em 26-02-1999, no qual se prevê o pagamento de taxas, nomeadamente, por pedidos de informação, pedidos de licenciamento de loteamento e obras de urbanização, concessões de alvará, bem como, os respetivos montantes/formas de cálculo, previu-se, no seu artigo 5.º, que estavam isentos da aplicação de taxas os “loteamentos cuja execução tenha sido objecto de acordo celebrado entre o município e particulares” – cfr. ponto 1) da fundamentação de facto.

Assim, não há dúvida que aquela cláusula 26.ª, cuja declaração de nulidade se pretende, se encontra em conformidade com o citado artigo 5.º daquele Regulamento, porquanto o mesmo consubstancia um acordo entre o Município, Autor, e os particulares, aqui Réus, não se identificando, até este ponto da presente análise, qualquer invalidade.

Ou seja, desde já resulta que, a isenção em causa não assenta apenas na cláusula 26.ª daquele Regulamento, pois foi concedida ao abrigo daquele regulamento (aprovado, também, pela Assembleia Municipal), assim, não se pode considerar que a isenção da taxa em causa se encontre regulada, apenas, por mera disposição contratual, uma vez que a mesma se encontra, pelo menos, prevista e em conformidade com o Regulamento Municipal de Liquidação e Cobrança de Taxas de Operações de Loteamento e de Obras de Urbanização e Compensações do Município de Santarém.

No entanto, invoca o Autor que a própria norma do art.º 5º do Regulamento que permitia a isenção de taxas e ao abrigo da qual foi colocada aquela cláusula no contrato é ela mesma ilegal, à luz do que foi veiculado no Ofício circular n.º ...9, de 20/9/1999 da DGAL (junta a fls. 118 dos autos) e porque nenhuma lei permitia expressamente a concessão de isenções de taxas. Acrescenta, ainda, o Autor que está em causa o vício de usurpação de poderes que é definido como a prática pela Administração de um ato que é legalmente da competência de um órgão do poder político, legislativo ou judicial.

Sucede que, mais do que atentar no referido Ofício-circular, importa ter em conta a legislação aplicável e a Constituição da República Portuguesa, sendo certo que se da análise destes elementos resultar que a isenção em causa podia ser concedida se afigura ser completamente irrelevante o que conste naquele Ofício-circular.

Ora, do artigo 1.º do referido Regulamento Municipal de Liquidação e Cobrança de Taxas de Operações de Loteamento e de Obras de Urbanização e Compensações, sob a epígrafe, “Leis Habilitantes”, consta que o mesmo tem o seu “suporte legal” nos artigos 32.º e 68.º-B do Decreto-Lei n.º 448/91, de 29 de novembro, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 25/92, de 31 de Agosto, pelo Decreto-Lei n.º 302/94, de 19 de dezembro, pelo Decreto-Lei n.º 334/95, de 28 de dezembro, e pela Lei n.º 26/96, de 1 de agosto, bem como nas alíneas a) e b) do artigo 19.º (sendo a indicação do artigo 11.º manifesto lapso) da Lei n.º 42/98, de 6 de agosto, e ainda na alínea a) do n.º 3 do artigo 51.º, conjugada com a alínea a) do n.º 2 do artigo 39.º do Decreto-Lei n.º 100/84, de 29 de março, com a redação introduzida pela Lei n.º 18/91, de 12 de junho – cfr. ponto 1) da fundamentação de facto.

Importa, antes de prosseguir, ter em conta que o artigo 241.º da Constituição da República Portuguesa (CRP) prevê que as autarquias locais detêm competência regulamentar própria nos limites da Constituição, das leis e dos regulamentos emanados das autarquias de grau superior ou das autoridades com poder tutelar, dispondo, além disso, nos termos do artigo 238º, n.º 4, da Lei fundamental de “poderes tributários próprios, nos casos e nos termos previstos na lei.

Passemos então à análise das “Leis Habilitantes” referidas naquele Regulamento.

O citado artigo 32.º do Decreto-Lei n.º 448/91, de 29 de novembro, na redação aplicável, dada pela Lei n.º 26/96, de 1 de agosto, estabelecia no seu n.º 3 que o poder tributário dos municípios para proceder “à liquidação das taxas em conformidade com o regulamento aprovado pela assembleia municipal”, ou seja, em conformidade com o Regulamento referido supra, o qual, como se referiu, foi aprovado pela assembleia municipal de Santarém.

Por sua vez, o regime de Atribuições das Autarquias Locais e das Competências dos Respetivos Órgãos (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 100/84), na redação à data em vigor, previa a competência da assembleia municipal para, sob proposta ou pedido de autorização da câmara, “estabelecer, nos termos da lei, taxas municipais e fixar os respetivos quantitativos” (…) - cfr. artigo 39.º, n.º 2, alínea l).

Ademais a Lei das Finanças Locais (aprovada pela Lei n.º 42/98), na redação à data em vigor, atribuía aos municípios , no seu artigo 19.º, alíneas a) e b), poder tributário para cobrar taxas pela “realização, manutenção e reforço de infra-estruturas urbanísticas” e pela “concessão de licenças de loteamento, de licenças de obras de urbanização, de execução de obras particulares, de ocupação da via pública por motivo de obras e de utilização de edifícios, bem como de obras para ocupação ou utilização do solo, subsolo e espaço aéreo do domínio público municipal”.

Sendo certo que os municípios dispõem de poderes tributários conferidos por lei, nos termos do artigo 4º, n.º 1, da referida Lei.

Estabelece, ainda, o artigo 2.º, n.º 3, alínea c), da Lei das Finanças Locais, consagrando a autonomia financeira dos municípios, a atribuição de diversos poderes aos seus órgãos, designadamente, o de “arrecadar e dispor de receitas que por lei lhes forem destinadas e ordenar e processar as despesas legalmente autorizadas” (…).

Assim, dispondo, como se referiu o Município das respetivas receitas, este pode dispor do produto da cobrança de taxas por licenças concedidas, uma vez que este tem, não só, poderes para as cobrar, como ainda, estas constituem receitas suas – cfr. artigo 16º, n.º 1, alínea c) desta Lei.

Logo, consubstanciando as taxas uma receita própria, a autarquia tem o poder de dispor delas, incluindo de as isentar.

Ou seja, sendo as taxas uma receita própria, a autarquia tem o poder de dispor delas, desde que respeitando todas as normas legais, designadamente, o artigo 39.º, n.º 2, alínea i), do Decreto-Lei n.º 100/84, que faz depender a aprovação do referido Regulamento da assembleia municipal, sob proposta ou pedido de autorização da câmara, o que, como se viu, se verificou no presente caso.

Ademais, à luz das citadas normas, afigura-se que se o Município tem o poder de estabelecer normas quanto à incidência e o quantum das taxas devidas, designadamente, por pedidos de informação, pedidos de licenciamento de loteamento e obras de urbanização, concessões de alvará, como fez no regulamento em análise, e tal não é por este colocado em causa, também terá a correspondente competência para estabelecer isenções quanto às mesmas taxas, desde logo, porque tal se inscreve no poder tributário que a Constituição lhe confere, não ultrapassando os limites previstos nas referidas leis.

Não infirmando esta conclusão a mera circunstância de no artigo 33.º da Lei das Finanças locais se preverem isenções de todos os impostos, emolumentos, taxas e encargos de mais-valias devidos aos municípios e freguesias nos termos desta lei, apenas para o Estado seus institutos e organismos autónomos personalizados, municípios e freguesias. Sendo certo, que aquilo que esta norma pretende é apenas estabelecer isenções de todo o tipo de tributos e outros encargos, e não só taxas, para aquelas pessoas coletivas públicas, não tendo tido a pretensão de definir taxativamente todas as isenções relativamente aos tributos que as Autarquias podem cobrar ao abrigo da referida lei, não se podendo, por isso, considerar os particulares afastados da possibilidade de beneficiar de isenções de taxas municipais apenas pelo facto dos mesmos não estarem abrangidos neste artigo.

Acresce que o artigo 4.º, n.º 4, da mesma Lei das Finanças Locais permite por proposta da câmara municipal, através de deliberação fundamentada, conceder benefícios fiscais relativamente aos impostos a cuja receita tenha direito e que constituam contrapartida de fixação de projetos de investimentos de especial interesse para o desenvolvimento do município.

Ora, se pode conceder benefícios fiscais relativamente aos impostos a cuja receita tenha direito, e cujas normas de incidência subjetiva e objetiva, taxa aplicável/quantum não foram por si definidas, ainda mais, terá de se considerar ter poderes para conceder isenções quanto às taxas a que tenha direito, segundo o princípio de que se pode o mais, pode o menos, uma vez que a exigência constitucional relativa aos impostos é muito superior àquela que é imposta às taxas, atento o disposto no artigo 103.º, n.º 2, da CRP, apenas, como veremos, quanto aos impostos.

Assim, considerando que a cláusula 26.º aqui em causa foi acordada ao abrigo do artigo 5.º do referido regulamento, o qual foi aprovado pela assembleia municipal, à luz das citadas normas das referidas “Leis habilitantes” do mesmo regulamento, conclui-se que ao criar tal artigo (aprovado pela assembleia), o Município atuou dentro da sua competência regulamentar, ao abrigo do artigo 241.º da CRP, uma vez que a assembleia municipal tem poderes para, sob proposta ou pedido de autorização da câmara estabelecer, nos termos da lei, taxas municipais e fixar os respetivos quantitativos (artigo 39.º, n.º 2, alínea i), do Decreto-Lei n.º 100/84, na redação à data em vigor), quanto às taxas que legalmente pode cobrar, como as que estariam em causa na referida cláusula, atuando, assim, ao abrigo de poderes tributários próprios, previstos na lei, em conformidade com o artigo 238º, n.º 4, da Lei fundamental, tendo, portanto, atuado nos limites da Constituição e das leis.
Acresce que não é discutido pelas partes, encontrando-se estas de acordo quanto ao entendimento de que no que respeita à alínea i) do Art.º 165 da Constituição «a previsão de uma isenção do pagamento de taxas (designadamente de infra-estruturas e loteamentos urbanos) a favor dos RR. não competia à Assembleia da República, não se enquadrando na reserva de competência deste órgão», porquanto a «reserva de competência ficou confinada à definição do respectivo “regime geral”».
Verifica-se, portanto, que o Autor não invoca a nulidade em causa por força da aplicação deste artigo, não se impondo proceder à sua análise (como este vem, de resto, reforçar nas suas alegações finais).
Por outro lado, não se pode concordar com o Autor quando defende (em sede de alegações) que a isenção em causa viola o artigo 103.º, n.º 2, da CRP, que, segundo este, impõe que todas as isenções estejam previstas em “Lei”, dando exemplos de isenções previstas nos Códigos dos IRS, IVA e IRC, todos estes impostos.
Ora, o referido princípio constitucional, previsto no artigo 103.º, n.º 2, da CRP, que prevê que “os impostos são criados por lei, que determina a incidência, a taxa, os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes” apenas é aplicável, efetivamente, aos impostos e já não às taxas, até porque, conforme se explicitou, as autarquias têm poderes resultantes da Constituição, para, em sede regulamentar, estabelecer, designadamente, a “incidência” e o quantum (a “taxa”) relativa a determinadas taxas.
No sentido de que apenas os impostos se encontram sujeitos ao princípio da legalidade fiscal conforme se encontra previsto no artigo 103.º, n.º 2, da CRP, cfr. CASALTA NABAIS, Direito Fiscal, Almedina, 10ª ed., 2017, designadamente, págs. 31 (ver também a sua nota de rodapé 11) 42 a 43 e 46 a 47, e, também, GOMES CANOTILHO/ VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, I, 4ª ed., Coimbra, 2007, págs. 1091 a 1092 e 1094 e 1095.
Assim, não é possível concluir pela invalidade da referida cláusula, uma vez que ficou demonstrado que o Município tinha poderes para celebrar o contrato naqueles termos, à luz das referidas normas legais e regulamentares, não se tendo, portanto, verificado qualquer usurpação de poderes.
Nesta conformidade, impõe-se julgar a presente ação totalmente improcedente. »

Ponderada a crítica que o rte dirige ao, nestes termos, judiciado, concluímos assentar, fundamental, decisiva e exclusivamente, num conjunto de perguntas (pontos 5. a 10. da conclusão D.), as quais, com objetividade, na nossa avaliação, se mostram irrelevantes, inconsequentes e, por isso, insuficientes, no sentido de permitirem alicerçar um juízo de censura, por errado, ao entendido, no presente cenário fáctico-jurídico, pelo tribunal de 1.ª instância; ou seja, por outras palavras, a sentença recorrida decidiu bem…

Um apontamento final para, visto o teor da conclusão E., expressar, em singelo, que, sem prejuízo dos juízos, sobre (i)constitucionalidade de normas, efetivados na sentença recorrida, os quais corroboramos, nada mais há a decidir na matéria em apreço, porquanto, nesta sede, o rte, se apoia no pressuposto, não verificado, da ausência ou presença de “contrapartida” (por parte do munícipe envolvido).


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3

Face ao exposto, em conferência, na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, concordamos não prover o recurso.


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Custas pelo recorrente.

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[texto redigido em meio informático e revisto]


Lisboa, 10 de abril de 2024. – Aníbal Augusto Ruivo Ferraz (relator) - Gustavo André Simões Lopes Courinha - José Gomes Correia.