Acórdão do Tribunal dos Conflitos | |
| Processo: | 01439/23.9BEBRG |
| Data do Acordão: | 06/20/2024 |
| Tribunal: | CONFLITOS |
| Relator: | TERESA DE SOUSA |
| Descritores: | CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO DIREITO DE PROPRIEDADE TRIBUNAIS JUDICIAIS |
| Sumário: | É da competência dos Tribunais Judiciais julgar uma acção declarativa de simples apreciação negativa na qual a questão central é a da titularidade do direito de propriedade de um bem invocado pelos Autores e da sua defesa perante a actuação dos Réus. |
| Nº Convencional: | JSTA000P32415 |
| Nº do Documento: | SAC2024062001439 |
| Recorrente: | AA E OUTROS |
| Recorrido 1: | BB E OUTROS |
| Votação: | UNANIMIDADE |
| Área Temática 1: | * |
| Aditamento: | |
| Texto Integral: | Acordam no Tribunal dos Conflitos 1. Relatório AA e marido CC, e DD, identificados nos autos, intentaram no Juízo de Competência Genérica de Celorico de Basto do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, acção declarativa de simples apreciação negativa contra EE e mulher BB; FF e Junta de Freguesia ..., .... Na petição inicial formulam os seguintes pedidos: “a) Deve ser declarado judicialmente que os 1ºs Co-réus EE e esposa BB, o 2º Co-réu FF e a 3ª Co-ré Junta de Freguesia ... não são proprietários, nem possuidores legítimos de qualquer parcela de terreno que faça parte e se situe dentro dos limites do prédio rústico denominado “... ou ... e ... com montado junto”, descrito nos artºs 3º e 4º desta petição, pertencente em comunhão hereditária, à 1ª Co-Autora AA e a sua mãe e 2ª Co-Autora DD e através da qual parcela de terreno se fizesse o trânsito público de pessoas; b) Deve ser declarado judicialmente que sobre o referido prédio rústico denominado “... ou ... e ...”, com montado junto, identificado nos supra artigos 3º, 4º, 5º, 6º, 7º, 8º e 9º desta petição inicial não existe, nem nunca existiu certa faixa desse terreno afecta ou que tivesse estado afecta ao trânsito de pessoas sem descriminação ou que fosse utilizada livremente por toda a gente, declarando-se judicialmente que no interior desse prédio rústico “...” com montado junto, pertencente à 2ª Co-Autora AA e sua mãe DD, aqui 2ª Co-Autora, nunca existiu qualquer caminho público, designadamente aqueles que os 1ºs e 2ºs Co-Réus, alegada e pretensamente referem ter início na Rua ..., prolongar-se sobre a parcela de terreno em forma retangular e empedrada referida no artº 21º e 22º desta petição e na cláusula 7ª da transacção judicial celebrada na anterior acção nº 291/17.8T8CBT que correu termos pelo Juízo Central Cível de Guimarães – Juiz – inflectindo à esquerda no fim dessa parcela de terreno empedrada, prolongando-se pelo “...”, pelo lado norte e nascente deste e junto ao muro de pedra de vedação do prédio urbano dos 1ºs Co-Réus e que constitui a sua casa de habitação com logradouro, inscrito na matriz urbana da Freguesia ... no artigo ...27º e descrito na Conservatória do Registo Predial ... na ficha nº ...14 e mencionado nos números …5º e ...2º deste articulado, atento sempre o sentido ascendente, entrando na parte do montado que faz parte integrante do mencionado “...”, prosseguindo o seu itinerário junto dos limites Norte e Nascente, desse montado até atingir a Rua ... que confronta com este prédio rústico “...” pelo lado Nascente e Norte desde e consoante o alegado nos artigos 18º, 19º, 20º, 21º, 22º, 23º, 24º, 28º, 29º, 30º, 31º, 32º, 33º, 40º, 41º, 42º, 47º, 48º, 49º, 50º, 51º, 52º, 53º, 54º, 55º, 56º, 57º, 58º, 59º, 60º, 62º, 63º, 64º, 65º e 66º desta petição. c) Devem todos os 1ºs, 2º e 3º Co-Réus ser condenados solidariamente a pagar aos 1ºs Co-Autores AA e marido CC e à 2ª Co-Autora DD a quantia global de € 9.000,00, sendo € 3.000,00 para cada um dos três Co-Autores AA, CC e DD a título de compensação pelos danos não patrimoniais por estes sofridos, acrescida de juros de mora, calculados à taxa supletiva legal de 23%, vencidos desde a prolação da sentença e contados até integral pagamento dessas compensações aos Autores e dado o alegado nos artigos 72º, 73º, 74º, 75º, 76º e 77º desta petição; d) Devem todos os mesmos 1ºs, 2º e 3º Co-réus ser condenados solidariamente a pagar aos 1º e 2º Co-Autores AA e marido CC e DD, a título de indemnização pelos danos materiais por estes sofridos, a título de indemnização pelos danos materiais por estes sofridos, a quantia de € 2.400,00, acrescida de I.V.A. à taxa legal em vigor de 23%, sendo € 1.050,00 referentes aos danos sofridos pelos Autores e alegados nos artºs 34º, 35º, 36º, 37º, 38º e 39º e 40º € 950,00 referentes aos danos sofridos pelos mesmos Autores e alegados nos artºs 41º, 42º, 43º, 44º, 45º, 46º, e 47º e € 400,00 pelos danos alegados nos artigos 51º e 52º todos desta petição, a que acresce o respectivo I.V.A.; e) Devem os 1ºs, 2º e 3º Co-Réus ser condenados solidariamente a pagar juros de mora à taxa legal supletiva, a incidir sobre as quantias indemnizatórias referidas na anterior alínea d) deste petitório e contados desde a citação até integral pagamento dessas quantias; f) Devem todos os réus ser condenados solidariamente na sanção pecuniária compulsória a que alude o n.º 2 do artigo 384º do Cód. Proc. Civil que não deverá ser inferior a € 500,00 (quinhentos Euros) por cada dia ou parte dele de incumprimento da douta sentença que vier a ser proferida na presente acção – artº 829º-A do Cód. Civil. g) Devem todos os 1ºs, 2º e 3.ª Co-Réus ser condenados solidariamente a pagar aos 1ºs e 2.ª Co-Réus a título de danos patrimoniais futuros que estes venham a sofrer a indemnização que se liquidar em execução de sentença e a que deverão acrescer juros de mora à taxa legal de 4%, vencidos desde a citação para a presente acção e contados até integral pagamento dessa indemnização. h) Devem todos os réus ser condenados nas custas e tudo o mais que for de lei.” Alegam, em síntese, que as primeira e segunda Autoras são donas do prédio rústico identificado no artigo 3º da PI e que correu termos no Juízo Central Cível de Guimarães um processo que terminou em transação judicial, nos termos da qual os Réus reconheceram que os Autores eram donos e legítimos proprietários de duas parcelas de terreno, ali em causa, e que faziam parte do identificado prédio, tendo-as adquirido para arredondamento das extremas. Na mesma transacção judicial os Réus constituíram uma servidão de passagem, a pé ou com veículo, sem limitação de tempo, desde a via pública até ao referido prédio rústico e, por sua vez, os Autores constituíram a favor do prédio urbano dos primeiros Réus uma servidão de passagem exclusivamente a pé, ficando os Autores obrigados a colocar um portão no limite do seu prédio. Acrescentam que, em finais de 2019, o 2º Réu EE, acompanhado do Réu FF, invadiram o prédio destruindo uma vedação, o que lhes provocou danos. Entretanto, em 27.01.2020, os primeiros e segundo Réus invadiram novamente o referido prédio rústico e arrancaram e danificaram a vedação da parte de baixo do prédio, que havia sido colocada em cumprimento da transacção judicial, com recurso a uma máquina retroescavadora, o que também lhes causou danos. Segundo alegam, o Réu FF quando questionado sobre as razões daquele procedimento disse que os Autores não podiam ter colocado a vedação naquele terreno porquanto ali assentava o leito dum caminho público e que actuava por si e na qualidade de representante da Junta de Freguesia ..., da qual era presidente. Defendem os Autores que a versão da existência do caminho público “é rotundamente falsa e malévola e só visa prejudicar os Autores e beneficiar exclusivamente os 1.ºs Co-Réus” (artigo 57º da PI), procurando alterar a verdade dos factos, pois que tal caminho público nunca existiu. Reiteram que no interior daquele prédio rústico nunca existiu certa faixa de terreno afecta ao trânsito de pessoas sem discriminação que fosse utlizado livremente por todas as pessoas, nem alguma vez a junta de freguesia deliberou o que quer que fosse sobre o referido prédio rústico, nem nunca administrou qualquer faixa de terreno pertencente a esse prédio que estivesse afecta a caminho público. Os Réus contestaram por impugnação e por excepção. Na réplica os Autores, no que ora releva, pugnaram pela improcedência das excepções. Em 14.10.2022, o Juízo de Competência Genérica de Celorico de Basto proferiu decisão em que julgou verificada a excepção dilatória da incompetência material e declarou o Tribunal incompetente em razão da matéria para apreciação da acção. Os Autores interpuseram recurso dessa sentença e, por Acórdão de 20.04.2023, o Tribunal da Relação de Guimarães julgou improcedente a apelação e confirmou a decisão recorrida. Remetidos os autos ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga (TAF de Braga), foi aí suscitada a incompetência material e determinada a audição das partes a esse respeito. Pronunciaram-se os Autores no sentido de a competência material para apreciar a acção pertencer aos tribunais comuns e os Réus EE e BB, no sentido se ser materialmente competente o Tribunal Administrativo e Fiscal. Em 03.01.2024 foi proferida sentença a julgar aquele Tribunal incompetente em razão da matéria para conhecer da acção. Suscitada a resolução do conflito, foram os autos remetidos ao Tribunal dos Conflitos. Já neste Tribunal dos Conflitos as partes foram notificadas para efeitos do disposto no n.º 3 do artigo 11.º. da Lei n.º 91/2019. A Exma. Procuradora Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de a competência material para julgar a acção dever ser atribuída aos tribunais da jurisdição comum. 2. Os Factos Os factos relevantes para a decisão são os enunciados no Relatório. 3. O Direito O presente Conflito Negativo de Jurisdição vem suscitado entre o Juízo de Competência Genérica de Celorico de Basto do Tribunal Judicial da Comarca de Braga e o Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga. O Juízo de Competência Genérica de Celorico de Basto considerou que: “Ora, no caso concreto, e depois de invocar os factos jurídicos necessários à demonstração do seu direito absoluto violado (direito real de propriedade artigo 483.º, n.º 1, do Código Civil), invocam os Autores que o co-Réu FF atuando por si e na qualidade de representante da Junta de Freguesia ..., 3ª co-Ré, da qual é presidente, praticou atos lesivos desse invocado direito de propriedade para, a final, peticionar a condenação de todos os réus na reparação de tal evento lesivo [pedidos c) a g)]. Crê-se, pois, que ante o positivado nas citadas alíneas f) e g) do artigo 4.º, n.º 1 do ETAF e a interpretação exposta, a efetivação da responsabilidade civil extracontratual da Freguesia ... e do Presidente da Junta de Freguesia e subsequente ressarcimento dos danos alegadamente por estes provocados é da competência dos Tribunais Administrativos. Isto porque, é indubitável que a Freguesia é uma pessoa coletiva de direito público atenta a sua finalidade, modo de criação e titularidade de poderes de autoridade, e que o Presidente da Junta de Freguesia é titular do órgão coletivo Junta de Freguesia (…) É certo, porém, que, conjuntamente com a Freguesia ... foram demandados os Réus EE e BB. (…) Destarte, não obstante os 1.ºs Réus não sejam pessoas coletivas de direito público ou titulares de órgão, certo é que é, desde logo bastante a presença da 3ª co-Ré com a qualidade que a mesma assume para se julgarem como competentes os Tribunais Administrativos para o conhecimento das questões de responsabilidade civil envolvendo pessoas coletivas de direito público [pedidos c) a g) da petição inicial] Posto isto, e relativamente aos pedidos das als a) e b) cumpre dizer que os mesmos não configuram pedidos típicos de uma ação de reivindicação, sendo, ao invés, pedidos que visam obter unicamente a declaração da inexistência de um direito por parte de uma pessoa coletiva de direito público, porquanto tal como já se referiu supra, atenta a causa de pedir apresentada pelos Autores, apenas está em causa o pedido de reconhecimento da inexistência de um caminho público no seu prédio, já que relativamente aos 1.ºs co-Réus aqueles não alegam que estes se arrogam proprietários ou possuidores de qualquer parcela de terreno pertença do seu prédio. E os Autores peticionam o reconhecimento da inexistência de um caminho público no seu prédio em consequência de uma suposta apropriação irregular por parte da Administração (em concreto a Freguesia ... e o presidente de um órgão dessa pessoa coletiva de direito público), que passou a efetuar atos no seu prédio como se dele fosse dona, sem para o efeito estar munida do competente título que a habilitasse a fazê-lo (as chamadas atuações em vias de facto). Por outras palavras, atentos os fundamentos da ação, tal como foram explanados na petição inicial, os Autores pretendem reagir e defender-se face aos atos materiais alegadamente levados a cabo pela Ré Freguesia (através de um titular de um órgão dessa Freguesia – o presidente da Junta) de movimentação de terras levadas a cabo com a utilização de máquinas no seu prédio, que consideram ilegal e ilicitamente tomado, em parte, por uma pessoa coletiva de direito público Ora, o Decreto-Lei nº 214-G/2015 de 2/10 veio alargar o âmbito da competência da jurisdição dos tribunais administrativos à apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a condenação a remoção de situações constituídas em via de facto, cm que a Administração Pública atue sem título que as legitime, e que se enquadram no artigo 4 n º 1, al i) do ETAF e artigo 2º, nº 2, al i), do Código do Processo nos Tribunais Administrativos”. O Tribunal da Relação de Guimarães para o qual foi interposto recurso desta decisão entendeu: “Deste modo, atendendo ao objeto da ação, na configuração dada pelos autores na petição inicial, afigura-se-nos inteiramente correta a fundamentação vertida na decisão recorrida, porquanto nos presentes autos está efetivamente em causa, a título principal, apurar a responsabilidade civil extracontratual que vem imputada a pessoa coletiva de direito público (Freguesia ...) e ao Presidente da Junta de Freguesia (ora 2.º réu), enquanto titular de um órgão dessa freguesia, e o eventual ressarcimento de danos alegadamente provocados por estes no âmbito do exercício dos poderes que, de acordo com a própria alegação dos autores, foram assumidamente configurados pelo 2.º réu (Presidente da Junta de Freguesia ...) como inerentes ao exercício das respetivas funções públicas e por causa delas. (…) De forma idêntica, também na situação em análise nos presentes autos, e atentos os fundamentos concretamente invocados na petição inicial para sustentar os pedidos formulados, resulta inequívoco que os autores pretendem reagir face aos atos materiais alegadamente levados a cabo por parte da administração pública local (em concreto, a Freguesia ..., através do presidente de um órgão dessa pessoa coletiva de direito público), que passou a efetuar atos concretos no prédio em causa, arrogando-se como detentor de poderes que, de acordo com a própria alegação dos autores, foram assumidamente configurados por aquele como inerentes ao exercício das respetivas funções públicas e por causa delas, o que não é aceite pelos autores/recorrentes que negam qualquer título que legitime os referidos réus a fazê-lo, o que permite enquadrar os pedidos formulados nas als. a) e b) também no âmbito das ações que têm por objeto questões relativas à remoção de situações constituídas em via de facto, em que a administração atue sem título que a legitime, a que se refere a alínea i) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF. Com efeito, mesmo as ações de simples apreciação, positiva ou negativa, que visam obter a declaração de existência ou de inexistência de um direito ou de um facto, não excluem a efetiva e atual violação ou lesão do direito, embora também não o exijam. Nestes termos e pelos fundamentos expostos, importa reafirmar a incompetência absoluta, em razão da matéria, do Juízo de Competência Genérica de Celorico de Basto para conhecer e decidir do peticionado pelos autores no âmbito da presente ação, por estarmos efetivamente perante uma ação para a qual são materialmente competentes os Tribunais Administrativos, à luz das als. f), g) e i) do n.º 1, e n.º 2 do artigo 4.º do ETAF”. Por sua vez, o TAF de Braga também se julgou incompetente considerando: “(…) atentemos, então, nos termos da relação material controvertida, tal como a mesma é delineada pelos Autores. Segundo estes dizem, são proprietários de um determinado prédio, a que atribuem a designação de “...”. Sobre esse prédio incidirão outros direitos reais menores (segundo os Autores), nomeadamente servidões de passagem, mas nunca qualquer caminho público. E que, aliás, terão sido constituídos na sequência de transação judicial com a qual findou uma prévia ação que correu termos nos tribunais judiciais. Ainda de acordo com aquilo que os Autores invocam, o seu direito de propriedade, apesar de judicialmente reconhecido nos termos da transação a que aludem, foi perturbado por conluio ou comunhão de esforços entre os primeiros e os segundo co-Réus que, desta feita, destruindo inclusive obra feita ou em execução, vieram invocar a existência, no local, de um caminho público. Por isso mesmo, o que os Autores agora querem é ver esclarecido que o seu direito de propriedade não é afectado pela existência daquele suposto caminho. A título principal, o que está em causa é saber em que termos existe aquele direito de propriedade, porque é esse o fundamento essencial da causa de pedir. Ou seja, em nossa perspetiva, julgamos que, pela presente ação, aquilo que os Autores pretendem é a defesa daquele seu direito de propriedade, ainda que não pela via positiva (isto é, pedindo o seu reconhecimento), mas antes pela via negativa, v. g., pela declaração de que aquele direito não é afetado por qualquer outro. Noutros termos, o que se discute, a título principal, é se o direito de propriedade dos Autores está ou não a ser afetado pela existência (alegada) de um caminho público. E tem sido entendimento uniforme que em todas as questões relacionadas com direitos reais (a título principal), a competência material cabe aos tribunais judiciais. Assim, e por exemplo, no acórdão do Tribunal dos Conflitos de 03.11.2020, proferido no processo n.º 07/20, afirmou-se o seguinte: (…) De salientar que este aresto já tem por base a nova redação do ETAF, nomeadamente quanto à introdução da previsão da alínea i) do n.º 1 do art.º 4.º daquele diploma. Paralelizando, também neste caso concreto aquilo que os Autores invocam é o seu direito de propriedade sem qualquer afetação ou oneração pela existência de um caminho público. Os Autores poderiam ter configurado a ação no sentido de pedir a remoção de situações constituídas em via de facto, o que permitiria aplicar o disposto naquela alínea do ETAF, mas não o fizeram, já que optaram por um pedido de indemnização (dependente da procedência do pedido principal). Portanto, ainda que não se possa afirmar que estamos perante uma ação de reivindicação (nos termos em que esta é concetualmente definida no art.º 1311.º do Código Civil), certo é que em causa está a invocação e a defesa do direito de propriedade dos Autores. Sendo certo, competirá acrescentar, que não se discute a simples delimitação entre o domínio público ou privado, mas simplesmente a prevalência absoluta do direito de propriedade privada. Note-se que em certas decisões o Tribunal dos Conflitos tem feito apelo ao critério do efeito prático-jurídico associado aos pedidos formulados (dado que o pedido, como se sabe, consiste no efeito jurídico cuja produção o autor de certa ação pretende obter). Ora, o efeito prático-jurídico pretendido pelos Autores, ainda que optando por uma ação de simples apreciação negativa, consiste no reconhecimento da ausência de qualquer oneração do seu direito de propriedade, evitando, dessa forma, que o mesmo seja perturbado pelos Réus. Em bom rigor, os Autores podiam até ter optado por essa via, deduzindo a respetiva ação de reivindicação, que se destina “a afirmar o direito de propriedade e a pôr fim à situação decorrente de atos que o violem, visando, primeiramente, a declaração de existência do direito e, posteriormente, a sua realização, integrando por tal motivo dois pedidos: o de reconhecimento do direito e o de restituição da coisa, objeto desse direito”. Como referido, os Autores poderiam ter pedido o reconhecimento do seu direito sobre aquela parcela, pedindo a respetiva restituição, se dela estiverem privados, com a consequente remoção dos efeitos da situação de facto criada. Optaram pela simples apreciação negativa, que, além da vantagem de inversão do ónus da prova, trará o mesmo efeito prático-jurídico: a demonstração de que não existe qualquer ónus sobre o seu prédio, salvo os constituídos pela transação que invocam. E a causa de pedir consiste precisamente nesse direito de propriedade, que os Autores não poderão deixar de provar, pois que, como referido no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 16/10/2012, proferido no processo n.º 50/09.1TBALD.C1, “o ónus da prova do direito de propriedade caberá ao autor (artº 342º, nº 1, do CC) e o atinente ao pedido de simples apreciação negativa, de inexistência de servidão ou caminho público a limitá-lo, caberá ao réu (artº art. 343.º, n.º 1, do CC).” O que se discute, assim, é se existem ou não quaisquer limitações ao direito de propriedade dos Autores, e é este direito de propriedade privada que está em causa e que funda a presente ação. Mas mesmo que se considerasse que a causa de pedir assentava na ausência de caminho público (sem prescindir do acima referido quanto ao real fundamento da ação, que é o direito de propriedade privada e a sua tutela), sempre seria de referir que o Tribunal dos Conflitos já se pronunciou sobre a questão da competência para conhecer de ações relativas ao reconhecimento de caminhos públicos, tendo concluído: “os tribunais judiciais são os competentes para conhecer de acção popular, na qual o autor pede que os réus sejam condenados a reconhecer que determinado caminho pertence ao domínio público” – cf. acórdão daquele Tribunal de 19/11/2009, proferido no processo n.º 016/09. Com a alteração de que, neste caso, o que se discute é se o direito de propriedade não é perturbado ou afetado pelo caminho público. (…) Nesta medida, entendemos que este Tribunal Administrativo não é materialmente competente para conhecer de um litígio no qual se discute se o direito de propriedade dos Autores não é onerado pela passagem de um caminho público. Por outro lado, a decisão sobre o pedido de indemnização caberá igualmente ao Tribunal competente para julgar os referidos pedidos, atendendo à sua relação de dependência, já que não é possível conhecer desse pedido sem, antes, tomar conhecimento do primeiro, e se este for procedente”. Vejamos. Cabe aos tribunais judiciais a competência para julgar as causas “que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional” [artigos 211º, nº 1, da CRP, 64º do CPC e 40º, nº 1, da Lei nº 62/2013, de 26 de Agosto (LOSJ)], e aos tribunais administrativos e fiscais a competência para julgar as causas “emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais” [artigos 212º, nº 3, da CRP e 1º, nº 1, do ETAF].” A competência dos tribunais administrativos e fiscais é concretizada no artigo 4º do ETAF com delimitação do “âmbito da jurisdição” mediante uma enunciação positiva (nºs 1 e 2) e negativa (nºs 3 e 4). Tem sido reafirmado por este Tribunal, e constitui entendimento jurisprudencial e doutrinário consensual, que a competência material do tribunal se afere em função do modo como o Autor configura a acção e que a mesma se fixa no momento em que a acção é proposta. Como se afirmou no Acórdão deste Tribunal de 01.10.2015, Proc. 08/14, «A competência é questão que se resolve de acordo com os termos da pretensão do Autor, aí compreendidos os respectivos fundamentos e a identidade das partes, não importando averiguar quais deviam ser os termos dessa pretensão, considerando a realidade fáctica efectivamente existente ou o correcto entendimento do regime jurídico aplicável. O Tribunal dos Conflitos tem reafirmado constantemente que o que releva, para o efeito do estabelecimento da competência, é o modo como o Autor estrutura a causa e exprime a sua pretensão em juízo». Analisados os termos e teor da petição inicial constata-se estarmos perante um litígio cuja causa de pedir se situa no âmbito dos direitos reais. Com efeito, a pretensão principal que os Autores enunciam na presente acção visa a declaração judicial de que os Réus não são proprietários, nem possuidores legítimos de qualquer parcela de terreno que faça parte e se situe dentro dos limites do prédio rústico denominado “... ou ... e ... com montado junto”, descrito nos artigos 3º e 4º da petição inicial, de que alegam ser proprietários, e que nesse referido prédio rústico não existe, nem nunca existiu, certa faixa desse terreno afecta ou que tivesse estado afecta ao trânsito de pessoas ou que fosse utilizada livremente por toda a gente, pois ali nunca existiu qualquer caminho público (cfr. alíneas a) e b) do pedido). Alegam que “são donas e legítimas possuidoras” desse prédio rústico, que lhes assiste o direito “de usar, fruir e dispor de modo pleno e exclusivo do direito de propriedade sobre tal prédio rústico – artº 1305º do Código Civil”, que “todos os réus são obrigados a reconhecer-lhes este direito de propriedade com todas as consequências legais – art. 1311º do Código Civil” e que têm o direito de “usar dos meios necessários tendo em vista a defesa desse seu direito de propriedade, designadamente a lançar mão da presente acção” (cfr. artigos 79 a 82 da PI). Assim, em face dos termos em que apresentam o litígio, afigura-se que os Autores se assumem titulares de um direito de propriedade sobre o prédio rústico em causa, que pretendem defender esse direito através da interposição da presente acção, que configuram como acção declarativa de simples apreciação negativa e não como típica acção de reivindicação prevista no artigo 1311.º, do Código Civil, e que visa o reconhecimento judicial da inexistência de limitações ao invocado direito de propriedade sobre esse prédio, nos termos das alíneas a) e b) do pedido. Em suma, pretendem defender o seu direito de propriedade. Este Tribunal dos Conflitos tem uniformemente entendido que pertence aos tribunais judiciais a competência para conhecer de acções em que se discutem direitos reais, incluindo com a cumulação de pedidos indemnizatórios decorrentes da invocada violação do direito de propriedade (cfr. Acórdãos de 30.11.2017, Proc. 011/17, de 13.12.2018, Proc. 043/18, de 23.05.2019, Proc. 048/18, de 23.01.2020, Proc. 041/19, de 02.03.2021, Proc. 062/19 e de 21.09.2022, Proc. 02539/21.5T8PRD-S1, todos consultáveis em www.dgsi.pt). Como se escreveu no acórdão deste Tribunal dos Conflitos de 03.11.2020, Proc. 07/20: “Tem sido reafirmado por este Tribunal, e constitui entendimento jurisprudencial e doutrinário consensual, que a competência material do tribunal se afere em função do modo como o A. configura a acção e que a mesma se fixa no momento em que a acção é proposta. Ora, o que a autora pediu ao Tribunal na presente acção foi que seja reconhecida e declarada a sua propriedade sobre o terreno e que a ré reponha e restitua no estado em que se encontrava no momento imediatamente anterior ao início dos trabalhos de execução da conduta de água, pedindo-se igualmente, a condenação da ré em indemnização pelos prejuízos patrimoniais sofridos pela privação do uso da parcela de terreno e outros danos patrimoniais a liquidar em execução de sentença. (…) Com efeito, a matéria alegada pelo autor visa em primeira linha, alicerçar o pedido de reconhecimento do seu direito de propriedade sobre o imóvel e a condenação do R. na sua restituição. Por sua vez o R. alega que o terreno em causa integra o domínio público, para, por esta via, justificar a ocupação. Estamos, assim, perante uma típica ação de reivindicação (cfr. art. 1311º do Cód. Civil), pelo que a competência para apreciar a pretensão do autor, cabe aos tribunais judiciais, e não à jurisdição administrativa (art. 64º do CPC)”. E, situações equiparáveis à presente haviam já sido apreciadas neste Tribunal dos Conflitos, como é o caso do acórdão de 23.05.2019, Proc. nº 048/18, no qual se expendeu o seguinte: «(…) Com a alteração promovida em 2015, o artigo 4.º n.º 1 do ETAF encontra-se agora estruturado como se de uma enumeração taxativa se tratasse, ainda que esta natureza de elenco fechado seja meramente aparente, por força da “cláusula aberta” constante da alínea o), determinando a extensão da jurisdição às “relações jurídicas administrativas e fiscais que não digam respeito às matérias previstas nas alíneas anteriores”. (…) Com a reforma de 2015, a al. i), do nº 1 do art. 4º do ETAF passou a atribuir à jurisdição administrativa a competência para apreciar litígios que tenham por objeto questões relativas a “condenação à remoção de situações constituídas em via de facto sem título que as legitime”. (…) Com a referida previsão normativa procurou-se dar resposta às dúvidas que então se suscitavam quanto a saber se o julgamento das situações de «via de facto» competia aos tribunais administrativos ou aos tribunais judiciais, ficando com a revisão de 2015, assegurado que “o pedido de restabelecimento de direitos ou interesses violados a que se refere a al. i) do nº 1, do art. 37º, do ETAF pode ser deduzido, não apenas para obter a remoção de efeitos produzidos por atos administrativos ilegais, mas também para reconstituir a situação jurídica que deveria existir, na sequência de operações materiais praticadas pela Administração sem título que o legitime (v. Mário Aroso de Almeida e Carlos Cadilha, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Almedina, 2017, pág. 259). (…) Poderá também colocar-se a questão de saber se os litígios relativos à apreciação de uma “apropriação irregular”, cuja diferença face à “via de facto” é apenas de grau de gravidade que se reconhece à ilegalidade subjacente à intervenção da entidade pública, ficaram, com a revisão de 2015, no domínio dos tribunais administrativos. Neste conflito, que somos chamados a dirimir, discute-se precisamente se a nova alínea i) do art. 4º, nº 1 do ETAF abrange, ou não as ações reais como a dos autos, em que a controvérsia se centra primacialmente no reconhecimento do direito de propriedade sobre o imóvel reivindicado, face à atuação de uma entidade administrativa alegadamente ofensiva do direito de propriedade invocado pelo autor. Importa, consequentemente, trazer à colação o disposto no art. 9º do CC, onde se prescreve que a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada (nº 1), não podendo, no entanto, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso (nº 2). Ora, nesta tarefa interpretativa, partindo da letra da lei e convocando quer o elemento histórico, quer o elemento racional ou teleológico, nos termos já supra aludidos, afigura-se-nos que a norma em causa deve ser interpretada no sentido de atribuir a competência aos tribunais administrativos para as ações em que a competência apenas está em causa a remoção de atuações ilegais da Administração. Se, porém, se discutir a titularidade do direito de propriedade sobre o imóvel em questão, a competência continua a caber à jurisdição comum.» Os pedidos indemnizatórios mostram-se dependentes do que vier a ser decidido quanto ao pedido principal, tratam-se de pedidos que na economia da acção não têm autonomia, "sendo uma mera decorrência da pretensa violação do direito de propriedade e que, por isso, não relevam para a determinação da competência material do tribunal” (cfr. Acórdão do Tribunal dos Conflitos de 23.01.2020, Proc. 041/19). É esta jurisprudência que se reitera, apesar de aqui não se tratar de uma acção de reivindicação, mas de uma acção declarativa de simples apreciação negativa, uma vez que a questão central neste processo é a da titularidade do direito de propriedade de um bem invocado pelos Autores e da sua defesa perante a actuação dos Réus. Deste modo, a competência material para conhecer a presente acção cabe aos tribunais judiciais. Pelo exposto, acordam em julgar competente para apreciar a presente acção o Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juízo de Competência Genérica de Celorico de Basto. Sem custas. Lisboa, 20 de Junho de 2024. – Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa (relatora) – Nuno António Gonçalves. |