Acórdão do Tribunal dos Conflitos | |
| Processo: | 0310/20.0BEPRT |
| Data do Acordão: | 04/30/2025 |
| Tribunal: | CONFLITOS |
| Relator: | TERESA DE SOUSA |
| Descritores: | CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO DIREITO DE PROPRIEDADE TRIBUNAIS JUDICIAIS |
| Sumário: | Compete aos Tribunais Judiciais conhecer de um litígio em que se discutem direitos reais, uma vez que as pretensões formuladas radicam no invocado direito de propriedade e na sua defesa perante a actuação alegadamente ilegítima da Ré. |
| Nº Convencional: | JSTA000P33678 |
| Nº do Documento: | SAC202504300310 |
| Recorrente: | AA |
| Recorrido 1: | A..., S.A. |
| Votação: | UNANIMIDADE |
| Área Temática 1: | * |
| Aditamento: | |
| Texto Integral: | Conflito nº 310/20.0BEPRT Acordam no Tribunal dos Conflitos 1. Relatório AA, identificada nos autos, intentou no Juízo Local Cível de Vila Nova de Gaia do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, acção contra EP – Estradas de Portugal, E.P.E., formulando os seguintes pedidos: “I- Deve ser declarado que: a) A A. É dona e proprietária do identificado prédio; b) A parcela de terreno nº 3 é parte integrante do referido prédio; c) Está a R. obrigada a destruir a obra identificada que fez no prédio da Autora e a devolver a aludida parcela à Autora, livre e devoluta de pessoas e bens no estado anterior à obra executada por si. II- Deve ser a Ré condenada: d) Reconhecer quanto vem peticionado será declarado; e) Destruir a obra identificada que fez no prédio da autora e a devolver a aludida parcela à Autora livre e devoluta de pessoas e bens e no estado anterior à obra executada por si.” A Autora alega, em síntese, que é proprietária do prédio rústico, que identifica, adquirido por doação de seu pai, invoca a sua posse e prática de todos os actos inerentes a um proprietário. Mais alega que em 1993 a Ré ocupou uma parcela do referido prédio e aí construiu uma obra, variante de estrada nacional, sem qualquer título, autorização ou consentimento para o efeito, e sem pagar qualquer indemnização. Deste modo, a Autora reivindica o seu direito de propriedade, peticionando a devolução da dita parcela de terreno, livre e devoluta de pessoas e bens e no estado em que se encontrava antes da ocupação. A Ré contestou por impugnação e por excepção, arguindo a incompetência material do Tribunal e a prescrição. Em 22.11.2019, o Juízo Local Cível de Vila Nova de Gaia, Juiz 5, decidiu declarar o Tribunal incompetente, em razão da matéria, para conhecer do objecto dos autos. Remetidos os autos ao Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto (TAF do Porto), foi aí determinada a notificação da Autora para se pronunciar sobre a matéria da excepção invocada na contestação. A Autora pronunciou-se só quanto à prescrição, defendendo, no entanto que, no caso dos autos, “está em causa apenas e só a reivindicação e entrega do prédio que a Autora se arroga proprietária”. Após várias vicissitudes, foi suscitada a incompetência material e determinada a audição das partes a esse respeito. Pronunciou-se a Ré no sentido de a competência material para apreciar a acção pertencer aos tribunais administrativos e fiscais. Em sentença proferida em 09.10.2024, o TAF do Porto declarou-se incompetente em razão da matéria para conhecer da acção. Suscitada a resolução do conflito negativo de jurisdição, foram os autos remetidos ao Tribunal dos Conflitos. Já neste Tribunal dos Conflitos as partes foram notificadas para efeitos do disposto no n.º 3 do artigo 11.º da Lei n.º 91/2019. O Exmo. Procurador Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de a competência material para julgar a acção deverá ser atribuída aos tribunais da jurisdição comum, mais precisamente ao Juízo Local Cível de Vila Nova de Gaia. 2. Os Factos Os factos relevantes para a decisão são os enunciados no Relatório. 3. O Direito O presente Conflito Negativo de Jurisdição vem suscitado entre o Juízo Local Cível de Vila Nova de Gaia do Tribunal Judicial da Comarca do Porto e o Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto. O Juízo Local Cível de Vila Nova de Gaia considerou que: “Compulsada a petição inicial, constata-se que, efectivamente, a autora sustenta os pedidos com que termina aquela peça processual em uma alegada ocupação abusiva, por parte da ré, de parcela do terreno de que aquela arroga proprietária, de tal passo que é nessa sustentação fáctica que, uma vez demonstrada, pretende ser indemnizada sob a forma de reconstituição natural, isto é, repondo a situação existente em momento anterior à obra executada. (…) Assim, a autora conduz a petição inicial que propõe sustentada no desenho jurídico da responsabilidade civil extracontratual, o que faz contra uma empresa de direito público, assim designada pelo artigo 4.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 91/2015, de 29 de Maio. Nesta conformidade, ensina o artigo 4.º, n.º 1, alínea h), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (aprovado em anexo à Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 02 de Outubro), que (…), servindo assim por dizer que, competente para a presente acção são, não os Tribunais Comuns, mas os Tribunais Administrativos e Fiscais. Poder-se-ia ensaiar uma objecção: o pedido arquitectado, pela autora, sob a forma de alínea e), é no fundo o único pedido em discussão, de tal passo que todos os outros se encontram, nesse, implícitos, o que leva ao derradeiro conclusivo de que aquilo que a autora pretende é, na verdade, ver a ré condenada à remoção de situações constituídas em via de facto, sem título que as legitime. Mesmo a entender-se assim, sempre seriam os Tribunais Administrativos e Fiscais os competentes para dirimir as teses em confronto, atento o vertido no artigo 4.º, n.º 1, alínea i), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.”. Por sua vez, o TAF do Porto também se julgou incompetente considerando: “(…) a factualidade essencial que sustenta a pretensão da autora tem enquadramento nas denominadas acções possessórias, para cuja apreciação são competentes os tribunais judiciais, nos termos do artigo 211º, nº 1 da CRP e do artigo 64º do CPC. Acresce que, do confronto do pedido com a causa de pedir resulta, ainda, que a autora peticiona o reconhecimento do direito de propriedade sobre o prédio em causa e a sua consequente restituição, livre de pessoas e bens. Isto é, a factualidade essencial expendida pela autora tem enquadramento nas normas dos artigos 1311º e seguintes do CC, e, nessa conformidade, para o efeito são competentes os tribunais judiciais, nos termos do artigo 211º, nº 1 da CRP e do artigo 64º do CPC. Frise-se que, na jurisprudência do Tribunal dos Conflitos, vem-se entendendo, com estabilidade, que, para o conhecimento de acções de reivindicação, a competência em razão da matéria cabe à jurisdição comum. (…) Assim, à luz da jurisprudência que vem citada, estando em causa, nos presentes autos, acção de reivindicação da propriedade, e consequente restituição da posse, prevista no artigo 1311º do Código Civil, concluímos que a apreciação do presente litígio se encontra excluída da competência dos tribunais inseridos na jurisdição administrativa e fiscal à luz do disposto no artigo 4º, nº 1 do ETAF, por insusceptibilidade de subsunção do caso dos autos à fattispecie da alínea i) do nº 1 do artigo 4º do ETAF, sendo competentes para a apreciação de tal litígio os tribunais integrados na jurisdição comum.”. Vejamos. Cabe aos tribunais judiciais a competência para julgar as causas “que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional” [artigos 211.º, n.º 1, da CRP; 64.º do CPC; e 40.º, n.º 1, da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto (LOSJ)], e aos tribunais administrativos e fiscais a competência para julgar as causas “emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais” [artigos 212.º, n.º 3, da CRP e 1.º, n.º 1, do ETAF].” A competência dos tribunais administrativos e fiscais é concretizada no artigo 4º do ETAF com delimitação do “âmbito da jurisdição” mediante uma enunciação positiva (nºs 1 e 2) e negativa (nºs 3 e 4). Tem sido reafirmado por este Tribunal, e constitui entendimento jurisprudencial e doutrinário consensual, que a competência material do tribunal se afere em função do modo como o Autor configura a acção e que a mesma se fixa no momento em que a acção é proposta. Como se afirmou no Acórdão deste Tribunal de 01.10.2015, Proc. 08/14, «A competência é questão que se resolve de acordo com os termos da pretensão do Autor, aí compreendidos os respectivos fundamentos e a identidade das partes, não importando averiguar quais deviam ser os termos dessa pretensão, considerando a realidade fáctica efectivamente existente ou o correcto entendimento do regime jurídico aplicável. O Tribunal dos Conflitos tem reafirmado constantemente que o que releva, para o efeito do estabelecimento da competência, é o modo como o Autor estrutura a causa e exprime a sua pretensão em juízo». Analisados os termos e o teor da petição inicial constata-se estarmos perante um litígio cuja causa de pedir se situa no âmbito dos direitos reais. Com efeito, a pretensão principal que a Autora enuncia na presente acção visa o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre o prédio rústico identificado, do qual a parcela em questão é parte integrante, pedindo por isso que a Ré seja condenada a destruir a obra que efectuou na referida parcela sem o seu consentimento e sem receber qualquer indemnização, e a devolvê-la livre e devoluta e no estado em que se encontrava antes da ocupação. Assim, em face dos termos em que apresenta o litígio, a relação controvertida é uma relação de direito privado, trata-se da defesa do direito de propriedade e da posse de um prédio rústico, na sua integralidade. A presente acção não foi configurada como uma acção de responsabilidade civil extra-contratual, não havendo nela elementos que permitam enquadrá-la na alínea h) do n.º 1 do art. 4º do ETAF. De igual modo, o litígio não se enquadra na previsão da alínea i) do nº 1 do art. 4º do ETAF que atribui competência à jurisdição administrativa e fiscal para apreciação de questões respeitantes “à condenação à remoção de situações constituídas em via de facto, sem título que as legitime”, porque, como se disse, a questão central da acção diz respeito à titularidade do direito de propriedade e de posse de uma parcela de um imóvel, que a Autora pretende ver reconhecido. Ora, este Tribunal dos Conflitos tem uniformemente entendido que pertence aos tribunais judiciais a competência para conhecer de acções em que se discutem direitos reais, (cfr., entre outros, os Acórdãos de 30.11.2017, Proc. 011/17, de 13.12.2018, Proc.º 043/18, de 23.05.2019, Proc. 048/18, de 23.01.2020, Proc. 041/19, de 02.03.2021, Proc. 062/19, de 21.09.2022, Proc. 02539/21.5T8PRD-S1 e de 15.11.2023, Proc. 010/23, todos consultáveis em www.dgsi.pt/). Em situação semelhante à presente, expendeu-se no acórdão deste Tribunal dos Conflitos de 23.05.2019, Proc. 048/18: «Com a reforma de 2015, a al. i), do nº 1 do art. 4º do ETAF passou a atribuir à jurisdição administrativa a competência para apreciar litígios que tenham por objeto questões relativas a “condenação à remoção de situações constituídas em via de facto sem título que as legitime”. (…) Com a referida previsão normativa procurou-se dar resposta às dúvidas que então se suscitavam quanto a saber se o julgamento das situações de «via de facto» competia aos tribunais administrativos ou aos tribunais judiciais, ficando com a revisão de 2015, assegurado que “o pedido de restabelecimento de direitos ou interesses violados a que se refere a al. i) do nº 1, do art. 37º, do ETAF pode ser deduzido, não apenas para obter a remoção de efeitos produzidos por atos administrativos ilegais, mas também para reconstituir a situação jurídica que deveria existir, na sequência de operações materiais praticadas pela Administração sem título que o legitime (v. Mário Aroso de Almeida e Carlos Cadilha, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Almedina, 2017, pág. 259). (…) Poderá também colocar-se a questão de saber se os litígios relativos à apreciação de uma “apropriação irregular”, cuja diferença face à “via de facto” é apenas de grau de gravidade que se reconhece à ilegalidade subjacente à intervenção da entidade pública, ficaram, com a revisão de 2015, no domínio dos tribunais administrativos. (…) Neste conflito, que somos chamados a dirimir, discute-se precisamente se a nova alínea i) do art. 4º, nº 1 do ETAF abrange, ou não as ações reais como a dos autos, em que a controvérsia se centra primacialmente no reconhecimento do direito de propriedade sobre o imóvel reivindicado, face à atuação de uma entidade administrativa alegadamente ofensiva do direito de propriedade invocado pelo autor. Importa, consequentemente, trazer à colação o disposto no art. 9º do CC, onde se prescreve que a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada (nº 1), não podendo, no entanto, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso (nº 2). Ora, nesta tarefa interpretativa, partindo da letra da lei e convocando quer o elemento histórico, quer o elemento racional ou teleológico, nos termos já supra aludidos, afigura-se-nos que a norma em causa deve ser interpretada no sentido de atribuir a competência aos tribunais administrativos para as ações em que a competência apenas está em causa a remoção de atuações ilegais da Administração. Se, porém, se discutir a titularidade do direito de propriedade sobre o imóvel em questão, a competência continua a caber à jurisdição comum.» É esta jurisprudência que se reitera, por também aqui se tratar de uma acção no âmbito dos direitos reais, uma vez que as pretensões formuladas radicam no invocado direito de propriedade e na sua defesa perante a actuação alegadamente ilegítima da Ré. Deste modo, a competência material para conhecer a presente acção cabe aos tribunais judiciais. Pelo exposto, acordam em julgar competente para apreciar a presente acção o Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Local Cível de Vila Nova de Gaia, Juiz 5. Sem custas. Lisboa, 30 de Abril de 2025. – Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa (relatora) – Nuno António Gonçalves. |