Sentença de Julgado de Paz
Processo: 35/2019-JPCRS
Relator: ELISA FLORES
Descritores: USUCAPIÃO
Data da sentença: 05/08/2019
Julgado de Paz de : CARREGAL DO SAL
Decisão Texto Integral: SENTENÇA
Demandantes:
- A, e mulher B;
Demandados:
- C, viúvo;
- D e mulher, E;
Na qualidade de herdeiros de G.
RELATÓRIO
Os demandantes propuseram contra os demandados, acima identificados, a presente ação declarativa para autonomização de parcela com base na usucapião, que se enquadra na alínea e) do nº 1 do artigo 9.º da Lei n.º 78/2001, de 13 de julho, pedindo, com os fundamentos constantes do requerimento inicial, o reconhecimento de que é atualmente um prédio autónomo do prédio originário, que se condene os demandados no reconhecimento e aceitação da constituição e existência deste prédio como autónomo e distinto daquele, assim como o direito de propriedade exclusiva dos demandantes sobre o mesmo, e em consequência, ordenar a atribuição de artigo matricial e registo a seu favor, cessando a sua compropriedade na restante área do prédio originário.
Para o efeito juntaram catorze documentos, que aqui se dão por reproduzidos. Os demandados, regular e pessoalmente citados, não apresentaram contestação mas compareceram na Audiência de Julgamento onde prestaram declarações, bem como os demandantes.
Só os demandantes apresentaram prova testemunhal.
Valor da ação: Fixo em € 2 501,00 (dois mil quinhentos e um euros).
FUNDAMENTAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO:
Consideram-se provados os seguintes factos:
1.º- Encontra-se inscrito matriz predial sob o artigo 3529º da freguesia de H, concelho de I, em nome da Herança de G, e descrito na Conservatória de Registo Predial de I sob o nº 631/-----------, em nome da mesma falecida G e do primeiro demandado, seu viúvo, o prédio rústico sito ao Castelão, na freguesia da H, concelho de I, composto por terra de cultura com oliveiras, fruteiras e videiras, com a área total de 3861,10m2, a confrontar a Norte com Herdeiros de J, a Sul com L e outro, a Nascente com M e a Poente com N;
2.º- A nua propriedade deste prédio veio à posse do primeiro demandado e da falecida G, por Escritura de doação de 13 de fevereiro de 1980 de seus pais e sogros, respetivamente: O e P;
3.º- Tendo estes na mesma Escritura reservado o usufruto, vitalício, para si; 4.º- Em 1997, faleceram os usufrutuários, sendo P em 29 de janeiro e O em 1 de fevereiro;
5.º- E embora vários anos antes estes tenham, verbalmente, renunciado ao usufruto a favor do aqui primeiro demandado e da sua falecida esposa, nunca o fizeram formalmente;
6.º- Só no corrente ano, e ao serem legalizados os restantes prédios através de partilha, é que o usufruto foi cancelado no respetivo registo predial;
7.º- No ano de 1999, o prédio descrito no ponto 1.º supra adveio à posse dos demandantes e dos demandados D e mulher, E, por doação verbal de seus pais e sogros, respetivamente, o primeiro demandado e a falecida esposa;
8.º- À data da doação verbal do prédio os beneficiários, demandantes e segundos demandados, já eram casados entre si, no regime geral de comunhão de bens, dado que os primeiros contraíram matrimónio em 6 de fevereiro de 1977 e os segundos em 7 de maio de 1978, ambos com convenção antenupcial onde estipularam aquele regime de bens do casamento;
9.º- Nesse mesmo ano de 1999 os demandantes e os segundos demandados procederam à divisão do referido prédio em duas parcelas completamente autónomas e distintas, devidamente demarcadas, com um cordão de videiras e marcos de pedra cravados no solo, ao longo das linhas divisórias de cada uma, conforme delimitação do Levantamento Topográfico de fls. 72 dos autos:
a) A Parcela A, delimitada a azul no Levantamento Topográfico, com a área de 1.693 m2, composta de terra de semeadura, oliveiras e árvores de fruto, com casa de arrumações para alfaias agrícolas, a confrontar a Norte com Herdeiros de J, a Sul com L e outro, a Nascente com parcela B e a Poente com N e caminho fazendeiro, que ficou a pertencer aos aqui demandantes;

b) A Parcela B, delimitada a vermelho no Levantamento Topográfico, com a área de 2.168,65 m2, composta de terra de semeadura, oliveiras e árvores de fruto, a confrontar a Norte com herdeiros de J, a Sul com L e outro, a Nascente com Q, servidão de passagem e outro e a Poente com a Parcela A, que ficou a pertencer aos aqui segundos demandados, D, e mulher, E;
10.º- Tendo daí resultado dois prédios autónomos e independentes um do outro;
11.º- A partir da referida demarcação de facto do prédio a que se refere o ponto 1º supra, quer os demandantes, quer os segundos demandados, passaram a usar e fruir da sua parcela individualizada, autónoma e distinta;
12.º- Como coisa sua, e exclusiva;
13.º- Respeitando rigorosamente as suas extremas e divisórias com total exclusividade, autonomia e independência;
14.º- Por forma visível e permanente;
15.º- Por si ou interposta pessoa, semeando, cultivando e colhendo os frutos, tratando as oliveiras e colhendo as azeitonas;
16.º- Retirando da sua parcela todas as utilidades em proveito próprio;
17.º- Melhorando-a e benfeitorizando-a;
18.º- Na convicção de que, com sua posse, não lesavam direitos de outrem;
19.º- O que sempre fizeram e fazem à vista, e com o conhecimento, de toda a gente;
20.º- Sem oposição de quem quer que seja;
21.º- Contínua e ininterruptamente;
22.º- E sempre na convicção de que a mesma lhes pertencia, como bem próprio, e separada da outra parcela que compõe o “prédio mãe”.
23.º- Por lapso, o referido prédio foi relacionado na relação de bens, aquando da participação nas Finanças do óbito G, já que o prédio há muito que não pertencia à mesma, nem ao seu marido, primeiro demandado, mas sim aos seus filhos e noras, já referidos, aqui demandantes e segundos demandados;
24.º- Sendo que, no presente ano de 2019, os demandantes, o primeiro demandado e os segundos demandados, procederam entre si à Partilha dos restantes bens da herança, não tendo por tal motivo partilhado o artigo discriminado no ponto 1.º supra, o “prédio mãe”.

Motivação dos factos provados:
Atendeu-se aos documentos juntos aos autos, às declarações das partes e ao depoimento das testemunhas.
Relativamente às declarações de parte, foram especialmente relevantes as do primeiro demandado C, viúvo, que confirmou a doação verbal feita por si e falecida esposa aos seus dois filhos, aqui demandante e demandado, e que o fizeram há vinte anos, tendo os filhos dividido de facto o prédio em duas partes, com a configuração do Levantamento Topográfico, e trabalhado cada um a sua parte, em exclusivo.
Quanto às testemunhas, os demandantes apresentaram Q e R, respetivamente com 76 e 62 anos de idade, que conhecem o prédio, ambas as parcelas/prédios, desde há mais de 30 anos, o primeiro, e de 20 anos o segundo, sendo ambos confinantes, a Nascente e a Sul respetivamente.
O depoimento de Q foi muito importante e relevante quanto à existência de uma servidão de passagem a onerar o seu prédio, dado que a admitiu, referindo que quando comprou a sua terra nos anos 80 já lhe disseram que “estes senhores tinham caminho ao fundo da minha”. Depôs que a passagem é só para o prédio dos demandantes, que o dos segundos demandados é servido pelo outro lado, a Poente, por um caminho fazendeiro; Que tem respeitado a passagem pelo seu prédio, deixando o espaço livre de cultivo e materiais para o efeito e que por ela podem passar tratores grandes com reboque; Questionado se não seria continuação do caminho fazendeiro que vem ter à sua, disse que não porque o outro dá passagem ainda para outros prédios, que mais ninguém passa no seu, nem tem direito a passar, e que as passagens têm configuração e aparência diferentes, bem visíveis [o que foi confirmando pelas partes em Audiência], que o caminho fazendeiro vai até à sua propriedade e a sua passagem começa no início do seu prédio e vai ter e acaba no dos demandantes; E, que quer o caminho fazendeiro que vem ter à sua propriedade quer o que vem ter ao prédio dos segundos demandados vão dar a caminhos públicos.
Ambas as testemunhas demonstraram conhecer bem este prédio, localização e confrontações, referiram o cordão de videiras que divide as duas parcelas, bem como todo o circunstancialismo da posse, prestando depoimentos isentos e credíveis sobre factos de que tinham conhecimento direto, tendo em conta o princípio da livre apreciação da prova previsto no artigo 607º, nº 5 do Código de Processo Civil (C P C), aplicável subsidiariamente e com as necessárias adaptações aos Julgados de Paz, por força do disposto no artigo 63º da Lei nº 78/2001, de 13 de julho, na redação que lhe foi conferida pelo mesmo artigo 2º da Lei nº 54/2013, de 31 de julho e no artigo 396º do Código Civil (doravante designado simplesmente C. Civil).
Factos não provados:
Não há factos não provados.
FUNDAMENTAÇÃO De direito:
Os demandantes visam com a presente ação adquirir, por usucapião, a parcela do prédio com o artigo matricial 3529º da freguesia de H, concelho de I, e descrito na Conservatória de Registo Predial de I sob o nº 631/-----------, descrita identificada no ponto 9.º, alínea a) da factualidade assente, por se ter autonomizado deste “prédio mãe”.
Resulta da matéria de facto dada como provada que o referido prédio se encontra dividido desde 1999, de facto e informalmente, em dois prédios, perfeitamente autónomos, individualizados e demarcados, com a configuração que hoje têm, passando o demandante e os segundos demandados a explorar cada um deles, exclusivamente a sua parte, como proprietários exclusivos, até ao presente.
Apurado ficou também que a posse de ambos embora não titulada é uma posse de boa fé.
O instituto da usucapião tem eficácia constitutiva, permitindo adquirir o direito sobre o qual foi constituída, e liga-se à posse, pública e pacífica, como um dos seus efeitos (cf. artigos 1316º, 1287º, 1288º, 1258º a 1262º e 1265º todos do C. Civil);
E tem de se prolongar, de forma contínua, por um determinado prazo. Na situação dos autos, a mesma tem uma duração temporal superior à legalmente exigida, uma vez que se trata de posse de boa-fé (cf. artigo 1296º também do C. Civil).
O artigo 7º do Código de Registo Predial estabelece que o registo definitivo faz presumir que o direito existe e pertence ao titular inscrito. Mas esta presunção legal foi aqui elidida mediante prova em contrário pelos demandantes (cf. artigo 350º, nº 2 do C. Civil), que provaram que o “prédio mãe” lhes foi doado verbalmente e ao seu irmão e cunhada, aqui segundos demandados, pelos seus pais, e que foi de imediato dividido em duas partes e uma delas lhes pertence em exclusividade e não a (aos herdeiros de) G e primeiro demandado, como se encontra refletido no Registo Predial.
O artigo 1268º do C. Civil estabelece também uma presunção, a de que quem está na posse de uma coisa é titular do direito correspondente aos atos que pratica sobre ela. Presunção que não foi elidida, sendo que os demandados não deduziram oposição e estiveram presentes na Audiência onde confirmaram os factos, a posse e o animus de proprietário exclusivo dos demandantes da sua parcela, desde 1999.
Acresce ainda, que a posse é pública se é exercida de modo a que todos aqueles que possam invocar um direito contraditório com a coisa possam ter conhecimento dela. E é pacífica se adquirida sem violência. No caso dos autos resulta que a posse dos demandantes, preenchem também estes requisitos.
E presumindo-se que quem pratica os atos materiais, o “corpus”, tem igualmente o “animus possidendi”, presunção que não foi ilidida pelos demandados, resulta do exposto que os demandantes reúnem os requisitos legalmente exigidos para o efeito de aquisição por usucapião, da referida parcela.
Mas esta não opera, contudo, automaticamente, pelo mero decurso do prazo, necessita de ser invocada, o que pretendem os demandantes com a presente ação.
Assim sendo, o exercício efetivo e com caráter de reiteração, público e de boa-fé, da posse do prédio pelos demandantes, como titulares de um direito de propriedade, por mais de quinze anos, confere-lhe o direito de adquirir esse mesmo direito sobre o prédio autonomizado, por via da usucapião, nos termos dos artigos 1287º e seguintes do C. Civil, por se encontrarem preenchidos os seus requisitos (cf. ainda artigo 1732º e 1733º do mesmo Código).
Por outro lado, é jurisprudência maioritária que não são impedimento as regras que visam evitar o fracionamento excessivo de prédios rústicos porque cedem perante os direitos adquiridos por usucapião, forma de aquisição originária da propriedade [cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 03/05/2018 (P. nº 7859/15.5T8STB.E1) e de 12/07/2018 (P. nº 7601/16.3T8STB.E1.S1), in www.dgsi.pt].
E não prejudica os interesses e reais direitos de ambas as partes a constituição de novo artigo rústico correspondente à parcela usucapida a favor dos demandantes.

Decisão:
Em face do exposto, julgo a ação procedente, por provada, e em consequência:
a) Declaro que o prédio rústico, “prédio mãe”, inscrito matriz predial sob o artigo 3529º da freguesia de H, concelho de I, e descrito na Conservatória de Registo Predial de I sob o nº 631/20000522, está dividido em substância, em dois prédios, autónomos e independentes um do outro;
b) Declaro que pertence exclusivamente aos demandantes, A, e mulher B, por se ter autonomizado, por via da usucapião, do prédio originário a que se refere a alínea anterior [1-a)], o seguinte prédio rústico sito ao Castelão, na freguesia da H, concelho de I: Terra de semeadura, oliveiras e árvores de fruto, com casa de arrumações para alfaias agrícolas, com a área de com a área de 1.693 m2, a confrontar a Norte com Herdeiros de J, a Sul com L e outro, a Nascente com D e a Poente com N e caminho fazendeiro, delimitada a azul no Levantamento Topográfico a fls. 72 dos autos, o qual passou a ser um prédio autónomo e distinto do “prédio mãe”, e do qual se destacou;
c) Condeno os demandados no reconhecimento e aceitação da constituição e existência deste prédio referido na alínea antecedente [b)] como autónomo e distinto do prédio rústico a que se refere a alínea a) da presente decisão, “prédio mãe”, assim como o direito de propriedade exclusiva sobre aquele de A, e mulher B.
d) Em conformidade, ordeno:
- A atribuição de artigo matricial e o registo do prédio agora autonomizado, a favor de A, e mulher B, com a composição e da forma indicada na alínea b) supra, da presente decisão, cessando a contitularidade no respetivo prédio originário, “prédio mãe”;
O abatimento na área do respetivo “prédio mãe” na Matriz Predial da área do prédio agora autonomizado.
Dada a natureza do processo custas totais pelos demandantes.
Registe e notifique.
Carregal do Sal, 08 de maio de 2019
A Juíza de Paz,
(Elisa Flores)