Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
28819/15.0YIPRT.L1-1
Relator: PEDRO BRIGHTON
Descritores: COMPRA E VENDA
PROPRIEDADE
ENTREGA DA COISA
PAGAMENTO DO PREÇO
EFEITOS
ERRO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/12/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I-  Resulta do tipo legal do contrato de compra e venda, configurado nos artºs. 874º e 879º do Código Civil, que a propriedade da coisa vendida se transmite para o adquirente pelo contrato, constituindo a transmissão do domínio um dos efeitos essenciais do negócio jurídico, ao lado das obrigações de entrega da coisa e de pagamento do preço respectivo.
II- A compra e venda é um contrato consensual “quoad constitutionem”, em que o aperfeiçoamento do vínculo se atinge mediante o acordo de vontades expresso na forma legal.
III-  Trata-se ainda de um contrato real “quoad effectum”, na medida em que determina a produção imediata do efeito real de transmissão do direito de propriedade e, ainda, de contrato obrigacional, segundo o mesmo critério, na perspectiva dos efeitos obrigacionais da entrega da coisa e do pagamento do preço que dele derivam.
IV-  O erro que recaia sobre os motivos determinantes da vontade, quando reportado ao objecto do negócio, torna este anulável desde que o declaratário conheça, ou não deva ignorar, a essencialidade, para o declarante, do objecto sobre que haja incidido o erro.
V-  Uma qualidade é essencial quando se mostra decisiva para a celebração do negócio, conforme a finalidade económica ou jurídica deste.
VI-  Quer o simples erro que atinja os motivos determinantes da vontade (artº 251ºdo Código Civil), quer o dolo (artº 254º nº 1 do Código Civil) só geram anulabilidade do negócio quando forem essenciais para a formação da vontade da parte que o invoca.
Decisão Texto Parcial:ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA :
I – Relatório
1- A A. “EM..., S.A.” instaurou a presente acção especial de injunção contra Henrique F..., pedindo que o R. seja condenado a pagar-lhe a quantia de 10.000 €, acrescida de juros.
2-  Regularmente citado, veio o R. contestar, impugnando os factos descritos no requerimento inicial.
Deduziu, ainda, pedido reconvencional (o qual, posteriormente, não foi admitido).
3- Seguiram os autos para julgamento, tendo-se procedido ao mesmo com observância do legal formalismo.
4-  Foi, então, proferida Sentença que julgou a acção procedente, constando da parte decisória da mesma :
“Pelo exposto, decide-se julgar a presente acção procedente e, em consequência, condena-se a R. a pagar à A. as seguintes quantias:
a) € 10000,00 (dez mil euros);
b) € 108,38, a título de juros de mora vencidos até 18/02/2015;
c) Os juros vencidos desde 19/02/2015 até à presente data à taxa legal;
d) Os juros vincendos desde a presente data até integral pagamento à taxa legal.
Custas pelo R..
Registe e notifique”.
5-  Inconformado com tal decisão, dela apelou o R., para tanto apresentando as suas alegações com as seguintes conclusões :
“A) Vem o presente Recurso interposto da Decisão do Mma Juiz de Direito que condenou o Recorrente no pagamento à Recorrida de € 10.000,00, acrescidos de Juros vencidos e vincendos e no pagamento das custas. Ora,
B) A decisão posta em crise assentou, como consta do texto da Sentença no facto de, segundo a Mmª Juiz “a quo”, ter considerado, em síntese:
a) Que a A se dedica à importação, exportação e comércio de equipamentos, produtos e artigos médicos, ortopédicos e de apoio à mobilidade, bem como de calçado e acessórios;
b) Que no âmbito da sua actividade comercial, a A vendeu uma cadeira elevatória ao R. tendo emitido a Factura nº FH/2014/FT/25 1, no valor de € 10.000,00;
c) Que o R não procedeu ao pagamento da referida Factura;
d) Que o R, estando a promover umas obras de alteração de um espaço que lhe pertence, o R. acordou com a A a aquisição de uma cadeira elevatória;
e) Que no momento em que acordou essa aquisição, o R efectuou o pagamento de € 5.000,00;
f) Que ao tomar conhecimento da aquisição da aludida cadeira, o filho do R., responsável pela obra, se insurgiu com tal compra e solicitou reunião com a A, na qual referiu apenas pretender a montagem da cadeira se com a mesma fosse possível a emissão da competente Licença de Utilização para a obra.
C) Não obstante e como infra veremos muito mais resultou provado do acervo de prova carreado para os autos (máxime dos depoimentos prestados) que não foi objecto de pronúncia pela Mmª Juiz “a quo” e que condiciona o entendimento e, por via dele, o desfecho que os autos devem ter. Com efeito,
D) As obras a que se alude na Sentença recorrida, tinham por objectivo a obtenção de Licença de Utilização para o espaço comercial em que o sistema elevatório iria ser montado. De igual modo,
E) Decorre dos depoimentos prestados que os trabalhadores da A tinham pleno conhecimento disso mesmo e que garantiram que o sistema elevatório em causa (cadeira) cumpria os requisitos legais. Mais,
F) Provado ficou que o filho do R (pessoa de vetusta idade e desconhecedor das minudências legais) é o engenheiro responsável pela obra e que na reunião a que se alude na sentença, informou que apenas uma placa elevatória que permitisse o acesso e utilização autónoma por pessoas em cadeiras de rodas, cumpria os preceitos legais e que, por isso, ou havia uma garantia expressa da A de que assumia que a cadeira cumpria os requisitos ou o contrato teria que ser anulado com devolução do já pago. Mais ainda,
G) Provado ficou que o subscritor do contrato de fornecimento, por parte da A era pessoa que não tinha poderes para o subscrever (nomeadamente por não ser gerente da A nem ter mandato desta para qualquer efeito), o que gera a Nulidade do Contrato,
H) Sendo certo que, apesar de disso ter tomado conhecimento, a Exma Juiz “a quo” o omitir por completo na Sentença. De igual modo,
I) A Sentença é omissa relativamente ao facto, também ele provado, de que não foi montado pela A qualquer sistema elevatório nas instalações do R. e,
J) Por fim, nada se diz na Sentença quanto à obrigatoriedade de contra­prestação por parte da A., para efeitos do recebimento do dinheiro ou seja, do texto da sentença nada resulta para A de obrigação, parecendo que pode limitar-se a receber a totalidade de um equipamento que não forneceu,
K) Com a incerteza jurídica daí decorrente.
L) De referir, também, a patente confusão que se extrai da sentença, da consideração relativa à alegada falta de prova pelo R., da sua versão dos factos. Com efeito,
M) Afirma-se no texto da Sentença recorrida que a versão do R é a de que a aquisição da cadeira foi feita na condição de possibilidade de licenciamento, sendo que tal não aconteceu. Mais se afirma,
N) Que o R falhou em provar que tal licenciamento foi pedido e indeferido por esse motivo. Ora,
O) O que o R afirmou, não foi isso.
P) O que o R alegou (e provou como veremos infra) foi que tendo que montar um sistema elevatório para acesso às instalações sanitárias por parte dos clientes da loja, contactou a A e que o vendedor desta lhe asseverou que a cadeira elevatória servia tais desígnios e era legalmente admitida (como já haviam montado iguais em vários equipamentos (nomeadamente lares e casas de repouso) e,
Q) Mais alegou e provou que o R foi levado a assinar o contrato e a pagar os iniciais € 5.000,00 com base em tal falácia e que o filho do R, engenheiro e responsável pela obra, reuniu com os trabalhadores da A e afirmou que, à luz dos textos legais, a cadeira seria “chumbada” pela fiscalização e levaria à não emissão da Licença de Utilização do imóvel.
R) Não podia, pois, o R provar ter feito um pedido de licenciamento e o respectivo indeferimento,
S) Pois como é consabido, o pedido de emissão de uma LU apenas ocorre com o termo dos trabalhos (que não acabaram).
T) E as provas de que o indeferimento ocorreria caso se insistisse na montagem da cadeira, deu-os a testemunha Fernando F..., ao escalpelizar exaustivamente a legislação aplicável,
U) Para além de resultarem de qualquer interpretação ou análise, ainda que feita por leigos: se a Lei fala em utilização autónoma do sistema elevatório, onde (numa cadeira), carregaria o utilizador de uma cadeira de rodas a sua cadeira, de modo a poder utilizá-la quando chegasse ao piso a que acedera? E como faria para, sozinho, a colocar a acompanhá­-lo, ainda que tal dispositivo existisse?
V) Estas as explicações e perguntas colocadas e que em parte alguma da sentença se vislumbra que tenham merecido um momento de reflexão.
W) Isto o que consta do texto da Sentença recorrida quanto aos “factos”,
X) Sendo que a fundamentação de Direito, salvo o devido respeito e melhor opinião, não existe, limitando-se o texto da sentença a um parágrafo (o penúltimo) sob tal epígrafe. Ora,
Y) Quanto aos depoimentos prestados crê-se que a Mmª Juiz “a quo” extraiu dos das testemunhas da A, conclusões que, pelo conteúdo dos mesmos não poderia ter extraído e,
Z) Do depoimento das testemunhas arroladas pelo R não foi extraído o que deveria e que, em síntese, supra se expôs em 8º, 18º, 19º e 22º,
AA) Sendo que do depoimento da Testemunha da A, Sr. Paulo R..., que taxativa e expressamente provou quanto se refere supra em 9º, nenhuma conclusão foi extraída,
BB) E devia tê-lo sido.
CC)   Como nos parece resultar cabalmente demonstrado, a Sentença recorrida carece de fundamentação. Desde logo,
DD) Carece de fundamentação de facto porquanto é omissa relativamente aos aspectos fundamentais supra explanados (máxime a Nulidade do Contrato por falta de legitimidade do Outorgante).
EE) Sendo igualmente praticamente inexistente a fundamentação de Direito, nos termos supra-explanados.
FF) O que desde logo inquina a Decisão proferida, por manifesta falta de fundamentação.
GG) Pois é consabido que a falta de fundamentação de Facto ou de Direito (in casu e de Direito), de uma decisão judicial, gera a Nulidade da mesma,
HH) Vicio esse que desde já se argui.
Mais,
II) Cautelarmente, o Recorrente não deixou de analisar e escalpelizar exaustivamente a prova produzida (nomeadamente os depoimentos prestados pelas testemunhas, em Audiência de Discussão e Julgamento – como resulta das transcrições supra), para que se possa afirmar de modo claro e inequívoco,
JJ) Que as testemunhas arroladas pela A não deviam (diríamos mesmo, não podiam) ter merecido ao Tribunal, qualquer credibilidade.
KK) Em audiência foram inquiridas diversas testemunhas. As do A.
LL) Foram, no fundo, tentar provar que nunca lhes foi colocado como requisito do fornecimento, a “aprovabilidade” do equipamento para efeitos da emissão da LU,
MM) E o certo é que a Mmª Juiz “a quo” (apesar de) implicitamente, deu como provado (ao que parece) tudo quanto as testemunhas da A afirmaram. Só que,
NN)   Como decorre das transcrições a que supra procedemos, a análise e ponderação crítica da Mmª Juiz “a quo” não foi efectuada como deveria. Assim,
OO) Como resulta das transcrições supra o que as testemunhas da A afirmam é que não venderam: o R é que comprou ou seja,
PP) Quando o vendedor se desloca para cumprir o seu papel (vender) depara-se com uma situação em que o comprador já não precisa de especificações ou que o levem a comprar: ele já comprou antes mesmo do primeiro contacto com o vendedor da A. Naturalmente,
QQ) Tal tinha que ser assim, para não reconhecerem que deram garantias de que o equipamento em causa (cadeira elevatória) cumpria os requisitos da Lei das Acessibilidades. Mas,
RR)   Nomeadamente a testemunha Paulo Rodrigues (ambas aliás, com larga experiência de presenças em Julgamentos, como flui dos depoimentos e acabaram por ter que reconhecer) acabou por ter que reconhecer que,
SS) Pelo menos uma vez, mandou o responsável pela obra ler tal Lei,
TT) O que constitui, salvo melhor opinião, o reconhecimento implícito de que a questão foi colocada e,
UU) Se a questão foi colocada, como se prova que foi, então foi porque o R chamou a atenção para ela e se chamou foi porque fez depender o fornecimento (logo o Contrato) do cumprimento dos textos legais,
VV) Maxime da possibilidade de, com tal equipamento, se puder obter a aprovação camarária e, logo, a Licença de Utilização.
WW) Mais se extrai de tal depoimento, que a Testemunha:
a) Reconhece ter sido ele a assinar o Contrato,
b) Reconhece que o R apenas o assinou sem ler e,
c) Mais importante, que não tem poderes para obrigar a A contratualmente.
XX) Ora, nenhum destes factos é objecto, pelo menos, de ponderação critica por parte da Mmª Juiz “a quo”, na Sentença posta em crise.
YY) E estes factos, cuja consideração e reconhecimento de que estão provados, é imprescindível para uma correcta decisão da acção,
ZZ) Não são objecto de uma única palavra no texto da Sentença.
AAA) E são factos que, para além de resultarem do depoimento desta “testemunha” da A, resultam igualmente dos depoimentos das Testemunhas do R, que afirmaram o que supra se transcreveu e que
BBB) Mais claro, transparente e inequívoco, não nos parece que pudessem ser, para prova de que:
a) O Pai foi induzido em erro pelo vendedor;
b) O vendedor da A e o seu chefe foram alertados para o facto de o sistema contratado não cumprir com as especificações legais, constantes da Lei das Acessibilidades;
c) Garantiram verbalmente que cumpria (na sequência do que já haviam afirmado ao R);
d) Ficou claro que, a menos que a A garantisse expressamente que se responsabilizava pela obtenção da LU, o equipamento não era admissível
CCC) Ou seja, as declarações das testemunhas do R (como supra se transcreveu), contraditam no essencial, o que foi afirmado pelas testemunhas da A, nomeadamente quanto à dinâmica da situação.
Por fim,
DDD) Cumpre referir que o Recorrente litiga com Apoio Judiciário nas modalidades de dispensa do pagamento de taxa de justiça e dos demais encargos com o processo que requereu (Doc. 1).
Termos em que:
Nestes e nos mais de Direito que V. Exas. não deixarão de suprir, dando provimento ao presente Recurso, alterando o teor da Sentença recorrida, dando como provado que os factos ocorreram como referido pelo R ou, pelo menos,
Declarando a Nulidade do Contrato por falta de poder de quem o outorgou (como bastamente provado e reconhecido e, em qualquer caso, absolvendo o R, como é de Lei,
Farão V. Exas. Justiça”.
6-  Não foram apresentadas contra-alegações.

*  *  *
II – Fundamentação
a)  A matéria de facto dada como provada em 1ª instância foi a seguinte :
1- A A. dedica-se à importação, exportação e comércio de equipamentos, produtos e artigos médicos, ortopédicos e de apoio à mobilidade, bem como de calçado e acessórios.
2-  No âmbito da sua actividade comercial, a A. vendeu uma cadeira elevatória ao R., tendo emitido a factura nº FH120141FT/25 1, no valor de 10.000 €.
3-  O R. não procedeu ao pagamento da factura referida em 2..
4-  Estando a promover umas obras de alteração de um espaço que lhe pertence, o R. acordou com a A. a aquisição de uma cadeira elevatória.
5-  No momento em que acordou essa aquisição, o R. efectuou o pagamento de 5.000 €.
6-  Ao tomar conhecimento da aquisição da aludida cadeira, o filho do R., responsável pela obra, insurgiu-se com tal compra e solicitou reunião com a A., na qual referiu apenas pretender a montagem da cadeira se com a mesma fosse possível a emissão da competente Licença de Utilização para a obra.
b)  Como resulta do disposto nos artºs. 635º nº 4 e 639º nº 1 do Código de Processo Civil, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, as conclusões da alegação do recorrente servem para colocar as questões que devem ser conhecidas no recurso e assim delimitam o seu âmbito.
  Perante as conclusões da alegação do recorrente, as questões em recurso consistem em determinar :
-Se existem razões para alterar a matéria de facto dada como provada na 1ª instância.
-Se a decisão sob recurso padece de nulidade por falta de fundamentação.
-Se estão verificados os pressupostos para a condenação do apelante.

(...)
m)  Resumindo :
Aditam-se ao elenco dos Factos Provados os seguintes :
“7-  Os trabalhadores da A. tinham pleno conhecimento de que as obras referidas tinham por objectivo a obtenção de Licença de Utilização para o espaço comercial em que o sistema elevatório iria ser montado e garantiram ao comprador que tal sistema elevatório cumpria os requisitos legais”.
“8-  Não foi montado pela A. qualquer sistema elevatório nas instalações do R., tendo aquela, por carta enviada a este em 10/12/2014, comunicado que “a cadeira ficará no nosso armazém até que V. Exª nos indique uma data e hora para efectuarmos a instalação do referido produto”, tudo conforme documento de fls. 73 cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido”.
n)  Vejamos, em primeiro lugar, se a Sentença proferida nos autos é nula.
As causas de nulidade da Sentença (e dos restantes despachos – artº 613º nº 3 do Código de Processo Civil) vêm taxativamente enunciadas no artº 615º nº 1 do Código de Processo Civil, onde se estabelece que é nula a sentença (ou despacho) :
-Quando não contenha a assinatura do juiz (al. a)).
-Quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão (al. b)).
-Quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível (al. c)).
-Quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento (al. d)).
-Quando condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido (al. e)).
O Prof. Castro Mendes (in “Direito Processual Civil”, Vol. III, pg. 297), na análise dos vícios da Sentença enumera cinco tipos :
-vícios de essência ;
-vícios de formação ;
-vícios de conteúdo ;
-vícios de forma ;
-vícios de limites.
Refere o mesmo Professor (in “Direito Processual Civil”, Vol. III, pg. 308), que uma Sentença nula “não contém tudo o que devia, ou contém mais do que devia”.
Por seu turno, o Prof. Antunes Varela (in “Manual de Processo Civil”, pg. 686),
no sentido de delimitar o conceito, face à previsão do artº 668º do Código de Processo Civil (actual artº 615º), salienta que “não se inclui entre as nulidades da sentença o chamado erro de julgamento, a injustiça da decisão, a não conformidade dela com o direito substantivo aplicável, o erro na construção do silogismo judiciário (…) e apenas se curou das causas de nulidade da sentença, deixando de lado os casos a que a doutrina tem chamado de inexistência da sentença”.

Lebre de Freitas (in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. II, pgs. 668 e 669) considera que apenas a “falta de assinatura do juiz” constitui fundamento de nulidade, pois trata-se de “um requisito de forma essencial. O acto nem sequer tem a aparência de sentença, tal como não tem a respectiva aparência o documento autêntico e o documento particular não assinados”.  A respeito das demais situações previstas na norma, considera o mesmo autor tratar-se de “anulabilidade” da sentença e respeitam “à estrutura ou aos limites da sentença”.
o)  A nulidade invocada pelo apelante (falta de fundamentação) encontra-se referida no artº 615º nº 1, al. b) do Código de Processo Civil.
Ora, há que referir que só a falta absoluta de fundamentação gera nulidade.  A insuficiência, a mediocridade ou o erro da motivação afectarão o valor doutrinal da sentença, sujeitando-a ao risco de revogação ou de alteração, mas não contendem com a sua regularidade formal (cf. Alberto dos Reis in “Código de Processo Civil Anotado”, volume V, pg. 140).
A imposição da fundamentação das decisões está consagrada no artº 205º da Constituição da República Portuguesa e no artº 154º do Código de Processo Civil.
Assim, o artº 205º nº 1 da Constituição da República refere que “as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”.
Por sua vez, o artº 154º do Código de Processo Civil estabelece no seu nº 1 que “as decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas”, acrescentando o nº 2 do preceito que “a justificação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição”.
É, assim, manifesta a existência de um dever de fundamentação das decisões judiciais, dever esse com consagração constitucional e que se justifica pela necessidade das partes conhecerem a sua base fáctico-jurídica, com vista a apurar do seu acerto ou desacerto e a decidir da sua eventual impugnação.
Temos, pois, de concluir que o princípio da motivação das decisões judiciais constitui uma das garantias fundamentais do cidadão no Estado de Direito (cf. Pessoa Vaz, in “Direito Processual Civil – Do antigo ao novo Código”, 1998, pg. 211).
Como se refere no Acórdão da Relação de Lisboa de 7/11/2013 (consultado na “internet” em www.dgsi.pt), citando Anselmo de Castro, in “Direito Processual Civil Declaratório”, Vol. III, 1982, pg. 97 :
“Com efeito, há que ter em conta os destinatários da sentença que aliás, não são só as partes, mas a própria sociedade.  Para que umas e outra entendam as decisões judiciais e as não sintam como um acto autoritário, importa que as sentenças e decisões se articulem de forma lógica.  Uma decisão vale, sob ponto de vista doutrinal, o que valerem os seus fundamentos.  E, embora a força obrigatória da sentença ou despacho esteja na decisão, sempre a força se deve apoiar na justiça.  Ora os fundamentos destinam-se precisamente a formar a convicção de que a decisão é conforme à justiça”.
No caso em apreço defende o recorrente que o Tribunal “a quo” não fundamentou a sua decisão, ao não analisar a “nulidade do contrato por falta de legitimidade do outorgante”.
Ora, aplicando o enquadramento antecedente ao caso “sub judice”, desde já há que referir que a Sentença recorrida não incorre no mencionado vício.
Com efeito, lido o requerimento de oposição apresentado pelo recorrente, não se vê que o mesmo tenha suscitado a questão em apreço.
Assim, por não ter sido antes suscitada a questão (apenas o foi no âmbito do presente recurso), não poderia a Sentença dela conhecer.
Daí, não ter sustento a alegada omissão de conhecimento e de decisão sobre uma questão suscitada pelas partes.
Em rigor, o que está em causa é que, sob as vestes da invocação da nulidade da Sentença, o recorrente vem alegar uma questão nova, anteriormente não suscitada, e o certo é que constitui finalidade desta instância de recurso reapreciar decisões judiciais, na parte em que hajam sido impugnadas e não conhecer pela primeira vez de questões anteriormente não suscitadas pelas partes.
Deste modo, neste ponto o recurso terá de improceder.
p)  Vejamos, então, a questão de Direito, ou seja, se estão verificados os pressupostos para a condenação do apelante.
Conforme dispõe o artº 874º do Código Civil, a “compra e venda é o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço”.
Um contrato que “tem como efeitos essenciais”, segundo estipula o artº 879º do Código Civil :  “a)  A transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito ;  b) A obrigação de entregar a coisa ;  c)  A obrigação de pagar o preço”.
Resulta, portanto, da tipicidade legal na compra e venda que a propriedade da coisa vendida se transmite para o adquirente pelo contrato, constituindo a transmissão do domínio sobre a coisa, por conseguinte, um dos efeitos essenciais do negócio jurídico, ao lado das obrigações de entrega da coisa e de pagamento do preço.
Flui por outras palavras do tipo legal da compra e venda, impressivamente, que se trata de um contrato consensual “quoad constitutionem”, isto é, quanto ao aperfeiçoamento do vínculo, que se atinge, por consequência, mediante o acordo de vontades das partes, sem prejuízo, obviamente, da observância da forma legal a que eventualmente esteja sujeita a emissão das declarações de vontade.
De modo algum se pode, em contraponto, qualificar a compra e venda tipificada nos citados preceitos do Código Civil na categoria dos contratos reais, segundo o mesmo critério (v. g., o mútuo, o comodato, o depósito), cuja perfeição dependeria, além do acordo de vontades, ainda da entrega da coisa, ou mesmo da entrega da soma monetária que consubstancia o preço.
Não se concebendo, todavia, como contrato real “quoad constitutionem”, a compra e venda é já um contrato real “quoad effectum”, quer dizer, sob o ângulo da sua eficácia imediata (cf. Acórdão do S.T.J. de 18/9/2003, consultado na “internet” em www.dgsi.pt).
Conforme este outro critério consideram-se, na verdade, duas classes de contratos :  Os contratos reais, com eficácia real ou translativos e os contratos obrigacionais.
Estes últimos geram apenas efeitos pessoais ou obrigacionais (v. g., a locação, o mandato).
Enquanto os primeiros se caracterizam pela produção de efeitos reais, tais como a constituição, transmissão ou extinção de direitos reais, exactamente.  Neste sentido depõe inclusive o artº 408º nº 1 do Código Civil, segundo o qual “a constituição ou transferência de direitos reais sobre coisa determinada dá-se por mero efeito do contrato, salvas as excepções previstas na lei”.
O nosso direito perfilhou, assim, a solução da eficácia real imediata desses contratos consagrada no Código Civil, em detrimento da eficácia meramente obrigacional oriunda da tradição romanística.
Determinadas figuras contratuais podem, em todo o caso, originar as duas sortes de efeitos.  É precisamente o caso da compra e venda, da qual derivam efeitos meramente obrigacionais (a obrigação de entrega da coisa e a obrigação de pagamento do preço) e o efeito real (da transmissão da propriedade).
O contrato aperfeiçoa-se, porém, independentemente da produção desses efeitos, mediante o mútuo consenso dos contraentes.  A obrigação de pagar o preço, por exemplo, é apenas um efeito obrigacional do contrato, em nada influindo na sua perfeição e tão-pouco condicionando a eficácia translativa.
Este efeito real, por seu turno, de transferência do domínio sobre a coisa, do vendedor para o comprador, verifica-se desde logo pela mera celebração do contrato e no momento desta (artº 408º nº 1 do Código Civil).
q)  Ora, “in casu” apurou-se que foi celebrado entre a recorrida (enquanto vendedora) e o recorrente (na qualidade de comprador) um contrato de compra e venda de uma cadeira elevatória (que incluía a montagem da mesma por parte da apelada).
No decurso das negociações, o recorrente (mais precisamente o seu filho) referiu que apenas pretendia a montagem da cadeira se com a mesma fosse possível a emissão da competente Licença de Utilização para a obra.
Cientes de tal, os representantes da vendedora (recorrida) garantiram ao comprador (recorrente) que tal sistema elevatório cumpria os requisitos legais.
r)  Perante estes factos, subsistem duas situações relevantes, sobre as quais inexiste qualquer prova :
Por um lado, não está provado que o sistema elevatório não cumpria os requisitos legais. 
Por outro, desconhecem-se os motivos pelos quais a cadeira elevatória não foi montada.
Sobre estas duas questões, poderemos dizer que incumbia ao próprio adquirente fazer uma averiguação prévia sobre o sistema elevatório, a fim de apurar se o mesmo era ou não adequado ao local (quer de um ponto de vista de cumprimento das regras legais, quer do ponto de vista da adequação física ao local).  E só depois de se certificar de tal é que, obviamente, poderia avançar para a concretização do negócio.
E quanto à segunda questão ficam por responder diversas questões.  Quais os motivos da não instalação da cadeira elevatória ?
O sistema era compatível com o “desenho” das escadas ?
Ou não o era ?
Ambas as situações acima apontadas são susceptíveis de constituir factos impeditivos do direito da recorrida.
Com efeito, tendo a apelada cumprido (de acordo com a carta de fls. 73 aquela construiu o sistema elevatório e ainda o tem em armazém, aguardando que o recorrente lhe dê indicações para proceder à sua instalação), o recorrente só poderia evitar o cumprimento da sua contra-prestação (o pagamento) se demonstrasse que o sistema elevatório não cumpria os requisitos legais ou que o mesmo era inadequado ao local.
Ora, de acordo com o disposto no artº 342º nº 2 do Código Civil, “a prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita”.
Assim sendo, ao apelante incumbia fazer a prova de tais factos impeditivos do direito da apelada.
Porém, não logrou fazer prova dos mesmos.
Deste modo, sofrerá as legais consequências, nomeadamente a de ver a sua argumentação improceder e proceder a pretensão da apelada.
s)  Por fim, alega ainda o recorrente que teria sido “induzido em erro pelo vendedor”.
Invoca, pois, o apelante um erro-vício, gerador da anulabilidade do contrato celebrado entre as partes, mais propriamente uma actuação de carácter doloso por banda da recorrida, com cobertura legal nos artºs. 253º e 254º do Código Civil (se bem que os referidos preceitos legais não tenham sido alegados pelo recorrente, que elabora as suas alegações de recurso sem apontar um único preceito legal aplicável ao caso).
A eventual anulação surtiria eficácia “ex-tunc”, “devendo ser restituído tudo o que houvesse sido prestado, ou se a restituição em espécie não fosse já possível, o valor correspondente” (cf. artº 289º nº 1 do Código Civil).
Pois bem.
Entre as “condições gerais de relevância do erro-vício como motivo de anulabilidade encontra-se a sua “essencialidade”, no sentido de que só é relevante o erro essencial (determinante), isto é, aquele que levou o errante a concluir o negócio, em si mesmo e não apenas nos termos em que foi concluído (cf. Mota Pinto, in “Teoria Geral do Direito Civil”, 3ª ed., pgs. 508 e ss.).
O erro só é essencial se, sem ele, se não celebraria qualquer negócio ou se celebraria um negócio com outro objecto ou de outro tipo ou com outra pessoa.
O erro que recaia sobre os motivos determinantes da vontade, quando reportado ao objecto do negócio, torna este anulável desde que o declaratário conheça, ou não deva ignorar, a essencialidade, para o declarante, do objecto sobre que haja incidido o erro (artºs. 251º e 247º nº 2 do Código Civil), sendo que “a qualidade de um objecto se reporta a todos os factores determinantes do valor ou da utilização pretendida” (cf. Manuel de Andrade, in “Teoria Geral da Relação Jurídica”, Vol. II, pgs. 235 e 248).
Uma qualidade é essencial quando se mostra decisiva para o negócio conforme a finalidade económica ou jurídica deste.  A essencialidade do erro tem de ser analisada sob o aspecto subjectivo do errante e não sob qualquer outro.
Quer o simples erro que atinja os motivos determinantes da vontade (artº 251º do Código Civil) quer o dolo (artº 254º nº 1 do Código Civil) só geram anulabilidade do negócio quando forem essenciais para a formação da vontade da parte que o invoca.
Subjaz ao erro sobre os motivos uma ideia inexacta sobre a existência, subsistência ou verificação de uma circunstância presente ou actual que era determinante para a declaração negocial, ideia inexacta essa sem a qual a declaração negocial não teria sido emitida nos precisos moldes em que o foi.
Comete dolo aquele que sabe e quer que o enganado preste a declaração que de outro modo não prestaria.
Deve existir, assim, um nexo de causalidade entre o dolo e a actuação do enganado.  A concretização do dolo pressupõe um erro da parte do declarante, erro esse determinado intencionalmente por outrem.  Por isso, a vítima do dolo não só se engana (como no caso do erro) como, além disso, é enganada, deste modo podendo o dolo ser também ser designado como “erro qualificado” (cf. Acórdão do S.T.J. de 13/5/2004, consultado na “internet” em www.dgsi.pt).
O principal efeito do dolo é a anulabilidade do negócio (artº 254º nº 1 do Código Civil).  Mas acresce a responsabilidade pré-negocial do autor do dolo, por ter dado origem à invalidade, com o seu comportamento contrário às regras da boa-fé, desde os preliminares e até à conclusão do negócio.
A violação, na formação do contrato (culpa “in contrahendo”) desses deveres de boa-fé e lealdade (salvo na medida em que seja causa de vício da declaração de vontade da contraparte ou provoque a celebração de negócio usurário) não releva autonomamente como fundamento da anulabilidade do negócio.
O fundamento legal da obrigação de indemnização radica no facto de o dolo ser um acto ilícito.
Há que salientar que o fundamento da anulabilidade por dolo não consiste numa ideia de reparação do prejuízo sofrido pelo enganado.  A reparação do prejuízo causado está conexionada com a responsabilidade civil a cargo daquele “que engana”, e não com a anulabilidade gerada pelo vício invalidante do negócio jurídico.
t)  Ora, no caso vertente inexistem quaisquer factos que possam suportar esta alegação do recorrente.
Com efeito, o apelante limita-se a dizer que foi induzido em erro pelo vendedor.
Não aponta, porém, factos que nos permitam chegar a essa conclusão.
Poderíamos, eventualmente, entender que o dolo do vendedor se consubstanciaria no facto de afirmar ao comprador que o sistema elevatório em causa cumpria os requisitos legais quando tal não corresponderia à verdade.
No entanto, como já acima referimos, não se provou que o sistema elevatório não cumpria os requisitos legais nem se provou que o mesmo era inadequado ao local.
E, assim sendo, também improcederá esta alegação do apelante.
u)  Improcedem, assim, na sua totalidade, as conclusões da apelação, motivo pelo qual haverá que manter na íntegra a decisão sob recurso.
v)  Sumário :
I-  Resulta do tipo legal do contrato de compra e venda, configurado nos artºs. 874º e 879º do Código Civil, que a propriedade da coisa vendida se transmite para o adquirente pelo contrato, constituindo a transmissão do domínio um dos efeitos essenciais do negócio jurídico, ao lado das obrigações de entrega da coisa e de pagamento do preço respectivo.
II-  A compra e venda é um contrato consensual “quoad constitutionem”, em que o aperfeiçoamento do vínculo se atinge mediante o acordo de vontades expresso na forma legal.
III-  Trata-se ainda de um contrato real “quoad effectum”, na medida em que determina a produção imediata do efeito real de transmissão do direito de propriedade e, ainda, de contrato obrigacional, segundo o mesmo critério, na perspectiva dos efeitos obrigacionais da entrega da coisa e do pagamento do preço que dele derivam.

IV-  O erro que recaia sobre os motivos determinantes da vontade, quando reportado ao objecto do negócio, torna este anulável desde que o declaratário conheça, ou não deva ignorar, a essencialidade, para o declarante, do objecto sobre que haja incidido o erro.
V-  Uma qualidade é essencial quando se mostra decisiva para a celebração do negócio, conforme a finalidade económica ou jurídica deste.
VI-  Quer o simples erro que atinja os motivos determinantes da vontade (artº 251ºdo Código Civil), quer o dolo (artº 254º nº 1 do Código Civil) só geram anulabilidade do negócio quando forem essenciais para a formação da vontade da parte que o invoca.

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III – Decisão
Pelo exposto acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa em negar provimento ao recurso confirmando na íntegra a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente (artº 527º do Código do Processo Civil).

Processado em computador e revisto pelo relator

Lisboa, 12 de Julho de 2018

Pedro Brighton

Teresa Sousa Henriques

Isabel Fonseca
Decisão Texto Integral: