Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
| Processo: |
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| Relator: | JOÃO ABRUNHOSA | ||
| Descritores: | CRIME DE FURTO INSUFICIÊNCIA PARA A DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO ABSOLVIÇÃO | ||
| Nº do Documento: | RL | ||
| Data do Acordão: | 10/27/2022 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Texto Parcial: | N | ||
| Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
| Decisão: | PROVIDO | ||
| Sumário: | I – A ordem normal de apreciação das questões, suscitadas ou de conhecimento oficioso, em sede de recurso (nulidades da sentença, reapreciação da matéria de facto, vícios previstos no art.º 410º/2 do CPP e as restantes questões) pode e deve ser alterada, se a apreciação de uma questão substancial prejudicar a apreciação das restantes questões; II – Dar-se como provado que um facto ilícito foi praticado pelo Arguido ou por outra pessoa, mas não que, neste caso, essa outra pessoa tenha agido a mando do Arguido, nem em co-autoria com ele, nem que este tivesse conhecimento que esse outro indivíduo tivesse praticado tal facto e se tenha aproveitado dele, não é apto a sustentar a condenação penal daquele Arguido, porque não pode haver imputação criminal hipotética; III – Se tal factualidade já constava, nesses termos, na acusação e na pronúncia, estamos perante uma insuficiência para a decisão da matéria de facto provada atípica, porque não dá lugar ao reenvio, mas sim à absolvição do Arguido. | ||
| Decisão Texto Parcial: | |||
| Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, os Juízes da 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa: Nos presentes autos, que correram termos no Juízo Local Criminal de Sintra, em que é Arg.[1], AA, com os restantes sinais dos autos, em 26/11/2021, foi proferido sentença, que decidiu nos seguintes termos: “… Em face dos fundamentos expostos, julgo a acusação procedente e, em consequência, a) Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelos artigos 203.º, n.º 1 e 204.º, n.º 2, alínea a), por referência ao artigo 202.º, alínea b), todos do Código Penal, na pena de 2 anos e 3 meses de prisão suspensa na execução por igual período; b) Julgar integralmente procedente o pedido de indemnização civil deduzida pela EDP Distribuição Energia, S.A., com a atual designação de E-Redes – Distribuição de Eletricidade, SA, contra o arguido AA, condenando-o a pagar-lhe, a título de danos patrimoniais, a quantia de € 59 265, 09 (cinquenta e nove mil, duzentos e sessenta e cinco euros e nove cêntimos), a que acrescem juros de mora à taxa de 4%, desde a notificação para contestar, até efetivo e integral pagamento; * Custas cíveis e criminais, pelo arguido (artigos 527.º, do CPC e 513.º, do CPP). …”. * Não se conformando com esta decisão, dela interpôs recurso o Arg., com os fundamentos constantes da motivação, com as seguintes conclusões: “… I. O contrato de fornecimento de energia foi celebrado com a sociedade ..., Lda e não com o Arguido. II. A sociedade ..., Lda. não foi constituída Arguida, não tendo o Tribunal a quo fundamentado na sentença a sua motivação quanto a esta matéria III. O Tribunal a quo, não demonstrou ou considerou provado quem realizou a derivação fraudulenta, nem tão pouco que alguém a mando do Arguido o tenha feito. IV. Não existindo nenhuma presunção de culpa, o arguido teria de ser absolvido; V. Ficou cabalmente demonstrado pelo depoimento da testemunha BB, no dia 10.11.2021, no minuto 03’30’’ que um homem médio sem conhecimentos eletrotécnicos não conseguiria executar a fraude, não sendo viável que o Arguido, pasteleiro, com a 4ª classe, 77 anos e com graves problemas de saúde a tivesse efetuado. VI. Não foi o Arguido quem beneficiou da energia elétrica, mas sim a sociedade ...,Lda. VII. Considera o Recorrente que, a sociedade não foi constituída Arguida pois à data dos factos inexistia previsão legal para que as pessoas coletivas criminalizadas pelo tipo de ilícito em apreço, mas apenas após a entrada da Lei 94/2021 de 21 de Dezembro de 2021, a qual alterou o artigo 11., nº 2 do Código Penal neste sentido. VIII. Inexistindo essa possibilidade de constituir a sociedade como Arguida, a única possibilidade do Tribunal seria demonstrar o que foi o Arguido ou alguém a seu mando a executar de derivação fraudulenta o que não logrou fazer. IX. Por outro lado, sem possibilidade de constituir a sociedade como Arguida, tão pouco poderia o Tribunal a quo promover uma automática desconsideração da pessoa coletiva, responsabilizando criminalmente o Arguido, pela violação de um dever de vigilância e fiscalização perante a sociedade. X. Assim, considera o Recorrente que os pontos 3. 4., 5. da sentença foram incorretamente julgados, uma vez que não só sociedade não foi, nem podia ter sido constituída arguida, como também pelo facto de não ter sido apurado quem executou a derivação fraudulenta, ou o alguém terá atuado em nome do Arguido, o que resulta de toda a prova documental, bem como dos depoimentos das testemunhas BB e CC. XI. Quanto à não determinação da data dos factos, a mesma apresenta-se como questão insanável nos presentes autos, isto porque o Tribunal a quo não concretizou data em que o facto ilícito teria sido perpetrado. XII. Se por um lado o primeiro reflexo de tal indeterminação é no apuramento do quantum indemnizatório, o segundo será na qualificação do tipo e fixação do valor da indemnização. XIII. Considera o Arguido que, o Tribunal a quo ao não ter se pronunciado de todo sobre esta matéria, omitiu elemento nuclear da sentença, o qual prejudica os pontos 3., 4., 7, da sentença. XIV. Importa reter ainda que, da prova testemunhal que foi colocada à disposição do Tribunal a aquo em sede de julgamento, destacam-se os depoimentos da testemunha BB (25’42’’), bem como de PP (18’06’’), que referem não saber quando é que fraude foi realizada. XV. Acontece, porém, e contraditoriamente aos referidos depoimentos, veio a testemunha AP no seu depoimento (06’38’’) referir, assertivamente que, o período que o Arguido esteve em fraude foi entre Agosto de 2015 e Novembro de 2019. XVI. Assim, e relevada a manifesta incongruência, cumpre-se ainda referir o seguinte: XVII. O M.P. ou a denunciante tinha conhecimento da alegada data da prática dos factos, uma vez que a testemunha AP, funcionária da lesada tinha esse conhecimento. XVIII. Ora, ao optar por não balizar concretamente o hiato temporal da fraude, o M.P. prejudicou por um lado a defesa do Arguido e por outra toda sentença que se baseia numa factualidade não concretizada. XIX. Pelo que, encontram-se prejudicados os pontos 3.e 4 da sentença, sendo que os mesmos não poderiam ter sido dados como provados ou resultarem numa condenação. XX. A testemunha CC trazido no seu depoimento (05’50’’), referiu que, era trabalhadora da sociedade há 26 anos, que o quadro elétrico do estabelecimento teria sido apenas intervencionado uma vez em 2017/2018, na sequência de incêndio, tendo sido nesse momento que foram substituídas todas as lâmpadas do estabelecimento por lâmpadas LED, por sugestão dos eletricistas pela testemunha contratados, pois segundo referiram iria permitir uma maior poupança na energia elétrica. XXI. Referiu ainda que, o Arguido não se encontrava no estabelecimento pois estava acamado na sequência de pós cirurgia. XXII. Sucede que, a supra mencionada factualidade não foi dada como provada, nem como não provada pelo Tribunal a quo. XXIII. Considera o Recorrente que, tal matéria é fundamental para boa decisão da causa e descoberta da verdade material, uma vez que não só demonstra que o quadro elétrico foi apenas intervencionado uma vez em 26 anos, como também que no momento da intervenção o mesmo estava no hospital na sequência de intervenção cirúrgica. XXIV. Ou seja, comprova que o Arguido não poderia executar nem ordenar a fraude. XXV. Contudo, a verdade é que o Tribunal a quo, não considerou tal factualidade nem como provada, nem como não provada, motivo pelo qual a sentença enferma de nulidade, vide artigos 339º,368º, 374º e 379º do Código de Processo Penal. XXVI. No que concerne ao iter racional levado a cabo pelo Tribunal a quo, em particular no último parágrafo da motivação, este refere que o Arguido, na qualidade de gerente não poderia ignorar a existência de uma ligação fraudulenta. XXVII. Quanto a esta matéria, é de extrema relevância o depoimento da testemunha PP que à pergunta ao minuto 16’41’’ se sem equipamentos e a olho nu se consegue identificar, a pergunta especifica é essa a resposta foi “a olho nu, a olhar para um sitio não estou a ver onde está a querer chegar (…) a pergunta que estou a fazer à testemunha é se a olho nu, um homem sem conhecimentos eletrotécnicos consegue identificar a fraude” Não.” XXVIII. À mesma pergunta vertida na conclusão anterior, foi oferecida igualmente a mesma resposta (“não”), pela testemunha BB , minuto 28’24’’. XXIX. Assim, verifica-se que a alegada fraude estava oculta e não visível a olho nu. XXX. Pelo que, a motivação do Tribunal onde o gerente efetivo da empresa, ora Arguido, não podia ignorar a existência da fraude “…pela evidência do dispositivo encontrado na vistoria” (vide motivação do tribunal último parágrafo) XXXI. Ora, nenhum dispositivo foi encontrado na vistoria, pelo que a motivação do Tribunal incorre num grosseiro erro até porque, a suposta ligação fraudulenta não era aparente, mas sim oculta. XXXII. Em conclusão, não existe segurança nenhuma na conclusão de que o Arguido sabia, ou não podia ignorar a existência de tal derivação fraudulenta. XXXIII. Ao dar como provado o ponto 7. da sentença, designadamente quanto à fixação do valor de energia elétrica não contabilizada em € 47.647,13, o Tribunal a quo, não só qualificou o tipo de ilícito criminal em apreço, como também fixou parte do quantum indemnizatório com base tal valor. XXXIV. No entanto considera o Arguido que, o Tribunal nunca poderia ter dado comprovado o referido ponto 7. uma vez que a testemunha AP no seu depoimento, por um lado refere limitou-se aplicar o fator de correção instantemente apurado (minuto 17’24’’), sendo que o mesmo e que mesmo poderia variar imediatamente. XXXV. Com maior importância, referiu ainda a testemunha no minuto 24’23, e na sequência da pergunta do mandatário do Arguido “A minha pergunta é simples, sabe quanto é que foi de energia estrangulada? Ou desviada naquela altura?,” a resposta da mesma foi “Isso ninguém sabe”. XXXVI .Assim, considera o Arguido que o montante apurado e dado como provado no ponto 7. da sentença não só baseou-se numa estimativa, e não num valor realmente desviado. XXXVII. Igualmente, concluiu-se pelo depoimento (da testemunha Eng.º …) que este aplicou o coeficiente de correção encontrada instantaneamente no dia seguinte ao da fiscalização, ainda que ponderado, nos consumos referentes aos dias de 26 de Novembro a 27 de Dezembro, com as oscilações do histórico mensal. XXXVIII. Esta testemunha, que não viu a instalação, nem qualquer dispositivo, nem apurou o coeficiente de correção, mas sim a aplicação do mesmo a um histórico registado antes do desvio e comparado com o consumo de Dezembro, omitiu o simples facto de que todas as testemunhas que o antecederam disseram que o coeficiente apurado, é um coeficiente resultante de uma medição instantânea (no momento da vistoria) e que apenas foi verificado no momento da fiscalização. XXXIX. Pelo que, a testemunha PS, AAP foram perentórios ao afirmar que tal coeficiente estaria dependente dos equipamentos ligados no momento, bem como de quais não estariam a ser contabilizados ou não. XL. Assim, considera o Recorrente que não sendo possível determinar em concreto, a quantidade de energia elétrica alegadamente consumida e não faturada, tão pouco é possível qualificar o presente tipo, como também definir o quantum indemnizatório nos que o Tribunal a quo fixou no ponto 7 da sentença. Termos em que, e nos melhores de Direito e sempre com o douto suprimento de V.Exas. deve o presente recurso ser admitido, considerado procedente e revogada a sentença condenatória, absolvendo assim o arguido absolvido do crime lhe vem imputado, bem como do pedido de indemnização cível. …”. * A Exm.ª Magistrada do MP respondeu ao recurso, concluindo da seguinte forma: “... 1. O erro de julgamento da matéria de facto (art. 412º, n.º 3, do CPP) existe quando o tribunal dá como provado certo facto relativamente ao qual não foi feita prova bastante e que, por isso, deveria ser considerado como não provado, ou o inverso, tendo a ver com a apreciação da prova produzida em audiência, em conexão com o princípio da livre apreciação da prova (art. 127º, do CPP). 2. Ora, da leitura da fundamentação da sentença revivenda, verifica-se que a prova testemunhal e documental junta aos autos e sua valoração pelo Tribunal a quo fundamentam o decidido, não se observando qualquer desconformidade entre a sentença e a prova produzida. 3. Por outro lado, não se vislumbram quaisquer razões para censurar o juízo que o Tribunal a quo formulou sobre a credibilidade, ou não, dos depoimentos/declarações em causa, sendo que a visão dos factos do Recorrente se afigura completamente parcial e deturpada, por referência aos seus interesses pessoais. 4. Ou seja, da análise de toda a prova produzida e examinada em sede de audiência de julgamento, não se verifica nenhum facto como incorrectamente julgado e muito menos se vislumbra nenhuma prova que deva ser renovada, pelo que duvidas não restam que a decisão do Tribunal a quo não merece qualquer juízo de censura no que diz respeito à apreciação da matéria de facto. 5. Acresce que, na fundamentação da sua convicção, o Tribunal a quo foi lógico e congruente, consistente e suficiente, explicando, a partir da prova produzida, as razões pelas quais se convenceu de que os factos haviam decorrido tal como havia sido dado como provado. 6. Finalmente, cumpre salientar que a clareza do raciocínio lógico seguido pelo Tribunal a quo na formação da sua convicção, em nada sai abalada pela motivação do recurso apresentada pela recorrente. 7. Assim, uma vez que a decisão quanto à matéria de facto se conforma com as regras da experiência comum e é suportada pelas provas invocadas na fundamentação da sentença recorrida, forçoso é concluir que não merece qualquer juízo de censura 8. A fundamentação da sentença penal (cfr. art. 374º, n.º 2, do CPP) deve revelar as razões da bondade da decisão, permitindo que ela se imponha, dentro e fora do processo, sendo uma exigência da sua total transparência, de modo a facultar aos respetivos destinatários e à comunidade a compreensão dos juízos de valor e de apreciação levados a cabo pelo julgador, bem como a viabilização do controlo da atividade decisória pelo tribunal de recurso. 9. No caso sub judice, analisando a motivação de facto da decisão recorrida, verifica-se que a M.ma Juiz do Tribunal a quo indicou as concretas provas que a levaram a concluir naquele sentido probatório e demonstrou o percurso lógico e racional que efectuou na sua apreciação e valoração, conducente à convicção formada. 10. Com efeito, a fundamentação da convicção do Tribunal a quo assentou no conjunto da prova produzida e examinada em sede de audiência de discussão e julgamento, mormente nas declarações do próprio arguido, conjugadas com o depoimento das testemunhas inquiridas (……………, …………, ……….., ………. e …………), bem como na prova documental junta aos autos (fls. 54, 151, 155- 157 e 152-154), analisada global e criticamente, de acordo com as máximas da experiência comum e o disposto no artigo 127º, do CPP. 11. Assim, o arguido admitiu ser gerente da sociedade “...” há 35 anos, através da qual explora uma pastelaria, confirmando ser o próprio quem procede ao pagamento das contas da empresa, designadamente da eletricidade, sendo que a Testemunha de defesa …………. apenas tinha conhecimento da realização de uma intervenção posterior à dos presentes autos e que em nada revela para a decisão da causa. 12. Pelo contrário, o depoimento das demais Testemunhas inquiridas revelou-se objectivo, isento e credível, razão pela qual mereceram a credibilidade do Tribunal e lograram contribuir para a formação da convicção do Tribunal, até porque foi corroborado com o teor da prova documental junta aos autos. 13. Deste modo, forçoso é concluir que só o arguido ou alguém a seu mando, podia ter efectuado a derivação fraudulenta, até porque só ele tinha interesse na realização da referida derivação, por ser o legal representante da sociedade e ser ele quem explorava a pastelaria, efectuando o pagamento das contas de electricidade, pelo que também não podia desconhecer a existência da mesma. 14. Por tudo isto, duvidas não restam de que o juízo crítico final resultou do confronto entre os diversos meios de prova produzidos e bem assim da valoração intrínseca que, de acordo com as regras processuais aplicáveis ao poder de livre apreciação da prova, o tribunal entendeu ser o que decorria de um processo racional e lógico de formação da convicção, no qual tiveram interferência todas as cambiantes de normalidade, razoabilidade e de senso comum 15. E não se vislumbra que a conclusão do silogismo judiciário haja sido tirada ao arrepio dessas regras e bem assim do referido artigo 127º do CPP, antes se afigurando que a convicção assenta em elementos objetivos e para além de qualquer dúvida razoável. 16. Neste conspecto, cumpre salientar que, gozando o tribunal recorrido do privilégio da imediação das provas e assentando a convicção do julgador, em larga medida, no que tal imediação lhe permite apreender, só se da apreciação da prova feita pelo tribunal superior resultar para este ter havido clara violação dos critérios de apreciação da prova, designadamente dos enunciados no art.º 127.º do CPP, deve o tribunal superior modificar a matéria de facto dada como assente. 17. Face ao exposto, forçoso é concluir que não assiste qualquer razão ao arguido. Pelo que, nos termos expostos, deverá ser negado provimento ao recurso interposto, condenando-se o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelos artigos 203.º, n.º 1 e 204.º, n.º 2, alínea a), por referência ao artigo 202.º, alínea b), todos do Código Penal, na pena de 2 anos e 3 meses de prisão suspensa na execução por igual período. ...”. * Neste tribunal o Exm.º Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer de fls. com, para além do mais, o seguinte teor: “... 2. O arguido/recorrente AA, condenado, como autor material e na forma consumada, pela prática de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelos artigos 203.º, n.º 1 e 204.º, n.º 2, alínea a), por referência ao artigo 202.º, alínea b), todos do Código Penal, na pena de 2 anos e 3 meses de prisão, suspensa na execução por igual período de tempo, vem interpor o presente recurso do acórdão a sua absolvição, os fundamentos de direito e de facto consignados na sua motivação de recurso (sob referência Citius nº 20896069). Fundamenta-se o recurso, no essencial, na invocação das seguintes questões: - Se a sentença do Tribunal a quo enferma de erro de julgamento; - Se a sentença do Tribunal a quo viola o disposto nos arts. 374º e 379º do CPP. 3. A Digna Procuradora da República junto da 1ª Instância respondeu à motivação de recurso interposto nos termos constantes nos autos, cfr. resposta apresentada sob referência Citius n.º 21206647, defendendo a manutenção da douta sentença impugnada, posto que, e no essencial, a decisão impugnada não padece de nenhum vício estrutural a que se reporta o nº 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal, sendo que resulta da decisão impugnada a ampla explicitação acerca do processo de formação do Tribunal e exame crítico das provas que a sustentou, nomeadamente o raciocínio lógico-dedutivo seguido e o porquê, a medida e a extensão da credibilidade que merecem (ou não mereceram) os elementos de prova apreciados pelo Tribunal “a quo”, conforme melhor se alcança do teor das conclusões extraídas naquela peça processual, para cujo teor, por uma questão de economia processual, se remete. Fundamentação que, de resto, se acha também muito bem alicerçada nas regras da experiência e em adequados juízos de normalidade, não se perfilando a violação de qualquer regra da lógica ou ensinamento da experiência comum, tanto mais que, no caso vertente, avultam do acervo probatório disponível as declarações prestadas pelo próprio arguido junto do JIC, tendo-o feito na fase instrutória, a prova testemunhas, documental e vistoria efectuada. Acompanhando bem de perto o teor da fundamentação da decisão em crise, diremos que o Tribunal “a quo” formou a respectiva convicção alicerçado, primordialmente, nas declarações prestadas pelas testemunhas em sede de julgamento (pois o arguido, no exercício do seu direito ao silêncio, remeteu-se ao silêncio, o que não obstou a que fossem ponderadas as suas declarações prestadas perante o JIC na fase de instrução), conjugando-as com o restante acervo probatório disponível, em ordem a atingir-se a verossimilhança da factualidade apurada. Enfim, a matéria dada como provada (e não provada) é a que resulta da análise da prova produzida, temperada com os princípios de processo penal convergentes na área, com destaque – inevitável e desejável sob o ponto de vista da captação psicológica – para o da imediação. Da incursão no texto da douta sentença proferida nos autos não se detecta qualquer erro de julgamento, estando a decisão bem fundamentada e com suficiente força lapidar estão explanadas as razões da condenação do arguido/recorrente, razões que aliás assentam em elementos de prova suficiente, mostrando-se o exame crítico da prova feito adequadamente. Assim, em nossa opinião, com a arguição dos vícios decisórios nos moldes assinalados, o Recorrente pretende, tão-somente, é pôr em causa a convicção do Tribunal através da sua própria interpretação da prova produzida, ensaiando impugnar a decisão sobre a matéria de facto. Como se vê do Ac. TRL de 18/07/2013, “III – (…) Quando os recorrentes entendem que a prova foi mal apreciada devem proceder à impugnação da decisão sobre a matéria de facto conforme o artigo 412º n.º 3 do Código de Processo Penal (…)”. Ora, o regime legal estabelecido em matéria de recursos penais prevê que, para que possa ter lugar o reexame da prova, o Recorrente terá de cumprir o formalismo correspondente, designadamente o do n.º 3 do artigo 412º do C.P.P., devendo as conclusões conter a menção aos pontos de facto que consideram incorrectamente julgados (alínea a), as provas que impõem decisão diversa da recorrida (alínea b) e as que devem ser renovadas (alínea c), com referência aos suportes técnicos (n°4). Acontece que o Recorrente não observou tal procedimento, apresentando, antes, uma apreciação dos factos diferente da do Tribunal, mas fá-lo sem apontar quaisquer factos concludentes que permitam contraditar a apreciação efectuada pelo Tribunal e sem especificar as concretas provas que na sua óptica imporiam decisão diversa, como determina o artigo 412º n.º 3 al. b), do C. de Processo Penal. Consequentemente, e salvo melhor entendimento, a matéria de facto ficou intangível. E na verdade, não há provas que imponham decisão diversa da que foi tomada pelo Tribunal “a quo”. Apresentando uma apreciação dos factos diferente da do Tribunal, o Arguido vem é questionar a convicção do Julgador. Porém, a convicção do Tribunal só pode ser posta em causa em função das regras de experiência comum, ou seja, quando, pelo raciocínio lógico, da razão e do pensamento, baseado naquelas regras, se chega à conclusão de que a convicção do julgador está eivada de erro (erro de julgamento), que suscita dúvidas razoáveis que põem em causa a decisão – cfr., neste sentido, o Ac. Relação de Coimbra, de 25/11/2009, no Pº 157/08.2GHCTB.C1, acessível em www.dgsi.pt. Ora, o Tribunal “a quo” explica com clareza e sem ambiguidades, num raciocínio claro e de acordo com as regras da experiência comum, as razões pelas quais, em relação ao apurado comportamento do arguido, assim decidiu, cumprindo correcta e integralmente o requisito “exame crítico” exigido por lei. Acresce que o Tribunal “a quo” não se encontrou em estado de dúvida sobre a actuação do Arguido, inexistindo, assim, qualquer motivo que possa conduzir à absolvição da recorrente à luz da adequada aplicação do princípio in dubio pro reo. No mais, a convicção do julgador mostra-se fundada na análise crítica da prova produzida, apreciada segundo as regras da normalidade e da experiência comum, observando-se, assim, o preceituado no artigo 127.º do Código de Processo Penal. A nosso ver, e salvo melhor entendimento, a decisão recorrida mostra-se bem fundamentada, de forma lógica e conforme às regras da experiência comum, sendo fruto de uma adequada e criteriosa apreciação da prova. 4. Na sequência do que vem a referir-se, e examinados os fundamentos do recurso interposto e da douta sentença impugnada, consideramos que a Exmª Magistrada do Ministério Público junto da 1ª instância identificou correctamente o objecto do recurso, conforme melhor se alcança do teor da fundamentação inserta na resposta apresentada, para a qual, e por uma questão de economia processual, se remete, rebatendo especificadamente todos os aspectos suscitados e argumentando criteriosamente, com clareza, rigor e correcção jurídica; o que merece o nosso total acolhimento, dispensando-nos, assim, porque de todo desnecessário e redundante, de aduzir outros considerandos no que ao objecto do recurso em análise diz respeito. Pelo exposto, emite-se parecer no sentido de que o recurso deve ser julgado improcedente. ...”. * A sentença (ou acórdão) proferida em processo penal integra três partes distintas: o relatório, a fundamentação e o dispositivo. A fundamentação abrange a enumeração dos factos provados e não provados relevantes para a decisão e que o tribunal podia e devia investigar; expõe os motivos de facto e de direito que fundamentam a mesma decisão e indica, procedendo ao seu exame crítico e explanando o processo de formação da sua convicção, as provas que serviram para fundamentar a decisão do tribunal. Tais provas terão de ser produzidas de acordo com os princípios fundamentais aplicáveis, ou seja, os princípios da verdade material, da livre apreciação da prova e “in dubio pro reo”. Tendo a prova sido produzida em sede de audiência de julgamento, está ainda sujeita aos princípios da publicidade, da oralidade e da imediação. O tribunal recorrido fixou, para além do mais, da seguinte forma a matéria de facto: “… - Factos provados: Com relevo para a decisão da causa resultaram provados os seguintes factos: 1. A ofendida EDP Distribuição – Energia, S.A., atual E-Redes – Distribuição de Eletricidade, SA, dedica-se ao fornecimento de energia elétrica, sendo concessionária e operadora da rede nacional de distribuição e das redes públicas de baixa tensão, competindo-lhe em exclusivo a ligação de consumidores ou produtores às redes públicas. 2. O arguido é, desde pelo menos, 03-05-1983, sócio gerente da sociedade ..., LDA., NIPC ..., com sede na Avenida … Queluz. 3. Em data não concretamente apurada, mas anterior a 25 de Novembro de 2016, o arguido celebrou, naquela qualidade, com a ofendida, um contrato de comercialização e fornecimento de energia elétrica para a morada supra indicada, com o local de consumo n.º …………….. 4. Contudo, em data não concretamente apurada, mas situada antes de 25 de Novembro de 2016, o arguido ou alguém cuja identidade não se logrou apurar, realizou uma derivação fraudulenta entre a portinhola e a caixa de TI’s, com um cabo intercetado com ligadores de rede aérea. 5. Com tal ato, o arguido conseguiu que parte da energia fornecida e consumida não fosse contabilizada pela ofendida e, consequentemente, apoderou-se da mesma sem proceder ao respetivo pagamento. 6. A ofendida constatou a situação de ligação abusiva, i.e., a derivação fraudulenta entre a portinhola e a caixa de TI’s, com cabo intercetado com ligadores de rede aérea, no dia 25 de Novembro de 2019, quando foi efetuada vistoria ao local. 7. Da forma supra descrita, o arguido apoderou-se de energia elétrica no valor de € 47.467,13 (quarenta e sete mil quatrocentos e sessenta e sete euros e treze cêntimos), correspondente ao fornecimento e consumo de energia elétrica não contabilizada. 8. Ao atuar da forma descrita, através da ligação fraudulenta efetuada, o arguido agiu com o propósito concretizado de se apropriar da energia elétrica fornecida e consumida, mas não contabilizada pela ofendida, bem sabendo que tais consumos de energia possuíam um custo e determinavam o pagamento do preço correspondente e que, ao não proceder ao pagamento da mesma, estava a fazer sua a referida energia, contra a vontade da sua legítima proprietária. 9. O arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei penal e tendo capacidade e liberdade para se determinar de acordo com esse conhecimento, contudo, não se coibiu de agir da forma descrita. Mais se provou que: 10. Para além do prejuízo decorrente da energia consumida e não paga, no período acima assinalado, a conduta do arguido obrigou, ainda, a demandante, a assumir custos com: encargos de potência no montante de € 396, 20; com o contador, no montante de € 11 324, 06; e com serviços administrativos, no montante de € 77, 70. 11. O arguido retificou a instalação elétrica em conformidade com as orientações que lhe foram dadas pelos técnicos da E Redes, no próprio dia da realização da vistoria. 12. O arguido foi condenado por sentença transitada em julgado em 31.01.2019 pela prática, em 1.12.2012, de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, em pena de admoestação. - Factos não provados: Com interesse para a decisão não resultaram factos não provados. …”. * Como dissemos, o art.º 374º/2 do CPP[2] determina que, na sentença, ao relatório se segue a fundamentação que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal. A redacção deste preceito inculca a ideia, que a obediência a regras de bom senso, clareza e precisão apoiam, de que a fundamentação da decisão se repartirá pela enumeração dos factos provados, depois dos não provados e, seguidamente, pela exposição dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão com o exame crítico das provas. Necessário e imprescindível é que o tribunal indique os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência se possa controlar a razoabilidade da convicção sobre o julgamento do facto provado ou não provado. No cumprimento desse dever, o tribunal recorrido fundamentou a sua decisão de facto da seguinte forma: “… A convicção do Tribunal assentou na prova produzida em audiência, apreciada livremente e de acordo com critérios de lógica e racionalidade. Em sede de julgamento, o arguido optou por não prestar declarações sobre os factos, mas, tendo-o feito na fase instrutória, perante o respetivo Juiz de Instrução Criminal, as mesmas foram valoradas, em conformidade com o disposto no artigo 141.º, n.º 4, alínea b), do CPP. Ora, nesse relato, o arguido admitiu ser gerente da sociedade ... há 35 anos, através da qual explorava e explora uma pastelaria; confirmou ser o próprio quem procede pagamento das contas da empresa, designadamente da eletricidade; e recordou que em 2017/2018, o seu estabelecimento sofreu uma grande inundação, cujas obras de reparação envolveram, além do mais, a instalação elétrica, tendo sido então introduzidas algumas alterações – como seja a alteração das lâmpadas para LED e a instalação de um estabilizador de corrente na sua instalação elétrica -, que o levaram, a partir de então, a economizar cerca de € 150 a € 200, 00 mensais na respetiva conta; disse que quando foram feitas tal alterações o fornecimento da energia do seu estabelecimento estava contratado a uma empresa diferente da EDP mas admitiu ser esta entidade, atual E-Redes, a sua fornecedora de energia à data da vistoria – em que esteve presente -, e ao momento atual. Por fim, disse ainda que, nessa sequência, procedeu em conformidade com as indicações que lhe foram dadas pelos funcionários que levaram a cabo tal fiscalização, retificando, então, a instalação elétrica conforme lhe foi indicado. Tais declarações, aliadas à certidão permanente de fls. 54 e ao documento de fls. 158 que identifica a sociedade do arguido como contratada a factualidade relativa pela demandante permitiriam, desde logo, extra, i à sua gerência da sociedade e ao fornecimento de energia contratado à EDP. Quanto à prova testemunhal, foram valoradas as declarações de ………………….. e …………….. - ambos funcionários da E-Redes que participaram na vistoria ao local -, …………………, engenheiro e ………………, psicólogo, também eles funcionários da E-Redes e encarregues de procederem ao cálculo dos prejuízos decorrentes da fraude detetada na vistoria, para a demandante; Assim, os dois primeiros descreveram como verificaram durante a vistoria que parte da energia consumida naquele estabelecimento comercial não era contabilizada pela empresa fornecedora – existindo uma ligação fraudulenta de energia ao cliente, a montante dos transformadores de intensidade (os TI´s) da EDP, que impedia o registo e a contabilização da energia consumida; explicaram que existia até um dispositivo, do tipo interruptor, denominado “contactor” que ligava e desligava essa ligação abusiva; que a instalação deste dispositivo apenas podia ter sido feita com intervenção humana; e que aquela alimentação fornecia, apenas, a pastelaria explorada pelo arguido. Tais testemunhos, os quais foram considerados isentos e rigorosos e, assim, credíveis, aliados ao auto de vistoria de fls. 151 e às fotos de fls. 155 a 157 permitiram, assim, extrair, de que forma foi levada a cabo a fraude e como foi esta detetada pela E-Redes. Por seu turno, para a contabilização da energia abusivamente consumida e que, não tendo sido registada, não foi paga pelo arguido, foram tidos em consideração os testemunhos dos mencionados …………….. e …………………., ambos considerados, também, isentos e objetivos, tendo o primeiro explicado que a E Redes detetou um decréscimo anormal do consumo de energia naquele local a partir de Agosto de 2015 e que, tendo sido confirmado com a vistoria que o mesmo se devia ao desvio do registo dos respetivos consumos através da mencionada ligação; mais explicaram que, por razões técnicas (falta de gráficos, que remontassem à data do início da fraude), acabaram por imputar ao cliente aquela apropriação ilegítima só a partir do período descrito na acusação; e que os prejuízos foram contabilizados com base no consumo médio do cliente entre 26.11.2019 e 25.12.2019, ao qual descontaram a parte do consumo que havia sido registada; ……………. descreveu ainda de que forma foram por si feitos os cálculos e a sua imputação ao cliente. A estes testemunhos – que também confirmaram a imediata retificação pelo arguido, da instalação fraudulenta detetada e que se deu como assente - aliou-se a análise do mencionado auto de vistoria e também o documento de fls. 152 a 154 dos autos que, assim, levaram à prova do prejuízo causado pela conduta do arguido à EDP, atual E-Redes. Quanto aos elementos psicológicos e volitivos da conduta dolosa, conforme já se adiantou supra, tendo o arguido confirmado nas declarações que prestou na instrução, ser ele quem geria de facto e de direito a sociedade, e quem assegurava o pagamento das respetivas despesas, designadamente as contas de eletricidade, não lhe sendo, assim, possível ignorar o decréscimo do seu valor, quando foi detetada uma intervenção – por ação humana – no seu estabelecimento, também ela visível e facilmente detetável e da qual, apenas para o seu negócio, advinham vantagens, assim se concluiu, necessariamente, pela sua consciência e intenção de atuar como efetivamente atuou. Cumpre aqui referir que a referência feita pelo arguido quando foi ouvido pelo JIC e que viria a ser confirmada em julgamento pela testemunha arrolada em sua defesa e sua funcionária ……………….., a uma anterior intervenção na instalação elétrica do estabelecimento, a seguir a uma inundação, não permitiu afastar a convicção do Tribunal quanto à responsabilidade do arguido. Isto porque tal intervenção - que se limitou, conforme foi dito pelo arguido, à reparação dos estragos e à instalação de lâmpadas mais económicas -, é totalmente distinta da ligação abusiva encontrada na vistoria acima descrita. Ademais, falamos de um período de anos de consumo ilícito de energia que o arguido, gerente efetivo da firma, não podia ignorar – tanto pela evidência do dispositivo encontrado na vistoria, como pelo valor significativo da energia que impediu fosse contabilizada e oportunamente paga. Por fim, do certificado de registo criminal resultaram os seus antecedentes criminais. …”. * É pacífica a jurisprudência do STJ[3] no sentido de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação[4], sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso. Da leitura dessas conclusões, tendo em conta as de conhecimento oficioso, afigura-se-nos que as questões fundamentais a apreciar no presente recurso são as seguintes: I. Omissão de pronúncia; II. Impugnação da matéria de facto; III. Insuficiência para a decisão da matéria da matéria de facto provada; (conhecimento oficioso) IV. Cálculo do valor da indemnização. * Cumpre decidir. Normalmente, a apreciação das questões suscitadas ou de conhecimento oficioso, deve começar pelas nulidades da sentença, seguindo-se a reapreciação da matéria de facto, os vícios previstos no art.º 410º/2 do CPP e as restantes questões[5]. Mas neste caso, apreciaremos em primeiro lugar o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada porque, como passamos a explicar, essa apreciação prejudicará a apreciação das restantes questões. Existe o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, que não se confunde com a insuficiência da prova para a decisão de facto, quando a matéria de facto fixada se apresenta como insuficiente para a decisão sobre o preenchimento dos elementos objectivos e subjectivos dos tipos legais de crime verificáveis e dos demais requisitos necessários à decisão de direito[6]. “Está-se na presença da insuficiência da matéria de facto para a decisão de direito quando os factos colhidos, após o julgamento, não consentem, quer na sua objectividade quer na sua subjectividade, o ilícito dado como provado.”[7],[8]. Este, como os restantes vícios previstos no art.º 410º/2 do CPP, é de conhecimento oficioso[9] e tem de resultar do próprio texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum[10]. Para que o agente possa ser condenado pela prática de um crime, é necessário que a sua prática lhe possa ser imputada a título de autoria ou cumplicidade (art.ºs 26º e 27º do CP). Ora, tal como se encontra fixada a matéria de facto, não é possível imputar o facto ilícito (derivação fraudulenta entre a portinhola e a caixa de TI’s, com um cabo intercetado com ligadores de rede aérea, de tal forma que parte da energia fornecida e consumida não fosse contabilizada pela ofendida – factos provados 4 e 5) ao Arg., a nenhum destes títulos. Na verdade, foi dado como provado que “... em data não concretamente apurada, mas situada antes de 25 de Novembro de 2016, o arguido ou alguém cuja identidade não se logrou apurar, realizou uma derivação fraudulenta entre a portinhola e a caixa de TI’s, com um cabo intercetado com ligadores de rede aérea. ...” (sublinhado nosso). Isto é, está provado que essa ligação fraudulenta foi feita pelo Arg. ou por outra pessoa, mas não que, neste caso, essa outra pessoa tenha agido a mando do Arg., nem em co-autoria com ele, nem que este tivesse conhecimento que esse outro indivíduo tivesse feito tal ligação e se tenha aproveitado dela. Não pode haver imputação criminal hipotética. Por isso, a autoria do facto ilícito não pode, neste caso, ser objectivamente imputada ao Arg., pelo que falece um dos pressupostos da reacção criminal. Por isso, a matéria de facto fixada apresenta-se como insuficiente para a decisão sobre o preenchimento dos elementos objectivos do tipo legal de crime pelo qual o Arg. vem condenado. Existe, pois, uma insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, mas neste caso, ainda que se pudesse concluir que o tribunal a quo podia ter alargado a sua investigação a outro circunstancialismo fáctico suporte bastante dessa decisão, esse alargamento já não seria possível. Na verdade, essa insuficiência fáctica já inquinava a pronúncia e a acusação, que fixou o objecto do processo, pelo que o tribunal de primeira instância já não pode suprir tal insuficiência, nem com recurso ao disposto no art.º 359º do CPP (alteração substancial de factos), uma vez que o Arg. já manifestou neste recurso a sua oposição a uma tal alteração[11]. Por isso, trata-se de uma insuficiência fáctica atípica, não só porque não dá lugar ao reenvio, porque, para além de o tribunal recorrido já não poder pronunciar-se sobre tal matéria, como porque é possível a este tribunal decidir a causa, absolvendo o Arg.. Esta decisão, prejudica a apreciação das questões I e II, restando agora tirar as consequências quanto ao pedido cível. Nos termos do art.º 377º/1 do CPP, “A sentença, ainda que absolutória, condena o arguido em indemnização civil sempre que o pedido respectivo vier a revelar-se fundado, ...”. Ora, como vimos, não está provado que tenha sido o Arg. a fazer a ligação fraudulenta que causou prejuízos à Demandante, nem que dela se tenha aproveitado conscientemente. Falta, pois, um dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, porque havendo facto ilícito este não vem imputado ao Arg., pelo que não pode deixar de ser absolvido também do pedido cível. Não pode, pois, deixar de proceder o recurso. * Nestes termos e nos mais de direito aplicáveis, julgamos provido o recurso e, consequentemente, revogamos a decisão recorrida e absolvemos o Arg., quer do crime pelo qual vinha condenado, quer do pedido cível. Sem custas. Custas da parte cível, pela Demandante. * Notifique. D.N.. * Lisboa, 27-10-2022 João Abrunhosa Filipa Costa Lourenço Maria Gomes Bernardo Perquilhas _______________________________________________________ [1] Arguido/a/s. [2] Código de Processo Penal. [3] Supremo Tribunal de Justiça. [4] “Cfr. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 05.12.2007; proferido no proc. nº 1378/07, disponível in Sumários do Supremo Tribunal de Justiça; www.stj.pt. “O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação – art. 412.º, n.º 1, do CPP –, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1.ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, questões que o relator enuncia no exame preliminar – art. 417.º, n.º 6, do CPP –, a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes. Cfr. ainda Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 24.03.1999, CJ VII-I-247 e de 20-12-2006, processo 06P3661 em www.dgsi.pt) no sentido de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas [Ressalvando especificidades atinentes à impugnação da matéria de facto, na esteira do doutrinado pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17-02-2005, quando afirma que :“a redacção do n.º 3 do art. 412.º do CPP, por confronto com o disposto no seu n.º 2 deixa alguma margem para dúvida quanto ao formalismo da especificação dos pontos de facto que no entender do recorrente foram incorrectamente julgados e das provas que impõem decisão diversa da recorrida, pois que, enquanto o n.º 2 é claro a prescrever que «versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda, sob pena de rejeição» (...), já o n.º 3 se limita a prescrever que «quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar (...), sem impor que tal aconteça nas conclusões.” -proc 04P4716, em www.dgsi.pt; no mesmo sentido o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16-06-2005, proc 05P1577,] (art.s 403º e 412º do Código de Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (art. 410º nº 2 do Código de Processo Penal e Acórdão do Plenário das secções criminais do STJ de 19.10.95, publicado no DR Iª série A, de 28.12.95).” (com a devida vénia, reproduzimos a nota 1 do acórdão da RC de 21/01/2009, relatado por Gabriel Catarino, no proc. 45/05.4TAFIG.C2, in www.dgsi.pt). [5] Nesse sentido, veja-se o acórdão do STJ de 05/07/2007, relatado por Simas Santos, no proc. 07P2279, in www.dgsi.pt, de cujo sumário citamos: “1 – Quando o recorrente pretende impugnar a decisão sobre a questão de facto deve dirigir-se, à Relação que tem competência para tal, como dispõem os art.ºs 427.º e 428.º, n.º 1 do CPP. O recurso pode então ter a máxima amplitude, abrangendo toda a questão de facto com vista à modificação da decisão da 1.ª Instância sobre essa matéria, designadamente quando, havendo documentação da prova, esta tiver sido impugnada nos termos do art. 412.º, nº 3 [art. 431.º, al. b)]. 2 – Para além da já referida impugnação alargada da decisão de facto, pode sempre o recorrente, em todos os casos, dirigir-se à Relação e criticar a factualidade apurada, com base em qualquer dos vícios das alíneas do n.º 2 do art. 410.º, como o consente o art. 428.º n.º 2 do CPP. 3 – É essa a ordem pela qual a Relação deve conhecer da questão de facto: primeiro da impugnação alargada e, depois e se for o caso, dos vícios do n.º 2 do art. 410.º do CPP. Mas se a Relação as conheceu por ordem inversa, mas as apreciou a ambas, não se pode falar em nulidade por omissão de pronúncia. ...”. [6] Cf. Ac. do STJ de 20/10/1999, tirado no Proc. n.º 1452/98-3ª Secção, que traduz jurisprudência pacífica. [7] Cf. Ac. do STJ de 25/03/1998, in BMJ 475/502, com anotação de que se trata de jurisprudência abundante e pacífica. [8] Importante resenha doutrinal e jurisprudencial sobre o que constitui este vício consta do acórdão da RP de 06/10/2004, relatado por Torres Vouga, in www.gde.mj.pt, processo 0441909. [9] Cf. Ac. 7/95 do STJ, de 19/10/1995, relatado por Sá Nogueira, in DR 1ª Série A, de 28/12/1995, que fixou jurisprudência no sentido de que é oficioso o conhecimento, pelo tribunal de recurso, dos vícios indicados no art.º 410.º/2 CPP, nos seguintes termos: “É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito.”. [10] Assim, o Ac. do STJ de 19/12/1990, proc. 413271/3.ª Secção: " I - Como resulta expressis verbis do art. 410.° do C.P.Penal, os vícios nele referidos têm que resultar da própria decisão recorrida, na sua globalidade, mas sem recurso a quaisquer elementos que lhe sejam externos, designadamente declarações ou depoimentos exarados no processo durante o inquérito ou a instrução ou até mesmo no julgamento (...). IV É portanto inoperante alegar o que os declarantes afirmaram no inquérito, na instrução ou no julgamento em motivação de recursos interpostos". [11] Nesse sentido, vejam-se os seguintes acórdãos: - da RP de 20/03/1996, relatado por Pereira Madeira, no proc. 9640041, in www.dgsi.pt, com o seguinte sumário: “I - A notoriedade do erro ou a contradição da fundamentação hão-de resultar do confronto dos próprios termos da decisão recorrida, do seu texto, e não de outra fonte; II - O vício da insuficiência, tributário do princípio acusatório, tem de ser aferido em função do objecto do processo, traçado naturalmente pela acusação ou pronúncia. Isto significa que só quando os factos recolhidos pela investigação do tribunal se ficam aquém do necessário para concluir pela procedência ou improcedência da acusação se concretizará tal vício; III - Só nas situações de impasse em que o juiz não consegue superar a dúvida sobre o acontecido, é de observância obrigatória o preceito constitucional contido no artigo 32 n.2 da Lei Fundamental, que consagra o princípio da presunção de inocência que surge articulado com o princípio " in dubio pro reo ".” (sublinhado nosso); - da RP de 20/03/1996, relatado por Pereira Madeira, no proc. 9640041, in www.dgsi.pt, com o seguinte sumário: “I - Na pesquisa do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a que alude o artigo 410 n.2 alínea a) do Código de Processo Penal, há que averiguar se o tribunal, cingido ao objecto do processo desenhado pela acusação ou pronúncia, mas vinculado ao dever de agir oficiosamente em busca da verdade material, desenvolveu todas as diligências e indagou todos os factos postulados por esses parâmetros processuais, concluindo-se pela verificação de tal vício - insuficiência - quando houver factos relevantes para a decisão, cobertos pelo objecto do processo ( mas não necessariamente enunciados em pormenor na peça acusatória) e que indevidamente foram descurados na investigação do tribunal criminal, que, assim, se não apetrechou com a base de facto indispensável, seja para condenar, seja para absolver. II - Tratando-se de uma entrevista em discurso indirecto publicada em jornal periódico, e sendo dado a conhecer o respectivo entrevistado, não tem o jornalista nem o director do jornal qualquer responsabilidade criminal pelas afirmações produzidas pelo entrevistado e ali publicadas. III - No caso de comparticipação do jornalista e da sua fonte informativa devidamente identificada, e não tendo sido sequer feita participação contra o principal autor do escrito, justamente a referida fonte informativa, o não exercício da queixa estende o seu benefício aos demais, designadamente ao arguido jornalista.” (sublinhado nosso). |