Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1005/25.4YRLSB.L1 -8
Relator: TERESA SANDIÃES
Descritores: DECISÃO ARBITRAL
IRRECORRIBILIDADE
CONVENÇÃO DE ARBITRAGEM
INTERPRETAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/23/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: A interpretação da convenção de arbitragem, em obediência aos comandos dos artºs 236º a 238º do CC, é a de que a adesão às regras processuais dos Regulamentos do CIMPAS se reporta à integralidade de tais regras, incluindo a do artº 29º, nº 2, que admite expressamente o recurso da decisão arbitral. A adesão às regras do Regulamento deve ser entendida no seu todo.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes da 8ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa

EE apresentou junto do Centro de Informação, Mediação, Provedoria e Arbitragem de Seguros (CIMPAS) reclamação contra Fidelidade - Companhia de Seguros, S.A., por esta não ter assumido a responsabilidade por sinistro.
Alegou que: “No passado dia 27.07.2023 por volta das 23h30 circulava o reclamante na N8, sentido B – T, quando um pouco antes do …., um veiculo iniciou a manobra de ultrapassagem à sua caravana numa zona com duas vias no sentido em que seguia, quando surge um veículo em sentido oposto, que ao ocupar a via em que seguia, obrigou o veiculo que ultrapassava a desviar para a direita, acabando por embater na lateral esquerda da caravana, fazendo com que a caravana batesse nos rails com o lado direito. O veículo que causou o acidente abandonou o local, tendo o reclamante e o outro condutor chamado a GNR. A outra condutora deu-se como culpada e preencheram no local a participação, documento fornecido pela condutora. A outra condutora circulava sem passageiros e não ficou com nenhum ferimento. Na caravana circulava o condutor reclamante e sua esposa, sendo que nenhum dos dois sofreu qualquer ferimento. Tanto a outra condutora como o condutor reclamante seguidamente chamaram os reboques, que demoraram algum tempo a chegar ao local, tendo a outra condutora contactado também um seu amigo para a ir buscar. A outra condutora ficou a aguardar com o seu amigo a chegada do táxi para ir buscar o condutor reclamante e esposa. Aguardaram até perto das 04h30. Em virtude do acidente a outra condutora enviou por email para a HERTZ a cópia da participação e pagou logo o serviço, no valor de € 600,00. A outra condutora e o condutor reclamante da caravana não têm qualquer relação de amizade ou parentesco.”
Reclamou a indemnização do valor do salvado no montante de € 16.000,00.
Notificada à Fidelidade – Companhia de Seguros, SA. a reclamação apresentada, a fim de transmitir a sua posição, nomeadamente a possibilidade de resolução amigável do litígio, veio esta comunicar:
“Na sequência da participação de sinistro que nos foi apresentada, cumpre-nos informar que, com base nos dados facultados, nas diligências entretanto efetuadas e nos elementos recolhidos para instrução do processo, a peritagem/averiguação do sinistro concluiu que este não ocorreu como participado, visto que existem várias incongruências nas circunstâncias relatadas.
Face ao exposto, não poderemos assumir os danos reclamados.”
Em 9 de maio de 2024 o CIMPAS comunicou ao reclamante não ter sido possível a resolução amigável do litígio e a tramitação subsequente, designadamente:
“(…) Na impossibilidade de obter um acordo ou na ausência de Conferência de Mediação por falta de vontade de uma das partes, realizar-se-á um Julgamento Arbitral (que, tendo em consideração a residência do Reclamante, poderá ter lugar em Lisboa, Coimbra, Porto, Faro, Albufeira, Évora, Funchal ou Ponta Delgada).
A Arbitragem é um processo célere de resolução de conflitos, realizado por um Juiz Árbitro nomeado pelo Centro, produzindo os mesmos efeitos que a decisão de um Tribunal Judicial, sendo susceptível de recurso, anulação e de execução nos termos legais.
Com o pedido de intervenção do Tribunal Arbitrai, deverá V.Exa. anexar todos os meios de prova que pretenda apresentar e que ainda não juntou ao processo, bem como acrescentar ou alterar quaisquer elementos, sob prejuízo de posteriormente não o poder fazer e de os mesmos não poderem ser atendidos. (…)
Junta: Guia de pagamento, Minutas de adesão à Conferência de Mediação e à Arbitragem e Regulamento da Arbitragem e das Custas.” (destaques nossos)
Em anexo foi remetida minuta de adesão à arbitragem do seguinte teor:
“Adesão à Arbitragem
EE, contribuinte fiscal n.°_________, residente na Rua …, declara aderir ao Serviço de Mediação e Arbitragem do Centro de Informação, Mediação e Arbitragem de Seguros (CIMPAS), autorizado por Despacho n.° 4407/2018, publicado no Diário da República, 2a Série, n°86, de 4 de maio de 2018, no âmbito do Decreto-Lei n°425/87, aceitando a Arbitragem como forma de resolução do litígio que corre termos sob o número de processo X, em que é parte Reclamada a Fidelidade, Companhia de Seguros, SA.
Mais declara aceitar, como regras de processo a observar na Arbitragem, as constantes dos Regulamentos aprovados por este Centro.”
Em 20/05/2024 EE, através do seu mandatário, remeteu os formulários  preenchidos, designadamente o de adesão à arbitragem, com o texto acima transcrito, nela tendo sido manuscritos, o nº de contribuinte e a data, seguida da assinatura do reclamante.
A reclamada Fidelidade, notificada, apresentou contestação. Alegou, em síntese, que impugna a existência do acidente participado pelo reclamante, os intervenientes, e não aceita os danos alegados como tendo qualquer nexo causal com o alegado acidente dos autos, não encontrando cobertura no contrato de seguro. Na sequência da participação do acidente pelo reclamante, a congénere da reclamada Companhia de Seguros Tranquilidade, levou a cabo, como é procedimento habitual, todas as diligências atinentes a apurar as circunstâncias do alegado acidente, designadamente a correspondente averiguação, com deslocação ao local e audição dos alegados intervenientes. De acordo com o apurado pela averiguação da congénere, os veículos ZB e XS não tiveram qualquer intervenção no acidente dos autos. A reclamada impugna a participação do veículo seguro na reclamada no alegado acidente dos autos, bem como qualquer embate.  Na sequência de peritagem, constatou-se que os danos no veículo XS e ZB, do reclamante, pela extensão, pela tipologia e pelas diferentes alturas são de origens diferentes e não são compatíveis com a dinâmica do acidente descrita, nem com um embate entre estes dois veículos. A reclamada impugna o valor dos danos alegados pelo reclamante bem como a intervenção dos veículos no acidente e o nexo causal dos danos com o alegado acidente dos autos. O que a reclamada tem a certeza é que, a ter ocorrido algum acidente, os danos apresentados não são decorrência do acidente participado. Relativamente aos danos no veículo XS, ora alegados, a reclamada impugna o nexo causal dos mesmos com qualquer alegado embate com o veículo ZB uma vez que impugna a existência do acidente.
Concluiu pela improcedência da reclamação e sua absolvição do pedido e pela condenação do reclamante em multa como litigante de má fé.
Após realização de julgamento arbitral foi proferida decisão que julgou improcedente a reclamação apresentada e absolveu a reclamada do pedido.

O reclamante interpôs recurso de apelação, terminando com as seguintes conclusões:
“1. Veio a ser proferida decisão, com a qual não pode o recorrente colher ou sufragar o seu entendimento.
2. Dá-se como facto assente que “Não foi possível analisar os danos do veículo seguro na Reclamada." e “(...) presume-se que o acidente ocorreu conforme nele descrito.”, bem como, “Acresce ainda que não foi possível analisar os danos no veículo seguro na Reclamada para verificar a sua eventual compatibilidade (...)”.
3. Ora, determina a jurisprudência que “Desde a fase da instrução do processo (art.°s 410° e seguintes do CPC) até à sentença (art.° 607°, n.° 1 do CPC), o juiz poderá/deverá realizar ou ordenar todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer (art.° 411° do CPC).” In Ac. TR de Coimbra, Proc. 852/20.8T8FIG-A.C1. - o que não ocorreu no caso concreto em crise.
4. O tribunal/juiz deverá providenciar pela obtenção das provas que permitam demonstrar a realidade dos factos (art.°s 7o, n.° 1 do CPC e 341° do CC), realizando ou ordenando, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer (art.° 411°). - o que não ocorreu no caso concreto.
5. No caso concreto verifica-se que não foi dado cumprimento ao Princípio do Inquisitório, nada tendo sido decretado ou ordenado em termos de diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer (art.° 411° do CPC).
6. Assim e de per si, perante a violação do Princípio do Inquisitório, na emergência da omissão de um poder dever que está adstrito, a sua omissão não poderá deixar de configurar uma nulidade processual insanável, que determinará a nulidade da decisão ora em crise, o que desde já se requer para todos os devidos efeitos legais.
7. Porém verdade é, que tal matéria de facto, representa também uma violação do Princípio da Cooperação, por manifesta omissão do convite ao aperfeiçoamento, também este enquanto poder dever - o convite ao aperfeiçoamento de articulados, nos termos do n° 4 do art. 590° do CPC, é um dever a que o juiz está sujeito e cujo não cumprimento leva ao cometimento de nulidade processual - o que não aconteceu e, não tendo acontecido, tal decisão não só é nula, por violação do disposto no artigo 590.°/4 CPC,
8. Consequentemente estamos perante uma decisão - surpresa, na medida em que é a solução dada a uma questão que, embora previsível, não tenha sido configurada pela parte, sem que a mesma tivesse obrigação de a prever.
9. Assim e de per si, perante a violação do Princípio da Cooperação, na emergência da omissão de um poder dever que está adstrito, a sua omissão não poderá deixar de configurar uma nulidade processual insanável, que determinará a nulidade da decisão ora em crise, o que desde já se requer para todos os devidos efeitos legais, a que mais acresce que a própria decisão que veio a ser proferida, enforma uma decisão surpresa, também ela enferma de vício de violação de Lei e como tal, nula.
10. Mais acresce que “I. A nulidade do acórdão por contradição entre os fundamentos e a decisão ocorre em situações em que há um “vício lógico na construção da sentença”, pois, querendo a lei processual que o juiz justifique a sentença, os fundamentos que este invoca para a sua decisão “... conduziriam logicamente, não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto”.” In Ac. STJ, Proc. 1864/21.0T8AGD-A.P1.S1
11.Ora, a sentença veio indicar que, “Não foi possível analisar os danos do veículo seguro na Reclamada.”, mais veio indicar que “(...) presume-se que o acidente ocorreu conforme nele descrito.” e por fim, “Acresce ainda que não foi possível analisar os danos no veículo seguro na Reclamada para verificar a sua eventual compatibilidade (...)”.
12. Assim e aqui chegados, é conclusão objectiva que enforma a sentença proferida, que não foi possível analisar os danos do veículo PARA VERIFICAR DA SUA EVENTUAL COMPATIBILIDADE e que presume-se que o acidente ocorreu conforme descrito na declaração.
13. Mais se lendo na sentença que “Para que a reclamada fosse responsável pela reparação do veículo do reclamante era necessário não só que o reclamante demonstrasse a ocorrência do sinistro como que este tinha provocado danos e o nexo de causalidade entre esses danos e o sinistro (...)”.
14. Ora, a sentença ora em crise reconhece a importância da demonstração e prova do nexo de causalidade, porém dá por facto assente que “Não foi possível analisar os danos do veículo seguro na Reclamada.”
15. Contudo, em vício lógico na construção da sentença, vem depois a mesma considerar que não existe nexo de causalidade e que não resultou provado que os danos rivessem sido provocados pelo sinistro nos autos.
16. Ora, a sentença não fundamenta nem tem como fundamentar uma decisão, que em suma determina que não existe nexo de causalidade, quando o referido nexo de causalidade só poderia ser aferido pela análise do véiculo seguro, e a própria decisão reconhece que não foi possível analisar os danos do veículo.
17. Ora, não tendo sido possível analisar os danos do veículo, como pode a sentença determinar a inexistência de nexo causalidade e como pode a sentença dar por assente que “não resultou provado que os danos no veículo do reclamante tivessem sido provocados pelo sinistro dos autos.” - a verdade é que não pode.
18.Ora o raciocínio lógico patente na sentença, é a da impossibilidade de análise dos danos no veículo do recorrente, o que aliás reitere-se, por inactividade e falta de iniciativa, determina de per si a nulidade da decisão em crise, conforme supra alegado.
19.Temos ainda como facto assente que a única forma de determinar a existência ou não de nexo causal entre os danos peticionados e o sinistro era a análise do veículo do recorrente, o que não ocorreu e assim, sempre determinará inquestionavelmente, que não se pode aferir da existência ou não do nexo causal, de acordo com os dados e factos constantes dos autos e que nunca se poderá concluir se os danos foram ou não provocados pelo sinistro - porque não se analisou os danos.
20.Contudo, a sentença é proferida nos seguintes termos: “Não existindo nexo de causalidade entre os danos peticionados e o sinistro dos autos, tem a Reclamação de improceder.” - trata-se de um “... vício lógico na construção da sentença”, pois, querendo a lei processual que o juiz justifique a sentença, os fundamentos que este invoca para a sua decisão “... conduziriam logicamente, não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto” - o qual nos presentes autos tinha de ser forçosamente que não se poderia aferir do nexo de causalidade e que não poderia aferir se os danos foram ou não provocados por aquele sinistro.
21. O qual é diametralmente oposto a ter-se decidido que NÃO EXISTE NEXO DE CAUSALIDADE e que é diametralmente oposto a ter-se decidido que os danos NÃO FORAM PROVOCADOS POR AQUELE SINISTRO.
22.“I. A nulidade por contradição entre os fundamentos e a decisão contemplada no artigo 615.°, n.° 1, al. c), do Código de Processo Civil pressupõe um erro de raciocínio lógico consistente em a decisão emitida ser contrária à que seria imposta pelos fundamentos de facto ou de direito de que o juiz se serviu ao proferi- la: a contradição geradora de nulidade ocorre quando os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam logicamente não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto ou, pelo menos, de sentido diferente.” In Ac. STJ, Proc. 167/17.5T8LSB.L1 ,S1
Termos em que com os mais de Direito doutamente supridos por este douto Tribunal superior, deverá o recurso interposto ser considerado procedente por provado e em consequência determinar-se a revogação da decisão que determinou a reclamação improcedente, o que se requer em estrita conformidade com a tão douta e costumada JUSTIÇA!”

A reclamada apresentou contra-alegações, sem que tenha formulado conclusões, pugnando pela improcedência do recurso.

O recurso foi admitido pelo tribunal arbitral, como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito devolutivo.

A decisão arbitral considerou provados os seguintes factos:
“1. O Reclamante participou à Reclamada a ocorrência de um acidente no dia 27/07/2023, pelas 23h30m, na N8, no sentido B - T, entre o veículo com a matrícula XS, propriedade do Reclamante, o veículo com a matrícula ZB, cuja responsabilidade se encontrava transferida para a Reclamada pela apólice de seguros de responsabilidade civil automóvel n° 000.”
2. O veículo do Reclamante circulava na via acima identificada, no sentido B/T.
3. O veículo seguro na Reclamada efetuava uma ultrapassagem ao veículo do Reclamante.
4. A reparação dos danos no veículo do Reclamante ascende a €19.643,35 (IVA incluído)
5. O veículo do Reclamante apresenta danos generalizados e um estado de conservação muito deficiente.
6. O veículo do Reclamante apresenta danos antigos e com muita ferrugem.
7. Não foi possível analisar os danos no veículo seguro na Reclamada.
8. Os danos no lado direito do veículo do Reclamante não são compatíveis em termos de altura com os danos existentes no rail de proteção.
9. O Reclamante e os irmãos conhecem o dono da oficina que fez o orçamento para reparação do veículo do Reclamante há muitos anos porque é ali que reparam os veículos.
10. A testemunha II é igualmente proprietária da referida oficina.”

Consignou-se : “Nada mais se apurou de relevante quanto à decisão a tomar.”
                                                    *
Por se entender verificar-se circunstância que obsta ao conhecimento do recurso (por não terem as partes previsto expressamente a possibilidade de recurso na convenção de arbitragem, não sendo o recurso admissível), nos termos do disposto nos arts. 39º, nº 4 da LAV e 652º, nº 1, alínea b) e 655º, nº 1 do CPC, foi determinada a notificação das partes para se pronunciarem, em 10 dias.
O reclamante/apelante veio pugnar pela admissão do recurso, nos seguintes termos:
“o presente recurso é admissível, nos termos do artigo 39º/4 LAV, no sentido de que nenhuma das partes renunciou ao direito de recurso, uma vez que a convenção arbitral a que as partes aderiram por si só não implica o direito de renúncia ao recurso, aliás, direito constitucional consagrado no acesso à justiça p. no artigo 20º da CRP. Assim, não prevendo o artigo em causa o direito de renúncia de nenhum dos recorrentes, os mesmos podem exercer um direito fundamental de recurso.”
A reclamada/apelada defendeu que “a convenção de arbitragem, ainda que não afaste taxativamente o direito ao recurso, também não o prevê. Ora, considerando o disposto no n.º 4 do art.º 39.º da LAV, e não estando previsto expressamente o direito ao recurso, entende a Recorrida que o presente recurso não será admissível.”
Foi proferido despacho de não conhecimento do recurso interposto, com fundamento na irrecorribilidade da decisão arbitral, por não se verificar a exigência legal de previsão expressa da possibilidade de recurso.
O reclamante/apelante veio requerer que recaia acórdão sobre esta matéria.
A reclamada não se pronunciou.

Questão prévia
Cumpre apreciar se o despacho da relatora deve ser alterado e, nesse caso, conhecer-se do recurso interposto.
Na reclamação para a conferência vem alegado o seguinte:
“1. Foi o ora reclamante notificado do douto despacho de fls…. com referência citius nº 23365402, que decidiu indeferiu o interposto recurso.
2. Isto porque considerou que não se encontrava verificada a exigência legal de previsão expressa da possibilidade de recurso, a decisão arbitral é irrecorrível.
3. Contudo e salvo melhor opinião, não pode o ora recorrente concordar com a mesma, solicitando que sobre a mesma recaia decisão colegial.
Senão vejamos:
4. Por decisão do Exmo. Relator do Tribunal da Relação do Porto, em 1.07.2025 foi indeferido o recurso interposto.
5. Entendeu que teria que haver convenção expressa nos termos do disposto do artigo 39/4 da LAV, uma vez que, só as partes consentindo expressamente que podiam recorrer à jurisdição comum por via do recurso.
6. Ora, com o devido respeito, tal entendimento sufraga na medida em que o recorrente não podia tomar uma decisão expressa quanto ao referido uma vez que aderiu à arbitragem nos termos que lhe foram apresentados.
7. Com efeito, tratou-se de uma mera adesão à arbitragem sem que pudesse convencionar  nada em sentido contrário.
8. Assim, tratou-se de uma mera jurisdição de adesão e não de estipulação pelo recorrente.
9. Atento o supra exposto verifica-se que tal entendimento teria assento se as partes pudessem estipular as causas de arbitragem, o que sucede na jurisdição de arbitragem privada.
10. Assim, não se trata de uma estipulação das cláusulas de jurisdição de arbitragem, mas de uma mera adesão às mesmas,
11. O que faz com que não se aplique o presente entendimento de estipulação da jurisdição da cláusula arbitral.
Termos em que que se requerer, o Mui Douto suprimento de V. Ex. Ilustres Desembargadores que seja julgada procedente, por provada, a presente decisão colegial, assim sendo da tão costuma e inteira JUSTIÇA!”
O despacho reclamado, proferido em 30/06/2025, é do seguinte teor:
“(…) Dispõe o art. 39º, nº 4 da Lei n.º 63/2011, de 14 de dezembro (LAV) que “a sentença que se pronuncie sobre o fundo da causa ou que, sem conhecer deste, ponha termo ao processo arbitral, só é suscetível de recurso para o tribunal estadual competente no caso de as partes terem expressamente previsto tal possibilidade na convenção de arbitragem e desde que a causa não haja sido decidida segundo a equidade ou mediante composição amigável”.
Nos termos do disposto no artº 29º, nº 2 do Regulamento do Centro de Informação, Mediação, Provedoria e Arbitragem de Seguros (CIMPAS) “da decisão arbitral cabem para o Tribunal da Relação os mesmos recursos que caberiam da sentença proferida pelo tribunal de comarca”.
O reclamante/apelante subscreveu, com data de 20/05/2024, declaração do seguinte teor:
“Adesão à Arbitragem
EE (…) declara aderir ao Serviço de Mediação e Arbitragem do Centro de Informação, Mediação e Arbitragem de Seguros (CIMPAS), autorizado por Despacho n.° 4407/2018, publicado no Diário da República, 2ª Série, nº 86, de 4 de maio de 2018, no âmbito do Decreto-Lei n°425/87, aceitando a Arbitragem como forma de resolução do litígio que corre termos sob o número de processo A-2024-000882-SX, em que é parte Reclamada a Fidelidade, Companhia de Seguros, SA.
Mais declara aceitar, como regras de processo a observar na Arbitragem, as constantes dos Regulamentos aprovados por este Centro.”
Por seu turno, com data de 28/02/2019, a apelada assinou declaração do seguinte teor:
“Convenção de Arbitragem
Adesão Plena
FIDELIDADE - COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., pessoa coletiva n° 50091880, matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Lisboa sob esse mesmo número, com sede no Largo do Calhariz, n.° 30, em Lisboa, e com o capital social de 457.380.000 EUR, declara aderir ao Serviço de Mediação e Arbitragem do Centro de Informação, Mediação e Arbitragem de Seguros (CIMPAS), autorizado por Despacho n° 4407/2018, publicado no Diário da República, 2a série, n°86, de 4 de maio de 2018, no âmbito do Decreto-Lei n°425/87, aceitando a Arbitragem como forma de resolução de quaisquer litígios emergentes ou relacionados com a formação, execução, e/ou cessação de contratos de seguro do ramo automóvel.
Mais declara aceitar, como regras do processo a observar na Arbitragem, as constantes do Regulamento aprovado por este Centro.
Caso pretenda revogar a presente adesão, a ora aderente compromete-se a notificar, por escrito, com pré-aviso de trinta dias, a Direção do Centro, tendo tal desvinculação efeito para todas as Reclamações das quais não tenha ainda sido notificada.”
Verifica-se que as partes aceitaram como regras de processo a observar na arbitragem as constantes dos Regulamentos do CIMPAS.
A regra do artº 29º, nº 4 do Regulamento do CIMPAS, publicado em 04/05/2018 e que entrou em vigor em 04/06/2019, não constitui regra do processo de arbitragem.
A convenção de arbitragem subscrita pelas partes não contém previsão expressa da possibilidade de recurso para o tribunal estadual. (…)”
O apelante vem pugnar pela admissibilidade do recurso, uma vez que não teve liberdade de estipulação, limitando-se a aderir à arbitragem nos termos que lhe foram apresentados.
Reponderando a questão, importa atentar que a adesão à arbitragem/convenção de arbitragem, subscrita pelo reclamante é um formulário, isto é, um texto pré-elaborado pelo CIMPAS, o qual foi remetido ao reclamante para que o preenchesse com o número de contribuinte, data e assinatura. A remessa do formulário ao reclamante foi efetuada por carta, onde além do mais se pode ler:
“A Arbitragem é um processo célere de resolução de conflitos, realizado por um Juiz Árbitro nomeado pelo Centro, produzindo os mesmos efeitos que a decisão de um Tribunal Judicial, sendo susceptível de recurso, anulação e de execução nos termos legais. (…)
Junta: Guia de pagamento, Minutas de adesão à Conferência de Mediação e à Arbitragem e Regulamento da Arbitragem e das Custas.” (destaques nossos).
Dispõe o artº 6º da LAV “ Todas as referências feitas na presente lei ao estipulado na convenção de arbitragem ou ao acordo entre as partes abrangem não apenas o que as partes aí regulem diretamente, mas também o disposto em regulamentos de arbitragem para os quais as partes hajam remetido”.
Tal adesão à arbitragem constante do Regulamento do CIMPAS, efetuada nos termos descritos, mediante envio de formulário, com o texto da adesão à convenção pré-elaborado, acompanhada de carta onde se afirma expressamente que a decisão do tribunal arbitral é suscetível de recurso, anulação e de execução nos termos legais, deve ser interpretada à luz das regras dos artºs 236º e ss. do CC.
Nos termos do disposto no artº 236º do CC “a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição de real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele.”
Tratando-se de um contrato formal, decorre do artº 238º, nº 1 do CC que “não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respetivo documento, ainda que imperfeitamente expresso”, salvo “se corresponder à vontade real das partes e as razões determinantes da forma do negócio se não opuserem a essa validade” (nº 2 do citado preceito);  prevalecendo, em caso de dúvida, o sentido que conduza ao maior equilíbrio das prestações (artº 237º  do CC).
Reportando-se aos artºs 236º e 238º do CC pode ler-se no acórdão do STJ de 22/09/2015 proc. nº 852/12.1TBPTM-A.E1.S1, disponível em www.dgsi.pt,  “como refere P. Mota Pinto, "há que imaginar uma pessoa com razoabilidade, sagacidade, conhecimento e diligência medianos, considerando as circunstâncias que ela teria conhecido e o modo como teria raciocinado a partir delas, mas figurando-a na posição do real declaratário, isto é, acrescentando as circunstâncias que este concretamente conheceu e o modo como aquele concreto declaratário poderia a partir delas ter depreendido um sentido declarativo".
O sentido assim apurado sofre, contudo, nos negócios formais, de uma limitação de índole objectiva: esse sentido não pode valer se não tiver um mínimo de correspondência no texto do documento.
Nos negócios formais, a letra do negócio constitui o primeiro elemento com que o interprete se confronta. Esse elemento literal, porém, não é mais do que a base ou ponto de partida da interpretação. Por mais claros ou unívocos que pareçam, os termos utilizados não dispensam essa tarefa de interpretação, por forma a confirmar ou contrariar essa aparência, considerando outros elementos ou circunstâncias atendíveis, como o comportamento das partes, anterior ou posterior ao negócio, as precedentes relações negociais entre as mesmas partes, o próprio tipo negocial e a finalidade prática prosseguida pelas partes.
Por outro lado, o intérprete não deve quedar-se na sua apreciação por expressões ou cláusulas isoladas, mas antes estender a sua análise, atentando no conjunto ou na totalidade da declaração, numa "interpretação complexiva" dessas expressões e cláusulas.
Invoca-se, a este propósito, o princípio da interpretação sistemática e contextual, segundo o qual o negócio deve ser visto no seu todo, considerando as expressões utilizadas no contexto e nas circunstâncias em que foram proferidas. Ou seja, "a cláusula negocial deve ser interpretada no seu contexto, à luz do micro-sistema regulatório que o negócio constitui, levando em consideração outras circunstâncias relevantes, e tendo em conta o fim prosseguido".
A interpretação da convenção de arbitragem, em obediência aos comandos dos artºs 236º a 238º do CC, é a de que a adesão às regras processuais dos Regulamentos do CIMPAS se reporta à integralidade de tais regras, incluindo a do artº 29º, nº 2 do citado Regulamento, que admite expressamente o recurso da decisão arbitral. A adesão às regras do Regulamento deve ser entendida no seu todo (entendimento que, naturalmente, abrange a adesão plena efetuada pela seguradora para as regras dos referidos Regulamentos).
Neste sentido v. Ac. RP de 25/02/2014 [i] com o seguinte sumário:
"Nos termos do art.39º, nº4 da Lei n.º 63/2011, de 14/12 (Lei da Arbitragem Voluntária), a sentença arbitral pode ser impugnada por recurso, se isso tiver sido previsto na convenção de arbitragem. Tem o valor de convenção de arbitragem a adesão das partes ao Serviço de Mediação e Arbitragem do Centro de Informação, Mediação, Provedoria e Arbitragem de Seguros (CIMPAS) e à aplicação das regras de processo constantes dos Regulamentos aprovados por esse Centro. No Regulamento da Arbitragem e das Custas em vigor no CIMPAS, sob o art. 20º, está expressamente prevista a recorribilidade das sentenças arbitrais aí proferidas, para os Tribunais da Relação." [ii]
E na doutrina encontramos posição idêntica:
“Haverá convenção das partes em contrário, no caso de arbitragem submetida por acordo das Partes ao Regulamento de um Centro que preveja o recurso das decisões arbitrais para os tribunais estaduais, como sucede no caso do CIMPAS. O acórdão da Relação do Porto de 25/02/2014 entendeu que "tem valor o valor de convenção de arbitragem a adesão das partes ao CIMPAS e à aplicação das regras de processo constantes dos regulamentos aprovados por esse Centro." Como "no Regulamento de Arbitragem e das Custas em vigor no CIMPAS, sob o artº 20, está expressamente prevista a recorribilidade das sentenças arbitrais aí proferidas, para os Tribunais da Relação" o acórdão conclui - e bem - que da decisão arbitral cabe recurso para a Relação. (...)
… se as partes tiverem previsto expressamente, na convenção de arbitragem, o recurso, ou se tiverem remetido para Regulamento de um Centro Arbitral que preveja o recurso da decisão arbitral, este será o meio adequado para impugnação da decisão arbitral." [iii]
A causa não foi decidida segundo a equidade ou mediante composição amigável.
Face ao exposto, na procedência da reclamação apresentada, decide-se admitir o recurso, passando a conhecer-se das questões nele suscitadas.  
                                                    *
Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pela apelante e das que forem de conhecimento oficioso (arts. 635º e 639º do CPC), tendo sempre presente que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito (art.º 5º, nº3 do CPC).
Assim, a única questão a decidir consiste em aferir da nulidade da decisão, por contradição entre os fundamentos e a decisão (artº 615º, nº1, al. c) do CPC), por constituir uma “decisão-surpresa”, por violação dos princípios do inquisitório e da cooperação.

O apelante arguiu as seguintes nulidades:
- por violação do princípio do inquisitório (artº 411º do CPC);
- por violação do princípio da cooperação, por ter o tribunal arbitral omitido o convite ao aperfeiçoamento (artº 590º, nº 4º do CPC);
- por a decisão recorrida constituir uma decisão surpresa, em violação do artº 3º, nº 3 do CPC;
- por contradição entre os fundamentos e a decisão (artº 615º, al. c) do CPC).
Todos os vícios imputados têm por suporte o CPC – e não a LAV.
No artº 46º da LAV enunciam-se taxativamente as causas de nulidade que devem ser arguidas  mediante processo de anulação da decisão arbitral.
Nenhum dos invocados no recurso em apreço lhes diz respeito.
As nulidades da decisão encontram-se taxativamente enumeradas no artº 615º, nº 1 do CPC que estabelece:
“É nula a sentença quando:
a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.”
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido. (…)”
“A contradição a que a lei impõe o efeito inquinatório da sentença, como nulidade, é a oposição entre os fundamentos e a decisão – artº 668º, nº 1, al. d) do CPC.
Porém, para que tal ocorra, não basta uma qualquer divergência inferida entre os factos provados e a solução jurídica, pois tal divergência pode consubstanciar um mero erro de julgamento (error in judicando) sem a gravidade de uma nulidade da sentença.
Como escreve Amâncio Ferreira «a oposição entre os fundamentos e a decisão não se reconduz a uma errada subsunção dos factos à norma jurídica nem, tão pouco, a uma errada interpretação dela. Situações destas configuram-se como erro de julgamento» (A. Ferreira, Manual de Recursos em Processo Civil, 9ª edição, pg. 56).
A contradição entre os fundamentos e a decisão prevista na alínea c) do nº 1 do artº 668º, ainda nas palavras do citado autor, verifica-se quando «a construção da sentença é viciosa, uma vez que os fundamentos referidos pelo Juiz conduziriam necessariamente a uma decisão de sentido oposto ou, pelo menos, de sentido diferente» (ibidem, sendo nosso o sublinhado).” [iv]
O apelante defende que a decisão recorrida enferma de vício lógico na sua construção ao indicar, por um lado, que “não foi possível analisar os danos do veículo seguro na Reclamada para verificar a sua eventual compatibilidade” e que “(...) presume-se que o acidente ocorreu conforme nele descrito” e, por outro lado, afirmar  “não existindo nexo de causalidade entre os danos peticionados e o sinistro dos autos, tem a Reclamação de improceder.”
As transcrições do texto da decisão foram efetuadas de forma descontextualizada, truncada.
Foi considerado provado sob o ponto 7 “Não foi possível analisar os danos no veículo seguro na Reclamada.”
E sob o nº 8 “Os danos no lado direito do veículo do Reclamante não são compatíveis em termos de altura com os danos existentes no rail de proteção.”
Na fundamentação pode ler-se:
“Cabia ao Reclamante demonstrar que o acidente ocorreu nos moldes em que o descreveu, nomeadamente, que os danos cuja reparação peticiona tinham sido provocados pelo veículo seguro na Reclamada (art.° 342° do Código Civil). Ora o Reclamante juntou a DAAA que se encontra assinada por ambos os condutores pelo que nos termos do art.° 35° n.° 3 do DL 291/2007, de 21/08, presume-se que o acidente ocorreu conforme nela descrito.
No entanto a Reclamada ilidiu tal presunção ao demonstrar, através do relatório de averiguação, que o veículo do Reclamante tem danos antigos e que os danos existentes no rail de proteção existente na via de trânsito não são compatíveis em altura com os danos existente no lado direito do veículo do Reclamante. Acresce ainda que não foi possível analisar os danos no veículo seguro na Reclamada para verificar a sua eventual compatibilidade e que as testemunhas arroladas tiveram muita dificuldade em identificar o local do sinistro. O Reclamante, no entanto, identificou o local do sinistro embora não rigorosamente.
Para que a Reclamada fosse responsável pela reparação do veículo do Reclamante era necessário não só que o Reclamante demonstrasse a ocorrência do sinistro como que este tinha provocado danos e o nexo de causalidade entre esses danos e o sinistro, o que, claramente, não foi capaz de fazer. Não existindo nexo de causalidade entre os danos peticionados e o sinistro dos autos, tem a Reclamação que improceder.” (sublinhados nossos)
Decorre deste trecho que a decisão não apresenta vício lógico de contradição entre fundamentos e decisão. Com efeito, os fundamentos (os danos no lado direito do veículo do reclamante não serem compatíveis em termos de altura com os danos existentes no rail de proteção) estão em consonância com a decisão de inexistência de prova do nexo causal entre os danos e o alegado sinistro e consequente improcedência da reclamação.                                                  
Insurge-se o apelante por não ter o tribunal observado o princípio do inquisitório, pois a decisão reconhece que não foi possível analisar os danos no veículo seguro na reclamada para verificar a sua eventual compatibilidade, mas o tribunal não ordenou as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, o que constitui nulidade processual insanável.
Nos termos do disposto no art. 411º do CPC, “incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer”.
O princípio do inquisitório não dispensa as partes da observância dos princípios do dispositivo, da autorresponsabilização, nomeadamente do acatamento de ónus de alegação e prova e consequentes preclusões.
O princípio do inquisitório – assim como o dever de gestão processual consagrado no artº 6º do CPC - não se destina a suprir incumprimento de ónus processuais.
Não indicou o apelante a diligência que o tribunal devia ter ordenado, nem porque motivo não a requereu. 
Incumbe às partes a alegação dos factos e não pode o tribunal substituir-se-lhes na produção de prova.
Não se vislumbra a genericamente imputada violação do princípio do inquisitório.
Vem invocada a violação do princípio da cooperação, por não ter o tribunal arbitral proferido convite ao aperfeiçoamento e, em consequência, a decisão recorrida constituir decisão surpresa, reconduzindo ambos os vícios à nulidade.
Quanto a esta questão limitou-se o apelante a afirmar “se é entendimento nos autos que, não foi possível analisar os danos do veículo seguro na Reclamada, se é fundamental tal análise e conhecimento, forçoso era ao abrigo do poder dever que emana do Princípio da Cooperação, notificar-se o reclamante aqui recorrente, para proceder em conformidade, o que não aconteceu e, não tendo acontecido, tal decisão não só é nula, por violação do disposto no artigo 590.°/4 CPC, como na verdade representa per si uma decisão surpresa.”
Dispõe o art. 7º do CPC, sob a epígrafe “Princípio da cooperação”:
“1. - Na condução e intervenção no processo, devem os magistrados, os mandatários judiciais e as próprias partes cooperar entre si, concorrendo para se obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio.
2 - O juiz pode, em qualquer altura do processo, ouvir as partes, seus representantes ou mandatários judiciais, convidando-os a fornecer os esclarecimentos sobre a matéria de facto ou de direito que se afigurem pertinentes e dando-se conhecimento à outra parte dos resultados da diligência.
3 - As pessoas referidas no número anterior são obrigadas a comparecer sempre que para isso forem notificadas e a prestar os esclarecimentos que lhes forem pedidos, sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 417.º.
4 - Sempre que alguma das partes alegue justificadamente dificuldade séria em obter documento ou informação que condicione o eficaz exercício de faculdade ou o cumprimento de ónus ou dever processual, deve o juiz, sempre que possível, providenciar pela remoção do obstáculo.”
Atenta a alegação do apelante (mais uma vez genérica) não se descortina enquadrar-se o caso neste preceito que, aliás, não indicou.
Vem invocado o disposto no artº 590º, nº 4 do CPC que estatui: “incumbe ainda ao juiz convidar as partes ao suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, fixando prazo para a apresentação de articulado em que se complete ou corrija o inicialmente produzido.”
Não resulta da decisão recorrida que se tenha apontado qualquer insuficiência de alegação factual. Ao invés, a insuficiência radica na factualidade provada, que não se prende apenas com o facto de não se terem apurado os danos sofridos no veículo seguro na apelada, mas essencialmente com a circunstância de se ter provado que os danos no lado direito do veículo do reclamante não são compatíveis em termos de altura com os danos existentes no rail de proteção.
Assim, não poderia estar em causa qualquer convite ao aperfeiçoamento, que o apelante não concretizou.
Acresce que, como alegado pela apelada “tendo o sinistro ocorrido a 27.07.2023 e o formulário de reclamação que constitui a Petição Inicial do processo sido apresentado a 11.04.2024, resulta das mais elementares regras de experiência comum que, tratando-se de viatura destinada a aluguer e propriedade de locadora internacional reconhecida no mercado, quaisquer eventuais danos significativos, comos os que necessariamente teriam ocorrido num sinistro desta natureza, provocados pelo sinistro já estariam reparados. (…)
Pelo que ordenar qualquer diligência que permitisse analisar os danos no veículo seguro na Reclamada, decorridos mais de 9 meses, sempre seria manifestamente inútil.
Mas sempre se diga que, mesmo que assim não fosse, nenhuma diligência adicional se impunha para que o Tribunal a quo decidisse conforme fez, já que existem factos provados que, per si, fundamentam o sentido da decisão.”
E também não se vislumbra em que se traduz a “decisão surpresa”.
“Ora, não se põe em dúvida que a fim de evitar decisões surpresas, as partes devam ser ouvidas antes da decisão, mas tal audição só se imporá, se a decisão que vier a ser proferida possa constituir uma verdadeira surpresa para a parte. É esse o fundamento para se proceder à audição das partes, conferindo-lhe o exercício do direito que detém de influenciar a decisão com os argumentos jurídicos que entenderem pertinentes.
A decisão-surpresa a que se reporta o artigo 3º, nº 3 do CPC, não se confunde com a suposição que as partes possam ter feito nem com a expectativa que elas possam ter acalentado quanto à decisão quer de facto quer de direito.
Estaremos perante uma decisão surpresa quando ela comporte uma solução jurídica que as partes não tinham obrigação de prever, quando não fosse exigível que a parte interessada a houvesse perspetivado no processo, tomando oportunamente posição sobre ela.
Decisão-surpresa é apenas aquela em que o tribunal se pronuncia sobre e/ou decide algo com que a parte (apesar de competentemente patrocinada), de forma expectável ou previsível, não podia nem devia contar, usando de normal diligência, competência, aptidão e sagacidade.
Como se refere no Acórdão da Relação de Guimarães, de 19-04-2018, proc.75/ 08.4TBFAF.G1, onde, por referência a variada Doutrina e Jurisprudência, proficientemente se escalpeliza o tema, “não existirá decisão-surpresa quando a decisão, rectius os seus fundamentos, estejam ínsitos ou relacionados com o pedido formulado e se situem dentro do geral e abstratamente permitido pela lei e que de antemão possa e deva ser conhecido ou perspetivado como possível e em relação ao que, consequentemente, a parte podia ter-se pronunciado, pelo que se não o fez, sibi imputet.” [v]
“Porém, a decisão-surpresa que a lei pretende afastar, afoitamente, contende com a solução jurídica que as partes não tinham a obrigação de prever, para evitar que sejam confrontadas com decisões com que não poderiam contar e não com os fundamentos não expectáveis de decisões que já eram previsíveis, não se confundindo a decisão-surpresa com a suposição que as partes possam ter concebido quanto ao destino final do pleito, nem com a expectativa que possam ter realizado quanto à decisão, quer de facto, quer de direito, sendo certo que, pelo menos, de modo implícito, a poderiam ou tiveram em conta, designadamente, quando lhes foi apresentada uma versão fáctica não contrariada e que, manifestamente, não consentiria outro entendimento.” [vi]
Como se refere no Ac. RL de 20/06/24  [vii], “qualquer questão, seja relativa ao mérito da causa, seja meramente processual, não pode ser decidida, quer em primeira instância, quer em via de recurso, antes de as partes serem convidadas a sobre ela se pronunciarem, desde que se trate de uma questão nova e de que as partes não pudessem, razoavelmente, contar com a respetiva apreciação. Trata-se do princípio da proibição das chamadas decisões surpresa. A surpresa que se visa evitar não se prende com o conteúdo ou com o sentido da decisão em si, mas antes com a circunstância de se decidir uma questão não prevista. Visa-se evitar a surpresa de se decidir uma questão com cuja apreciação se não estava a contar. Se se trata de uma questão relativamente à qual era exigível, no quadro jurídico-processual suscetível de ser aplicado à causa, que a parte contasse com a respetiva apreciação, aí já não estamos perante uma decisão surpresa, mas unicamente com a mera surpresa da parte com a decisão, que não tem qualquer relevância jurídica, mormente anulativa da decisão.”
A decisão arbitral não decidiu uma questão nova, limitando-se a apreciar a questão colocada na reclamação que lhe foi apresentada pelo apelante: a da responsabilidade pelos danos sofridos no seu veículo, em virtude de acidente de viação em que foi interveniente o veículo seguro na reclamada Fidelidade, a qual, na sua contestação, impugnou os danos e o nexo de causalidade. O tribunal analisou, face à prova produzida, os requisitos de que a lei faz depender essa responsabilidade, mormente os danos e o nexo de causalidade entre o facto ilícito e culposo (ali denominado sinistro) e os danos.
Ter a decisão arbitral considerado inexistir nexo de causalidade entre o sinistro e os danos não constitui um enquadramento jurídico inovador, e que não só podia e devia ser conhecido ou perspetivado como possível pelas partes, como o foi, atentas as respetivas alegações.
Não constituindo a decisão arbitral uma decisão surpresa, não se verifica a nulidade invocada.

Pelo exposto, decide-se:
1. julgar procedente a reclamação apresentada pelo apelante e, em consequência, decide-se  conhecer do objeto do recurso interposto;
2. julgar improcedente o recurso e, consequentemente, manter a decisão recorrida.
Sem custas da reclamação.
Custas do recurso a cargo do apelante.

Lisboa, 23 de outubro de 2025
Teresa Sandiães
Ana Paula Nunes Duarte Olivença
Maria Teresa Lopes Catrola
_______________________________________________________
[i] proc. nº 47/14.0YRPRT, in www.dgsi.pt
[ii] No mesmo sentido, v. Ac. RC de 27/09/2016, pro. nº 141/16.2YRCBR e de 25/10/2016, proc. nº 140/16.4YRCBR.C1, disponíveis em www.dgsi.pt
[iii] Lei da Arbitragem Voluntária Anotada, coordenação de Dário Moura Vicente, Almedina, 6ª edição
[iv] Ac. do STJ de 30/05/2013, proc. nº 660/1999.P1.S1, in www.dgsi.pt
[v] Ac. STJ de 07-06-2022, proc. nº 709/21.5T8ACB.C1.S, in www.dgsi.pt
[vi] Ac. STJ de 12/07/2018, proc. nº 177/15.0T8CPV-A.P1.S1, in www.dgsi.pt
[vii] proc. nº 31078/22.5T8LSB.L1-6, in www.dgsi.pt