Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | ANA PAULA GRANDVAUX | ||
Descritores: | CO-AUTORIA TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES MEDIDA DA PENA | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 10/03/2018 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | NÃO PROVIDO | ||
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Sumário: | Atento o conceito de autoria plasmado no artº 26º do C.P, o co-autor é todo aquele agente que tomar parte na execução, de acordo com um plano, sendo a sua participação essencial para a realização de um tipo de ilícito. A co-autoria na execução de um crime de tráfico de estupefacientes, não pressupõe que todos os contributos dos vários comparticipantes co-autores sejam de igual natureza, bastando que esses diferentes contributos sejam essenciais em termos de causalidade adequada (consagrada no artº 22º/b) do C.P) para a consumação do ilícito. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência no Tribunal da Relação de Lisboa I – RELATÓRIO 1– O M.P acusou os arguidos: – Ivan ..., filho de David ... e de Olinda ..., natural da freguesia de S. Sebastião da Pedreira, concelho de Lisboa, de nacionalidade portuguesa, nascido a 03.11.1986, solteiro, servente de pedreiro, residente na Rua …, Lote … – … – … – Alverca, actualmente preso preventivamente à ordem destes autos desde 18.10.2017 no Estabelecimento Prisional de Lisboa, – e Tiago ..., filho de Abílio … e de Maria …, natural da freguesia de S. Jorge de Arroios, concelho de Lisboa, de nacionalidade portuguesa, nascido a 25.12.1991, solteiro, serralheiro-mecânico e soldador, residente na Estrada …, nº .., …, …-… Alverca, a quem imputou a prática de factos que integram em relação aos mesmos a co-autoria de um crime de tráfico de estupefacientes, p.p. no artº 21° n° 1 do Decreto-Lei n° 15/93 de 22-01, por referência à tabela I-C anexa ao mesmo diploma, sendo tal crime de tráfico imputado a título de reincidente (artº 75º e 76º/1 do C.P.) ao arguido Ivan …; quanto ao arguido Tiago … o M.P imputou-lhe também em autoria material, na forma consumada e em concurso real e efectivo, a prática de factos que integram um crime de resistência e coacção sobre funcionário p.p no artº 347º/2 do C.P por referência ao disposto no nº 1 deste mesmo preceito. O arguido Ivan ... apresentou contestação, oferecendo o merecimento dos autos e arrolou testemunhas. 2 - Uma vez sujeitos a julgamento no Juízo Central Criminal de Lisboa, Juizo 21, decidiu esse Tribunal de 1ª instância condenar os dois arguidos por Acórdão lido e depositado em 3.5.2018 (fls 463 a 493 e fls 496), nos seguintes transcritos termos: Nos termos e pelos fundamentos expostos acordam os juízes que constituem o Tribunal Coletivo em julgar a acusação deduzida pelo Ministério Público parcialmente procedente, por provada, e em consequência: 1. Absolver o arguido Tiago ... da prática do crime de resistência e coação sobre funcionário, p. e p. pelo artigo 347º, nº 2, do Código Penal, por referência ao disposto no nº 1; 2. Condenar o arguido Ivan ..., pela prática, em coautoria material e como reincidente, de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punível pelos artigos 21º, nº 1, do DL nº 15/93, de 22/01, por referência à Tabela I-C anexa a este diploma legal, e 75º e 76º do Código Penal, na pena de seis anos de prisão; 3. Condenar o arguido Tiago ..., pela prática, em coautoria material, de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punível pelos artigos 21º, nº 1, do DL nº 15/93, de 22/01, por referência à Tabela I-C anexa a este diploma legal, na pena de cinco anos de prisão; 4. Suspender na sua execução a pena de prisão aplicada ao arguido Tiago ... pelo prazo de cinco anos, subordinando a suspensão da execução da pena a regime de prova, assente em plano individual de reinserção social a organizar pelos serviços de Reinserção Social; 5. Declarar perdido a favor do Estado o produto estupefacientes apreendido aos arguidos, ordenando que se proceda à respetiva destruição; 6. Ordenar o levantamento da apreensão e a restituição ao arguido Ivan ... da quantia monetária apreendida; 7. Ordenar o levantamento da apreensão do veículo ..-..-GU e a sua restituição à titular inscrita no registo automóvel; 8. Condenar os arguidos no pagamento das custas do processo, fixando-se no valor de 4 UC’s de taxa de justiça a pagar pelo arguido Ivan ..., e no valor de 2 UC’s a taxa de justiça a pagar pelo arguido Tiago ..., nos termos do disposto nos artigos 513º, nº1 do CPP e 8º, nº5 do RCP e tabela III anexa ao mesmo regulamento; 9. Ordenar, após trânsito, a remessa de boletins ao registo criminal e o cumprimento do disposto no artigo 64º do Dec. Lei nº 15/93, de 22.01.; 10. Determinar que o arguido Ivan ... continue a aguarde o trânsito em julgado do acórdão sujeito à medida de coação de prisão preventiva; (...) 3– Inconformado com tal decisão dela recorreu o arguido Ivan ... (fls 522 a 531). A motivação por ele apresentada termina com a formulação das seguintes (transcritas) conclusões: 1ª Deve entender-se que não, uma vez, a convicção do jogador não se confunde como a convicção caprichosa e emotiva. Recorde-se que quanto à posse do dinheiro que o arguido alega apenas ter entregue no local ao ora Recorrente o Tribunal não atendeu a tal versão e quanto à posse do produto só atendeu à versão do arguido Tiago … e não à do Recorrente, ou seja, quem não confiou o dinheiro teria confiado o produto, dez vezes mais valioso, na versão do mesmo!! 2ª Não se trata da outorga de um poder arbitrário, mas antes de um dever de perseguir a chamada verdade material, segundo critérios objectivos e susceptiveis de motivação racional. Por outro lado, não é suficiente a mera indicação das provas, sendo necessário revelar o processo racional que conduziu à expressão da convicção, bastando que um dos passos do juízo devido seja omitido para que se esteja a prejudicar a tutela judicial efectiva que tem de ser garantida como patamar básico da convivência social. 3ª O que é necessário e imprescindível é que, no seu livre exercício de convicção, o tribunal indique” os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento do facto. 4ª O princípio in dúbio pro reo, constitui um princípio probatório, segundo o qual a dúvida em relação à prova da matéria de facto, tem de ser sempre valorada favoravelmente ao arguido, traduzindo o correspectivo do princípio da culpa em direito penal, a dimensão jurídico-processual do princípio jurídico-material da culpa concreta como suporte axiológiconormativo da pena. Ac. De 28/06/2001. 5ª O Tribunal apenas julgou com base em convicção, com base em suposições e em contradição com a prova produzida em audiência, estando incorrectamente julgados os pontos 1.12; 1.14; 1.16 dos Factos Provados, tal como se demonstra: 6ª Arguido Ivan (...4115). Eu não toquei em nenhuma embalagem de haxixe. Ele chateou-me e eu levei-o a um sítio, eu disse-lhe onde era. O Sr. Tiago insistiu muito. 7ª Aquilo foi novecentos e cinquenta euros...eu levei-o lá ao bairro; eu apresentei-lhe uma pessoa uma primeira vez, eu já o tinha visto ali uma vez...ele pediu-me que eu fosse com ele... não assisti ao negócio ele disse-me o preço. 8ª É, pois, patente a existência de erro de julgamento uma vez que o arguido Ivan “limitou-se” a levar o arguido Tiago quem já antes tinha visto naquele local, assumindo este último que o dinheiro era só dele e que o produto também era só dele, ou seja, o arguido Ivan nada adquiriu e nada ganhou. Não se trata seguramente de co-autoria, quanto muito de participação “mitigada”. 9ª O arguido Tiago assumiu a autoria de um crime grave, sustentou que o arguido Ivan não tinha qualquer benefício e o que é grave para quem participa deixa de ser grave para quem beneficia e manda. Em suma, estamos perante um absurdo na medida em que se beneficia quem confessadamente é o maior e único responsável e único beneficiário. 10ª Entende o arguido Ivan que subsiste insuficiência de matéria de facto para a decisão por não se verificar o pressuposto material da reincidência. 11ª Passando agora ao conhecimento do pressuposto material da reincidência, verificamos que, para além do que consta do CRC o Tribunal a quo deu como provado no ponto n.° 1.19; 1.20; 1.21, sendo certo que atento o reiteradamente alegado pelo arguido o mesmo interiorizou o significado da pena de prisão aplicada. Aliás, confessadamente pelo co-arguido Tiago foi dito que a droga era só dele; que o dinheiro era só dele e que o arguido Ivan nada ganhava com a situação. 12ª Salvo o devido respeito, a matéria deste ponto n.° 1.22 é uma conclusão de direito, retirada directamente da letra do n.° 1 do art.75.° do Código Penal, e não um facto que o Tribunal de recurso possa apreciar objectivamente. 13ª Da factualidade dada como provada não constam factos dos quais se pode retirar a ilação que a recidiva se explica por o arguido não ter sentido e interiorizado a admonição contra o crime veiculada pela anterior condenação transitada em julgado, afastando-se uma eventual situação de delinquência pluriocasional, resultante de factores exógenos como por exemplo de degradação económica do arguido. Não existem factos dados como provados, designadamente a nível da motivação para a prática dos factos, de ausência voluntária de hábitos de trabalho e sobre a personalidade do arguido, que permitam concluir que entre os crimes pelos quais cumpriu prisão existe uma íntima conexão, nomeadamente a nível de motivos e forma de execução, relevantes do ponto de vista da censura e da culpa, que permita concluir que a reiteração radica na personalidade do arguido, onde se enraizou um hábito de praticar crimes, e a quem a anterior condenação em prisão efectiva não serviu de suficiente advertência contra o crime, e não um simples multiocasional na prática de crimes em que intervêm causas fortuitas ou exógenas. 14ª Recorde-se a versão apresentada pelo arguido e não rebatida: Sai do estabelecimento prisional há 1 ano; sou mecânico, vivo com uma senhora que é taxista e eu ajudo na manutenção dos carros. Tenho uma filha com 9 anos. 15ª O acórdão recorrido faz ainda uma errada qualificação ou distinção entre co-autoria e participação com manifesto prejuízo para o arguido e ora Recorrente na medida em que aplicou uma pena manifestamente inferior ao autor moral e material e mais gravosa ao participante quando confessadamente o arguido Tiago se declara o único dono do dinheiro e do produto e perguntado disse que o arguido Ivan nada iria ganhar nem nada ganhou. Em suma, com tal desigualdade de tratamento em nada se dá cumprimento nem à prevenção geral nem à prevenção especial neste tipo legal de crime. 16ª Autor é quem pratica o crime (por exemplo, no caso do homicídio, quem apertou o gatilho). Às vezes temos mais de um autor. Nesse caso, chamamos de co-autores. Os co-autores podem ter o mesmo tipo de envolvimento (por exemplo, todos atiraram na vítima) ou podem ter participações distintas (por exemplo, um pode ter planejado – chamado de autor intelectual – e o outro executado o homicídio). 17ª Já o partícipe é quem ajuda. Por exemplo, quem, sabendo das intenções do autor, o leva ao local onde a vitima para que ele possa matá-lo, ou quem ajuda o autor a fugir. 18° Atendendo à sua inserção sócio - familiar, julga-se possível formular um prognóstico favorável relativamente à sua conduta futura, devendo o Tribunal ter optado pela suspensão da aplicação da pena, sendo certo que nunca lhe poderia ser aplicada uma pena superior à que foi aplicada ao autor moral e material do ilícito, ou seja, com base no princípio da proibição de discriminação que é corolário da igualdade de tratamento ao arguido não poderia ser aplicada uma pena superior a 5 anos de prisão. 19ª Entende-se e espera-se, assim, que a simples censura do facto e a ameaça da pena poderão bastar para o afastar da criminalidade. 20ª Nesta conformidade, ao abrigo do disposto o artigo 50.°, n.° 1 deve ordenar-se a suspensão da execução da pena de prisão aplicada a este arguido, pelo período mínimo. 21ª Devem se julgadas inconstitucionais, por violação do artigo 205.°, n.° 1, da Constituição da República Portuguesa, as normas dos artigos 50.°, n.° 1, do Código Penal e 374.°, n.° 2, e 375.°, n.° 1, do Código de Processo Penal, interpretados no sentido de não imporem a fundamentação da decisão de não suspensão da execução de pena de prisão aplicada. 22ª Pode dizer-se, por isso, que as finalidades de reinserção social do sistema penal têm sido atingidas, havendo, agora, apenas que as consolidar. Ou seja, é possível hoje formular um muito favorável juízo de prognose, sendo de crer que a simples censura do facto e a ameaça da pena vão realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. 23ª Ganha, assim, para este efeito, relevo particular a medida de substituição de suspensão da execução da pena, por tempo igual ao da pena aplicada, a qual deve ser combinada com um regime de prova, através de um plano de recuperação com acompanhamento pelo IRS. Nestes termos e nos demais de direito doutamente supridos deve ser concedido provimento ao recurso, revogando-se a sentença recorrida e absolvendo-se o arguido da prática de qualquer ilícito; supletivamente, determinando-se a reformulação da decisão recorrida suspendendo-se a aplicação da pena de prisão, como É de JUSTIÇA! 4 - O Magistrado do Ministério Público na 1ª instância apresentou resposta (fls 546 a 548), concluindo que ao recurso deverá ser negado provimento, pugnando pela manutenção da decisão recorrida, porque não foram cumpridos os pressupostos exigidos pelo artº 412º/ do C.P.P, a decisão não padece de nenhum dos vícios do artº 410º do C.P.P e ficou demonstrado que houve conjugação de esforços entre os arguidos com vista à aquisição de estupefacientes para o arguido Tiago ... posteriormente vender, tendo o recorrente concretizado tal aquisição e transportado ambos essa droga na viatura automóvel até ao momento em que a mesma foi apreendida, dúvidas não se colocando portanto quanto à verificação de uma situação de coautoria. Terminou assim as suas contra-alegações com a seguinte (transcrita) conclusão: “Concluindo, dir-se-á, pois, que se nos afigura que o recurso do arguido não merece provimento em nenhuma das suas vertentes. V. Ex.as, porém, e como sempre, farão JUSTIÇA” 4 - O recurso foi admitido por despacho de fls 533. 5 - Nesta Relação de Lisboa, o Digno Procurador Geral Adjunto de turno, quando o processo lhe foi com vista, nos termos e para os efeitos previstos no artº 416º do C.P.P emitiu o parecer de fls 570 dos autos, subscrevendo na íntegra a argumentação da resposta do M.P no Tribunal de 1ª instância e concluindo pela improcedência do recurso. 6 - Foi oportunamente cumprido o artº 417º/2 do C.P.P, não tendo sido apresentada qualquer resposta. 7 - Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, foi o processo à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir. II - Questões a decidir Delimitação do objecto do recurso É pacífica a jurisprudência do S.T.J. no sentido de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, do conhecimento das nulidades de e outras questões de conhecimento oficioso (artº 410º nº 2 e 3 do C.P.Penal). As questões suscitadas pelo recorrente segundo as conclusões da sua motivação são as seguintes: A) Impugnação da matéria de facto; B) Violação do princípio “in dubio pro reo C) Qualificação jurídica – imputação dos factos a título de co-autoria D) Medida da Pena e possibilidade da suspensão da sua execução. III- Fundamentação de Facto A decisão recorrida No Acórdão recorrido o Tribunal a quo considerou provados os seguintes factos (transcrição): Produzida a prova e discutida a causa, com interesse para a decisão da mesma, resultaram provados os seguintes factos: 1.1. Na noite de 17 de outubro de 2017, os arguidos de comum acordo e em execução de um plano prévio, deslocaram-se a Lisboa para aquisição de uma quantidade de canábis (resina) para posterior revenda; 1.2. Cerca das 23H00 dessa noite, os arguidos circulavam no veículo automóvel com a matrícula ..-..-GU, na Avenida …, em Lisboa; 1.3. A artéria em questão configurava-se como uma estrada em asfalto, com duas faixas de rodagem no sentido de marcha em que os arguidos circulavam; 1.4. O arguido Tiago ... circulava ao volante do automóvel, ao passo que o coarguido Ivan ... ocupava o banco dianteiro direito; 1.5. Uma viatura descaracterizada da PSP seguiu no encalço dos arguidos; 1.6. Após, o veículo policial colocou-se na faixa de rodagem da esquerda, atento o sentido de marcha que os veículos tomavam, paralelamente ao automóvel ocupado pelos arguidos; 1.7. Os elementos da PSP fizeram soar a sirene instalada no seu veículo; 1.8. O Chefe Silva., que seguia no banco dianteiro direito do veículo policial, encarou os arguidos e gritou a palavra “Polícia!”, ao mesmo tempo que lhes mostrava a carteira profissional; 1.9. Logo depois, o Chefe Silva fez sinal de paragem ao arguido Tiago ...; 1.10. O arguido Tiago ..., porém, não acatou a referida ordem e continuou a conduzir o veículo, tentando fugir dali para não serem alcançados pela polícia; 1.11. A determinada altura o arguido Tiago ... passou a circular com o seu veículo pela faixa da esquerda, atento o seu sentido de marcha e acabou por embater com uma roda no separador central, o que motivou a sua paragem; 1.12. Nesse momento, o arguido Ivan ... arremessou duas embalagens cúbicas pela janela dianteira direita do automóvel; 1.13. Essas embalagens continham dez placas de canábis (resina), com o peso líquido global de 976,760 g; 1.14. Tal produto fora adquirido com dinheiro pertencente ao arguido Tiago … e que por ele fora entregue ao arguido Ivan ..., na ocasião da deslocação a Lisboa, para que o trocasse pela canábis que, depois de ser transportada para a área de residência dos arguidos, seria destinada à venda, o que ambos os arguidos bem sabiam; 1.15. Na ocasião em que foi intercetado e detido, o arguido Ivan ... tinha consigo a quantia de € 50,00 (cinquenta euros); 1.16. Os arguidos agiram em conjugação de vontades e esforços e no desenvolvimento de um plano por ambos previamente urdido, com o propósito concretizado de terem consigo e transportarem o mencionado estupefaciente, cujas características, natureza e quantidade conheciam; 1.17. O arguido Tiago ... pretendia posteriormente entregar o produto a terceiros, a troco de quantias monetárias, com as quais pretendia fazer face ao pagamento de coima e encargos de processo de contraordenação no montante de € 10.075,00 em que fora condenado no mês anterior ao da prática dos factos destes autos; 1.18. Os arguidos atuaram de modo livre, voluntário e consciente, bem sabendo que os seus comportamentos eram proibidos e punidos por lei; 1.19. O arguido Ivan ... foi condenado, no âmbito do processo 2180/12.3TDLSB da Comarca de Lisboa, na pena de cinco anos de prisão, pela prática, em 17.08.2012, de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21º, nº 1, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, com referência às respetivas Tabelas Anexas I-A, I-B e I-C; 1.20. O acórdão condenatório, datado de 11 de julho de 2013, transitou em julgado, relativamente ao arguido Ivan ..., em 27.11.2013; 1.21. O arguido Ivan ... cumpriu a referida pena, tendo estado privado de liberdade desde 17.08.2012 e ficado preso até 05.07.2016, data em que foi colocado em liberdade condicional; 1.22. O arguido Ivan ... não interiorizou o significado da pena de prisão que lhe foi aplicada; 1.23. O arguido Tiago ... não tem antecedentes criminais; 1.24. O arguido Tiago ... confessou integralmente os factos dados como provados, dos quais se encontra profundamente arrependido; 1.25. O arguido Tiago ... cresceu integrado no agregado familiar de origem, constituído pelos progenitores e uma irmã mais velha, usufruindo de um contexto securizante e apoiante, que lhe proporcionou um processo educativo ajustado. O arguido tem ainda outra irmã consanguínea mais velha. Quando o arguido tinha 16 anos de idade, o progenitor faleceu, vítima de doença súbita, acontecimento que abalou este núcleo familiar que, não obstante, conseguiu superar e readaptar-se à nova situação; 1.26. Tiago ... apresenta um percurso escolar regular, sem retenções ou problemas disciplinares. Terminou o 9º ano de de escolaridade, que complementou com a conclusão de um curso técnico profissional de eletricidade; 1.27. Por sua opção, o arguido Tiago ... começou a trabalhar aos 18 anos, inicialmente como aprendiz de eletricista e depois, como serralheiro mecânico/civil e soldador, estando colocado na mesma empresa há três anos, com vinculo efetivo. 1.28. Na sua infância e juventude, o arguido Tiago ... beneficiou de um quadro económico estável, sustentado no produto do trabalho dos progenitores: pai, técnico de manutenção industrial/eletricista, mãe, solicitadora. Não lhe foram imputados comportamentos desajustados; 1.29. O arguido Tiago ... tem dois filhos, resultado de dois encontros ocasionais com a mesma pessoa, afirmando que nunca estabeleceu ligação afetiva com aquela; 1.30. À data dos factos, Tiago ... residia sozinho, trabalhava na empresa “M.”, sita em …, desempenhando funções de serralheiro mecânico e soldador. Vivia dos seus rendimentos do trabalho, num contexto económico estável, que foi desequilibrado pela condenação no pagamento da coima e encargos supra referidos. As suas rotinas encontravam-se organizadas, disponibilizando apoio à progenitora dos filhos. 1.31. No presente, o arguido mantém as condições referidas em 1.30., beneficiando do apoio da sua mãe. Participa ativamente no processo educativo dos filhos, atualmente com 4 anos e 8 meses de idade, procurando estar atento às suas necessidades. Vive uma situação económica equilibrada, suportando o valor mensal de € 300,00 de amortização do empréstimo bancário para aquisição de habitação; 1.32. O arguido Ivan ... nasceu no seio de um agregado numeroso, integrado por três irmãos consanguíneos e cinco uterinos. A família era residente numa construção abarracada no Bairro de Chelas, vivendo durante a sua infância numa situação de precariedade. À débil situação económica, acresciam como fatores de dificuldade a dependência do álcool por parte da progenitora e a ausência do progenitor que passou vários anos preso; 1.33. O arguido Ivan iniciou o percurso escolar com seis anos de idade, sendo a sua escolaridade marcada por desmotivação e desinteresse, em grande parte relacionados com graves carências a nível alimentar (várias vezes se deslocava para a escola sem ter tomado qualquer refeição). Num percurso marcado por reprovações, o arguido concluiu apenas o 4º ano de escolaridade; 1.34. No início da adolescência do arguido Ivan, o agregado beneficiou da atribuição de uma habitação camarária, tendo assim melhorado substancialmente as condições da família; 1.35. Aos 14 anos de idade, Ivan ... começou a trabalhar numa mercearia junto da sua residência e, posteriormente, no sector da construção civil. O seu percurso laboral foi marcado pela irregularidade; 1.36. Ivan ... iniciou o relacionamento com a sua atual companheira ainda antes dos 18 anos de idade. O namoro não tinha o consentimento dos progenitores dela e a situação agravou-se quando ficou grávida, sendo obrigada a integrar o agregado do arguido. Aquando do nascimento da filha de ambos, o arguido encontrava-se laboralmente integrado e a companheira trabalhava numa cadeia de supermercados, o que lhes permitiu arrendar um pequeno apartamento; 1.37. À data dos factos em causa, o arguido residia com a companheira e a filha, num apartamento arrendado, em zona rural e pacata. Embora o arguido não desencvolvesse atividade laboral de forma regular, a companheira estava empregada, auferindo cerca de € 1.200,00 mensais, provenientes da sua atividade como sócia-gerente de uma firma de táxis, pelo que a financeira da família era equilibrada. O arguido contribuía para a economia doméstica com os proventos que obtinha em biscates; 1.38. O veículo automóvel ..-..-GU (…, de cor branca) pertence à mãe do arguido Tiago, Maria …, que o emprestara ao filho para as deslocações dele, de casa para o trabalho. Quanto aos factos não provados, ficou consignado no Acórdão recorrido: Discutida a causa, não se provaram quaisquer outros factos, designadamente: 2.1. Que os arguidos tivessem urdido o plano de se dedicarem à venda concertada de estupefacientes em Lisboa; 2.2. Que a aquisição e o transporte do produto estupefaciente no veículo ..-..-GU tivessem ocorrido já no dia 18 de outubro de 2017; 2.3. Que o arguido Tiago ... tivesse guinado várias vezes o veículo que conduzia, para a esquerda e para a direita, na direção do automóvel da Polícia de Segurança Pública, obrigando o agente condutor Hugo … a guinar também para evitar ser embatido pelo veículo dos arguidos e a realizar manobras defensivas; 2.4. Que o arguido Tiago ... tivesse atuado com o desígnio de dirigir o seu automóvel contra os agentes da Polícia de Segurança Pública, com o objetivo de não ser intercetado e detido, com a consciência e vontade de adotar comportamentos que sabia serem proibidos e punidos por lei penal, dirigidos contra polícias no cumprimento da sua missão e com o propósito de os impedir de levar a cabo as atividades compreendidas nas respetivas funções; 2.5. Que a quantia de € 50,00 apreendida ao arguido Ivan ... fosse resultante de vendas de estupefacientes; 2.6. Que após a sua libertação, o arguido Ivan ... tivesse resolvido não trabalhar e continuar a entregar estupefacientes a terceiros a troco de quantias monetárias. Relativamente à fundamentação da decisão de facto provada, ficou expresso no referido Acórdão: Na formação da sua convicção o Tribunal atendeu aos meios de prova disponíveis, atentando nos dados objetivos fornecidos pelos documentos dos autos e fazendo uma análise das declarações e depoimentos prestados. Toda a prova produzida foi apreciada segundo as regras da experiência comum e lógica do homem médio, suposto pelo ordenamento jurídico, fazendo o Tribunal, no uso da sua liberdade de apreciação, uma análise crítica das provas. A apreciação da prova, ao nível do julgamento de facto, faz-se segundo as regras da experiência e a livre convicção do Tribunal, salvo quando a lei dispuser diferentemente (cfr. artigo 127º do Código de Processo Penal). Liberdade de apreciação não se confunde com apreciação arbitrária da prova, nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova, exigindo-se antes, uma apreciação crítica e racional das provas, fundada nas regras da experiência, da lógica e da ciência. Dispõem os artigos 374º, n.º 2 e 379º, n.º 1, al. a) do Código de Processo Penal que a sentença deve conter, para além da enumeração dos factos provados e não provados, a indicação das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal, e uma exposição, tando quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção. Para apurar a factualidade assente, não basta enumerar os meios de prova, antes se impondo que se expresse o modo como se alcançou essa convicção, descrevendo o processo racional seguido e objetivando a análise e ponderação criticamente comparativa das diversas provas produzidas, para que se conheça a motivação que fundamentou a opção por certo meio de prova em detrimento de outro, ou sobre qual o peso que determinados tiveram no processo decisório, ou proceder à explanação do percurso lógico do Tribunal até chegar à decisão fática, para permitir aos destinatários da decisão e aos cidadãos em geral, um controle externo e democrático sobre o exercício da justiça (cf. o Acórdão da Relação de Lisboa de 8 de novembro de 2006, proferido no âmbito do processo n.º 5/14.4GMLSB deste Juízo Central Criminal de Lisboa) * Vejamos o caso dos autos. O Tribunal atendeu, desde logo às declarações prestadas pelos arguidos. Depois de em sede de primeiro interrogatório judicial (sendo advertido nos termos do disposto no artigo 141º, nº 4, al. b, do Código de Processo Penal, que as declarações prestadas poderão ser utilizadas no processo, estando sujeitas à livre apreciação da prova) o arguido Ivan ... ter declarado que o coarguido Tiago insistiu para que lhe arranjasse haxixe e acabou por ir com ele e indicar-lhe o sítio onde se vende, para que pudesse comprar, admitindo que transportavam o haxixe apreendido quando foram seguidos pelas autoridades policiais, em interrogatório judicial complementar o arguido Ivan modificou a sua versão, negando, então, o seu envolvimento na compra e transporte do haxixe. Em julgamento, o arguido Ivan manteve esta sua segunda versão, afirmando que apenas acompanhou o arguido Tiago a um local onde o mesmo lhe afirmara pretender encontrar-se com terceiros para um negócio de compra e venda de um automóvel, desconhecendo, em absoluto, que ali fossem buscar haxixe e que as embalagens apreendidas tivessem sido por si arremessadas por uma das janelas do veículo. Pelo contrário, o arguido Tiago ... admitiu a prática dos factos imputados na acusação quanto ao crime de tráfico de estupefacientes, esclarecendo que, informado que estava dos motivos que haviam determinado o cumprimento de pena de prisão pelo coarguido, pediu a Ivan ... que o pusesse em contacto com terceiros a quem pudesse comprar uma quantidade de haxixe para comercialização, como forma de angariar proventos para fazer face ao pagamento da coima e encargos em que fora condenado. Referiu que o coarguido acedeu e se pôs de acordo consigo, tendo-se deslocado a Lisboa, a local conhecido do arguido Ivan .... Relatou que aí chegados, permanecendo o Tiago ... no interior do veículo, o coarguido Ivan, munido dos novecentos e cinquenta euros que Tiago lhe acabara de passar para as mãos, ausentou-se do veículo e regressou, momentos após, trazendo consigo as embalagens do haxixe. Referiu que iniciaram viagem no veículo automóvel, pretendendo regressar à sua zona de residência (Alverca), tendo sido seguidos e depois abordados pela polícia. Esclareceu que jamais pretendeu abalroar o carro policial, pretendendo apenas desviar-se do mesmo quando este se aproximava do seu veículo. As declarações prestadas pelo arguido Ivan ... em audiência de julgamento, acima sumariadas, não se mostraram dignas de crédito, por serem inverosímeis, incoerentes e incompatíveis com os dados da experiência comum. Desde logo as mesmas entram em contradição com a versão pelo próprio apresentada aquando do seu primeiro interrogatório judicial. Mas, sobretudo, tal versão é afastada pelas declarações do coarguido Tiago ... (estas lógicas, credíveis e de harmonia com os dados da experiência comum), conjugadas com os depoimentos das testemunhas Hugo … e Silva, agentes da Polícia de Segurança Pública que descreveram os factos por si observados, de forma direta, aquando do seguimento e abordagem dos arguidos. Os depoimentos destas testemunhas arroladas na acusação, que, de forma séria, coerente e clara, revelaram ao Tribunal as circunstâncias que presenciaram de forma direta, no exercício das suas funções policiais, foram fundamentais para o apuramento dos factos. Assim: - O agente da Polícia de Segurança Pública Hugo … esclareceu ter participado no seguimento e abordagem dos arguidos, nas circunstâncias em causa nos autos, tendo observado o comportamento do arguido Ivan de arremessar pela janela dianteira direita do veículo as duas embalagens que vieram a ser apreendidas. Referiu que no decurso do seguimento o condutor do veículo pretendia pôr-se em fuga, tendo percebido claramente que os seguidores eram agentes policiais; - O Chefe da Polícia de Segurança Pública Silva, que esclareceu a sua participação nas investigações, informando das circunstâncias em que decorreu o seguimento e abordagem dos arguidos. Também esta testemunha referiu ter visto o arguido Ivan ... a lançar para fora do veículo de que era tripulante as duas embalagens de haxixe que vieram a ser apreendidas. Estes depoimentos não foram contrariados pelos demais prestados em audiência de julgamento (pelas testemunhas arroladas pela defesa que, dos factos da acusação, revelaram não ter conhecimento direto, não se encontrando no local dos mesmos, nem tendo presenciado as ocorrências). Os depoimentos dos agentes policiais e as declarações do arguido Tiago ... foram conjugados com toda a prova documental constante dos autos, designadamente, o auto de notícia de fls. 1 a 3, o auto de apreensão de fls. 6 e 7, os autos de apreensão de fls. 14-15 e 16-17, a certidão extraída do processo nº 2180/12.3TDLSB de fls. 113 a 185, o relatório de exame pericial de fls. 297 (estando o original deste a fls. 343). Perante o conjunto de tais meios de prova, resultaram afastadas quaisquer dúvidas que pudessem provir da negação do arguido Ivan ..., cuja versão o Tribunal Coletivo entendeu dever afastar, dando-se como provados os factos imputados na acusação. * As testemunhas arroladas pela defesa do arguido Ivan ..., Pedro … (amigo do arguido), Silvana … (contabilista que presta serviços para a companheira do arguido) e Hugo V. (eletricista de quem o arguido é colaborador na realização de biscates), não dispondo de conhecimento direto dos factos imputados na acusação, prestaram depoimentos sérios e honestos, revelando circunstâncias relevantes sobre a personalidade, integração familiar e comunitária e modo de vida do arguido Ivan, contribuindo para o esclarecimento do Tribunal nesses domínios. * Mais se atendeu, para prova dos antecedentes criminais e condições socioecónomicas dos arguidos, às declarações dos próprios, aos relatórios sociais e aos certificados de registo criminal juntos aos autos. IV- Fundamentos de Direito Analisando A) DA IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO SOBRE MATÉRIA DE FACTO O arguido Ivan defende que a decisão recorrida padece do vício de insuficiência da matéria de facto provada para se alcançar uma decisão justa, previsto na alínea a), b) e c) do nº 2 do artº 410º do C.P.P, de contradição insanável entre os factos provados e os factos não provados e de erro notório na apreciação da prova. Defende que o Tribunal recorrido apreciou mal a prova, julgou incorrectamente os factos descritos sob os pontos 1.12, 1.14 e 1.16 da matéria de facto provada, não tendo sido em seu entender produzida prova suficiente que permita imputar-lhe uma crime de tráfico de estupefacientes p.p no artº 21º do D.L nº 21º/1 do D.L nº 15/93 de 22.1, e conclui assim ter sido o mesmo sido incorrectamente condenado como co-autor deste tipo de ilícito. O M.P na 1ª instância pelo contrário sustentou que: “(...)Porém, o que se vislumbra nas conclusões da motivação de recurso do arguido em matéria de facto é uma muito vaga e indemonstrada alegação de erro de julgamento do tribunal colectivo quanto aos pontos 1.12, 1.14 e 1.16 dos factos provados, limitando-se o arguido a contestar de uma forma genérica a convicção adquirida pelo tribunal recorrido sobre os factos dados como provados, por entender que o tribunal devia ter aceite como válida a versão dos factos por ele trazida aos autos; todavia, tal versão é contrariada pela versão do outro coarguido, a que acresce que o recorrente omite deliberadamente qualquer referência aos depoimentos também prestados em audiência pelas testemunhas agentes da PSP Hugo … e Silva, cujo conteúdo vem sumariado no acórdão condenatório, a fls. 12 e 13 do mesmo, agentes esses que seguiram a viatura dos arguidos e viram o arguido Ivan, ele próprio, a arremessar pela janela do seu lado as duas embalagens de droga que trazia com ele – o que ele insiste em negar! A prova produzida em audiência foi, aliás, de molde a permitir sustentar a decisão condenatória proferida, como resulta à evidência da indicação e do exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal recorrido, indicação e exame esses que constam do acórdão condenatório em termos tão claros que para ele nos limitamos a remeter, assim nos abstendo aqui da sua repetição integral, sempre fastidiosa (...)”. Quid Juris? Não assiste razão ao recorrente e subscrevemos na íntegra a argumentação do M.P. Sublinha-se que o recurso da matéria de facto vem concebido pela lei como remédio jurídico e não como instrumento de refinamento jurisprudencial, como se o julgamento na primeira instância não tivesse existido. Ou seja, a intromissão da Relação no domínio factual cingir-se-á a uma intervenção “cirúrgica” no sentido de delimitada, restrita à indagação ponto por ponto da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correcção se for caso disso, e apenas na medida do que resultar do filtro da documentação. Melhor dizendo, o recurso em matéria de facto não se destina a um novo julgamento, sendo antes a forma de sanar os vícios de julgamento em primeira instância, como sejam, erro manifesto no julgamento nomeadamente no caso em que se dê como provado facto com base em depoimento de testemunha que não o afirmou, ou com base em depoimento de testemunha que declarar ter-lhe sido relatado por terceiro, com base em valoração de prova proibida. O recurso da matéria de facto não se destina, assim, a postergar o princípio da livre apreciação da prova, com consagração expressa no artigo 127º do C. Processo Penal. A livre apreciação da prova é indissociável da oralidade e imediação presentes no decurso do julgamento em primeira instância. Aquela tem por limites as regras da experiência comum e a obediência à lógica, sendo que, se face à prova produzida, for possível mais do que uma conclusão, a decisão do Tribunal que, devidamente fundamentada, se basear numa das possíveis, é válida. Efectivamente, só o contacto directo com os depoentes na audiência de julgamento permite formar uma convicção que não pode ser reproduzida na documentação da prova, e logo, reproduzida em recurso. Ou seja, o recorrente Ivan apenas se referiu aos factos que considerou incorrectamente julgados para os impugnar (factos referidos sob os pontos 1.12, 1.14 e 1.16), mas limitando-se a fazer referências genéricas e considerações várias sobre as declarações prestadas pelos dois arguidos aquando do respectivo 1º interrogatório - reproduzindo depois de forma desenquadrada “algumas frases” que são sublinhadas nos depoimentos por eles prestados - as quais no seu entender deveriam ter sido valorados de outra forma. Com tais alegações, visa afinal o recorrente pôr em causa o processo de valoração da prova, efectuado pelo Tribunal a quo, pretendendo, no fundo, que a mesma prova seja valorada de acordo com a sua própria apreciação, esquecendo-se, contudo, que a prova é apreciada, salvo quando a lei dispuser diferentemente, segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade que julga – artº 127º do C. P. Penal – e não de acordo com a apreciação que dela fazem os destinatários da decisão. Livre apreciação essa que não significa livre arbítrio ou valoração puramente subjectiva, realizando-se de acordo com critérios lógicos e objectivos, expressos através da motivação. Por isso, tudo visto, constata-se que in casu, não foi formulado qualquer pedido de impugnação da matéria de facto nos termos do artº 412º/3 do C.P.P, nem foram respeitados os requisitos de que depende tal pretensão, improcedendo pois a impugnação da decisão recorrida, em sentido lato. Não tendo o arguido cumprido o imposto pelo artº 412º nºs 3 e 4 do C. P. Penal, está este Tribunal de Relação impossibilitado de proceder à modificação da decisão proferida em sede de matéria de facto pelo Tribunal a quo (artº 431º do CPP), a não ser no âmbito dos vícios a que alude o nº 2 do artº 410º do C. P. Penal, matéria que se analisará infra. Vejamos então se assiste razão aos arguidos na invocação de qualquer um dos vícios do artº 410º/2 do C.P.P (impugnação em sentido restrito). Como resulta da letra da lei, qualquer dos vícios a que alude o nº 2 do artº 410º do C. P. Penal tem de dimanar da própria decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sem recurso, portanto, a quaisquer elementos externos à decisão, designadamente declarações ou depoimentos exarados no processo durante o inquérito ou a instrução, ou até mesmo o julgamento, sendo que, por regras da experiência comum deverá entender-se as máximas da experiência que todo o homem de formação média conhece. Alega o recorrente de uma assentada que a decisão recorrida padece de todos os vícios previstos no nº 2 do artº 410º do C.P.P, mas não explicita de que forma os mesmos ocorrem, nem os mesmos se vislumbram numa apreciação oficiosa. A insuficiência para a decisão, da matéria de facto a que se reporta a alínea a) do nº 2 do artº 410º do C.P.P é um vício que ocorre quando a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a solução de direito encontrada, porque não foi investigada toda a matéria de facto com relevo para a decisão da causa. A referida insuficiência pressupõe sempre que a decisão de facto apurada não é bastante para a decisão de direito encontrada. O vício só ocorre quando o Tribunal recorrido, podendo fazê-lo, deixou de investigar toda a matéria de facto relevante, de tal forma que essa materialidade não permite, por insuficiência, a aplicação do direito ao caso que foi submetido à sua apreciação, por faltarem elementos necessários para se poder formular um juízo seguro de condenação ou de absolvição (cf. Acórdão do S.T.J de 15.1.98 processo 1075/97 acessível em www.dgsi.pt). Por outras palavras, aí, os factos provados são insuficientes para fundamentar a solução de direito encontrada, sendo que no cumprimento do dever da descoberta da verdade material, o Tribunal poderia e deveria ter procedido a mais profunda averiguação, de modo a alcançar, justificadamente, a solução legal e justa (cf Acs. do S.T.J de 20.4.2006 no proc. nº 06P363 e de 16.4.1999 em www.dgsi.pt e Ac. do S.T.J de 2.6.99, proc.288/99, acessível em www.dgsi.pt). Não se confunde este com a insuficiência de prova para a decisão de facto proferida, que ocorre quando o Tribunal investigou tudo o que podia investigar (cf Ac. do S.T.J de 24.7.1998, no processo 436/98), mas não logrou obter convicção probatória sobre a factualidade relativa ao crime imputado vício (não há que fazer tal confusão porque o artº 410º/2/a) do C.P.P estabelece uma conexão entre a matéria de facto provada e a decisão jurídica que nela assenta e não entre a prova produzida e os factos provados). Nestes termos, não tem qualquer sentido a invocação deste vício nos termos em que é feita pelo arguido, quando não se aponta em concreto qualquer omissão da matéria de facto, que pudesse impedir a decisão jurídica, tal como ela foi proferida uma vez que ficaram demonstrados todos os factos objectivos e subjectivos que integram o tipo de ilícito em causa, conforme o descrito em 1.1 a 1.14 (tipo objectivo) e em 1.16 a 1.18 (tipo subjectivo). E nem se diga que obsta a tal conclusão, o facto de constar dos factos não provados que “os dois arguidos tivessem urdido o plano de se dedicarem à venda concertada de estupefacientes em Lisboa”. É verdade que não ficou provado tal plano mas aquilo que constitui o objecto essencial da acusação demonstrou-se mediante a prova que foi produzida na audiência de julgamento. Constitui como se sabe jurisprudência pacífica do S.T.J que a simples detenção de produtos estupefacientes não ficando provado que se destina exclusivamente ao consumo do agente possuidor, integra o tipo objectivo do crime do artº 21º do C.P. É que como se sabe, o tipo objectivo do crime em causa compreende várias acções, sendo igualmente punidas como tráfico outro tipo de condutas, para além da “venda a terceiros de droga mediante contrapartida económica”, nomeadamente “cultivar”, “produzir”, “fabricar” “extrair” “preparar”, “oferecer”, “puser à venda”, “distribuir”, “receber” “transportar”, “importar”. Ora no caso presente ficou assente que os arguidos Tiago ... e Ivan ... detinham a quantidade de cannabis (resina, com o peso líquido global de 976,760 gramas) que no dia 17.10.2017 lhes foi apreendida no circunstancialismo de tempo e de lugar descritos no Acórdão, a qual destinavam à cedência a terceiros, mediante contrapartidas monetárias e ainda que agiram de forma concertada, livre, voluntária e consciente, bem sabendo proibida por lei a sua conduta. Atenta a modalidade da acção e o concreto circunstancialismo em que essa detenção de estupefacientes foi apurada, entendeu assim o Tribunal a quo que a conduta dos dois arguidos integrava objectiva e subjectivamente o tipo do crime de tráfico p.p no artº 21º do D.L nº 15/93 de 22.1 com referência à tabela I-C. Nenhuma censura temos a fazer a essa qualificação jurídica face a toda a factualidade que foi apurada. Improcede assim a arguição deste vício feita pelo recorrente. *** Por sua vez, a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, apenas se verificará quando, analisada a matéria de facto, se chegue a conclusões irredutíveis entre si e que não possam ser ultrapassadas, ou seja, quando se dá por provado e como não provado o mesmo facto, quando se afirma e se nega a mesma coisa, ao mesmo tempo, ou quando simultaneamente se dão como provados factos contraditórios ou quando a contradição ocorre entre a fundamentação probatória da matéria de facto, sendo ainda de considerar a existência de contradição entre a fundamentação e a decisão (alínea b) do nº 2 do artº 410º do C.P.P). Analisada atentamente o texto da decisão recorrida não vislumbramos em nenhuma parte qualquer destas contradições. O erro notório na apreciação da prova, previsto no artº 410º nº 2 c) do C.P.P, configura-se quando se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária ou visivelmente violadora do sentido da decisão e/ou das regras de experiência comum. O erro notório na apreciação da prova tem pois que resultar impreterivelmente do próprio teor da sentença, existe este erro, quando considerado o texto da decisão recorrida por si só ou conjugado com as regras de experiência comum se evidencia um erro de tal modo patente que não escapa à observação do cidadão comum ou do jurista com preparação normal. Ocorre este vício quando se dão por provados factos que face às regras de experiência comum e à lógica normal, traduzem uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável e por isso incorrecta, quando resulta do próprio texto da motivação da aquisição probatória que foram violadas as regras do “in dúbio” (cfr Ac. do S.T.J de 24.3.2004 proferido no processo nº 03P4043 em www.dgsi.pt, Ac. do S.T.J 3.3.1999 in proc 98P930 e Ac. da Rel. Guimarães de 27.4.2006 in proc. 625/06) ou quando se violam as regras sobre prova vinculada ou de “leges artis” (cfr Ac. da Rel.Porto de 2.2.2005 no proc.0413844 e da Relação de Guimarães de 27.6.2005 no proc. 895/05-1ª). Terá então razão o arguido quando veio alegar nos termos supra mencionados que a decisão recorrida padece deste vício na medida em que o Tribunal a quo errou na apreciação da prova porquanto não fez uma apreciação crítica dos depoimentos das testemunhas em conjugação com a análise criteriosa dos restantes elementos de prova (nomeadamente as declarações dos dois arguidos), sendo esse erro mesmo notório? Vejamos. Convém lembrar que “Na valoração da prova testemunhal deve o julgador aferir cuidadosamente da idoneidade daquele que depõe ou presta declarações, sendo imperioso proceder a um “ (... ) tratamento a nível cognitivo (...) , mediante operações de cotejo com os restantes meios de prova, sendo que a mesma, tal como a prova indiciária de qualquer outra natureza, pode ser objecto de formulação de deduções e induções, as quais partindo da inteligência, hão-de basear-se na correcção de raciocínio, mediante as regras de experiência comum e conhecimentos científicos (... )” ( ac. RC de 05.05.1999, www.dgsi.pt ). Ora entendemos que estas regras foram seguidas pelo Tribunal a quo quando julgou o arguido recorrente. Na verdade, afigura-se-nos resultar da simples leitura do Acórdão que toda a prova constante dos autos e produzida em audiência de julgamento, foi analisada em obediência a critérios de experiência comum e de lógica do homem médio e é suficiente para fundamentar a decisão de facto que foi proferida. Sublinha-se também que “O Tribunal de segunda jurisdição não vai à procura de uma nova convicção, mas à procura de saber se a convicção expressa pelo Tribunal a quo tem suporte razoável naquilo que a gravação da prova (ou outra prova acrescentamos nós, nomeadamente documental e pericial) pode exibir perante si” (Ac. R.C. de 03.10.2000, C.J. ano 2000, Vol. IV, pág. 28). Isto é, como já acima ficou dito, o recurso em matéria de facto não visa a obtenção de um segundo julgamento sobre aquela matéria, sendo antes e apenas uma oportunidade para remediar eventuais males ou erros cometidos pelo Tribunal recorrido. Ora, no caso presente, e contrariamente ao invocado pelo recorrente não vislumbramos que da prova produzida em julgamento, resultassem outros factos que não aqueles que os Mmos. Juízes deram como assentes. Em especial, julgamos que a prova mencionada na fundamentação do Acórdão, foi suficiente para que se pudessem dar como assentes, como efectivamente foram, todos os factos descritos na matéria de facto provada, nomeadamente aqueles concretamente impugnados pelo recorrente Ivan. A convicção do Tribunal fundou-se no conjunto da prova produzida em julgamento, em especial, nas declarações dos agentes da PSP – os quais relataram ao Tribunal, de forma convincente e esclarecedora, tal como é referido na motivação de facto do Acórdão, a operação de seguimento e abordagem dos arguidos, que seguiam os dois num veículo automóvel de matrícula ..-..-GU conduzido pelo arguido Tiago ... e o momento em que o condutor Tiago se pretendeu colocar em fuga, altura em que ambos observaram o Ivan a arremessar pela janela da viatura automóvel as duas embalagens de cannabis que vieram a ser apreendidas e o momento em que procederam à apreensão subsequente do referido estupefaciente. Esta prova testemunhal não foi contrariada por quaisquer outros meios de prova prestados em audiência de julgamento ou trazidos aos autos pelo arguido Ivan, pelo que à sua versão mantida em julgamento não pode naturalmente ser atribuída a credibilidade por ele pretendida – até porque tal como decorre da lei, ao contrário das testemunhas, os arguidos não prestam juramento em audiência de julgamento e como tal não são obrigados a falar com verdade. O valor da prova testemunhal, isto é, a sua relevância enquanto elemento reconstituinte do facto delituoso imputado aos dois arguidos, foi, em nosso entender, bem apreciada face à sua credibilidade intrínseca, ou seja, a sua idoneidade e autenticidade. Acresce que a prova testemunhal foi conjugada com a análise da prova documental e pericial referidas também na motivação de facto (auto de notícia de fls 1 a 3, autos de apreensão de fls 6, 7, 14, 15, 16 e 17, e exame pericial de fls 297). Desta forma se constata que toda a prova produzida foi analisada criticamente e de acordo com as regras da experiência comum, e é, repete-se, suficiente, para fundamentar a factualidade dada como provada na decisão condenatória. Assim, a conclusão que os Mmos Juízes “a quo” alcançaram quanto à sua verificação é logicamente aceitável e, como tal, não nos merece qualquer censura. O que este arguido refere, na realidade, é que discorda da forma como a prova foi considerada. É que na impugnação da matéria de facto, esqueceu este arguido que “na apreciação da prova, o Tribunal é livre de formar a sua convicção desde que não contrarie as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos”, o que no nosso entender aconteceu no caso presente. Com efeito, o Acórdão recorrido cumpre quanto a nós, todos os requisitos legalmente exigíveis, evidenciando capacidade de síntese e de concisão na descrição dos factos e sua qualificação jurídica, bem como na indicação dos meios de prova que serviram para fundamentar a convicção do Tribunal. O Acórdão foi elaborado de acordo com a prova produzida em julgamento, sem qualquer insuficiência, erro, contradição ou outra nulidade, nele se fazendo correcto enquadramento jurídico-penal dos factos dados como assentes, fixados estes em conformidade com os depoimentos e demais prova constante dos autos. Recorde-se ainda que, nos termos do disposto no artº 127º do Código de Processo Penal – disposição que tem a sugestiva epígrafe “Livre apreciação da prova” – “a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”, ou seja, os juízes que compunham o Colectivo. Aqueles são assim livres – obviamente, com as condicionantes resultantes da necessária coerência da própria decisão, da conformidade desta com a prova produzida em julgamento e em obediência às regras normais da experiência – de apreciar e valorar a prova, dando credibilidade, ou não, ao que no decurso das sessões é dito por arguidos e testemunhas. In casu, não se vislumbra de facto qualquer contradição entre os factos dados como provados e os não provados ou com os depoimentos ouvidos no julgamento; as conclusões a que chegou o Tribunal Colectivo a quo mais não são do que o corolário lógico da análise dos elementos de prova recolhidos ao longo do inquérito e produzidos em audiência. Em suma, os agentes da PSP ouvidos como testemunhas em audiência Hugo … e Silva, viram o suficiente para que o Tribunal de 1ª Instância se convencesse da culpabilidade de ambos os recorrentes. Na verdade, a decisão da matéria de facto tem de resultar da análise conjunta e avaliação crítica de toda a prova produzida em audiência (testemunhal/documental e pericial) e não apenas de segmentos fragmentados dessa mesma prova. Por outro lado, de acordo com o princípio da livre apreciação da prova que domina o nosso sistema (por oposição ao regime da prova legal) não existem normas que determinam o valor ou a eficácia probatória a atribuir a cada meio probatório. Nessa medida a atribuição de maior força a um meio de prova depende apenas da convicção do julgador, desde que se mostre de acordo com a experiência comum. Assim, as declarações produzidas em audiência pelas testemunhas, foram livremente valoradas pelo Tribunal de 1ª instância, o qual decidiu que a conduta ilícita de detenção para venda de produtos estupefacientes (cannabis), a eles imputada pelo M.P, se encontrava comprovada pela análise crítica e conjugadas dos vários meios de prova produzidos em julgamento e não apenas por aqueles que são apontados pelo arguido Ivan, como devendo ser valorados de forma diversa. Com efeito, será sempre o Tribunal a quo o mais apto para apreciar a prova, pois é este que ouve e vê as testemunhas, as suas reacções, as suas pausas, os seus gestos. O local e o momento onde por excelência se aferem e podem ser apreciadas valorativamente e criticamente as provas, é a audiência e julgamento em que o julgador dispõe de melhores condições para apreciar de perto a prova que se vai produzindo (princípio da imediação da prova), ou a falta dessa prova. Por isso, sempre que a convicção do julgador seja uma convicção possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve acolher-se a opção do julgador, até porque o mesmo beneficiou da oralidade e imediação da recolha da prova. Porque exactamente a prevalência deve ser dada à decisão que foi proferida numa relação de maior imediação, proximidade e espontaneidade com a sua própria produção e porque os recursos de facto apenas se destinam realmente a suprir os erros de julgamento, não basta que aquela versão alternativa proposta a igualize em termos de convencimento e de justificação, antes se exige que a suplante. O exame crítico das provas tem como finalidade impor que o julgador esclareça quais foram os elementos probatórios que, em maior ou menor grau, o elucidaram e porque o elucidaram, para que se possibilite a compreensão de ter sido proferida uma dada decisão e não outra. Não dizendo a lei em que consiste o exame crítico das provas, esse exame tem de ser aferido com critérios de razoabilidade, sendo fundamental que permita avaliar cabalmente o porquê da decisão e o processo lógico formal que serviu de suporte ao respectivo conteúdo, e decidir se as razões de uma decisão sobre os factos e o processo cognitivo de que se socorreu são compatíveis com as regras da experiência da vida e das coisas, e com a razoabilidade das congruências dos factos e dos comportamentos. O julgador deve explicitar o processo lógico e psicológico da sua decisão, excluindo da motivação o que não é passível de justificação racional, movendo-se unicamente no âmbito do racionalmente justificável. Ora relembre-se o que ficou escrito no Acórdão recorrido na parte respeitante ao exame crítico da prova na Motivação da decisão de facto: O Tribunal atendeu, desde logo às declarações prestadas pelos arguidos. Depois de em sede de primeiro interrogatório judicial (sendo advertido nos termos do disposto no artigo 141º, nº 4, al. b, do Código de Processo Penal, que as declarações prestadas poderão ser utilizadas no processo, estando sujeitas à livre apreciação da prova) o arguido Ivan ... ter declarado que o coarguido Tiago insistiu para que lhe arranjasse haxixe e acabou por ir com ele e indicar-lhe o sítio onde se vende, para que pudesse comprar, admitindo que transportavam o haxixe apreendido quando foram seguidos pelas autoridades policiais, em interrogatório judicial complementar o arguido Ivan modificou a sua versão, negando, então, o seu envolvimento na compra e transporte do haxixe. Em julgamento, o arguido Ivan manteve esta sua segunda versão, afirmando que apenas acompanhou o arguido Tiago a um local onde o mesmo lhe afirmara pretender encontrar-se com terceiros para um negócio de compra e venda de um automóvel, desconhecendo, em absoluto, que ali fossem buscar haxixe e que as embalagens apreendidas tivessem sido por si arremessadas por uma das janelas do veículo. Pelo contrário, o arguido Tiago ... admitiu a prática dos factos imputados na acusação quanto ao crime de tráfico de estupefacientes, esclarecendo que, informado que estava dos motivos que haviam determinado o cumprimento de pena de prisão pelo coarguido, pediu a Ivan ... que o pusesse em contacto com terceiros a quem pudesse comprar uma quantidade de haxixe para comercialização, como forma de angariar proventos para fazer face ao pagamento da coima e encargos em que fora condenado. Referiu que o coarguido acedeu e se pôs de acordo consigo, tendo-se deslocado a Lisboa, a local conhecido do arguido Ivan .... Relatou que aí chegados, permanecendo o Tiago ... no interior do veículo, o coarguido Ivan, munido dos novecentos e cinquenta euros que Tiago lhe acabara de passar para as mãos, ausentou-se do veículo e regressou, momentos após, trazendo consigo as embalagens do haxixe. Referiu que iniciaram viagem no veículo automóvel, pretendendo regressar à sua zona de residência (Alverca), tendo sido seguidos e depois abordados pela polícia. Esclareceu que jamais pretendeu abalroar o carro policial, pretendendo apenas desviar-se do mesmo quando este se aproximava do seu veículo. As declarações prestadas pelo arguido Ivan ... em audiência de julgamento, acima sumariadas, não se mostraram dignas de crédito, por serem inverosímeis, incoerentes e incompatíveis com os dados da experiência comum. Desde logo as mesmas entram em contradição com a versão pelo próprio apresentada aquando do seu primeiro interrogatório judicial. Mas, sobretudo, tal versão é afastada pelas declarações do coarguido Tiago ... (estas lógicas, credíveis e de harmonia com os dados da experiência comum), conjugadas com os depoimentos das testemunhas Hugo ... e Silva, agentes da Polícia de Segurança Pública que descreveram os factos por si observados, de forma direta, aquando do seguimento e abordagem dos arguidos. Os depoimentos destas testemunhas arroladas na acusação, que, de forma séria, coerente e clara, revelaram ao Tribunal as circunstâncias que presenciaram de forma direta, no exercício das suas funções policiais, foram fundamentais para o apuramento dos factos. Assim: - O agente da Polícia de Segurança Pública Hugo … a esclareceu ter participado no seguimento e abordagem dos arguidos, nas circunstâncias em causa nos autos, tendo observado o comportamento do arguido Ivan de arremessar pela janela dianteira direita do veículo as duas embalagens que vieram a ser apreendidas. Referiu que no decurso do seguimento o condutor do veículo pretendia pôr-se em fuga, tendo percebido claramente que os seguidores eram agentes policiais; - O Chefe da Polícia de Segurança Pública Silva, que esclareceu a sua participação nas investigações, informando das circunstâncias em que decorreu o seguimento e abordagem dos arguidos. Também esta testemunha referiu ter visto o arguido Ivan ... a lançar para fora do veículo de que era tripulante as duas embalagens de haxixe que vieram a ser apreendidas. Estes depoimentos não foram contrariados pelos demais prestados em audiência de julgamento (pelas testemunhas arroladas pela defesa que, dos factos da acusação, revelaram não ter conhecimento direto, não se encontrando no local dos mesmos, nem tendo presenciado as ocorrências). Os depoimentos dos agentes policiais e as declarações do arguido Tiago ... foram conjugados com toda a prova documental constante dos autos, designadamente, o auto de notícia de fls. 1 a 3, o auto de apreensão de fls. 6 e 7, os autos de apreensão de fls. 14-15 e 16-17, a certidão extraída do processo nº 2180/12.3TDLSB de fls. 113 a 185, o relatório de exame pericial de fls. 297 (estando o original deste a fls. 343). Perante o conjunto de tais meios de prova, resultaram afastadas quaisquer dúvidas que pudessem provir da negação do arguido Ivan ..., cuja versão o Tribunal Coletivo entendeu dever afastar, dando-se como provados os factos imputados na acusação. * As testemunhas arroladas pela defesa do arguido Ivan ..., Pedro ... (amigo do arguido), Silvana ... (contabilista que presta serviços para a companheira do arguido) e Hugo V. (eletricista de quem o arguido é colaborador na realização de biscates), não dispondo de conhecimento direto dos factos imputados na acusação, prestaram depoimentos sérios e honestos, revelando circunstâncias relevantes sobre a personalidade, integração familiar e comunitária e modo de vida do arguido Ivan, contribuindo para o esclarecimento do Tribunal nesses domínios. Esta valoração da prova feita pelo Tribunal a quo é perfeitamente legítima quanto a nós, não sendo violadora das regras da experiência e da lógica sendo que o S.TJ tem vindo a entender ser a prova indirecta admissível em determinado circunstancialismo, desde que conjugada com outros meios de prova, o que sucedeu no caso presente. No caso em apreço, a decisão recorrida, encontra-se pois suficientemente fundamentada, oferecendo um raciocínio linear, lógico e perceptível, não se vislumbrando qualquer incorrecta apreciação da prova, nomeadamente quanto à medida e extensão da credibilidade que mereceram (ou não) as declarações prestadas pelos arguidos e agentes da P.S.P durante o julgamento, em conjugação com todos os outros elementos de prova. É que o dever de fundamentação da sentença, basta-se com a exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, bem como o exame crítico das provas que serviram para fundar a decisão, sendo que tal exame exige não só a indicação dos meios de prova que serviram para formar a convicção do Tribunal mas, também, os elementos que em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção do Tribunal se formasse em determinado sentido, ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência – Ac. do STJ de 14-06-2007, Processo nº 1387/07 - 5ª É pois claro para nós, conforme se pode ler no texto do Acórdão recorrido, que o Tribunal a quo formou a sua convicção com base no conjunto da prova produzida e examinada em audiência, prova testemunhal, documental e pericial. A fundamentação do Acórdão mostra claramente que o Tribunal recorrido examinou criticamente as provas que serviram para formar a sua convicção, tendo ainda sido explicado porque razão face às duas versões antagónicas apresentadas em juízo (a do arguido Ivan e a da acusação pública), deu preferência à versão plasmada na acusação do M.P, inexistindo assim erro de julgamento. Por isso, tudo visto, consideramos correcta a posição defendida no Acórdão ora em análise quanto à valoração feita respeitante à globalidade das declarações prestadas pelas testemunhas e pelos arguidos, posição essa que entendemos encontrar-se clara e suficientemente fundamentada. Reitera-se pois a ideia de que a prova documental e pericial e as declarações proferidas pelos arguidos e pelas testemunhas não podem ser apreciadas de forma isolada e desgarrada, como o recorrente faz neste seu recurso, mas sim na sua globalidade e de forma conjugada. Deste modo, se é certo que o arguido Ivan nega em sede de recurso ter de forma livre, concertada e consciente, participado na aquisição da cannabis (resina) que foi apreendida em 17.10.2017 no circunstancialismo de tempo e de lugar descritos no Acórdão recorrido, para posterior venda a terceiros, também é verdade que a convicção do Tribunal a quo para dar como provado tal facto, assentou não apenas na análise crítica e cuidada das declarações das testemunhas, mas também na análise da restante prova documental e pericial ali produzida e nas declarações do co-arguido Tiago ..., análise essa que não nos merece qualquer censura. Como já acima ficou dito, a prova é apreciada de acordo com o princípio da livre apreciação da prova consignado no artº 127º do C.P.P onde claramente se pode ler “…a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”. Estamos pois em sede de um certo poder discricionário do Juiz, que “só pode ser atacado em função de vícios típicos endógenos da sentença ou erros de direito, ou claros erros de julgamento”, os quais no caso presente não existem. Da simples leitura da fundamentação de facto do Acórdão, constata-se que o Tribunal a quo valorou de forma crítica, o teor das declarações prestadas pelos agentes da P.S.P e as declarações dos dois arguidos, bem como a demais prova documental e pericial produzida nos autos e examinada em audiência e reportou expressa e detalhadamente essa ponderação de todas essas provas que serviram para formar a sua convicção, num raciocínio lógico e inteligível, Nada, pois, a apontar ao processo de valoração da prova feita pelo Tribunal a quo, mais concretamente no que se refere às declarações dos agentes da P.S.P ouvidos em audiência, o qual é perfeitamente compatível com as regras da experiência comum - pelas razões enunciadas no Acórdão e supra referidas às quais aderimos por inteiro. De resto, importa ter presente que o valor das declarações de um arguido em julgamento nunca seria igual ao de qualquer outra testemunha (porquanto o arguido não é obrigado a falar sobre os factos que o incriminam e quando fala, não o faz sob juramento). Nada a apontar, pois portanto quanto aos factos provados os quais se mostram, bem julgados, de acordo com a apreciação crítica das provas produzidas em audiência e analisadas conjugadamente com as regras da experiência comum. Concluindo, face a tudo o acima exposto, o que no fundo transparece do recurso do arguido Ivan e da sua respectiva fundamentação, repete-se, é que este discorda da leitura ou apreciação da prova que foi feita pelo Tribunal a quo e como é sabido, essa simples discordância não pode servir de fundamento para motivar um recurso. A discordância do recorrente, acerca dos termos em que o Tribunal recorrido formou a convicção determinante da aquisição do provado e do não provado, não procede porque citando a jurisprudência constante do Ac. da Relação de Coimbra de 6.3.2002 in C.J II, 44: “Quando a atribuição de credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear em opção assente na imediação e na oralidade, o Tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum” O arguido socorreu-se não do texto da decisão, mas de considerações acerca daquilo que entende ter sido a prova produzida, confundindo o vício de “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão” e de “erro notório na apreciação da prova” com “valoração da prova” que constituem realidades completamente distintas, para concluir ter existido por parte do Tribunal a quo, uma “valoração deturpada” dessa prova. Porém, como acabámos de ver, não se vislumbra da matéria de facto dada como provada pelo Tribunal recorrido e da respectiva fundamentação acima reproduzidas, qualquer apreciação de prova que resulte ser manifestamente ilógica, arbitrária ou de todo insustentável, denunciando a existência de um erro notório evidente para um cidadão comum ou um jurista com preparação normal. Ou que tivesse sido dado como provado algum facto com recurso a provas proibidas ou a métodos proibidos de prova, violando qualquer das regras que disciplinam esta matéria nos artigos 124º a 139º do C.P.P e conduzindo por essa via a uma prova ilegal. Pelo contrário, entendemos, sublinhando o acima já expresso, que a fundamentação da matéria de facto está estruturada de forma respeitadora dos diversos critérios legais e designadamente do artº 127º do C.P.P, não sofrendo de vício algum, nomeadamente do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada ou de erro notório na apreciação da prova – vícios previstos respectivamente na alínea a) e c) do nº 2 do artº 410º do C.P.P - ou de qualquer outro. Bem andou assim o Tribunal a quo, quando decidiu depois de valorada toda a prova de forma crítica, dar como assente que o arguido preencheu objectiva e subjectivamente com a sua conduta, da forma que ficou descrita no Acórdão recorrido, todos os elementos do tipo de crime de tráfico de estupefacientes pelo qual foi condenado. Mostram-se assim bem julgados os factos que integram essa conduta típica e ilícita, de acordo com as provas produzidas e analisadas conjugadamente com as regras da experiência comum. Improcede, assim na íntegra, a impugnação da matéria de facto. B) Da (alegada) Violação do princípio in dubio pro reo Relacionado com a valoração da prova alegou ainda este recorrente ter havido violação do princípio do “in dubio pro reo” o que invoca a seu favor para obter uma absolvição. Fundamentou em síntese a sua pretensão do seguinte modo: “(...) O quadro traçado pelo acórdão recorrido convoca inelotávelmente, no mínimo, uma duvida, que impunha o uso do in dubio pro reo e tendo o Colectivo a quo decidido contra o arguido. Efectivamente, com base na matéria assente não se poderia ter imputado ao arguido a prática de qualquer crime, sendo flagrantes as duvidas que resultam da decisão recorrida acerca das circunstâncias em que ocorrerem os factos pelos quais o recorrente foi, indevidamente, condenado e que tinham, obrigatoriamente, de militar em sentido favorável ao arguido, que se presume inocente até prova em contrário. Mais o recorrente entende que a prova que serviu para formar a convicção do tribunal conduz (...) a um non liquet: não se pode afirmar, em consciência, que se logrou obter a certeza dos factos. Perguntar-se-á se com base nas provas pessoais e reais produzidas e examinadas em audiência subsiste ou não uma dúvida razoável sobre ter o recorrente praticado os factos dados por provados. A presunção de inocência (artº 32°, n° 2, da Constituição da Republica), pertence, sem duvida, aos princípios fundamentais do processo penal em qualquer Estado-de-direito, e é, antes de mais, uma regra politica que releva o valor da pessoa humana na organização da sociedade e que recebeu consagração constitucional como direito subjectivo publico, direito que assume relevância pratica no processo penal num duplo plano: no tratamento do arguido no decurso do processo e como principio de prova (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, I, editorial Verbo, 1996, p. 282 (...). Todas as dúvidas patentes na matéria de facto e demonstradas pelo recorrente foram solucionadas em seu desfavor não tendo a sentença recorrida efectuado qualquer análise crítica desses fundamentos em concreto, uma vez que se limitou a reproduzir o que em teoria é aplicável a todos os casos, não cuidando de com base na matéria para o efeito alegado conhecer ou demonstrar que não assistia razão ao recorrente. Recorde-se que quanto à posse do dinheiro que o arguido alega apenas ter entregue no local ao ora Recorrente o Tribunal não atendeu a tal versão e quanto à posse do produto só atendeu à versão do arguido Tiago e não à do Recorrente, ou seja, quem não confiou o dinheiro teria confiado o produto, dez vezes mais valioso, na versão do mesmo!! Conclui assim que mesmo não considerando provada a sua inocência, na ausência de qualquer outro meio de prova a fundamentar a sua condenação (para além da apreensão de estupefaciente efectuada no circunstancialismo de tempo e de lugar descritos no Acórdão), então sempre se imporia a sua absolvição do crime de tráfico pelo qual foi condenado, com base no princípio “in dubio pro reo”. Isto é, segundo o recorrente a prova produzida em sede de julgamento é suficiente para criar na convicção do julgador pelo menos uma dúvida razoável, sobre se a droga que foi apreendida nestes autos pertencia de facto aos dois arguidos e havia sido adquirida por um acção concertada dos dois em conjugação de esforços e vontades, no circunstancialismo de tempo e de lugar descritos na acusação, tal como ficou a constar no texto do Acórdão recorrido. O M.P pelo contrário defende ser improcedente esta sua pretensão argumentando do seguinte modo: “ E porque nada permite afirmar que o tribunal recorrido tenha dado como provados os factos que como tal especificou tendo ou devendo ter dúvidas sobre algum ou alguns deles, é óbvio que, ao contrário do que faz o recorrente, não pode invocar-se no caso em apreço a violação do princípio in dubio pro reo. Vejamos. Em face do que já acima referimos aquando da análise da impugnação da matéria de facto, não é minimamente aceitável a tese vertida no presente recurso quanto à violação pelo Tribunal recorrido do princípio in dubio pro reo. Esta alegação revela-se totalmente inconsistente, dado que a convicção do Tribunal a quo se mostra alicerçada em factos objectivos e concretos, que o julgador não teve dúvidas em dar como provados. Na verdade, este princípio do “in dubio” tem aplicação na apreciação da prova, impondo que, em caso de dúvida insuperável e razoável sobre a valoração da prova, se decida sempre a matéria de facto, no sentido que mais favorecer o arguido. Importa ainda clarificar que este princípio in dubio pro reo, é um princípio probatório que procura solucionar um problema de dúvida em relação à matéria de facto e não clarificar o sentido de uma norma jurídica. Trata-se de um princípio, que traduz a salvaguarda do correspectivo princípio da culpa em Direito Penal, ao garantir a não aplicação de qualquer pena sem prova suficiente dos elementos típicos, sendo por isso um corolário lógico do princípio da presunção de inocência do arguido, sem quaisquer reflexos ao nível da interpretação das normas penais. Por isso, não podemos deixar de realçar que a violação de tal princípio só existiria se o Tribunal de julgamento reconhecendo a dúvida, ainda assim viesse a condenar o arguido Ivan .... O que não foi o caso. Tal como já acima ficou dito, em nosso entender foi apreciada conjunta e criticamente toda a prova produzida em audiência de discussão e julgamento, pelo que nenhum reparo nos merece o Acórdão recorrido, no que concerne à matéria de facto considerada provada e não provada. O Tribunal a quo, apreciando criticamente todas as provas produzidas conjugadas entre si e com as regras de experiência comum, conforme consta da respectiva fundamentação de facto, convenceu-se, sem margem para dúvidas, de determinados factos que constam da decisão ora em crise. Relativamente à discordância factual do recorrente, quanto à convicção do Tribunal a quo, já vimos que ponderada de um lado a argumentação do arguido e do outro a fundamentação dessa convicção explícita no texto do Acórdão em conjugação com a apreciação da matéria de facto apurada constante da decisão de facto, é possível concluir que tal convicção não é notoriamente errada, ilógica ou contrária às regras da experiência comum. A decisão proferida, tendo em conta o seu teor, mostra-se coerente, harmónica, sem antagonismos factuais, não contém factos contrários às regras da experiência comum, nem a existência de erro, que seja patente para qualquer cidadão. É consonante, logicamente interligada e inteligível para qualquer cidadão comum a factualidade provada e não provada e nessa medida não deixa margem para a hipótese de ter existido qualquer dúvida na apreciação da prova feita pelo Tribunal recorrido. Não basta que exista um depoimento ou um documento que ao recorrente não mereça credibilidade, para simplesmente se concluir que a sua valoração pelo Tribunal redundou na violação do princípio “in dubio pro reo”. Uma coisa é a dúvida do recorrente, outra, a do julgador, e só a dúvida deste pode conduzir à aplicação de tal princípio. A dúvida do recorrente é aqui irrelevante e jamais poderia conduzir à violação de tal princípio, que é no fundo uma regra de que o próprio julgador se deve socorrer quando tem dúvidas. A valoração de um meio de prova com a preterição de outro, tem a ver com a razão de ciência que o Tribunal, na sua fundamentação deve esclarecer, explicitando o seu raciocínio lógico. E essa fundamentação, no essencial mostra-se feita como acima realçámos. Analisar criticamente a prova significa, justamente concluir um facto da conjugação dos vários elementos trazidos à discussão da causa e reputá-lo como verdadeiro ou falso, em face daquilo que for a convicção do julgador dentro do seu critério de livre apreciação. Defender no contexto referido, a violação do princípio “in dubio pro reo” carece pois de fundamentos sustentáveis no caso presente. Resulta assim claro que o preceituado no artº 127º CPP deve ter-se por cumprido, sempre que a convicção a que o Tribunal chegou se mostra objecto de um procedimento lógico e coerente de valoração, com motivação bastante, onde não se vislumbre qualquer assomo de arbítrio na apreciação da prova, considerando que o objecto da prova tanto inclui os factos probandos (prova directa) como factos diversos do tema de prova, mas que permitam, com o auxilio das regras de experiência, uma ilação quanto a estes (prova indirecta ou indiciária). Efectivamente, no caso sub Júdice, lendo a decisão recorrida, designadamente a fundamentação de facto e a indicação e exame crítico das provas em que se baseou a convicção do Tribunal, quanto ao crime de tráfico de estupefacientes p.p no artº 21º do D.L nº 15/93 de 22.1, com referência à tabela I-C anexa, imputado em co-autoria ao arguido Ivan ..., não se vislumbra que o Tribunal a quo tivesse dado como provado qualquer um dos factos que como tal enumerou, tendo dúvidas sobre a sua verificação, nem se nos afigura que tais dúvidas devessem ter existido. «A censura quanto à forma de formação da convicção do tribunal não pode assentar, de forma simplista, no ataque da fase final da formação de tal convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de quaisquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade de formação da convicção. De outra forma seria uma inversão da posição das personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar pela convicção dos que esperam a decisão.» - Cfr. Ac. do Tribunal Constitucional 198/2004 de 24/03/2004, D.R. II Série, de 02/06/2004[1]. Face ao que acima ficou dito, torna-se de difícil compreensão a argumentação do arguido Ivan no que respeita à alegada violação deste princípio in dubio pro reo pelo Tribunal a quo. Sem necessidade de mais considerandos, concluímos que também neste ponto o recurso do arguido ora em análise, será julgado improcedente. C) Qualificação jurídica – imputação dos factos a título de co-autoria Veio o arguido Ivan ainda invocar ter existido erro de direito quanto à qualificação da sua conduta nos termos a seguir transcritos: “É, pois, patente a existência de erro de julgamento uma vez que o arguido Ivan “limitou-se” a levar o arguido Tiago quem já antes tinha visto naquele local, assumindo este último que o dinheiro era só dele e que o produto também era só dele, ou seja, o arguido Ivan nada adquiriu e nada ganhou. Não se trata seguramente de co-autoria, quanto muito de participação “mitigada”.” Isto é, o arguido Ivan defende não poder ser condenado como co-autor porque teve uma actuação muito menos gravosa do que a do arguido Tiago que se assumiu como o único dono do dinheiro necessário para a aquisição da cannabis apreendida e o único dono desse mesmo produto estupefaciente que veio a ser apreendido pelos dois agentes da P.S.P sendo que o arguido Ivan nada adquiriu e nada ganhou. Consequentemente, em resultado desta tese, sendo a sua participação de menor gravidade nunca poderia ser punido com uma pena de prisão de medida superior à do autor moral e material – o Tiago – como veio a suceder nestes autos. O M.P pelo contrário veio argumentar o seguinte: Entende o recorrente que a situação dada como provada na decisão recorrida não é de co-autoria mas de uma participação menos relevante, a justificar uma pena menos elevada para ele. Quid Juris? Acompanhamos na íntegra a posição do M.P Dispõe o artº 26º do C.P, com a epígrafe “Autoria” que “é punível como autor quem executar o facto, por si mesmo ou por intermédio de outrem ou tomar parte directa na sua execução, por acordo ou juntamente com outro ou outros e ainda quem, dolosamente, determinar outra pessoa à prática do facto, desde que haja execução ou começo da execução.” E face ao que ficou assente na matéria de facto provada, sem dúvida que a actuação do arguido Ivan integra uma participação a título de co-autoria por ter praticado actos essenciais para a concretização do objectivo por ambos pretendido que era a cedência a terceiros do produto estupefaciente (cannabis apreendida nestes autos) mediante o recebimento de contrapartidas económicas: é verdade que o dinheiro da aquisição era do Tiago mas foi o Ivan quem levou o arguido Tiago até junto do fornecedor do referido produto produtos estupefaciente (fornecedor que era conhecido dele e não do Tiago) e o acompanhou pessoalmente nessa deslocação, tendo sido também o arguido Ivan quem directamente intermediou no negócio, para consumar a aquisição. Naturalmente que sem essa sua intervenção, o arguido Tiago não poderia aceder ao produto e por isso não se diga como faz o arguido Ivan que “ele Ivan nada adquiriu”. Numa situação de co-autoria os agentes participantes não precisam de praticar todos os actos de execução necessários para o preenchimento do tipo de ilícito (não sendo assim necessário que o dinheiro para a aquisição da droga fosse do arguido Ivan na sua totalidade ou em parte) basta que a sua actuação seja considerada essencial à consumação do mesmo e neste caso, sem dúvida que a actuação do arguido Ivan foi essencial para que essa aquisição de cannabis destinada a ser comercializada se consumasse. Com efeito, o que se relata na acusação e foi considerado provado pelo Tribunal é uma situação de aquisição de produto estupefaciente (cannabis resina) levada a cabo por dois indivíduos, agindo em comunhão de esforços e vontades – estando por isso configurados todos os elementos susceptíveis de integrar aquilo que a lei designa por co-autoria no artº 26º do C.P. Na realidade, o crime de tráfico de estupefacientes, pode consumar-se através de uma multiplicidade de acções, não se exigindo nomeadamente que a aquisição de droga destinada a ser comercializada seja feita com dinheiros próprios do adquirente. E o que distingue a co-autoria da autoria imediata é precisamente o facto de havendo embora diferentes contributos causais de um determinado resultado final, levados a cabos por diferentes agentes, que actuam em conjugação de esforços e vontades, essas diferenças não obstarem à responsabilização dos diferentes comparticipantes como co-autores (por isso a co-autoria é mais perigosa para os agentes prevaricadores do que a autoria material), sempre e desde que esses contributos distintos desenvolvidos pelos vários comparticipantes se revelarem essenciais (ou causais do ponto de vista da causalidade adequada). O que importa na verdade é que todos esses contributos sejam essenciais para o resultado final ilícito que é querido por todos. Por outras palavras, é sabido que numa actuação de vários agentes em co-autoria, não se exige que cada um dos agentes comparticipantes pratique todos os factos integradores do crime, bastando que por acordo e conjuntamente com outro ou outros, tome parte imediata na execução do crime. E ao contrário do que defende o recorrente, tanto se toma parte na execução do facto ilícito, conduzindo alguém a um fornecedor de estupefacientes seu conhecido para que aquele possa ser abastecido de droga destinada em momento subsequente a ser cedida a terceiros mediante contrapartida económica, como quando se empresta dinheiro a alguém para que essa pessoa possa comprar droga destinada a ser comercializada com lucros ou quando se detém simplesmente droga, transportando-a ou ajudando a transporte de droga destinada a ser vendida a terceiros, com intuitos lucrativos. No caso presente os dois arguidos incluindo o recorrente, estavam inseridos na mesma dinâmica criminosa e animados pelo mesmo fim, que previamente planejaram, qual seja, o de adquirirem cannabis destinada a ser vendida a terceiros na respectiva área de residência, conforme o provado em 1.14, 1.16 e 1.18, Qualquer um deles, contribuiu causalmente de forma objectiva e subjectiva, para a produção dos factos típicos e ilícitos, através dos seus diferentes contributos parcelares. Um fornecendo o dinheiro para a aquisição e conduzindo a viatura automóvel onde se fizeram transportar (o Tiago) e outro levando o Tiago até junto do fornecedor do produto estupefaciente que ele (Ivan) conhecia e depois transportando ambos tal produto ilícito, no interior de uma viatura automóvel conduzida pela Tiago. Os dois arguidos actuaram de forma combinada, em conjugação de vontades e esforços e os dois arguidos através do seu contributo parcelares, criaram causalmente as condições para o êxito do crime de tráfico, que consumaram. Tem pois que se considerar, que, independentemente de a cannabis (resina) apreendida nos autos não ter sido adquirida com o dinheiro do arguido Ivan, essa aquisição só se consumou com êxito devido ao contributo dos dois arguidos para esse resultado, comunicando-se assim o resultado final ilícito a ambos. Como tal, pela aquisição do estupefaciente deverão responder os dois a título de autoria, por se integrar a sua conduta na previsão do artº 26º do C.P. Razão pela qual estes dois arguidos, foram condenados em 1ª instância como co-autores de um crime de tráfico de estupefacientes p.p no artº 21º do D.L 15/93 de 22.1 com referência à tabela I-C. Essa actuação do arguido Ivan acima descrita, foi assim tão essencial à produção do resultado típico pretendido por ambos os agentes - a aquisição da droga para posterior venda lucrativa a terceiros – como o foi a cedência do dinheiro necessário para a aquisição desse produto feita pelo arguido Tiago. Dúvidas não restaram para o Tribunal a quo, nem se colocam agora a este Tribunal superior, tal como consta da motivação do Acórdão recorrido, que o arguido ora recorrente deve ser responsabilizado como co-autor, porque participou na execução do crime de tráfico praticado em 17.10.2017, nos exactos termos que são descritos na matéria de facto desse Acórdão. Improcede assim também neste segmento o recurso do arguido. D) Da natureza da pena e a determinação da sua medida A questão da medida da pena concreta foi suscitada pelo arguido Ivan, o qual, vem ainda pedir a suspensão da execução da pena de prisão que lhes for aplicada. Quanto à escolha e determinação da medida da pena foi deliberado o seguinte no Tribunal “a quo”: “Ao crime de tráfico de estupefacientes do artigo 21º do Dec. Lei nº 15/93, de 22.01, corresponde a moldura de prisão de 4 a 12 anos. Nos termos do disposto no artigo 75º, nº 1, do Código Penal, “É punido como reincidente quem (...) cometer um crime doloso que deva ser punido com prisão efetiva superior a 6 meses, depois de ter sido condenado por sentença transitada em julgado em pena de prisão efetiva superior a 6 meses por outro crime doloso, se, de acordo com as circunstâncias do caso, o agente for de censurar por a condenação ou as condenações anteriores não lhe terem servido de suficiente advertência contra o crime”. Em conformidade com o nº 2 do mesmo artigo, a aplicabilidade da norma restringe-se aos casos em que não tenha decorrido mais de cinco anos entre a prática do primeiro desses crimes e do crime seguinte, não se computando nesse prazo o tempo durante o qual o agente tenha cumprido medida processual, pena ou medida de segurança privativas da liberdade. Vista a matéria de facto provada nos autos, constata-se não ter sido ultrapassado o lapso temporal previsto no nº 2 do artigo 75º do Código Penal. Verificam-se, por outro lado, todos os requisitos previstos no nº 1 do citado artigo 75º do Código Penal. A consequência da punição do arguido Ivan ... como reincidente consiste na agravação da respetiva moldura penal, elevando-se o limite mínimo da pena de um terço (sem que tal agravação possa exceder a medida da pena mais grave aplicada nas condenações anteriores) – cfr. artigo 76º, nº 1, do Código Penal. Assim, devendo o arguido ser condenado pelo crime de tráfico de estupefacientes como reincidente, deverá considerar-se que a moldura penal abstrata referente a esse crime terá como mínimo 5 anos e 4 meses de prisão. **** Importa ter presentes os critérios que presidem à determinação da medida das penas, vertidos nos artigos 40º, 70º e 71º do Código Penal, dos quais se extrai que as finalidades das penas são a proteção dos bens jurídicos violados, por um lado, e por outro, a reintegração do agente na sociedade, sendo a culpa o fundamento para a concretização da pena que, em caso algum pode ultrapassar a medida daquela. Encontradas as molduras penais abstratas, importa determinar o “quantum” da sanção – é o art. 71º do Código Penal que trata da sua determinação, e de acordo com tal preceito legal a medida da pena terá por base e será proporcional à medida da culpa concreta do agente, tendo ainda em conta as exigências de prevenção de futuros crimes, a prevenção especial, o grau de ilicitude do facto, o modo de execução do crime, as consequências do mesmo, a intensidade do dolo, as condições pessoais do arguido, os sentimentos que demonstrou na prática do ato criminoso, a personalidade por ele evidenciada, e as circunstâncias anteriores e posteriores aos factos. No caso dos autos, os arguidos agiram representando os factos que preenchem o tipo legal de crime de tráfico de estupefacientes e com a intenção de os realizar – agiram com dolo direto. A gravidade dos factos praticados, ponderando o vasto âmbito de condutas abarcadas pelo tipo legal de crime, não é elevada, devendo considerar-se que dentro das respetivas molduras aplicáveis, se queda no intervalo do primeiro quarto, maxime atenta a qualidade do produto estupefaciente em causa e a circunstância de não ter chegado a iniciar-se a sua comercialização. Ao nível da prevenção geral há que ponderar a circunstância de o crime de tráfico de estupefacientes ser sempre causador de grande alarme e reprovação social, quer porque põe em causa a saúde dos consumidores, quer pela circunstância de ser um contributo para a proliferação do flagelo da droga, com os custos sociais e económicos que lhe estão associados e são por demais conhecidos. Tal fenómeno é, consabidamente, gerador de inúmeros crimes contra o património, pois que, causando o uso de estupefacientes dependência, origina a necessidade de obtenção de meios por parte dos consumidores para poderem adquirir o produto de que necessitam para alimentar a sua toxicodependência. Ao nível da prevenção especial há a considerar a conduta dos arguidos, anterior e posterior à data da prática dos factos, a sua situação familiar, social e económica e as respetivas habilitações. O arguido Ivan ... não tem outros antecedentes criminais para além da condenação que determinou a sua punição como reincidente. Por via dessa condenação sofreu a aplicação de pena de prisão efetiva. É manifesta, porém, a sua falta de preparação para manter uma conduta lícita, não se mostrando facilmente permeável às advertências feitas. O arguido revela um percurso profissional instável e irregular, na sequência de um percurso escolar muito deficitário. Tem beneficiado de apoio familiar. O arguido Tiago ... não tem antecedentes criminais. Revelou arrependimento sincero e profundo, tendo admitido a prática dos factos dados como provados, contribuindo de modo muito relevante com o Tribunal para o apuramento da verdade. O arguido Tiago revela um percurso profissional sólido e uma integração familiar e social normal e adequada. Tudo ponderado, mostra-se adequada a fixação das penalidades concretas a aplicar nos seguintes termos: - ao arguido Ivan ... - 6 (seis) anos de prisão; - ao arguido Tiago ... - 5 (cinco) anos de prisão. Em resumo e recapitulando a motivações do arguido: Entende o recorrente Ivan que a pena de 6 anos de prisão efectiva em que foi condenado pelo crime de tráfico de estupefacientes, deverá ser alterada, diminuída e suspensa na sua execução, por ser essa pena manifestamente exagerada, desproporcional e desadequada, atendendo ao grau de ilicitude da sua conduta - alega que a sua concreta participação que é muito menos grave do que a participação do arguido Tiago, não podendo assim ser penalizado com pena mais grave do que o Tiago. Por último, pugna também pela suspensão da execução da pena de prisão que lhe vier a ser aplicada, após redução dessa pena, impugnando também a existência da circunstância agravante da reincidência. Alega assim em resumo nas suas conclusões (com sublinhados nossos): “Recorde-se a versão apresentada pelo arguido e não rebatida: Sai do estabelecimento prisional há 1 ano; sou mecânico, vivo com uma senhora que é taxista e eu ajudo na manutenção dos carros. Tenho uma filha com 9 anos. O acórdão recorrido faz ainda uma errada qualificação ou distinção entre co-autoria e participação com manifesto prejuízo para o arguido e ora Recorrente na medida em que aplicou uma pena manifestamente inferior ao autor moral e material e mais gravosa ao participante quando confessadamente o arguido Tiago se declara o único dono do dinheiro e do produto e perguntado disse que o arguido Ivan nada iria ganhar em nada ganhou. Em suma, com tal desigualdade de tratamento em nada se dá cumprimento nem à prevenção geral nem à prevenção especial neste tipo legal de crime. Nesta conformidade, ao abrigo do disposto o artigo 50°, n° 1 deve ordenar-se a suspensão da execução da pena de prisão aplicada a este arguido, pelo período mínimo. (...) Atendendo à sua inserção sócio - familiar, julga-se possível formular um prognóstico favorável relativamente à sua conduta futura, devendo o Tribunal ter optado pela suspensão da aplicação da pena, sendo certo que nunca lhe poderia ser aplicada uma pena superior à que foi aplicada ao autor moral e material do ilícito, ou seja, com base no princípio da proibição de discriminação que é corolário da igualdade de tratamento ao arguido não poderia ser aplicada uma pena superior a 5 anos de prisão.” O M.P na sua resposta ao recurso veio pugnar pela manutenção do decidido em matéria de regime sancionatório e ainda que mesmo que se optasse por uma redução da medida da pena de prisão concreta para um ponto inferior a 5 anos, veio sustentar que a suspensão da sua execução seria desaconselhada por não ser possível fazer um juízo de prognose favorável ao arguido no caso presente. Quid Juris? Também aqui não assiste razão ao arguido. Vejamos. Dispõe o artº 21º/1 do D.L nº Lei 15/93 de 22/1: “Quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no artº 40º, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos”. Nos termos do artº 40º do C Penal, as finalidades das penas são a protecção de bens jurídicos e a socialização do agente do crime, constituindo a culpa o seu limite. Ou seja, é estabelecido, no que respeita à função e fins das penas, um modelo de prevenção[2], que exclui a culpa como seu fundamento. E é dentro deste quadro que devem ser interpretados e aplicados os critérios de determinação da medida concreta da pena inscritos no artº 71º do CPenal, os quais «devem contribuir tanto para co-determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (as circunstâncias pessoais do agente, a idade, a confissão, o arrependimento), ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente”. Os tráficos de estupefacientes são comunitariamente sentidos como actividades de largo espectro de afectação de valores sociais fundamentais, e de intensos riscos para bens jurídicos estruturantes, e cuja desconsideração perturba a própria coesão social, não só pelo enorme perigo e dano para a saúde dos consumidores de produtos estupefacientes, como por todo o cortejo de fracturas sociais que lhes anda associado, quer nas famílias, quer decorrente de infracções concomitantes, quer ainda pela corrosão das economias legais com os ganhos ilícitos resultantes das actividades de tráfico. A dimensão dos riscos e das consequências faz surgir, neste domínio, uma particular saliência das finalidades de prevenção geral – prevenção de integração para recomposição dos valores afectados e para a afirmação comunitária da validade das normas que, punindo as actividades de tráfico, protegem tais valores. Na determinação da pena concreta a aplicar recorre-se ao critério global previsto no nº 1 do artigo 71º do Código Penal, o qual dispõe "a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção". Pelo que a determinação da medida da pena é feita em função da culpa e da prevenção – especial e geral positiva ou de integração –, concretizadas a partir da eleição dos elementos para elas relevantes. A culpa e a prevenção "são os dois termos do binómio", através dos quais será construído o "modelo de medida da pena". Com tal desiderato no horizonte, importa definir as funções e a inter-relação que a culpa e a prevenção desempenham em sede da medida da pena. A culpa estabelece o máximo de pena concreta ainda compatível com as exigências de preservação da dignidade da pessoa e de garantia do livre desenvolvimento da sua personalidade. A prevenção geral positiva traduz a necessidade comunitária da punição do caso concreto e, consequentemente, à realização in casu das finalidades da pena. E prevenção especial consubstancia as necessidades inerentes à ressocialização do delinquente. Na determinação do substrato da medida da pena, isto é, da totalidade das circunstâncias do complexo integral do facto (factores de medida da pena) que relevam para a culpa e a prevenção (cfr., artigo 71º n.º 1 do Código Penal), há que atender a "todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele" (artigo 71.º n.º 2 do Código Penal). Daqui, decorre a construção do seguinte modelo: dentro dos limites consentidos pela prevenção geral positiva ou de integração que se traduz na tutela das expectativas da comunidade na manutenção da validade da norma violada – entre o ponto óptimo – que nunca deve ultrapassar o limite máximo de pena adequado à culpa, mas que não tem obrigatoriamente com ele coincidir – e o ponto ainda comunitariamente suportável de medida da tutela dos bens jurídicos podem e devem actuar pontos de vista de prevenção especial de socialização, sendo eles que vão determinar em último termo, a medida da pena. Exposto o raciocínio e o modelo imanente à determinação da medida da pena, considerando o enquadramento jurídico-penal efectuado, impõe-se a determinação concreta da pena. Relevam por via da culpa, para efeitos de medida da pena: no sentido da agravação da ilicitude, contribui o grau de conhecimento e a intensidade da vontade no dolo: dolo directo, e a quantidade do produto estupefaciente que foi apreendido ao arguido. Ponderados todos estes factores, deve estabelecer-se neste caso, o grau de culpa acima do limite mínimo da moldura abstracta para todos os arguidos. Relevam ainda por via da prevenção especial para efeito de medida da pena: - a integração familiar e social; - os hábitos de trabalho; - os antecedentes criminais. Considera-se por isso não assistir razão ao recorrente, porquanto, face á matéria de facto apurada e como resulta da simples leitura do texto do acórdão recorrido os Srs Juízes do Tribunal a quo fizeram uma correcta apreciação e valoração da prova, bem como aplicação do Direito (estando sem dúvida verificados todos os requisitos da reincidência previstos no artº 75º do C.P, quanto ao arguido Ivan ... face ao provado nos pontos 1.19., 1.20, 1.21, e 1.22) não merecendo assim qualquer censura a fixação e graduação da pena concreta, aplicada aos dois arguidos. Na fixação da medida concreta da pena, foram em nosso entender devidamente valorados na 1ª instância, a intensidade do dolo e da ilicitude manifestada na execução dos factos, os respectivos antecedentes criminais, a sua inserção social e profissional. Ponderando a moldura legal abstracta acima referida para o crime de tráfico em causa, nenhuma censura merece o juízo crítico do Tribunal a quo, o qual na escolha e graduação da pena concreta a aplicar ao arguido ora recorrente teve em atenção todos os factores que devem por lei, ser ponderados quer no sentido favorável ao arguido, quer no sentido desfavorável a este. Assim sendo, podemos concluir que a pena concreta aplicada na 1ª instância teve em atenção não só as especiais necessidades de prevenção, quer geral quer especial bem como todos os factores que nos termos legais devem ser ponderados, alguns dos quais foram mencionados na motivação do recurso do arguido. Nomeadamente, a natureza e quantidade do produto estupefaciente que os dois arguidos detinham dentro da viatura automóvel conduzida pelo arguido Tiago (cerca de um kilo de cannabis resina), o dolo directo, o concreto circunstancialismo em que a detenção e apreensão da droga foi observada e a apreensão efectuada, bem como o facto de se ter tratado de um único acto de tráfico localizado no tempo e por fim a conduta do arguido em julgamento e a respectiva situação de vida pessoal, que inclui a ponderação acerca da existência dos antecedentes criminais até ao se enquadramento social, familiar e profissional deste arguido. Tudo visto, perante uma moldura legal abstracta que varia para o arguido Ivan ... entre um mínimo de 5 anos e 4 meses e um máximo de 12 anos - uma vez que como reincidente fica sujeito ao agravamento da respectiva moldura legal abstracta e o crime de tráfico por ele praticado passa a ser punido com uma moldura abstracta agravada de 1/3 no seu limite mínimo (artº 76º/1 do C.P), a pena concreta encontrada de 6 anos de prisão para o tráfico praticado em co-autoria por este arguido, mostra-se em nosso entender perfeitamente ajustada e equilibrada e como tal será mantida, nada havendo a alterar (sendo certo que a mesma se situa muito perto do limite mínimo legalmente previsto e que anteriormente no processo nº 2180/12.3TDLSB da Comarca de Lisboa por decisão transitada em julgado em 27.11.2013 o arguido já sofrera uma pena de 5 anos de prisão efectiva que cumpriu por crime de idêntica natureza) . E quanto à pretensão da suspensão da execução da pena? Mantida inalterada nos termos acima expostos a medida da pena concreta de prisão aplicada pelo Tribunal a quo ao arguido Ivan, então naturalmente que fica arredada a ponderação da aplicação de outros regimes alternativos à pena de prisão efectiva, nomeadamente o regime da suspensão da execução da pena nos termos do artº 50º/2/4 e 5 do C.P (por se mostrar ultrapassado o limite máximo da pena de prisão aplicada, em que é admissível o recurso a tal regime, pois constitui condição sine qua non para a sua aplicação que esteja em causa pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos). Considera-se pois que no acórdão recorrido os Srs Juízes do Tribunal a quo fizeram uma correcta apreciação e valoração da prova, bem como aplicação do direito, não nos merecendo qualquer censura quer a graduação e medida da pena concreta aplicada ao recorrente quer a opção pela efectividade da mesma. Pelo exposto, porque nada encontramos que nos mereça censura no Acórdão ora recorrido, nega-se integralmente provimento ao recurso do arguido nesta parte (quanto à escolha da natureza da pena e determinação da sua medida). Improcede, assim totalmente, o recurso interposto pelo arguido supra identificado. V. Decisão Pelo exposto, acordam os Juízes nesta Relação de Lisboa, em: a) Julgar não provido o recurso interposto pelo arguido Ivan ..., mantendo-se integralmente o decidido em 1ª instância. b) Custas a cargo do arguido recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UCs Lisboa, 3 de Outubro de 2018 Processado e revisto pela relatora, a primeira signatária, que assina a final (artº 94º, nº 2 do CPP). Ana Paula Grandvaux Barbosa Maria Perquilhas [1]- Cfr. Tribunal Constitucional in www.tribunalconstitucional.pt/acordaos. [2] De acordo com o qual a pena é determinada em função das necessidades de protecção de bens jurídicos e não de retribuição: a pena deve ser encontrada numa moldura de prevenção geral positiva e concretamente fixada em função das exigências de prevenção especial ou de socialização. |