Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | RENATA LINHARES DE CASTRO | ||
Descritores: | INSOLVÊNCIA GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS PENHOR TRABALHADOR SEGURANÇA SOCIAL AUTORIDADE TRIBUTÁRIA | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 07/07/2022 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | PROCEDENTE | ||
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Sumário: | I – Na graduação à qual concorram, não apenas um crédito garantido por penhor e um crédito da Segurança Social, mas também um crédito reclamado por trabalhador e créditos reclamados pela Autoridade Tributária (IRS e IRC), sendo que estes três últimos gozam, todos eles, de privilégio creditório mobiliário geral, verifica-se uma impossibilidade de conciliação entre todas as normas envolvidas, já que os créditos laborais e do Estado deverão ser graduados com preferência ao crédito da Segurança Social, mas já não com preferência ao crédito pignoratício, enquanto este último prefere aos créditos laborais e do Estado mas não ao da segurança social – artigos 666.º, n.º 1 e 749.º, n.º 1 do Código Civil, artigo 333.º, n.º 2, al. a) do Código do Trabalho, artigo 204.º, n.ºs 1 e 2 do CRCSPSS, artigos 736.º e 747.º, n.º 1, al. a) do Código Civil, artigo 111.º do CIRS e artigo 116.º do CIRC. II – Perante tal conflito, impõe-se efectuar uma interpretação restritiva do artigo 204.º, n.º 2 CRCSPSS no sentido de a prioridade nele imposta ter de ceder, uma vez que que, enquanto verdadeiro direito real de garantia, o penhor não poderá ser postergado pelo crédito do trabalhador e pelos créditos referentes a impostos, o que, para além de violar as expectativas jurídicas do credor pignoratício, não foi a intenção do Legislador, nem tem qualquer assento no texto da lei, como decorre, aliás, do estatuído no artigo 749.º, n.º 1 do CC. III – Assim, a graduação para efeitos de pagamento pelo produto do bem empenhado, dever-se-á efectuar pela seguinte ordem: 1.º crédito pignoratício, 2.º créditos laborais, 3.º créditos da Autoridade Tributária (IRS e IRC); e 4.º crédito da Segurança Social. (Pelo relator) | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam na Secção do Comércio do Tribunal da Relação de Lisboa. I - RELATÓRIO Por sentença proferida em 20/05/2021, já transitada em julgado, foi declarada a insolvência da sociedade “D…, L.da”. Já no apenso referente à reclamação de créditos foi proferida sentença pela qual se graduaram os créditos reconhecidos e verificados nos seguintes termos: “(…) C) Gradua os créditos, atenta a natureza dos bens apreendidos, nos seguintes termos: 1. Pelo produto da venda das ações da L … apreendidas nos autos: - em primeiro lugar haverá que dar pagamento aos créditos do Instituto da Segurança Social no montante de €847,70 (cujo privilégio mobiliário de que gozam prevalece sobre qualquer penhor, nos termos do art.º 204º, n.º 2, da Lei n.º 110/2009, de 16.09); - em segundo lugar haverá que dar pagamento aos créditos da L…, S.A, no montante de €23.191,36, cujo pagamento se mostra garantido por penhor sobre tais ações (art.º 666º, n.º 1, do Código Civil); - em terceiro lugar haverá que dar pagamento aos créditos laborais de AM, no montante de €3.136,76 (nos termos previstos no art.º 333º, n.º 2, al. a), do Código do Trabalho, e 747º, n.º 1, do Código Civil); - em quarto lugar deverão ser pagos os créditos da Autoridade Tributária, no montante de €2.357,46, referentes a IRS e IRC constituído nos 12 meses anteriores à data do início do processo de insolvência (nos termos do art.º 116º do CIRC, e 736º do Código Civil); - em quinto lugar deverão ser pagos, na proporção respetiva, os seguintes créditos com natureza comum: (…) 2. Pelo produto da venda dos demais bens apreendidos e a apreender nos autos - em primeiro lugar deverão ser pagos os créditos laborais de AM (nos termos previstos no art.º 333º, n.º 2, al. a), do Código do Trabalho, e 747º, n.º 1, do Código Civil); - em segundo lugar deverão ser pagos, na proporção respetiva, os créditos da Autoridade Tributária e do Instituto da Segurança Social, na proporção respetiva (nos termos do art.º 116º do CIRC, e 736º e 747º, n.º 1, do Código Civil); - em terceiro lugar deverão ser pagos os créditos com natureza comum, na proporção respetiva. * As dívidas da massa insolvente serão pagas nos termos do art.º 172º, n.ºs 1 e 2, do CIRE. (…)” Inconformada com tal decisão, dela interpôs RECURSO a credora L…SA, formulando, para tanto, as seguintes CONCLUSÕES: “A. A ora Recorrente apresentou oportunamente reclamação de créditos dirigida ao Ilustre Administrador de Insolvência, concluindo por reclamar créditos no montante global de €23.191,36 (vinte e três mil cento e noventa e um euros e trinta e seis cêntimos), como Crédito garantido por penhor de ações. B. Com efeito, a Recorrente celebrou com a Insolvente D …LDA. dois contratos a regular os termos e condições em que a Reclamante prestou, em nome e a pedido daquela, duas garantias autónomas a favor do Banco Santander Totta, S.A. C. Os contratos supra mencionados e as obrigações a si inerentes, encontram-se garantidas por penhor sobre 680 ações representativas do capital da L …SA., aqui Recorrente, no valor nominal de € 1,00 (um euro) cada. D. Ações que foram apreendidas para a massa insolvente e garantem, como tal, os créditos da L …SA. E. Sucede que, a douta sentença de graduação incorre em lapso manifesto, graduando, relativamente às aludidas ações, para ser pago em primeiro lugar o crédito do Instituto da Segurança Social, IP e só depois o crédito da L…SA, F. Quando, na verdade, deveriam ter sido graduados, relativamente às ações representativas do capital da L…SA, em primeiro lugar os créditos da ora Recorrente L…SA. G. Ora, o penhor é uma garantia real que confere ao credor o direito à satisfação do seu crédito, bem como dos juros, se os houver, com preferência sobre os demais credores, pelo valor de certa coisa móvel, ou pelo valor de créditos ou outros direitos não suscetíveis de hipoteca, pertencentes ao devedor ou a terceiro (art. 666.º, n.º 1 do CC). H. O penhor de valores mobiliários constitui-se pelo registo na conta do titular dos valores mobiliários, com indicação da quantidade de valores mobiliários dados em penhor, da obrigação garantida e da identificação do beneficiário (art. 81.º, n.º 1 do Código dos Valores Mobiliários). I. No que à graduação de créditos concerne, o penhor, se constituído validamente, como in casu, e enquanto garantia real, é oponível erga omnes, preferindo aos privilégios mobiliários gerais. J. Por conseguinte, os créditos com aqueles privilégios não podem ser, quanto aos bens empenhados, graduados antes do crédito pignoratício, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 666.º, 749.º e 822.º, todos do Código Civil. K. Os privilégios gerais, não constituindo verdadeiros direitos reais de garantia (de gozo, de aquisição ou de preferência) sobre coisa certa e determinada, devem ceder perante os direitos reais de garantia de terceiros, individualizados sobre bens concretos. L. Esta conclusão infere-se da norma estabelecida no n.º 1, do artigo 749.º do Código Civil, segundo a qual o privilégio geral não vale contra terceiros sempre que estes terceiros sejam titulares de direitos que sejam oponíveis ao exequente. M. Ora, são oponíveis ao exequente, nos termos do já referido artigo 822.º do Código Civil, os direitos de garantia real anteriores à penhora, como é o caso do penhor ou da hipoteca. N. Tem-se pronunciado recorrentemente a jurisprudência quanto a esta matéria, desde logo, o STJ veio pronunciar-se sobre a questão, no sentido de defender a prevalência dos créditos garantidos por penhor sobre os créditos de impostos e da Segurança Social, afirmando que: ”Quanto ao lugar da graduação desses créditos (os dos trabalhadores e os do Estado por impostos), no caso de existir penhor com garantia sobre determinados móveis, decorre do art. 666.º do CC que o penhor confere ao credor preferência no pagamento sobre os demais credores” (Acórdão de 10.12.2009, proc. 864/07.7TBMGR-I.C1.S1; cfr. também acórdãos do STJ de 30.05.2006, proc. 06A1449 e de 08.06.2006, proc. 06B998, ambos disponíveis em www.dgsi.pt). O. Entendimento aquele do STJ que é também perfilhado pelo Il. Conselheiro Salvador da Costa, na medida em que defende que "no confronto do direito de crédito garantido por privilégio mobiliário geral (leia-se IVA, IRS e IRC) e do direito de crédito garantido por penhor ou retenção, são estes que prevalecem na ordem de graduação" (in "O Concurso de Credores, 2015, 58 Edição, pág. 239, Almedina). P. De igual modo, Luís M. Martins, in “Processo de Insolvência”, 2.ª edição, pág. 172, defende que “o credor pignoratício tem preferência absoluta nos termos do artigo 666.º do CC (…)”. Q. E deveria, como tal, ter sido graduado em primeiro lugar, em exclusivo, os créditos da Recorrente para serem pagos pelo produto da venda dos valores mobiliários apreendidos. R. Também ao nível deste douto Tribunal tem sido esse o entendimento recorrentemente adotado – veja-se, a título de exemplo, o recente Ac. TRL 291/2019, proc. 6486/17.7T8FNC-E.L1. S. Não tendo entendido e decidido conforme exposto, a sentença recorrida fez incorreta interpretação e aplicação ao caso das pertinentes disposições legais, designadamente dos artigos 47.º, 140.º, n.º 2 e 174.º do CIRE, 666.º, 749.º e 822.º do Código Civil. T. Pelo que, no provimento do presente recurso, deve revogar-se a sentença recorrida e, em sua substituição, ser proferida outra que gradue, relativamente às ações representativas do capital social da L…SA apreendidas nos autos, em primeiro lugar os créditos reclamados pela ora Recorrente, atendendo ao penhor constituído. Conclui pela procedência do recurso e revogação da sentença de graduação recorrida, a qual deverá ser substituída por outra que proceda “à correta graduação dos créditos da Recorrente nos termos acima indicados, nomeadamente, reconhecendo a prioridade do crédito garantido por penhor da Recorrente para ser pago em 1.º lugar pelo produto da venda das 680 ações apreendidas, tudo com as demais consequências legais”. Não foram apresentadas contra-alegações. O recurso foi admitido pelo tribunal a quo e subiu como de apelação, imediatamente, nos próprios autos e com efeito devolutivo. * Colhidos os vistos, cumpre decidir. * II – DO OBJECTO DO RECURSO O objecto do recurso é definido pelas conclusões no mesmo formuladas, ressalvadas as questões que forem de conhecimento oficioso e que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, sem prejuízo de o tribunal ad quem não estar limitado pela iniciativa das partes - artigos 5.º, n.º 3, 608.º, n.º 2, ex vi artigo 663.º, n.º 2, 635.º, n.ºs 4, e 639.º, n.ºs 1 e 2, todos do CPC. Assim, a questão a decidir consiste em saber se o crédito da recorrente, garantido por penhor incidente sobre acções nominativas, deve ou não ficar graduado à frente do crédito da Segurança Social. * III – FUNDAMENTAÇÃO Fundamentação de facto Os factos e ocorrências processuais relevantes para a decisão do presente recurso são os que resultam do relatório supra enunciado, o qual, por brevidade, se dá aqui por reproduzido. * Fundamentação de direito A recorrente insurge-se contra a decisão do tribunal a quo a qual, no que concerne ao produto da venda das acções representativas do capital da L…SA (apreendidas nos autos), graduou em primeiro lugar o crédito da Segurança Social e, só depois, o crédito da recorrente (estando este último garantido por penhor). Considerando que, quanto a esta matéria, já nos pronunciamos anteriormente, reproduzir-se-á, no essencial, a fundamentação de direito já defendida no acórdão desta Secção proferido em 09/11/2021.[1] O CIRE classifica os créditos sobre a insolvência como sendo garantidos e privilegiados (sendo os primeiros os que beneficiam de garantias reais, incluindo os privilégios creditórios especiais, e os segundos os que beneficiam de privilégios creditórios gerais sobre bens integrantes da massa insolvente, até ao montante correspondente ao valor dos bens objecto das garantias ou dos privilégios gerais, tendo em conta as eventuais onerações prevalecentes), subordinados (os créditos enumerados no artigo 48.º, excepto quando beneficiem de privilégios creditórios, gerais ou especiais, ou de hipotecas legais, que não se extingam por efeito da declaração de insolvência) ou comuns (os demais créditos) – artigo 47.º, n.º 4, als. a), b) e c). Já no que concerne à graduação dos créditos reclamados, prescreve no n.º 2 do seu artigo 140.º do CIRE que a mesma é geral para os bens da massa insolvente e especial para os bens associados a direitos reais de garantia e privilégios creditórios. Ou seja, enquanto a graduação geral respeita aos créditos cuja garantia se reporta à generalidade dos bens da massa insolvente, a graduação especial reporta-se aos créditos garantidos por direito real de garantia ou privilégio creditório geral que onerem alguns dos bens existentes na massa insolvente. Após terem sido pagas as dívidas da massa insolvente, dar-se-á pagamento aos créditos garantidos pelo produto da venda dos bens onerados com a garantia real e, após estes, aos créditos privilegiados, sendo estes últimos pagos “à custa dos bens não afectos a garantias reais prevalecentes” – cfr. artigos 172.º, 174.º e 175.º do CIRE. Uma vez que a regra é a de os créditos garantidos por direitos reais de garantia beneficiarem de preferência de pagamento sobre os bens integrantes da massa insolvente, importa aferir se a mesma comporta alguma excepção, designadamente em virtude da prevalência do privilégio mobiliário geral dos créditos da Segurança Social sobre o penhor (decorrente do n.º 2 do artigo 204.º da Lei n.º 110/2009, de 16/09). No presente caso, estando reconhecido que o crédito da apelante se encontra garantido por penhor – artigo 666.º do Código Civil (CC) – e que o crédito do Instituto da Segurança Social, IP beneficia de privilégio mobiliário geral - artigo 204.º, n.º 1, do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social (CRCSPSS), aprovado pela Lei n.º 110/2009 de 16/09 -, não se poderá esquecer que os mesmos não são os únicos créditos objecto da graduação. Entre os demais créditos a graduar pelo produto das acções apreendidas, encontra-se, ainda, o reclamado pelo trabalhador AM e o reclamado pela Autoridade Tributária (decorrente de IRS e IRC), sendo que ambos beneficiam de privilégio mobiliário geral – artigo 333.º n.º 1, al. a) do Código do Trabalho (CT) e artigo 737.º, n.º 1, al. d) do CC, no primeiro caso; e artigo 111.º do CIRS, artigo 116.º do CIRC e artigo 736.º do CC, no segundo caso. Tanto o penhor, como os privilégios mobiliários gerais, concedem aos credores o direito a serem pagos com preferência aos demais, pelo que representam uma derrogação do princípio da igualdade entre credores plasmado no artigo 604.º, n.º 1, do CC (ambos concedem prioridade na satisfação de determinados créditos dos quais são acessórios face aos demais credores comuns).[2] A noção de penhor é-nos facultada pelo n.º 1 do artigo 666.º do CC, segundo o qual “O penhor confere ao credor o direito à satisfação do seu crédito, bem como dos juros, se os houver, com preferência sobre os demais credores, pelo valor de certa coisa móvel, ou pelo valor de créditos ou outros direitos não susceptíveis de hipoteca, pertencentes ao devedor ou a terceiro”. Já o artigo 675.º, n.º 1 do mesmo código, dispõe que “Vencida a obrigação, adquire o credor o direito de se pagar pelo produto da venda executiva da coisa empenhada, (…)”. Trata-se de um verdadeiro direito real de garantia, legalmente previsto, e que se justifica pela especial relação existente entre o crédito a que respeita e o bem sobre o qual recai a garantia (tal bem fica especificamente afecto ao cumprimento da obrigação por ele garantida). Pode ser constituído por vontade das partes ou por disposição legal e goza do direito de sequela (faculdade conferida ao titular de fazer valer o seu direito sobre a coisa, onde quer que esta se encontre), tendo eficácia erga omnes.[3] Já a noção de privilégio creditório consta do artigo 733.º do CC, entendendo-se por tal “a faculdade que a lei, em atenção à causa do crédito, concede a certos credores, independentemente do registo, de serem pagos com preferência a outros”. Os privilégios creditórios podem ser mobiliários ou imobiliários. Os mobiliários subdividem-se, ainda, em gerais ou especiais, consoante abranjam o valor de todos os bens móveis existentes no património do devedor, à data da penhora ou de acto equivalente (sendo com o referido acto que adquirem eficácia e se determinam quais os bens abrangidos), ou só o valor de determinados bens móveis – artigo 735.º, n.ºs 1 e 2 do mesmo código. Ao contrário do penhor, os privilégios creditórios mobiliários gerais (como os aqui em causa) não constituem verdadeiros direitos reais de garantia, antes assumindo natureza meramente obrigacional (já que não se constituem sobre coisas, mas antes sobre obrigações, razão pela qual não beneficiam do direito de sequela).[4] Apenas podem ser constituídos por previsão legal (e já não por vontade das partes, ou seja, por negócio) e a preferência de pagamento pelos mesmos concedida é atribuída em razão da causa do crédito ou da pessoa do credor. Não pressupõem, pois, qualquer relação entre o crédito e a coisa garante. Tal como decorre do texto do citado artigo 733.º, os privilégios creditórios gerais não estão sujeitos a registo (publicitação) o que, não raras vezes, gera conflitos com direitos de terceiros. Para ultrapassar tal potencial conflitualidade, rege o artigo 749.º, n.º 1 do CC que “O privilégio geral não vale contra terceiros, titulares de direitos que, recaindo sobre as coisas abrangidas pelo privilégio, sejam oponíveis ao exequente”. Daqui decorre que, perante um direito real de gozo ou um direito real de garantia que se tenha constituído em data anterior àquela na qual se constituiu o crédito privilegiado, aquele prevalece sobre a preferência de pagamento atribuída pelo privilégio.[5] Já o n.º 2 deste artigo 749.º dispõe que compete às leis de processo estabelecer os limites ao objecto e à oponibilidade do privilégio geral ao exequente e à “massa falida”, bem como os casos em que este não é invocável ou se extingue na execução ou perante a declaração da “falência”.[6] Se assim é, face à regra da inoponibilidade consagrado pelo n.º 1 do artigo 749.º do CC, o crédito garantido por penhor, em princípio, prevalece sobre os privilégios mobiliários gerais. E dizemos em princípio porque situações existem em que a aplicação dessa regra é questionada, designadamente quando concorrem, numa mesma graduação, créditos garantidos por penhor, créditos laborais, créditos do Estado e créditos da segurança social (como aqui sucede). Concretizando: O privilégio mobiliário geral de que beneficiam os créditos laborais resulta do artigo 333.º, n.º 1, al. a) do CT - “Os créditos do trabalhador emergentes de contrato de trabalho, ou da sua violação ou cessação gozam dos seguintes privilégios creditórios: a) Privilégio mobiliário geral; (…)” -, sendo que também a al. d) do n.º 1 do artigo 737.º do CC assim o refere – “Gozam de privilégio geral sobre os móveis (…) Os créditos emergentes do contrato de trabalho, ou da violação ou cessação deste contrato, pertencentes ao trabalhador e relativos aos últimos seis meses”. Já segundo a al. a) do n.º 2 do primeiro destes artigos, “A graduação dos créditos faz-se pela ordem seguinte: a) O crédito com privilégio mobiliário geral é graduado antes de crédito referido no n.º 1 do artigo 747.º do Código Civil; (…)”. Ora, este artigo 747.º alude na sua alínea a) aos “créditos por impostos, pagando-se em primeiro lugar o Estado e só depois as autarquias locais”. No que respeita ao crédito devido a título de IRS, veja-se o artigo 111.º da Lei n.º 82.º-E/2014, de 31/12 – “Para pagamento do IRS relativo aos três últimos anos, a Fazenda Pública goza de privilégio mobiliário geral e privilégio imobiliário sobre os bens existentes no património do sujeito passivo à data da penhora ou outro ato equivalente” – e, no que concerne ao crédito devido a título de IRC, veja-se o artigo 116.º da Lei n.º 2/2014, de 16/01 – “Para pagamento do IRC relativo aos três últimos anos, a Fazenda Pública goza de privilégio mobiliário geral e privilégio imobiliário sobre os bens existentes no património do sujeito passivo à data da penhora ou outro ato equivalente.”.[7] Por seu turno, no que concerne aos créditos da Segurança Social, dispõe o artigo 204.º, n.º 1 do CRCSPSS que “Os créditos da segurança social por contribuições, quotizações e respectivos juros de mora gozam de privilégio mobiliário geral, graduando-se nos termos referidos na alínea a) do n.º 1 do artigo 747.º do Código Civil.” Contudo, no n.º 2 do mesmo artigo 204.º consigna-se expressamente que “Este privilégio prevalece sobre qualquer penhor, ainda que de constituição anterior.”. Esta prioridade veio, então, criar um desvio/excepção à regra plasmada no artigo 749.º, n.º 1 do CC, sendo que já assim se previa no anterior regime legal – cfr. artigo 10.º, n.º 2 do Dec. Lei n.º 103/80 de 09/05 (a redacção deste artigo apenas divergia da actual redacção do artigo 204.º, n.º 2 por então se consignar que os créditos seriam graduados “após” os referidos na al. a) do n.º 1 do artigo 747.º do CC). Tal desvio nenhum conflito suscita na graduação a fazer, apenas, entre os dois créditos – crédito pignoratício e crédito privilegiado da segurança social -, pois, sendo o CRCSPSS uma lei especial sempre terá de ser a norma do artigo 204.º, n.º 2 a prevalecer sobre as dos artigos 666.º, n.º 1 e 749.º, n.º 1 do CC.[8] Porém, a dar-se prioridade ao crédito privilegiado da segurança social, graduando-se o mesmo à frente do crédito pignoratício, surge um outro conflito – aquele crédito passa a ser igualmente graduado à frente dos créditos dos trabalhadores, não se respeitando, dessa forma, a graduação imposta pela al. a), do n.º 2 do artigo 333.º do CT (que determina que estes créditos tenham prioridade no pagamento com relação aos créditos da segurança social, como resulta da sua conjugação com os artigos 747.º, n.º 1 do CC e 204.º n.º 1 do CRCSPSS). A impossibilidade de proceder à graduação destas três espécies de créditos com integral observância das regras supra elencadas – impossibilidade essa que, apesar de não ser recente, continua a dividir a jurisprudência e a doutrina -, deu origem a três correntes tendentes a dar resposta ao problema.[9] A primeira dessas correntes defende uma interpretação restritiva do artigo 204.º, n.º 2 do CRCSPSS, segundo a qual tal preceito só será aplicável nas hipóteses em que apenas estejam em confronto créditos da segurança social e créditos garantidos por penhor. Quando, para além destes, concorram outros créditos que gozem de privilégio mobiliário geral (créditos por impostos ou créditos laborais), gera-se uma lacuna de colisão (já que os créditos laborais têm preferência de pagamento face aos créditos por impostos e aos créditos da Segurança Social, o que não seria possível observar com a aplicação do artigo 204.º, n.º 2) que deverá ser colmatada através da prevalência absoluta do crédito pignoratício, tendo em conta a natureza excepcional que revestem as normas que conferem privilégios gerais e que impede que sejam aplicadas por analogia – artigo 11.º do CC (levando, assim, a que, quanto às mesmas, prevaleça o critério da interpretação restritiva). Nessa medida, tendo em consideração o princípio da protecção da confiança e da segurança do comércio jurídico[10], deve concluir-se que, no confronto entre o direito de crédito garantido por penhor e os direitos de crédito garantidos por privilégio mobiliário geral emergentes de contrato de trabalho, derivados de impostos da titularidade do Estado e das autarquias locais e da titularidade das instituições de segurança social derivados de taxa contributiva, a prevalência deve operar por essa ordem.[11] Uma segunda corrente defende que se deverá dar prevalência ao crédito da segurança social, seguindo-se o crédito pignoratício e, finalmente, os outros créditos protegidos por privilégios mobiliários, nomeadamente os do Estado e dos trabalhadores. Segundo esta posição, a norma do artigo 204.º, n.º 2 do CRCSPSS não viola o princípio da confiança e da segurança jurídica ínsito da ideia de Estado de direito democrático - artigo 2.º da Constituição da República.[12] Argumenta-se que o Legislador apenas previu que fosse graduado à frente do crédito pignoratício o crédito da segurança social que goza de privilégio mobiliário geral. Quanto aos demais créditos que gozem de igual privilégio (designadamente aqueles a que alude o artigo 747.º, n.º 1 do CC), mantém-se a regra da prioridade do crédito garantido por penhor. Ter-se-á, pois, de sacrificar a prioridade de que os créditos laborais gozam com relação aos créditos do Estado (Segurança Social e Autoridade Tributária), tanto mais que o artigo 333.º, n.º 2, al. a) do CT apenas contempla tal prioridade face aos créditos por impostos (inexistindo, nesse artigo, qualquer alusão ao crédito da Segurança Social). Segundo esta posição, o Legislador quis deliberadamente dar preferência aos créditos da Segurança Social sobre os créditos particulares, desde logo face à relevância social de que se reveste a garantia mobiliária (e imobiliária) dos primeiros e por só assim ser possível contribuir para a sustentabilidade da segurança social e para a salvaguarda do interesse público de natureza distributiva por ela prosseguido (interesse esse que, defendem, assume uma importância muito superior aos interesses de cada um dos credores em particular).[13] Por fim, há quem entenda que os créditos do Estado (impostos) terão de ser pagos antes do crédito da segurança social, seguindo-se a este último o crédito pignoratício. Alega-se que, só assim, se estará a respeitar o artigo 204.º, n.º 2 do CRCSPSS e se conseguirá harmonizar a hierarquia que decorre da conjugação deste artigo (n.ºs 1 e 2) com o artigo 747.º, n.º 1, al. a) do CC. Mais se desvaloriza o facto de não se estar a dar cumprimento aos artigos 666.º, n.º 1 e 749.º, n.º 1 do CC, por estes, enquanto regras gerais, terem de ceder perante a existência de regime especial. Nesta perpectiva, igual raciocínio se terá de efectuar para os créditos laborais, já que o artigo 333.º, n.º 2, al. a) do CT determina que sejam graduados antes dos créditos referidos no artigo 747.º, n.º 1 do CC, para além de também a lei laboral ter natureza especial (como sucede com o CRCSPSS).[14] Nenhuma destas correntes é isenta de críticas. Contra a primeira argumenta-se que o crédito da segurança social deixa de ter tratamento uniforme, uma vez que ficará graduado à frente do crédito pignoratício quando apenas com ele concorra e passará já a ser graduado depois deste se estiverem em concurso outros créditos que gozem de privilégio mobiliário geral (como sucede quando também concorrem créditos reclamados por trabalhadores). Segundo se defende no acórdão da Relação de Guimarães de 31/03/2016, “(…) não se justifica considerar que existe uma efectiva colisão normativa a obstar que os créditos da Segurança Social, por preferirem ao crédito com penhor anterior, e por força dessa prevalência, sejam pagos antes dos créditos laborais. É que, para além de a apontada colisão normativa não se adequar ao princípio ínsito no art.º 9º, nº 3, do Cód. Civil, no sentido de que na fixação do sentido e alcance da lei “o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e se exprimiu o seu pensamento em termos adequados”, acresce que, é por todos reconhecida a importância social de que cada vez mais acentuadamente se reveste a garantia mobiliária e imobiliária dos créditos da Segurança Social e que esteve na origem das disposições dos art.ºs 204 do CRCSPSS e do art.º 10 do pretérito DL nº 103/80 de 9/05. De resto, porque na génese/ratio da justificação de um privilégio creditório está sempre a causa/natureza do crédito (cfr. artº 733º, do CC), difícil é conceber que, o mesmo crédito de idêntica natureza/causa, justifica-se que uma vezes que deva prevalecer sobre o penhor quando só com ele concorre, mas, em outras situações – quando em concurso estão outros créditos garantidos com privilégios mobiliários - , terá já de ceder a prioridade ao mesmo penhor, graduando-se depois dele e após outros créditos privilegiados. Convenhamos que, tal solução, fazendo depender a ordem de graduação de concreto crédito da circunstância aleatória de o concurso envolver ou não créditos do Estado, e, ademais, deixando outrossim a defesa de interesses prioritários do Estado como o são o da importância social da sustentabilidade da Segurança Social à mercê de factores que escapam ao próprio Estado, conduz-nos a não perfilhar o entendimento [para além de nada consentâneo com o comando do artº 8º, nº3, in fine, do CC, e , bem assim, com uma interpretação racional do artº 204 do CRCSPSS, ou seja, considerando sobretudo a respectiva finalidade que norteou/presidiu à sua criação] sufragado pelo Conselheiro Salvador da Costa”. Mais se enfatiza o facto de esta posição implicar o afastamento da supra mencionada regra lex specialis derogat legi generali, violando, assim, a norma do artigo 204.º, n.º 2 do CRCSPSS (já que se estaria a colocar o crédito pignoratício à frente do crédito da segurança social, o que o Legislador terá pretendido, deliberadamente, evitar ao transpor para o actual regime a regra que já vigorava no anterior Dec. Lei n.º 103/80). A segunda posição, ao graduar o crédito da segurança social com prioridade sobre os créditos dos trabalhadores, viola as normas dos artigos 333.º, n.º 2, al. a) do CT, 747.º, n.º 1, al. a) do CC e 204.º, n.º 1 do CRCSPSS. Acresce que os argumentos de cariz social defendidos por esta corrente, no que respeita às finalidades visadas pela segurança social, são igualmente válidos quando estão em causa créditos dos trabalhadores (os créditos dos trabalhadores resultam do seu trabalho, são fonte de riqueza e contribuem, também eles, para o crescimento e desenvolvimento social). Na verdade, também estes assumem extrema relevância social (sendo que o facto de estes créditos beneficiarem de privilégio justifica-se directamente na função alimentar da retribuição), ao ponto de o Legislador impor a graduação dos mesmos à frente dos próprios créditos do Estado (por impostos). E, pese embora o artigo 333.º, n.º 2, al. a) do CT não aluda aos créditos da segurança social, a verdade é que o mesmo Legislador não ignora (não pode ignorar) que estes últimos deverão ser graduados “nos termos referidos na alínea a) do n.º 1 do artigo 747.º do Código Civil”.[15] Acresce que o invocado cariz social e de interesse público da Segurança Social nem sempre é valorizado prioritariamente pois situações existem nas quais o Legislador admitiu a possibilidade de os credores que gozem de garantia real poderem reclamar o seu crédito (aqui se incluindo o crédito pignoratício), mas vedou já tal direito aos credores com privilégio creditório geral (seja mobiliário, seja imobiliário – abrangendo, assim, o crédito da Segurança Social), como sucede nas hipóteses prevista no artigo 788.º, n.º 4 do Código de Processo Civil (CPC). Esta norma visa, precisamente, evitar que surjam reclamações de créditos por parte de titulares de privilégios creditórios gerais que venham a “defraudar os intentos do exequente”.[16] Contudo, e apesar disso, o mesmo artigo, no seu n.º 6, dispõe que “A ressalva constante do n.º 4 não se aplica aos privilégios creditórios dos trabalhadores”. O espírito de protecção dos trabalhadores e respectivos créditos revela-se, aliás, através de outros normativos, dos quais se destacam dois: a) ao contrário do que sucede com o crédito da segurança social, os privilégios dos créditos laborais não caem com a declaração judicial da insolvência – artigo 97.º, a contrario, do CIRE; e b) apesar da existência do FGS, o CIRE prevê uma medida suplementar de protecção que decorre da atribuição de um direito de alimentos aos trabalhadores/credores à custa da massa insolvente (em termos semelhantes ao direito a alimentos do devedor insolvente) – artigo 84.º, n.º 3. Por fim, não se poderá deixar de realçar a necessidade de maior protecção destes credores desde logo perante o facto de o próprio CRCSPSS possibilitar à Segurança Social garantir os seus créditos por um qualquer dos meios de garantia previstos nos artigos 601.º e ss. do CC, faculdade essa de que os trabalhadores não beneficiam. Segundo o artigo 203.º deste código, “As dívidas à segurança social podem ser garantidas através de qualquer garantia idónea, geral ou especial, nos termos dos artigos 601.º e seguintes do Código Civil.” Já a terceira posição vai para além do previsto pelo legislador, uma vez que este nunca teve o propósito de graduar os créditos do Estado e os créditos dos trabalhadores com prioridade sobre o crédito pignoratício. A adoptar-se este entendimento, estar-se-á, pois, a desrespeitar a ordem prevista pelos artigos 747.º, n.º 1, al. a) do CC, 333.º, n.º 2, al. a) do CT, e 204.º do CRCSPSS que, sem prejuízo da prioridade do penhor – artigos 666.º e 749.º do CC -, coloca os créditos laborais e os créditos por impostos à frente dos créditos da segurança social. Acresce que, ao graduar o crédito pignoratício depois destes créditos (impostos e créditos laborais), para além de se fazer tábua rasa do direito de sequela de que este último beneficia (anulando a relevância prática que resulta da sua natureza real), permite-se que uma norma especialíssima (a do n.º 2 do artigo 204.º) produza efeitos sobre direitos não contemplados na mesma, a saber, os identificados na al. a) do n.º 1 do artigo 747.º do CC (já que o n.º 2 do artigo 204.º apenas alude ao crédito garantido por penhor), o que, sem dúvida, iria ferir as expectativas jurídicas entretanto criadas. Ponderados todos estes factores, tal como já anteriormente defendemos no acórdão de 09/11/2021, julgamos que a posição que melhor harmoniza as normas aqui aplicáveis, inseridas em diferentes diplomas legais, tendo em vista os interesses em causa e a natureza dos mesmos, e a que acarreta menos prejuízos – já que não se poderá deixar de atender às finalidades visadas pelo Legislador e à repercussão causada a nível económico e social -, será a que foi identificada em primeiro lugar. Para além de, em nosso entendimento, ser a que melhor se ajusta à conciliação dos interesses em jogo, sai ainda fortalecida pelo facto de o STJ a ter vindo a subscrever no seu mais recente acórdão quanto a esta matéria. No citado acórdão de 22/09/2021, pode ler-se: “Supomos que a resolução da (aparente) contradição normativa em causa só pode ser encontrada numa interpretação restritiva do n.º 2 do art. 204.º do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social e numa ponderação de interesses segundo as regras que embasam a normalidade do sistema de preferências creditórias. (…) Deste modo, quando a graduação implique unicamente uma díade formada pelo crédito pignoratício e pelo crédito da Segurança Social a solução não poderá desconsiderar o estabelecido no n.º 2 do citado art. 204.º: o crédito da Segurança Social prefere ao crédito pignoratício. (…) Não pode haver dúvidas de que no confronto desses dois tipos de créditos a lei pretendeu dar prioridade ao crédito destinado a cumprir um desígnio social sobre um crédito destinado a cumprir um desígnio puramente (pelo menos na esmagadora maioria dos casos) particular e quase sempre brotado do espaço empresarial. Na ponderação dos dois interesses em jogo, o legislador entendeu definir desse modo as coisas, privilegiar o público (social) sobre o particular, e não cabe ao intérprete discutir essa opção. Trata-se aqui, todavia, de um singular desvio à regra que vale para a normalidade, pois que essa regra (tal como fixada no Código Civil) estabelece o princípio da prioridade do penhor sobre todo e qualquer privilégio creditório mobiliário geral. Mas quando de permeio se encontram créditos de trabalhadores, do Estado e das autarquias locais por impostos já aquela opção não terá sido mantida pelo legislador. E isso, bem vistas as coisas, nada tem de estranho ou contraditório. Pois que não são apenas os créditos da Segurança Social que são de interesse público e social. Também os interesses creditórios do Estado e das autarquias locais por impostos são, por definição, interesses públicos e sociais, da mesma forma que os interesses creditórios laborais não deixam de se resolver em interesses públicos e sociais indiretos ou reflexos, na medida em que são relacionáveis com prestações que o setor público pode ser chamado a suportar para com os trabalhadores e suas famílias em situação de carência económica. E daqui que se possa intuir que em caso de concurso desses outros créditos com os da Segurança Social o legislador tenha optado por uma solução que não inverta o paradigma que ele próprio estabeleceu como regra em atenção aos diversos interesses em jogo. Sendo tudo isto assim, como nos parece que é, cremos ser razoável supor que nesta última hipótese (concurso que coenvolve créditos pignoratícios, créditos dos trabalhadores, créditos do Estado e das autarquias locais e créditos da Segurança Social) o legislador se limitou a deixar a solução das preferências para as regras que enformam a traça normal dos créditos em confronto, procurando desse modo obviar à preterição desproporcionada (em beneficio injusto da Segurança Social) dos interesses de um conjunto mais alargado de outros credores, nomeadamente dos trabalhadores. Está aqui encontrado um racional que justifica uma interpretação restritiva do n.º 2 do art. 204.º do citado Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social, cuja letra diz mais do que aquilo que terá sido o propósito ou o querer do legislador. (…)”. E, continua este aresto, “O que, diga-se de passagem, retira fundamento à crítica frequentemente avançada por quem defende ponto de vista diferente, e que é a de que não faz sentido que a posição relativa do crédito da Segurança Social fique dependente da circunstância aleatória de haver ou não créditos em concurso dos trabalhadores, do Estado ou das autarquias locais. E tais regras (as que enformam a traça normal dos créditos em confronto) determinam que o penhor prevalece sobre o privilégio creditório mobiliário geral da Segurança Social e sobre o privilégio mobiliário geral dos trabalhadores, e este último sobre o da Segurança Social. E compreende-se perfeitamente que o penhor deva ter preferência sobre os privilégios mobiliários gerais, na medida em que constitui uma garantia de natureza real (firmada necessariamente por contrato, e sobre que a parte credora estabeleceu as suas legítimas expetativas garantisticas), que beneficia de sequela e é oponível erga omnes, enquanto o privilégio mobiliário geral (que não tem natureza real) está talhado para conferir uma mera preferência de pagamento relativamente aos créditos comuns. É tudo isto que representa a normalidade do sistema em sede de preferências creditórias, sendo de presumir, em caso de conflito de normas e na dúvida, que o legislador adotou a solução que está estabelecida como constituindo a normalidade, e não a solução decorrente da exceção (desvio) a essa normalidade.”, o sublinhado é nosso. Aqui chegados, conclui-se no sentido propugnado pela apelante, considerando-se que, pelo produto da venda das acções da L…SA (apreendidas para a massa insolvente), os créditos reclamados terão de obedecer à seguinte ordem de graduação: 1.º Crédito pignoratício; 2.º Créditos reclamados pelos trabalhadores; 3.º Créditos reclamados pela Autoridade Tributária (IRS e IRC); 4.º Crédito reclamado pela Segurança Social. Altera-se, assim, nessa parte, a sentença recorrida, mantendo-se a mesma quanto à restante graduação (que não foi impugnada). O processo de verificação e graduação de créditos não é alvo de tributação autónoma, sendo as custas a cargo da massa – artigos 303.º e 304.º do CIRE. Considerando, no entanto, que o recurso obteve vencimento e mais nenhum credor ou o Administrador da Insolvência (em representação da massa insolvente) acompanhou a sentença recorrida (não tendo sido apresentadas contra-alegações), não há lugar a custas nesta instância recursiva. * IV - DECISÃO Perante o exposto, acordam os Juízes desta Secção do Comércio do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar procedente a apelação e, nessa sequência, decide-se alterar a sentença recorrida e graduar os créditos reclamados, no que respeita ao produto da venda das acções da L…SA, nos seguintes moldes: 1.º Crédito reclamado pela apelante, o qual está garantido por penhor; 2.º Crédito reclamado pelo trabalhador AM; 3.º Créditos reclamados pela Autoridade Tributária (IRS e IRC); 4.º Crédito reclamado pela Segurança Social. Mantendo-se, quanto aos demais, a graduação efectuada na sentença recorrida e que não foi impugnada, sendo que as dívidas da massa insolvente saem precípuas. Sem custas nesta instância. Lisboa, 07 de Julho de 2022 Renata Linhares de Castro Nuno Magalhães Teixeira Rosário Gonçalves _______________________________________________________ [1] Proc. n.º 211/11.3TYLSB-C.L1, cujo acórdão foi subscrito pela mesma relatora e adjuntos. [2] Dispõe o artigo 604.º do CC: “1. Não existindo causas legítimas de preferência, os credores têm direito de ser pagos proporcionalmente pelo preço dos bens do devedor, quando ele não chegue para integral satisfação dos débitos. 2. São causas legítimas de preferência, além de outras admitidas na lei, a consignação de rendimentos, o penhor, a hipoteca, o privilégio e o direito de retenção.” [3] Pode, ainda, recair sobre participações sociais – artigo 23.º, n.º 3 do Código das Sociedades Comerciais (CSC), sendo possível o penhor de acções, enquanto valores mobiliários – cfr. artigo 81.º, n.º 1 do Código de Valores Mobiliários (CVM), segundo o qual, “O penhor de valores mobiliários constitui-se pelo registo na conta do titular dos valores mobiliários, com indicação da quantidade de valores mobiliários dados em penhor, da obrigação garantida e da identificação do beneficiário.”. [4] A sua constituição ocorre com a formação do direito de crédito que visam garantir, mas a sua eficácia está dependente do acto de penhora ou acto equivalente. Segundo ALMEIDA COSTA constituem simples direitos de prioridade (de pagamento) que prevalecem contra os credores comuns na execução do património debitório – cfr. Direito das Obrigações, 11.ª edição, 2008, pág. 959. [5] Como PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA elucidam “Os direitos oponíveis ao credor exequente são aqueles que não podem ser atingidos pela penhora. Neles estão compreendidos não só os direitos reais de gozo que terceiros tenham adquirido, como os próprios direitos reais de garantia que o devedor haja entretanto constituído.” E, continuam, “A existência do privilégio geral não impede, pois, que o devedor aliene ou onere bens do seu património, quer a título oneroso, quer gratuito. Essas alienações são oponíveis ao credor, ao qual, no entanto, cabe, nos termos gerais, o direito a usar da impugnação pauliana (cfr. arts. 610.º e segs.).”, in Código Civil Anotado, 4.ª edição, Vol. I, págs. 769/770. [6] Refira-se, porque aplicável à situação dos autos, que, segundo o artigo 97.º, n.º 1, al. a) do CIRE, com a sentença declarativa de insolvência, extinguem-se os privilégios creditórios gerais acessórios de créditos sobre a insolvência de que forem titulares o Estado, as autarquias locais e as instituições de segurança social constituídos mais de 12 meses antes da data do início do processo de insolvência. [7] Nas suas alegações de recurso, a apelante refere “créditos privilegiados de IRS e IVA”, o que, obviamente, traduz um lapso de escrita, porquanto os créditos reclamados foram apenas respeitantes a IRS e IRC. Contudo, tal lapso nenhuma influência tem para a apreciação e decisão da questão em apreço. [8] Qualquer conflito normativo, resultante da harmonização de preceitos jurídicos aparentemente contraditórios, deverá ser ultrapassado pela aplicação da regra lex specialis derogat legi generali (lei especial derroga a lei geral), só dessa forma sendo possível respeitar o princípio da unidade e da coerência da ordem jurídica. Aliás, tal regra, tem acolhimento no artigo 7.º, n.º 3, do CC, quando o mesmo dispõe que “A lei geral não revoga a lei especial, excepto se outra for a intenção inequívoca do legislador.“ [9] Já que não pode o tribunal abster-se de julgar com fundamento na “falta ou obscuridade da lei”, devendo, nas decisões a proferir, ter “em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito” – artigo 8.º, n.ºs 1 e 2 do CC. [10] A que o Tribunal Constitucional, no seu acórdão n.º 363/02, de 17/09/2002, apelou para declarar inconstitucional as normas contidas nos artigos 2.º do Dec. Lei n.º 512/76, de 03/07 e 11.º do Dec. Lei n.º 103/80, de 09/05, na interpretação segundo o qual o privilégio mobiliário geral neles conferido prefere à hipoteca. [11] Neste sentido, vejam-se os acórdãos da Relação de Lisboa de 13/10/2016 (Proc. n.º 81/13.7TYLSB-B.L1-8, relatado por Ferreira de Almeida) e de 24/11/2020 (Proc. n.º 1536/10.0TYLSB-G.L1, relatado por Amélia Sofia Rebelo); da Relação do Porto de 11/09/2018 (Proc. n.º 1211/17.5T8AMT-E.P1, relatado por Vieira e Cunha); da Relação de Coimbra de 20/06/2017 (Proc. n.º 6100/16.8T8CBR-C.C1, relatado por Luís Filipe Cravo); da Relação de Guimarães de 08/07/2020 e de 25/05/2017 (Procs. n.º 159/15.2T8VLN-B.G1 e Proc. 703/13.0T8MDL-K.G1, respectivamente, ambos relatados por Fernandes Freitas) e de 11/01/2011 (Proc. n.º 881/07.7TBVCT-M.G1, relatado por Teresa Pardal); da Relação de Évora de 05/11/2015 (Proc. n.º 284/14.7TBRMR-A.E1, relatado por Mário Mendes Serrano); e do STJ de 22/04/1999 (Proc. n.º 98B1084, relatado por Herculano Namora) e de 22/09/2021 (Proc. n.º 775/15.2T8STS-C.P1.S1, relatado por José Rainho), todos disponíveis in www.dgsi.pt. Ao nível da doutrina, defendem esta corrente SALVADOR DA COSTA, in O Concurso de Credores, 3.ª edição, Almedina, pág. 312, e ANTÓNIO CARVALHO MARTINS, in Reclamação, Verificação e Graduação de Créditos, Coimbra Editora, pág. 91, nota 126. [12] Razão pela qual se defende que tal norma não padece de inconstitucionalidade – nesse sentido, vejam-se os acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 64/2009, de 10/02/2009, e n.º 108/2009, de 10/03/2009, ambos relatados por Maria João Antunes (embora reportados ao artigo 10.º, n.º 2, do Dec. Lei n.º 103/80), disponíveis in www.tribunalconstitucional.pt. [13] Assim se defendeu nos acórdãos da Relação de Lisboa de 02/07/2019 (Proc. n.º 2789/14.0T8SNT-K.L1, relatado por Manuel Marques); da Relação do Porto de 16/06/2020 (Proc. n.º 2720/18.4T8STS-C.P1, relatado por Rui Moreira) e de 14/07/2020 (Proc. n.º 2645/19.6T8STS-A.P1, relatado por Fátima Andrade); da Relação de Coimbra de 11/12/2012 (Proc. n.º 241/11.5TBNLS-B.C1, relatado por Freitas Neto), de 21/05/2019 (Proc. n.º 4705/17.9T8VIS-B.C1, relatado por Barateiro Martins), de 28/05/2019 e de 30/03/2020 (Proc. n.º 3810/17.6T8VIS-B.C1 e Proc. n.º 167/17.9T8VIS-F.C1, respectivamente, ambos relatados por Maria Catarina Gonçalves, estando este último disponível in www.colectaneadejurisprudencia.com) e de 11/01/2021 (Proc. n.º 182/18.5T8TCS-A.C1, relatado por Maria João Areias); da Relação de Guimarães de 31/03/2016 (Proc. n.º 565/14.0T8VCT-B.G1, relatado por António Fernandes Santos); da Relação de Évora de 30/04/2015 (Proc. n.º 1277/13.7TBCTX-B.E1, relatado por Conceição Ferreira); e do STJ de 06/03/2003 (Proc. n.º 03B034, relatado por Joaquim de Matos) e de 16/12/2009 (Proc. n.º 1174/06.2TBMGR, 7.ª Secção, relatado por Costa Soares, o qual poderá ser consultado na já mencionada CJ online), disponíveis in www.dgsi.pt (com excepção dos dois assinalados). No citado acórdão da Relação de Coimbra de 11/12/2021 pode ler-se: “(…) não nos repugna admitir que, ao atribuir-se aos créditos laborais com privilégio mobiliário geral a prioridade aludida no art.º 377, nº 2, al.ª a) do CT na graduação diante “dos créditos referidos no nº 1 do artigo 747 do Código Civil”, não se tenha querido dizer mais do que isso mesmo, isto é, que há uma preferência quanto aos créditos ali concretamente elencados, e não quanto a quaisquer outros, nomeadamente aos que a eles são de algum modo equiparados.” Por seu turno, no acórdão do STJ de 16/12/2009 pode ler-se: “A segurança social é, em última análise, o último baluarte da confiança que os cidadãos depositam no Estado, de que o trabalho em que se foi desdobrando a sua vida não deixará de ser reconhecido e compensado; por isso, mesmo os próprios trabalhadores, enquanto activos, descontam para a segurança social. Aquela confiança tem pleno assento e garantia no art. 2.º da C.R.P. Se os trabalhadores merecem toda a protecção que a lei lhes confere, não a merece menos a segurança social, ora plasmada no ISS; e, pelos altos valores sociais que este último prossegue - valores cujo correspondente direito se encontra consagrado no citado art. 63.º da Constituição - é logicamente inevitável que são eles que têm de consubstanciar a cúpula, a nível dos créditos ora em questão, da protecção que o legislador lhes quer conferir”. [14] Foi a posição seguida pelos acórdãos da Relação de Lisboa de 09/05/2019 (Proc. n.º 2540/16.0T8STB-A.L1-2, relatado por Jorge Leal) e do STJ de 29/04/1999 (Proc. n.º 99A200, relatado por Garcia Marques), pese embora, em ambos, não estivessem em causa créditos laborais mas antes créditos da Fazenda Nacional. No mesmo sentido, veja-se o Parecer do Conselho Consultivo da PGR n.º 40/90, de 07/11, todos disponíveis in www.dgsi.pt. Ao nível da doutrina, nesse sentido, veja-se RUI PINTO, In A Acção Executiva, AAFDL, 2018, pág. 853. [15] A relevância dos créditos laborais é inquestionável, levando a que o Legislador tenha tido particular atenção na protecção dos trabalhadores enquanto credores num processo de insolvência. Nesta matéria, por pertinente, veja-se a Directiva do Conselho 80/987/CEE, de 20/10/1980, alterada pela Directiva 2002/74/CE, de 23/09/2002 e, mais recentemente, a Directiva 2008/94/CE (Directiva de reformulação), de 22/10/2008. [16] “Na verdade, para quem teve a iniciativa de instaurar a execução e de reunir, por via da penhora de bens do executado, condições para a obtenção de meios de pagamento, afigura-se inconsequente todo o esforço de cobrança se os beneficiários forem afinal, entidades titulares de créditos fiscais e parafiscais. A situação é tão mais gravosa quanto, dada a natureza oculta desses créditos, o exequente nem sequer tem condições para fazer um juízo de prognose sobre a viabilidade da execução, já que não pode saber antecipadamente se tais créditos existem e se virão a ser reclamados.” Cfr. ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e PIRES DE SOUSA, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, pág. 191, nota 5 ao artigo 788.º. |