Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | CARLA MARIA DA SILVA SOUSA OLIVEIRA | ||
Descritores: | ACÇÃO DE DIVISÃO DE COISA COMUM INDIVISIBILIDADE JURÍDICA CERTIFICAÇÃO CAMARÁRIA PROPRIEDADE HORIZONTAL | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 02/09/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
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Sumário: | I–A divisibilidade ou indivisibilidade da coisa afere-se em termos jurídicos, e não físicos ou naturalísticos. II–Em matéria de divisão de coisa comum não é possível dispensar, no processo judicial respectivo, a certificação camarária de que o imóvel que se encontra em compropriedade satisfaz os requisitos administrativos exigidos para a constituição da propriedade horizontal de acordo com o RJUE. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA I.–Relatório C… veio intentar a presente acção de divisão de coisa comum contra M…, A…, AP…, L…, J…, G…, e J… com vista a pôr termo à indivisão do prédio urbano em propriedade total com cinco pisos e seis andares, sito na C…, nº ... a nº ...-A, freguesia de A..., concelho de L____, inscrito na matriz urbana sob o artigo ....º (proveniente do anterior artigo ...-U da extinta freguesia de S. J... A...), descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o n.º ... da freguesia de S. J... A... (proveniente da anterior descrição n.º ..... da dita freguesia), invocando a indivisibilidade do mesmo. Citados, os interessados M…, A…, AP…, deduziram contestação invocando que o prédio é divisível e passível de ser constituído em propriedade horizontal. Apesar de convidados para o efeito, não juntaram aos autos certificado municipal a atestar que o edifício satisfaz os requisitos administrativos para a constituição da propriedade horizontal. Foi determinada a realização de perícia colegial com vista a apurar da divisibilidade do prédio em cinco fracções autónomas, tendo os a maioria dos Srs. Peritos concluído pela impossibilidade material de tal divisibilidade. Foi proferida decisão a concluir pela desnecessidade de realização de segunda perícia requerida pelos contestantes e, na sequência, pela indivisibilidade do prédio, constando da fundamentação da mesma o seguinte: “Factualidade assente com recurso aos documentos constantes dos autos e ao acordo das partes: 1.–Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o n.º ... da freguesia de S. J... A..., o prédio urbano em propriedade total com cinco pisos e seis andares ou divisões susceptíveis de utilização independente, composto por loja, rés-do-chão, três andares e mansarda, com a área total do terreno de 220 m2, área de implantação do edifício de 170 m2, área bruta privativa total de 685 m2 e área de terreno integrante das fracções de 50 m2, sito na C…, n.º ... a n.º ...-A, freguesia de A..., concelho de L____, que está inscrito na matriz urbana sob o artigo .....º. 2.–Pela apresentação 15 de 28.05.1987 foi registada a aquisição, por doação, da propriedade sobre o prédio identificado em 1., na proporção de: - 6/24 a favor de C…; - 6/24 a favor de J… e sua mulher L…; - 4/24 a favor de M…; - 4/24 a favor de A…; e - 4/24 a favor de AP…. 3.–Em 07.12.1995, faleceu J… deixando como seus únicos herdeiros L… e os filhos JN…, G… e JP…. Dos factos ora enunciados, dúvidas não restam de que a propriedade do prédio urbano cuja divisão se requer se encontra registada a favor do Requerente e dos Requeridos na proporção melhor descrita em 2. Verifica-se, pois, estarmos perante uma situação de compropriedade. Atenta a natureza do bem a dividir, que corresponde a um prédio urbano; o resultado da perícia que refere que o bem não pode ser cindido de molde a por si só completar, em proporção, as quotas de cada comproprietário; e ainda ao facto de os Requeridos não terem junto certificado municipal a atestar que o edifício satisfaz os requisitos administrativos para a constituição da propriedade horizontal conclui-se, por um lado, não ser possível a constituição de propriedade horizontal e, por outro, que a divisibilidade do bem em substância se demonstra materialmente impossível.”. Inconformado com a decisão proferida, vieram os interessados M…, A… e AP… recorrer, concluindo as suas alegações da seguinte forma: “I–O Tribunal recorrido decidiu, no despacho recorrido, que o prédio objecto do processo é indivisível em substância, decisão que constitui decisão final respeitante à fase declarativa do processo especial de divisão de coisa comum, tendo indeferido a realização da segunda perícia solicitada pelos Requeridos, ora Recorrentes, decisão com a qual os Recorrentes não se conformam. II–No âmbito do presente processo foi realizada perícia colegial, por 3 peritos nomeados pelas partes, tendo os Senhores Peritos prestado esclarecimentos ao relatório pericial, na sequência do pedido apresentado pelos Requeridos, aqui Recorrentes. III–Não obstante os esclarecimentos prestados pelos Peritos e após análise dos mesmos, vieram os ora Recorrentes requerer a realização de segunda perícia, por entenderem subsistir no relatório pericial obscuridades e contradições, designadamente quanto à divisibilidade do prédio, por entenderem que o prédio em questão é divisível. IV–No despacho recorrido, veio o Tribunal considerar não existirem quaisquer dúvidas quanto às conclusões vertidas no relatório pericial e informações complementares, no sentido de que, pese embora o prédio seja composto por “seis unidades funcionais independentes”, passíveis de preencher os critérios de autonomia, acessibilidade e isolamento, atento o presumível valor de mercado atribuído a cada uma das partes, não é possível estabelecer quinhões exclusivamente constituídos por cada uma das “ unidades funcionais autónomas” do edifício, por não existir correspondência entre os valores de mercado de cada uma dessas unidades e as quotas dos comproprietários, sem recurso a tornas, decidindo, consequentemente, que o prédio é indivisível. V–Ora, a questão da (in)divisibilidade afere-se em função dos critérios veiculados pelo artigo 209º do Código Civil e outras normas imperativas, nela não interferindo a possibilidade de todos os interessados verem a sua quota satisfeita e integrada por uma fracção do primitivo prédio. VI–Ou seja, nos termos do citado artigo 209º do Código Civil, serão divisíveis “as coisas que podem ser fraccionadas sem alteração da sua substância, diminuição de valor ou prejuízo para o uso a que se destinam.”, como é o caso do prédio em causa nos presentes autos. VII–Atendendo ao caracter instrumental do direito processual, ao qual não cabe definir direitos ou interesses dos particulares mas apenas fornecer os instrumentos jurisdicionais para a sua protecção, não poderá interpretar-se o disposto no artigo 929º, nº 1 do Código de Processo Civil no sentido de que a divisibilidade de um prédio tem de ser aferida em função da quota-parte dos comproprietários, teoria que se encontra, incorrectamente, plasmada nas respostas ao relatório pericial e nos esclarecimentos prestados pelos Senhores Peritos F… e R…, em oposição à posição assumida nesses mesmos documentos por parte do Senhor Perito JC…, posição que foi acolhida pelo Tribunal no despacho recorrido. VIII–Da análise do processo resulta que, ao contrário do que consta no despacho recorrido, a posição dos diversos peritos é contraditória entre si no que se refere à possibilidade de formação de quinhões, questão que constitui o segundo quesito do objecto da perícia, para além de errada, pelo que a realização de segunda perícia, com o mesmo objecto da primeira, com vista ao cabal esclarecimento de tais contradições, as quais se mantiveram após a prestação de esclarecimentos por parte dos peritos, deveria ter sido deferida pelo Tribunal. IX–A contradição manifesta-se, desde logo, no facto de, respondendo os Peritos que o prédio preenche os critérios de autonomia, acessibilidade e isolamento, logo sendo divisível, não se entender o motivo pelo qual entendem não poderem formar-se quinhões para a sua divisão. X–O erro encontra-se na interpretação dada ao artigo 209º do Código Civil e ao artigo 929º do Código de Processo Civil, interpretados no sentido de que a divisão tem de ser possível, de forma equitativa e proporcional à quota de cada interessado, sem recurso a tornas. XI–O raciocínio plasmado no relatório pericial e nos esclarecimentos prestados enferma assim, de manifesta contradição e obscuridade, que inviabiliza o relatório pericial no seu todo, uma vez que a resposta dada a final por dois dos peritos é manifestamente contraditória com a resposta dada ao primeiro quesito que constitui o objecto do relatório pericial. XII–Como bem se decidiu no Acordão do Supremo Tribunal de Justiça datado de 15.11.2012, proferido no processo nº 261/09.0TBCHV.P1.S1, em que foi relator Abrantes Geraldes, doutrina a que se adere: “1– Numa acção de divisão de coisa comum, a divisibilidade de um prédio através de constituição da propriedade horizontal por sentença judicial não depende do acordo de todos os comproprietários, bastando-se com o requerimento de algum deles e com a verificação dos requisitos substantivos (artigo 1417º do CC) e os de ordem administrativa. 2– Não obsta à constituição da propriedade horizontal ope judicis o facto de as frações apresentarem valores diversos, já que o processo especial de divisão de coisa comum admite que possam existir tornas entre os proprietários.”. XIII–Importa salientar, facto que foi totalmente desconsiderado por dois dos peritos, que, na realidade, os comproprietários, partes na presente acção, repartiram entre si, há várias décadas, a posse das várias “fracções” do prédio, ou seja das unidades funcionais independentes (no número de seis atenta a divisão do r/ch em duas unidades, sendo uma destinada a habitação e outra a loja), posse que mantêm há vários anos, a qual deve igualmente ser levada em consideração na possibilidade de divisibilidade do prédio objecto dos autos. XIV–Para além de que o prédio se encontra materialmente dividido em 6 unidades funcionais autónomas, nos termos constantes da caderneta predial e descrição da Conservatória do Registo Predial, as quais, aliás, os peritos fizeram corresponder às possíveis futuras fracções autónomas. XV–Sendo certo que, em termos de compropriedade, o prédio se encontra repartido em 5 quotas-partes, nas proporções respectivamente de 6/24, 6/24, 4/24, 4/24, e 4/24, de acordo com a certidão de registo predial constante dos autos. XVI–Pelo que nada parece obstar à adjudicação de uma possível futura fracção autónoma a cada uma das quotas-partes proprietárias do prédio, adjudicando-se a futura fracção autónoma restante por acordo entre os consortes, com preenchimento de algumas quotas em dinheiro, caso seja necessário, sob pena de, em caso contrário, ser praticamente impossível a divisibilidade de qualquer prédio urbano. XVII–Pelos motivos acima expostos, deveria o Tribunal ter aceite o pedido de realização de segunda perícia ao imóvel, ao abrigo do disposto no nº 3 do artigo 927º do CPC, perícia com o mesmo objecto da primeira, com vista ao cabal esclarecimento das obscuridades e contradições do relatório inicial, as quais não se mostraram sanadas com os esclarecimentos prestados mas que, ao contrário, se acentuaram. XVII–Caso o Tribunal entendesse desnecessária a realização da segunda perícia, não poderia concluir sem mais pela indivisibilidade do prédio, como o decidiu, não podendo ter decidido de outro modo que não pela divisibilidade do prédio, ao contrário do que fez, violando o disposto nos artigos 209º, 1415º e 1417º do Código Civil e 926º e 929º do CPC. XVIII–O Tribunal “a quo” violou o disposto nos artigos 1417º e 1415º do CC, ao decidir que o prédio dos autos é indivisível pese embora estarem preenchidas todas as condições para ser dividido segundo esse regime. XIX–Como resulta do artigo 1417º do CC, a propriedade horizontal pode ser constituída por decisão judicial proferida em acção de divisão de coisa comum, desde que qualquer consorte o requeira (o que os Recorrentes oportunamente fizeram) e se verifiquem os requisitos civis e administrativos que estão preenchidos. XX–Assim, impõe-se concluir que, face aos requisitos legais impostos pelas referidas normas, o prédio dos autos é divisível em substância através da constituição de várias fracções autónomas correspondentes às várias unidades funcionais independentes que o compõem actualmente. XXI–Uma vez verificada a divisibilidade em substância do prédio, deviam ter sido fixados quinhões e convocada a conferência de interessados a que alude o artigo 929º nº 1 do CPC, tendo em vista a adjudicação. XXII–Na eventualidade de não ser possível concretizar a adjudicação por acordo, a realização do sorteio previsto no artigo 929º do CPC não exige que o valor dos quinhões seja igual, podendo, eventualmente, o consorte que receba a fracção com valor inferior reclamar o pagamento de tornas, tal como sucede no processo de inventário, cujo regime, neste particular, deve ser aplicado analogicamente. XXIII–O Tribunal “a quo” violou ainda, o disposto nos artigos 926º, nº 2 e 929º “ a contrario” do Código de Processo Civil, uma vez que determinou a convocação da conferência de interessados para as finalidades previstas para o caso do prédio não ser divisível, conferência de interessados que se realizou na data de 12.07.2022, e no âmbito da qual foi proferido despacho que ordenou a venda do imóvel, sem que tivesse transitado em julgado o despacho que declarou a indivisibilidade do prédio, diligência que se mostra nula, por extemporânea, com o presente recurso, devendo ser sustadas todas as diligências subsequentes até decisão do mesmo. XXIV–Consequentemente, deve o despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que ordene a realização de segunda perícia, com o mesmo objecto da primeira, ou que decida pela divisibilidade do prédio em seis unidades independentes, fixando os quinhões, seguindo-se os demais termos processuais prescritos pelo artigo 929º do CPC, sendo ainda declarada nula, por extemporânea a conferência de interessados realizada em 12.07.2022, com a consequente anulação de todos os actos posteriores.» O recorrido apresentou contra-alegações invocando a intempestividade do recurso na parte relativa ao indeferimento da segunda perícia e pugnando pela manutenção do decidido pelo tribunal recorrido. Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir. * II.–Questões prévias Da intempestividade de parte do recurso Veio o recorrido, nas contra-alegações, invocar a intempestividade do recurso na parte relativa ao indeferimento da segunda perícia, dizendo que esta deveria ter sido objecto de apelação autónoma, a apresentar no prazo de 15 dias (cfr. art.ºs 644º, nº 2, al. d) e 638º, nº 1, do NCPC). Notificados os recorrentes, vieram estes dizer que as questões da admissibilidade da segunda perícia e da indivisibilidade são indissociáveis, pelo que o recurso por eles interposto visa a decisão que decidiu da indivisibilidade do imóvel objecto dos presentes autos, em toda a sua extensão. Vejamos. Analisados os autos, constata-se efectivamente que o tribunal recorrido decidiu do pedido de segunda perícia e logo de seguida proferiu decisão ao abrigo do disposto no art.º 926º, do NCPC, sendo que, quanto à questão da segunda perícia, pronunciou-se nos seguintes termos: “Nos termos do despacho proferido em 08.02.2022, foi determinada a notificação dos Srs. Peritos para prestarem os devidos esclarecimentos às questões aí enunciadas, as quais haviam sido suscitadas pelos interessados M…, A… e AP…. Por email datado de 08.03.2022, foi junto aos autos pelos Srs. Peritos documento escrito com resposta às questões em apreço. Não obstante os esclarecimentos prestados, os interessados M…, A… e AP…, considerando subsistirem obscuridades e contradições patentes no relatório pericial, designadamente quanto à de divisibilidade do prédio em causa nos presentes autos, vieram requerer a realização de segunda perícia. Cumpre apreciar e decidir. Nos termos do art. 927.º n.ºs 2 e 3 do C.P.Civil “2. As partes são notificadas do relatório pericial, podendo pedir esclarecimentos ou contra ele reclamar, no prazo de 10 dias. 3. Seguidamente, o juiz decide segundo o seu prudente arbítrio, podendo fazer proceder a decisão da realização de segunda perícia ou de quaisquer outras diligências que considere necessárias, aplicando-se o disposto nos artigos 294.º e 295.º.” Da leitura atenta ao relatório pericial e às informações complementares prestadas pelos Srs. Peritos, considera o Tribunal não restarem dúvidas quanto às conclusões aí vertidas. Vejamos, Efectivamente, os Srs. Peritos concluem pela existência de seis “unidades funcionais independentes”, passíveis de preencher os critérios de autonomia, acessibilidade e isolamento. Não obstante, atento o presumível valor de mercado atribuível a cada uma das partes do prédio em causa, não é possível estabelecer quinhões exclusivamente constituídos por cada uma das “unidades funcionais autónomas” do edifício, por não haver correspondência entre os valores de mercado de cada uma dessas unidades e as quotas dos comproprietários. Ou seja, sem recurso a tornas é impossível distribuir as fracções que constituem as tais “unidades funcionais autónomas”, na proporção das quotas de cada comproprietário. A posição do Sr. Perito JC… não se revela contraditória com a posição dos demais, simplesmente vem o referido perito apresentar uma proposta para solucionar a indivisibilidade com recurso a tornas. Não obstante, o critério para aferir da divisibilidade jurídica das coisas, tal como enunciado no art. 209.º do C.Civil, pressupõe que o bem seja cindível em partes, sem perder a sua substância, sem diminuição do seu valor e sem prejudicar o seu uso. Ora, a cindibilidade em partes implica que a divisão seja possível de forma equitativa e proporcional à quota de cada interessado sem necessidade de recurso a tornas. O que se revela bastante lógico na medida em que, sendo o bem considerado indivisível, poderão os interessados acordar na adjudicação do mesmo, da forma que assim o entenderem, com o pagamento das respectivas tornas, em sede de conferência de interessados. Posto isto, e não se revelando pertinente a realização de uma segunda perícia, atento o explanado, indefere-se o requerido. Notifique.” (o sublinhado é nosso). Atento o teor da decisão ora transcrita, bem como o esclarecimento prestado pelos recorrentes, temos por certo e inequívoco que estes não quiseram recorrer autonomamente da decisão que indeferiu a segunda perícia, nem tal teria qualquer utilidade. Na verdade, esta decisão teve como fundamento a mesmíssima posição jurídica que veio a suportar a decisão proferida, logo de seguida, ao abrigo do art.º 926º, do NCPC. Deste modo, e sem necessidade de outras considerações que sempre se revelariam espúrias, considera-se que as decisões em causa não são incindíveis, não se verificando a arguida intempestividade de parte do recurso. * III.– Delimitação do objecto do recurso e questões a decidir O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do apelante, tal como decorre das disposições legais dos art.ºs 635º nº 4 e 639º do NCPC, não podendo o tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (art.º 608º nº 2 do NCPC). Por outro lado, não está o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (art.º 5º, nº 3 do citado diploma legal). * No caso vertente, a questão a decidir, tendo em conta o teor das conclusões formuladas pelos recorrentes, é se o prédio objecto da presente acção é ou não divisível. * IV.–Fundamentação 4.1.–Fundamentos de facto Com interesse para a decisão relevam as incidências fáctico-processuais que se evidenciam no relatório supra. * 4.2.–Apreciação do mérito do recurso O tribunal recorrido entendeu que o imóvel objecto destes autos de divisão de coisa comum é indivisível, por, no seu entendimento, não ser possível a formação de quinhões que contemplem todos os comproprietários de acordo com as suas quotas, e sem pagamento de tornas e ainda porque os recorrentes não terem juntado aos autos qualquer certificado municipal a atestar que o edifício satisfaz os requisitos administrativos para a constituição da propriedade horizontal. Os recorrentes interpuseram recurso, pugnando pela divisibilidade do imóvel. Vejamos. Regulada, como processo especial, nos art.ºs 925º a 929º do NCPC, a acção de divisão de coisa comum comporta duas fases distintas: uma essencialmente declarativa – art.ºs 925º e 926º - e outra de natureza executiva – art.ºs 927º a 929º. Tal acção faculta, na falta de acordo, a qual dos comproprietários o exercício do direito potestativo reconhecido pelo art.º 1412º, nº 1 do CC, segundo o qual nenhum deles é obrigado a permanecer na indivisão, salvo quando se houver convencionado que a coisa se conserve indivisa. Em comentário ao referido normativo, precisa Rodrigues Bastos (in, Notas ao Código Civil, Vol. V, 1997, p. 183): “O nº 1 corresponde ao princípio fundamental, reconhecido pelo direito romano, segundo o qual “in communione nemo compellitur in vitus detineri” (…). A cessação da indivisão, por acordo entre todos os comproprietários pode verificar-se por vários modos: divisão da coisa, sua venda ou doação a uma ou mais pessoas, etc. Faltando o acordo de todos os participantes a lei indica como via normal para fazer cessar a comunhão, a divisão, que pode ser in natura ou divisão do preço. Segundo a doutrina dominante o direito de cada um dos participantes fazer cessar a comunhão é considerado um direito potestativo, através da divisão da coisa comum”. Também em comentário ao referido preceito, esclarecem Antunes Varela e Pires de Lima (in, Código Civil Anotado, Vol. III, 2ª ed., p. 387): “O facto de se falar na indivisão da coisa e na forma de lhe pôr termo não significa que o direito conferido ao comproprietário vise forçosa ou sistematicamente a divisão da coisa em substância. A divisão pode ser impossível, quer em virtude das prescrições da lei, cfr. (art. 1376º, nº 1), quer pela própria natureza da coisa, cfr. (art. 209º), e nem por isso deixa de ter aplicação o direito que o artigo 1412º atribui ao comproprietário. (…). Quer isto dizer, por conseguinte, que o direito de que trata o artigo 1412º é, no fundo, um direito de dissolução da compropriedade (dissolução da comunhão é precisamente a expressão usada na epígrafe do art. 1111º do Código Civil Italiano), que normalmente se opera mediante a divisão em substância da coisa, mas que também pode realizar-se através da partilha do seu valor (ou preço).”. Discute-se, no caso presente, se se verifica uma situação de divisibilidade da coisa, isto é, do imóvel identificado nos autos. Ora, segundo o art.º 209º do CC, “são divisíveis as coisas que podem ser fraccionadas sem alteração da sua substância, diminuição de valor, ou prejuízo para o uso a que se destinam”. Face ao conceito normativo de divisibilidade acolhido no citado preceito, converge a doutrina e a jurisprudência no entendimento de que a divisibilidade ou indivisibilidade da coisa em termos jurídicos, e não físicos [cfr. José Alberto Vieira, Direitos Reais, 1ª edição, p. 184; Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 6ª edição, p. 229; acs. do STJ de 14.10.2004, processo nº 04B2961 e de 5.06.2008, processo nº 08A1372, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.]. De facto, como bem explicita Pedro Pais de Vasconcelos, in Teoria Geral do Direito Civil, 2012, p. 201: “As coisas são naturalmente divisíveis até ao infinito. Mas não é essa a divisibilidade que é relevante nesta matéria. O critério da divisibilidade jurídica das coisas assenta sobre três factores: a substância, o valor e o uso. Só podem ser tidas como divisíveis juridicamente as coisas que possam ser cindidas em partes, sem que percam a sua substância, sem que se reduza o seu valor e sem que o seu uso próprio seja prejudicado. Se faltar uma destas características, a coisa é juridicamente tida como indivisível.”. Deste modo, do ponto de vista jurídico para que se possa concluir pela divisibilidade de uma coisa corpórea é necessário que: - não se altere a sua substância; - não haja diminuição do seu valor (detrimento); - não seja prejudicado o uso da coisa. Faltando qualquer destas circunstâncias a coisa é, para a lei civil, indivisível. Por outro lado, a divisibilidade que a lei prevê no art.º 925º do NCPC há-de ser de modo a inteirar em espécie todos os interessados, sem que haja lugar a tornas - cfr. acs. do STJ, de 14.10.2004, relatado por Oliveira de Barros, de 23.09.2008, relatado por Maria dos Prazeres Pizarro Beleza e de 15.02.2018, relatado por Pedro Lima Gonçalves e ainda da RP de 13.10.2022, relatado por Judite Pires, todos consultáveis em www.dgsi.pt. Ou, como se afirma no ac. de 23.11.2008, disponível em www.dgsi.pt, a indivisibilidade de um prédio não se esgota na definição constante do art.º 209º do CC. Não desconhecemos a existência de jurisprudência no sentido da posição defendida pelos recorrentes, em particular o ac. do STJ de 15.11.12 (relatado por Abrantes Geraldes), citado por aqueles. Não obstante todo o respeito que nos merece tal posição e os argumentos invocados, sufragamos a posição contrária, que mereceu acolhimento na sentença recorrida. Na verdade, vem sendo defendido de forma quase unânime na jurisprudência, que a indivisibilidade ou a divisibilidade de uma coisa comum tem de ser aferida em função da quota-parte de cada proprietário, de forma a que os interessados sejam inteirados em espécie, aquando da divisibilidade da coisa, sem que haja lugar a tornas - cfr. art.º art.º 929º do NCPC. Daí que esta disposição legal refira que a adjudicação se efectua por acordo e na falta de acordo na adjudicação se proceda a sorteio. Como atrás se referiu, discute-se nestes autos a questão da indivisibilidade da coisa pertença de recorrentes e recorrido e demais interessados. Na decisão sob recurso refere-se que a coisa é indivisível porquanto: “ o bem não pode ser cindido de molde a por si só completar, em proporção, as quotas de cada comproprietário; e ainda ao facto de os Requeridos não terem junto certificado municipal a atestar que o edifício satisfaz os requisitos administrativos para a constituição da propriedade horizontal conclui-se, por um lado, não ser possível a constituição de propriedade horizontal e, por outro, que a divisibilidade do bem em substância se demonstra materialmente impossível.”. Os recorrentes insurgem-se contra esta decisão, afirmando, na essência, que o prédio dos autos é divisível em 6 fracções autónomas, que já estão assim a ser usadas pelos comproprietários. Porém, o que no caso presente impede a que se possa considerar a divisibilidade nos termos supra referidos é, desde logo, a impossibilidade de se formar quinhões na proporção da quota de cada comproprietários. Ou seja, não seria possível preencher os quinhões sem o recurso a tornas (dar ou receber tornas). Ora, como se referiu, o processo de divisão de coisa comum, quando ocorre a divisão do bem em compropriedade, não possibilita o pagamento ou recebimento de tornas, porquanto se determina que a adjudicação seja feita, por acordo, em conferência de interessados e, na falta de acordo se proceda a adjudicação por sorteio, o que configura a que os lotes constituídos sejam os correspondentes às quotas de cada um dos interessados. Aliás, a referência a pagamento das tornas efectuada no nº 5 do art.º 929º do NCPC, reporta-se à situação em que a coisa é considerada indivisível e, havendo acordo quanto à adjudicação a algum dos interessados, se terá de preencher as quotas dos restantes sem dinheiro. Não se olvida que as regras do processo visam a concretização dos direitos das pessoas, mas as regras enunciadas não colocam em crise esses direitos. Por outro lado, não existe qualquer confusão entre divisibilidade da coisa e divisão, porquanto a divisibilidade da coisa não é material, mas jurídica, como atrás se referiu. Com efeito, da circunstância do prédio estar dividido, como afirmam os recorrentes, não se pode extrair que o mesmo é divisível em termos jurídicos. Por outro lado, e mesmo que assim não se entendesse, a verdade é que, no caso, também não seria possível a constituição da propriedade horizontal pretendida, pois, como se refere na decisão recorrida - e tal não é contrariado ou colocado em questão pelos recorrentes -, estes não juntaram ao processo, apesar de notificados para o efeito, uma certidão camarária comprovativa de que o prédio em causa satisfaz os requisitos administrativos exigidos para a constituição da propriedade horizontal. Ora, é pacificamente aceite, que em matéria de divisão de coisa comum não é possível dispensar, no processo judicial respectivo, a certificação camarária de que o imóvel que se encontra em compropriedade satisfaz os requisitos administrativos exigidos para a constituição da propriedade horizontal de acordo com o RJUE. Neste mesmo sentido, podem ver-se, entre outros, os acs. da RP de 17.11.2011, relatado por Freitas Vieira, de 16.10.2017, relatado por Manuel Domingos Fernandes e de 13.11.2022, relatado por Judite Pires; da RG de 22.11.2007, relatado por Conceição Bucho e de 9.07.2020, relatado por Alexandra Viana Lopes; e o ac. do STJ de 29.11.2006, relatado por Nuno Camareira, todos disponíveis in www.dgsi.pt. Em conclusão, o prédio objecto dos autos não é susceptível de ser dividido em substância e os recorrentes não comprovaram que mesmo observa os requisitos de ordem administrativa para a constituição da propriedade horizontal. Assim sendo, e pelas duas ordens de razões acabadas de expôr, sempre seria inútil a realização da segunda perícia requerida pelos apelantes (art.º 130º, do NCPC). Por conseguinte, deve-se manter a decisão recorrida, pelo que o presente recurso tem de improceder in totum. As custas do presente recurso são da responsabilidade dos recorrentes (art.º 527º, nºs 1 e 2 do NCPC). * SUMÁRIO (art.º 663º, nº 7 do NCPC): I-A divisibilidade ou indivisibilidade da coisa afere-se em termos jurídicos, e não físicos ou naturalísticos. II-Em matéria de divisão de coisa comum não é possível dispensar, no processo judicial respectivo, a certificação camarária de que o imóvel que se encontra em compropriedade satisfaz os requisitos administrativos exigidos para a constituição da propriedade horizontal de acordo com o RJUE. * IV.–Decisão Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a presente apelação, confirmando-se a decisão recorrida. Custas a cargo dos recorrentes. * * Lisboa, 9.02.2023 Texto elaborado em computador e integralmente revisto pela signatária Juiz Desembargador Relator: Dr(a). Carla Maria da Silva Sousa Oliveira 1º Adjunto:Juiz Desembargador:Dr(a). Ana Paula Nunes Duarte Olivença 2º Adjunto: Juiz Desembargador: Dr. Rui Manuel Pinheiro Oliveira |