Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
137/22.5SCLSB.L1-9
Relator: RAQUEL LIMA
Descritores: CONSUMO DE ESTUPEFACIENTES
CONSUMO PARA 10 DIAS
CRIME
CONTRA-ORDENAÇÃO
TABELA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/02/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I - Afastada que esteja a hipótese de tráfico de estupefacientes de menor gravidade p. e p. pelo art. 25º do DL 15/93 de 22.02,  a posse de estupefaciente em quantidade superior à constante da tabela anexa à Portaria nº 94/96, de 26/03 (pensada para um consumidor comum) não determina, ipso facto, a prática de um crime de consumo p. e p. pelo artº 40º do CP, podendo concluir-se que a quantia detida por aquele arguido, em concreto, era a necessária para o “seu” consumo durante 10 dias, entrando, deste modo, no campo da contra-ordenação - art.º 2º da Lei 30/2000 de 29/11.
II - A tabela anexa à Portaria nº 94/96, de 26/03 é meramente indicativa e auxilia o julgador na parte que exige conhecimentos científicos.
III - Este auxílio deverá ser conjugado com a tarefa do Juiz (cuja função não se reduz à aplicação de uma tabela) de subsunção do Direito a cada caso concreto.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: 1. RELATÓRIO
ACÓRDÃO
Por sentença proferida no dia 08.06.22 (cfr. Acta do respectivo dia) o arguido A foi condenado  como autor material na forma consumada, em 22/05/2022, de um crime de consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas, previsto e punível pelo nºs 1 e 2, do artigo 40.º e Tabela I-C, do Decreto-lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, conjugado com o n.º 2, do artigo 2.º, da Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro, com as alterações introduzidas pelo Decreto-lei n.º 114/2011, de 30 de Novembro, na pena de oitenta (80) dias de multa, à razão diária de cinco euros (€5,00 euros), o que descontado um (1) dia por detenção, atento o disposto no artigo 80.º nº 2 do CP, perfaz a quantia global de trezentos e noventa e cinco euros (€395,00 euros);

Não se conformando desta decisão, o arguido recorreu.
Junta a motivação, e na sequência do Parecer do Ex. Sr. Procurador Geral Adjunto foi convidado a efectuar conclusões sob pena de rejeição do recurso, o que fez:

CONCLUSÕES:
A Impugnação da decisão proferida sobre matéria de facto dada como provada constante da alínea b) da sentença recorrida (n.º 3 do Artigo 412.º do CPP) e a ampliação da matéria de facto.
1. O Tribunal a quo deu como provado que o arguido bem sabia a natureza e características estupefacientes que tinha consigo e que lhe era vedada a sua posse/detenção/transporte, por a quantidade de produto estupefaciente apreendido corresponder a 27 doses individuais.
2. Da prova produzida em audiência de julgamento (declarações por si prestadas), impõe-se decisão diversa da recorrida.
3. O arguido impugna o facto dado como provado que o arguido este detinha uma quantidade de produto estupefaciente a que corresponde 27 doses individuais, que agiu o arguido deliberada, livre e conscientemente, com o propósito, alcançado, de trazer consigo/deter/transportar, o aludido produto, bem sabendo, a natureza e características estupefacientes do mesmo e que lhe era (é) vedada a sua posse/detenção/transporte. Bem sabendo que a sua conduta era (é) proibida e criminalmente punida (facto b) dado como provado).
4. As declarações prestadas pelo recorrente são suficientes para se demonstrar que o arguido era consumidor de haxixe, que destinava o produto que lhe foi apreendido ao seu consumo exclusivo e que a quantidade apreendida não ultrapassa as 10 doses diárias.
5. A matéria de facto dada como provada também deverá ser ampliada, constando da mesma que a quantidade apreendida não era suficiente para as dez doses diárias de consumo.
6. A prova que impõe decisão diversa da recorrida corresponde às declarações prestadas pelo arguido em audiência de discussão e julgamento de 08/06/2022 (com início às 11 horas e 22 minutos e o seu termo pelas 11 horas e 29 minutos) e com as passagens relevantes que se mostram transcritas no corpo da motivação de recurso.
7. Resulta das mesmas que o recorrente é consumidor de haxixe, que a quantidade que lhe foi apreendida destinava-se ao seu exclusivo consumo, que a mesma a apreendida não ultrapassa as dez doses diárias para o consumo médio do arguido e que o arguido consumia cerca de 30 gramas por mês.
8. Por conseguinte, a quantidade que detinha servia apenas para pouco mais de 5 dias.
9. O recorrente discorda da fundamentação do Tribunal a quo quanto ao facto que se impugna, pois o recorrente referiu que é consumidor de haxixe há vários anos, que consome tal substância e que a quantidade apreendida daria para fumar durante cinco ou seis dias.
10. Ademais, os valores da tabela constante da Portaria n.º 94/96, de 26/03 não devem ser aplicados de forma automática, pois a dose média de consumo varia de pessoa para pessoa.
11. Neste mesmo sentido, foi proferido acórdão Tribunal da Relação de Lisboa a 26 de Setembro de 2017 no âmbito do processo n.º 36/13.1GBALQ.L1-5 (com transcrições relevantes no corpo da motivação de recurso).
12. A quantidade apreendida está longe de ser significativa e por 0.05g (!!!) ultrapassa o limite máximo indicativo.
13. É normal e comum que um consumido regular de haxixe consuma mais de 5 gramas durante 10 dias – o que sucede com o arguido.
14. Conforme referido por Manuel Monteiro Guedes Valente, in Consumo de Drogas Reflexões sobre o quadro legal, Capítulo do Traficante-consumidor, do tráfico de menor gravidade e do consumo agravado, “Se se obtiverem indícios de que a quantidade é, não obstante ser superior ao consumo médio de 10 dias, para consumo do próprio (…) deve aplicar-se o regime contra-ordenacional especial previsto na Lei n.º 30/2000 e nunca o regime criminal sob pena de violarmos a teologia da política criminal de descriminalização, o princípio da necessidade de intervenção penal e o princípio da legalidade constitucionalidade penal”.
15. É exactamente o que sucede no presente caso, pois o arguido é consumidor de haxixe e consome cerca de 1 grama diariamente, tendo feito prova disso através das suas declarações (cuja credibilidade não foi posta em causa).
16. Por conseguinte, não sendo os valores da portaria n.º 94/96, de 26 de Março de aplicação automática, deverá ser dado como provado que o arguido consome cerca de 1 grama diariamente e que a quantidade que se encontra apreendida não corresponde a 27 doses individuais, mas sim a 5.
17. Pelo que o Tribunal a quo procedeu a uma errada apreciação da prova, violando os artigos 40.º, n.ºs 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22.01, com referência à Tabela I-C, anexa a esse diploma legal, anexa a esse diploma legal, devendo absolver o arguido do crime pelo qual vinha acusado.
18. Por conseguinte, deverá o acórdão recorrido ser modificado na parte em que dá como provado que a quantidade de haxixe apreendida corresponde a 27 doses individuais e que o arguido agiu deliberada, livre e conscientemente, com o propósito, alcançado, de trazer consigo/deter/transportar, o aludido produto, bem sabendo, a natureza e características estupefacientes do mesmo e  que lhe era (é) vedada a sua posse/detenção/transporte. Bem sabendo que a sua conduta era (é) proibida e criminalmente punida, dando como não provados tais factos.
19. Mais deverá a matéria de facto dada como provada ser ampliada, ficando a constar da mesma que a quantidade de produto estupefaciente apreendida ao arguido corresponde a 5 doses individuais.
*
A Digna Magistrada do Ministério Público respondeu dizendo:
(…)
Daqui resulta que é a seguinte a questão a apreciar:
- O Tribunal a quo fez uma correcta apreciação e valoração da prova?
De acordo com os elementos probatórios carreados para os autos, cremos, salvo melhor opinião, que a resposta é positiva.
Na verdade, o tribunal a quo deu como provados os factos vertidos no libelo acusatório em face da confissão livre, integral e sem reservas – conforme se alcança da acta de julgamento com a referência citius 416588610 (e respectiva gravação), da qual, resulta que e, passamos a transcrever «(...)Logo de seguida, o Mm.º Juiz proferiu o seguinte despacho:
"O arguido confessou de forma livre integral e sem reservas dos factos que se encontra acusado, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 344º do C.P.P. consequentemente dispensa-se a testemunha que se encontra presente".»
Para além da confissão do arguido, o tribunal a  quo, atendeu, também, ao teor do relatório pericial junto a fls. 32, no que respeita à natureza do produto apreendido ao arguido, ao respectivo grau de pureza (%) e ao número de doses individuais correspondente [grau de pureza (%) 27.2 (THC); vinte e sete (27) doses].
Os elementos constantes do referido relatório pericial elaborado pelo Laboratório de Polícia Científica da Polícia Judiciária, revestem uma natureza técnico-científica e não são susceptíveis de ser abalados pelas declarações prestadas pelo arguido/recorrente.
Pelo exposto, não assiste razão ao recorrente ao afirmar que o tribunal a quo deveria ter dado como provado que a quantidade de produto estupefaciente apreendida ao arguido corresponde a cinco (5) doses individuais, sendo certo, que de acordo com o teor do aludido relatório pericial, o produto apreendido ao arguido correspondia a vinte e sete (27) doses.
Pelo que, em Conclusão:
- O tribunal a quo fez uma correcta apreciação e valoração da prova.
- A decisão proferida pelo tribunal a quo é formal e materialmente válida.
Termos em que, devem improceder os argumentos apresentados pelo recorrente, ser negado provimento ao recurso e confirmada na íntegra a decisão recorrida, fazendo-se, assim, a tão costumada Justiça.
*
Já nesta Relação, o Ex. Sr. Procurador Geral Adjunto emitiu Parecer dizendo:
Impugna o arguido a matéria de facto dada como provada na sentença proferida nestes autos, em processo sumário, a qual o condenou pela prática de um crime de consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas, previsto e punível pelo n.ºs 1 e 2, do artigo 40 e Tabela I do Decreto-lei nº 15193, de 22 de Janeiro, conjugada com o n.º 2, do artigo 2.9, da Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro, com as alterações introduzidas peio Decreto-lei nº 114/2011, de 30 de Novembro, na pena de oitenta (80) dias de multo, à razão diária de cinco euros (€5,00 euros), o que descontado um (1) dia por detenção, atento o disposto no artigo 80º nº do CP, perfaz a quantia global de trezentos e noventa e cinco euros (€395,00 euros),
Alicerça o arguido a sua fundamentação unicamente na circunstância do teor das suas declarações prestadas em audiência (que transcreve), e que constituíram a única prova que durante esta foi produzida, imporem, no seu entender, decisão diversa,
O tipo legal pelo qual o arguido foi condenado prescreve, no seu n.º 1, que quem consumir ou, para o seu consumo, cultivar, adquirir ou detiver plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas é  punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 30 dias e, no seu n.º 2, que se a quantidade de plantas, substâncias ou preparações cultivada, detida ou adquirida pelo agente excedera necessário para o consumo médio indivíduo! durante o período de 3 dias, a pena é de prisão até 1 ano ou de multa até 120 dias.
O âmbito de aplicação das referidas normas é, contudo, limitado pelo que resulta da aplicação conjugada do disposto nos artigos 2º  n.º s 1 e 2, 15º, 16º e 28º da Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro, considerando-se que incorre apenas na prática de uma contra-ordenação p.p, por estas últimas disposições legais quem detiver, para consumo próprio, as plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas l a IV anexas ao Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, desde que aquelas não excedam a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias.
Propugna assim o recorrente que, decorrendo das suas declarações que detinha o referido estupefaciente para consumo próprio, e que a quantidade detida não excedia o seu consumo médio individual por mais de 10 dias, não seria aplicável à sua conduta o tipo legal a que se reporta o artigo 40º, 1 e 2, do DL 15/93„ de 22 de Janeiro mas, e permitir-nos-íamos acrescentar, antes a contra-ordenação p.p. pela Lei nº 30/2000, de 29 de Novembro.
Para integrar o conceito de uma dose média individual a que alude este último diploma, impõe-se a consideração dos valores fixados pelo mapa anexo à Portaria n.º 94/96, de 26/03 que a determinam com referência quer à quantidade de estupefaciente que é detido, quer ao respectivo grau de pureza, embora com carácter meramente indicativo.
Ora, de acordo com o teor do auto de perícia de fls. 32, o arguido detinha em seu poder 5,025 gramas de canábis, com um grau de pureza de 27,2 (THC) o que correspondia a 27 doses diárias individuais ou, o mesmo é dizer, que detinha em seu poder uma quantidade de estupefaciente que permitiria a um consumidor normal o seu consumo durante 27 dias.
Nestes termos, a imputação do facto punível, para efeitos de subsunção da referida conduta ao tipo legal do 40.º, n.ºs 1 e 2, do DL 15/93, de 22 de Janeiro, impunha que o Ministério Público alegasse, na acusação, que o arguido detinha em seu poder, para exclusivo consumo próprio o referido estupefaciente, cuja quantidade e grau de pureza, correspondendo a 27 doses diárias Individuais médias, excediam o necessário para o seu consumo por mais de 10 dias.
Ora, da acusação apenas consta que a quantidade e grau de pureza do estupefaciente detido correspondiam a 27 doses individuais, não se especificando o que, quer o arguido, quer o próprio tribunal de julgamento, deveria entender por dose individual.
Por via de tal facto, e salvo evidentemente todo o devido respeito, a acusação deduzida estaria ferida da nulidade a que alude o artigo 283º, nº 2, alínea b), a qual, não recaindo no elenco das nulidades insanáveis a que se reporta o artigo 119º, se deve ter por sanada de acordo com a aplicação conjugada dos artigos 120.º, nº 1 e 121.º, nº 1, alínea b), todos do Código de Processo Penal.
Contudo, e dado que a materialidade imputada ao arguido na mesma acusação é insusceptível de subsunção, pelas razões expostas, ao tipo legal do 40.º, art.ºs 1 e 2, do DL 15/93, de 22 de Janeiro, mas que ficou provado— nem esse facto é colocado em causa no recurso- que o arguido detinha o referido estupefaciente para seu consumo próprio e exclusivo, considera-se que aquela mesma materialidade é meramente enquadrável na prática da contra-ordenação resultante da aplicação conjugada do disposto nos artigos 2.º, n,ºs 1 e 2, 15.º,16.º e 28.º da Lei n, 30/2000, de 29 de Novembro.
Termos em que se concluí, que embora com diferentes fundamentos, o recurso é merecedor de provimento.
*
Cumprido o art.º 417º, nº 2, do CPP não houve resposta ao Parecer.
Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado, de harmonia com o preceituado no art.º 419º, n.º 3  al. c), do diploma citado.

I. Fundamentação
A) Delimitação do Objecto do Recurso
Como tem sido entendimento unânime, o objecto do recurso e os poderes de cognição do tribunal da Relação definem-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, onde deve sintetizar as razões da discordância do decidido e resumir as razões do pedido - artigos 402º, 403.º e 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, naturalmente que sem prejuízo das matérias de conhecimento oficioso (cfr. Silva, Germano Marques da, Curso de Processo Penal, Vol. III, 1994, p. 320; Albuquerque, Pinto de, Comentário do Código de Processo Penal, 3ª ed. 2009, pag 1027 e 1122, Santos, Simas, Recursos em Processo Penal, 7.ª ed., 2008, p. 103; entre outros os Acs. do S.T.J., de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242; de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271; de 28.04.1999, CJ/STJ, Ano VII, Tomo II, p. 196).
No caso vertente, em face das conclusões do recurso, as questões a apreciar são as seguintes:
- saber se o arguido com a detenção do produto estupefaciente referido nos autos cometeu um crime de consumo, p e p. pelo art.º 40º do CP ou uma mera contra-ordenação p.p. pela Lei nº 30/2000, de 29 de Novembro.
-  necessidade de reexame da matéria de facto, nos termos do art.º 412.º, n.ºs 3 do CPP.

B) Decisão Recorrida
Com vista à apreciação das questões supra enunciadas, importa ter presente o seguinte teor da decisão recorrida.
No dia 22.05.2022, pelas 18 horas e 10 minutos, na Rua Quinta do Loureiro, Bairro Quinta do Loureiro, freguesia de Campo de Ourique, na área desta comarca de Lisboa, o arguido, trazia consigo/detinha/transportava, no interior do bolso direito das calças que trajava na ocasião:
- Canábis (resina) com o peso (g)/volume (ml) total de 5.025 g (L), com o grau de pureza (%) de 27.2 (THC), correspondente a vinte e sete (27) doses individuais.
O arguido destinava o mencionado produto estupefaciente ao seu consumo próprio e exclusivo.
Agiu o arguido deliberada, livre e conscientemente, com o propósito, alcançado, de trazer consigo/deter/transportar, o aludido produto, bem sabendo, a natureza e características estupefacientes do mesmo e que lhe era (é) vedada a sua posse/detenção/transporte.
Bem sabendo que a sua conduta era (é) proibida e criminalmente punida.
De acordo com a factualidade descrita, cometeu, assim, o arguido, em autoria material (cfr. artigo 26º do Código Penal) e na forma consumada:
- Um crime de consumo de estupefacientes, previsto e punido, pelo artigo 40º, nºs 1 e 2, do D. L. nº 15/93, de 22.01. e respectivas alterações, com referência à tabela I-C, anexa ao mesmo diploma legal.
*
O Mmº Juiz referiu não ter dúvidas na verificação dos factos da acusação pública.
Como o arguido sabe, a posse de estupefaciente que ultrapasse as 10 doses, constituiu um ilícito e tal não tem a ver com o peso, mas com a conjugação entre peso e grau de pureza, não relevando que o arguido acreditasse que tinha consigo 5 gramas.
Daí a condenação do arguido pelo crime de consumo.

C) Apreciação da questão em recurso.
Nos termos do disposto no art.º 410º do CPP, com a epígrafe “fundamentos do recurso” 1 - Sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respectivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida. 2 - Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova. 3 - O recurso pode ainda ter como fundamento, mesmo que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada.

Do preceituado nos artigos 368.º e 369.º do CPP pela remissão que é feita pelo art.º 424º nº 2 CPP, o Tribunal da Relação deve conhecer das questões que constituem objecto do recurso pela ordem seguinte:
Em primeiro lugar, das que obstem ao conhecimento do mérito da decisão;
Em segundo lugar, das questões referentes ao mérito da decisão, desde logo, as que se referem à matéria de facto, começando pelos vícios enumerados no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, a que se segue impugnação alargada, se deduzida, nos termos do art.º 412.º, do mesmo diploma;
Por último, as questões relativas à matéria de Direito.
Inexistindo elemento que impeça o conhecimento do mérito do recurso, passemos à análise dos VÍCIOS DO ART.º 410º CPP e 412º nº 3 CPP

Citando o AC RE de 09.01.2018 in www.dgsi.pt.” A impugnação da decisão da matéria de facto pode processar-se por uma de duas vias: através da arguição de vício de texto previsto no art.º 410º nº 2 do CPP, dispositivo que consagra um sistema de reexame da matéria de facto por via do que se tem designado de revista alargada, ou por via do recurso amplo ou recurso efectivo da matéria de facto, previsto no art.º 412º, nºs 3, 4 e 6 do CPP (é esta última norma que o recorrente invoca na sua impugnação).
O sujeito processual que discorda da “decisão de facto” do acórdão pode, assim, optar pela invocação de um erro notório na apreciação da prova, que será o erro evidente e visível, patente no próprio texto da decisão recorrida (os vícios da sentença poderão ser sempre conhecidos oficiosamente e mesmo que o recurso se encontre limitado a matéria de direito, conforme acórdão uniformizador do STJ, de 19.10.95) ou de um erro não notório que a sentença, por si só, não demonstre.
No primeiro caso, a discordância traduz-se na invocação de um vício da sentença ou acórdão e este recurso é considerado como sendo ainda em matéria de direito; no segundo, o recorrente terá de socorrer-se de provas examinadas em audiência, que deverá então especificar.
Na verdade, impõe o art.º 412º, nº 3 do CPP que quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto por via do recurso amplo o recorrente especifique os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, as concretas provas que impõem decisão diversa da tomada na sentença e/ou as que deviam ser renovadas. Esta especificação deve fazer-se por referência ao consignado na acta, indicando-se concretamente as passagens em que se funda a impugnação (art.º 412º, nº 4 do CPP). Na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações, bastará “a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas pelo recorrente,” de acordo com a jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça em 08.03.2012 (AFJ nº 3/2012).
O incumprimento das formalidades impostas pelo art.º 412º, n.ºs 3 e 4, quer por via da omissão, quer por via da deficiência, inviabiliza o conhecimento do recurso da matéria de facto por esta via ampla. Mais do que uma penalização decorrente do incumprimento de um ónus, trata-se de uma real impossibilidade de conhecimento decorrente da deficiente interposição do recurso.”
Saliente-se, contudo, que o recurso da matéria fáctica dada como assente consubstanciando um duplo grau de jurisdição nesse âmbito não significa no nosso sistema recursivo que se proceda a um segundo julgamento com a nova valoração dos depoimentos prestados. O recurso visa a decisão em concreto e não o julgamento.
Deste modo, a reapreciação da matéria de facto pelo Tribunal da Relação só é possível em dois planos distintos. O primeiro tem por objectivo aferir da existência dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, vícios que têm que resultar do texto da decisão recorrida, por si só conjugadamente com as regras da experiência comum, sem recurso a elementos externos. Trata-se da verificação de erros de julgamento que se infiram do próprio texto da decisão, cujo conhecimento aliás é de conhecimento oficioso, independentemente de haver ou não recurso da matéria de facto. Um segundo plano existe no qual é possível “atacar” os factos dados como provados, procurando convencer o Tribunal da Relação a modificar a matéria de facto, pressupondo naturalmente uma reapreciação dos elementos probatórios, fundamento que tem por base o tal erro na apreciação da prova, determinativo de erro judiciário. Em tal vertente, porém, a lei exige na alínea b) do nº 3 do artigo 412º que sejam apresentadas “prova que imponha decisão diversa da recorrida”.
Ou seja, neste segundo plano, a reapreciação da prova está contida dentro dos limites impostos pelo artigo 412.º, n.ºs 3 e 4 do Código de Processo Penal, que mais não constitui do que um ónus de especificação que impende sobre cada um dos recorrentes, sob pena de, não o fazendo, o respectivo recurso fica inviabilizado.
No caso vertente, não se recorta do texto decisório qualquer daqueles vícios, que aliás podem ser conhecidos oficiosamente, nem se mostra minimamente cumprido o procedimento exigido na norma do artigo 412.º do citado compêndio legal.
Acrescente-se que, e como é jurisprudência pacífica do S.T.J. (cfr. por todos o douto Sentença do Supremo Tribunal de Justiça proferido em 02.03.2016 no Pº 81/12.4GCBNV.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt),
“(…) Os vícios do n.º 2 do artigo 410º do CPP, todos eles relativos ao julgamento da matéria de facto, têm de resultar do próprio texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.
– Quanto ao vício previsto pela al. a) do n.º 2 do artigo 410º do CPP, o mesmo só ocorrerá quando da factualidade vertida na decisão se concluir faltarem elementos que, podendo e devendo ser indagados ou descritos, impossibilitem, por sua ausência, um juízo seguro (de direito) de condenação ou de absolvição. Trata-se da formulação incorrecta de um juízo: a conclusão extravasa as premissas; a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a solução de direito encontrada.
– Quanto ao vício previsto pela al. b) do n.º 2 do artigo 410º do CPP, verifica-se contradição insanável – a que não possa ser ultrapassada ainda que com recurso ao contexto da decisão no seu todo ou às regras da experiência comum – da fundamentação – quando se dá como provado e não provado determinado facto, quando ao mesmo tempo se afirma ou nega a mesma coisa, quando simultaneamente se dão como assentes factos contraditórios, e ainda quando se estabelece confronto insuperável e contraditório entre a fundamentação probatória da matéria de facto, ou contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, quando a fundamentação justifica decisão oposta, ou não justifica a decisão.
– Quanto ao vício previsto pela al. c) do n.º 2 do artigo 410º do CPP, o mesmo verifica-se quando, partindo do texto da decisão recorrida, a matéria de facto considerada provada e não provada pelo tribunal a quo, atenta, de forma notória, evidente ou manifesta, contra as regras da experiência comum, avaliadas de acordo com o padrão do homem médio. É um vício intrínseco da sentença, isto é, que há-de resultar do texto da decisão recorrida, de tal forma que, lendo-o, logo o cidadão comum se dê conta que os fundamentos são contraditórios entre si, ou com a decisão tomada.
(…)”
Os vícios decisórios, como vícios da sentença, necessariamente teriam de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sendo certo que, da leitura efectuada do acórdão impugnado, não descortinamos a existência de qualquer vício, mormente nos moldes alvitrados pelos arguidos na sua motivação de recurso.
Assim, em nossa opinião, com a arguição dos vícios decisórios nos moldes assinalados, os Recorrentes pretendem, repetindo-nos, é pôr em causa a convicção do Tribunal através da sua própria interpretação da prova produzida, ensaiando impugnar a decisão sobre a matéria de facto.
Como se vê do Ac. TRL de 18/07/2013, “III – (…) Quando os recorrentes entendem que a prova foi mal apreciada devem proceder à impugnação da decisão sobre a matéria de facto conforme o artigo 412º n.º 3 do Código de Processo Penal (…)”.
Ora, o regime legal estabelecido em matéria de recursos penais prevê que, para que possa ter lugar o reexame da prova, o Recorrente terá de cumprir o formalismo correspondente, designadamente o do n.º 3 do artigo 412º do C.P.P., devendo as conclusões conter a menção aos pontos de facto que consideram incorrectamente julgados (alínea a), as provas que impõem decisão diversa da recorrida (alínea b) e as que devem ser renovadas (alínea c), com referência aos suportes técnicos (n.º 4). “

No caso ora em preço, o recorrente dirige a sua atenção ao nº 3 do art.º 412º do CPP, ou seja, na sua opinião, a decisão do recurso passará por um reexame da prova, sendo que são as declarações do arguido que impõem uma decisão diversa.

Nota prévia:
O Ex. Sr. Procurador Geral Adjunto, nos termos do Parecer que juntou aos autos e que já referimos supra, entende que, pela análise da própria acusação, o resultado não podia ser outro a não ser considerar que o produto estupefaciente detido só podia levar a uma condenação do arguido como contra-ordenação.
Parece-nos que terá sido este o raciocínio do Ex. Sr. Procurador Geral Adjunto:
- o arguido detinha na sua posse Canábis (resina) com o peso (g)/volume (ml) total de 5.025 g (L).
- em face desta circunstância há que decidir, produzida a prova no inquérito – se aquela quantidade de estupefaciente se destinava a consumo próprio ou a venda a terceiros (note-se que mesmo o arguido que tenha em seu poder 2 gramas de haxixe – quantidade que estava longe de ultrapassar o necessário para  o consumo  por 10 dias previsto no art.º 9.º da Portaria n.º 94/96, de 26.03 e respectivo Mapa, pode cometer um crime de tráfico de produto de estupefaciente se destinasse aquela quantia a terceiros, ou, melhor, se não a destinasse a consumo próprio.)
- concluindo que se destina ao consumo do arguido, há mais uma vez que determinar se a quantidade na posse do arguido correspondia ao necessário para o seu consumo durante 10 dias.
- nesta hipótese, à partida, os valores da tabela constante da Portaria nº 94/96, de 26/03 são de grande valia.
- à partida, um consumidor normal, necessitará do valor ali constante para o seu consumo durante 10 dias.
- na falta de outros elementos, o Ministério Público considera que incorreu na prática de uma contra-ordenação se a quantidade detida pelo arguido for igual ou inferior ao necessário para o consumo durante 10 dias, socorrendo-se da tabela; praticará um crime de consumo p. e p. pelo art.º 40º se a quantidade detida pelo arguido, destinada ao consumo, exceder o necessário ao consumo durante 10 dias.

No caso dos autos o arguido detinha na sua posse Canábis (resina) com o peso (g)/volume (ml) total de 5.025 g (L).
Efectuada a perícia constatou-se que aquele 5.025 g tinham um grau de pureza (%) de 27.2 (THC), correspondente a vinte e sete (27) doses individuais.

Mas o que são estas 27 doses individuais?
São 27 doses de acordo com a quantidade individual de cada uma, constante da tabela anexa à Portaria nº 94/96, de 26/03, dizemos nós.
O Ex. Sr. Procurador Geral Adjunto entende que a expressão “ superior ao necessário ao consumo diário durante 10 dias”, tinha que estar na acusação sob pena de se considerar que o produto detido, provado que o destino era só o consumo, constituir, sempre, independentemente da quantidade, a prática de uma contra-ordenação.
Concordámos com o Ex. Sr. Procurador, mas apesar de não ser uma peça exemplar, conseguimos “ler” na acusação que quer referir-se a 27 doses individuais conforme a portaria e, como é quantia superior à quantidade necessária ao consumo para 10 dias (segundo o mapa anexo à mesma Portaria) o arguido pratica um crime de consumo.
Esta foi, igualmente, a interpretação efectuada pelo arguido dos factos que lhe são imputados.

Chegados aqui, o que fazer?

A este propósito o tribunal recorrerá ao Relação de Coimbra – Acórdão de 01.06.2008 in www.dgsi.pt.
Neste pode ler-se” O artigo 127.º do CPP. consagra o princípio da livre apreciação da prova, não se encontrando o julgador sujeito às regras rígidas da prova tarifada, o que não significa que a actividade de valoração da prova seja arbitrária, pois está vinculada à busca da verdade, sendo limitada pelas regras da experiência comum e por algumas restrições legais. Tal princípio concede ao julgador uma margem de discricionariedade na formação do seu juízo de valoração, mas que deverá ser capaz de fundamentar de modo lógico e racional.
Porém, nessa tarefa de apreciação da prova, é manifesta a diferença entre a 1.ª instância e o tribunal de recurso, beneficiando aquela da imediação e da oralidade e estando este limitado à prova documental e ao registo de declarações e depoimentos.
A imediação, que se traduz no contacto pessoal entre o juiz e os diversos meios de prova, podendo também ser definida como “a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes no processo, de modo tal que aquele possa obter uma percepção própria do material que haverá que ter como base da sua decisão”, confere ao julgador em 1.ª instância meios de apreciação da prova pessoal de que o tribunal de recurso não dispõe. É essencialmente a esse julgador que compete apreciar a credibilidade das declarações e depoimentos, com fundamento no seu conhecimento das reacções humanas, atendendo a uma vasta multiplicidade de factores: as razões de ciência, a espontaneidade, a linguagem (verbal e não verbal), as hesitações, o tom de voz, as contradições, etc. As razões pelas quais se confere credibilidade a determinadas provas e não a outras dependem desse juízo de valoração realizado pelo juiz de 1.ª instância, com base na imediação, ainda que condicionado pela aplicação das regras da experiência comum.
A ausência de imediação determina que o tribunal de 2.ª instância, no recurso da matéria de facto, só possa alterar o decidido pela 1.ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida (al. b) do n.º 3 do citado artigo 412.º). (…)
Com a alteração do Código de Processo Penal operada pela Lei 48/07 de 29.8, mantém-se actual a jurisprudência supra aludida com a ressalva de que o Tribunal da Relação deve agora proceder ao exame das provas produzidas em audiência pela audição através da audição das passagens indicadas (art.º 412º nº 6 do Código de Processo Penal), constantes, no caso dos autos, da gravação magnetofónica efectuada (art.º 364º nº 1 do Código de Processo Penal).
Conforme escreve o Professor Manuel Cavaleiro de Ferreira, se a intenção é vontade e esta é acto psíquico, acto interior são, contudo, grandes as dificuldades para dar praticabilidade a conceitos que designam actos internos, de carácter psicológico e espiritual. Por isso se recorre a regras da experiência, que as leis utilizam quando elas podem dar aos conceitos maior precisão...
Importa recorrer a regras de experiência para se aferir ou não da intenção criminosa e para retirar os elementos confirmativos da sua verificação da matéria fáctica dada como provada.
Ora, “a censura quanto à forma de formação da convicção do tribunal não pode assentar, de forma simplista, no ataque da fase final da formação de tal convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade de formação da convicção. Doutra forma seria uma inversão da posição das personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar pela convicção dos que esperam a decisão” No mesmo sentido vai a jurisprudência uniforme deste Tribunal da Relação: “Quando a atribuição de credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear numa opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum”. Transcreve-se aqui parte do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10.1.08, proc. 07P4198, em www.dgsi.pt], citando Cristina Líbano Monteiro, que explica cabalmente porque é que em casos como o dos autos não ocorre a violação do aludido princípio: “De todo o modo, não haverá, na aplicação da regra processual da «livre apreciação da prova» (art.º 127.º do CPP), que lançar mão, limitando-a, do princípio «in dubio pro reo» exigido pela constitucional presunção de inocência do acusado, se a prova produzida [ainda que «indirecta»], depois de avaliada segundo as regras da experiência e a liberdade de apreciação da prova, não conduzir – como aqui não conduziu - «à subsistência no espírito do tribunal de uma dúvida positiva e invencível sobre a existência ou inexistência do facto». O “in dubio pro reo”, com efeito, «parte da dúvida, supõe a dúvida e destina-se a permitir uma decisão judicial que veja ameaçada a concretização por carência de uma firme certeza do julgador» (cfr. Cristina Líbano Monteiro, «In Dubio Pro Reo», Coimbra, 1997).
Até porque «a prova, mais do que uma demonstração racional, é um esforço de razoabilidade» (idem, p 17): «O juiz lança-se à procura do «realmente acontecido» conhecendo, por um lado, os limites que o próprio objecto impõe à sua tentativa de o «agarrar» (idem, p. 13). E, por isso, é que, «nos casos [como este] em que as regras da experiência, a razoabilidade («a prova, mais do que uma demonstração racional, é um esforço de razoabilidade») e a liberdade de apreciação da prova convencerem da verdade da acusação (suscitando, a propósito, “uma firme certeza do julgador”, sem que concomitantemente “subsista no espírito do tribunal uma dúvida positiva e invencível sobre a existência ou inexistência do facto”), não há lugar à intervenção da «contraface (de que a «face» é a «livre convicção») da intenção de imprimir à prova a marca da razoabilidade ou da racionalidade objectiva» que é o in dubio pro reo (cuja pertinência «partiria da dúvida, suporia a dúvida e se destinaria a permitir uma decisão judicial que visse ameaçada a sua concretização por carência de uma firme certeza do julgador» (idem).
Como dissemos supra, a ausência de imediação determina que o tribunal de 2.ª instância, no recurso da matéria de facto, só possa alterar o decidido pela 1.ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida (al. b) do n.º 3 do citado artigo 412.º). (…)”
A decisão do presente recurso passará por um reexame da prova, designadamente das declarações do arguido.
O tribunal ouviu as declarações do arguido e passa a transcrever parte das mesmas, tal como este o fez, com interesse para a decisão da causa:
A
Sim doutor. É verdade que eu tinha as cinco zero ponto vinte e cinco gramas, mas é o seguinte, eu quando fui comprar eu pensava que só ia comprar cinco gramas. Aquilo que sempre me propuseram era cinco gramas a vinte e cinco euros, é o que eu costumo comprar, está a ver? Eu não sabia que ia comprar mais do que cinco gramas. Nem sabia bem a pureza que isso tinha. Não tinha como saber, está a ver doutor?

Meritíssimo Juiz - 00:02:04
Pronto. Mas este produto de estupefaciente era para quê?

A
Era para meu consumo, eu costumo comprar.

Meritíssimo Juiz
O senhor costuma consumir?

A
Cinco graminhas, vinte e cinco euros.

Meritíssimo Juiz
O senhor consome há quanto tempo?

A
Já consumi há algum tempo, mas agora, devido aos problemas que tenho tido deixo de consumir, doutor.
(….)
A
Não, não. As coisas foram assim que aconteceram, mas é como eu lhe disse, quando eu vou comprar sempre me disseram que era cinco gramas vinte e cinco euros, está a ver? Eu não sabia que aquilo tinha mais do que vinte e cinco gramas. Não fazia ideia.

Meritíssimo Juiz
Sim, mas sabia que era produto estupefaciente.

A
Sim, sim, si. Sabia, claro.

Meritíssimo Juiz
Senhor procurador?

Digno Magistrado, M.º P.º
Nós só temos dois esclarecimentos aqui do arguido, mas reportamos desde já a confissão, não sei se…
(…)
É saber como é que estava o produto. Se era um pedaço só ou…

A
Era só um pedaço, era só um pedaço.
(…)

Dois mil e dezasseis, portanto há seis anos, não é? E com que regularidade é que consumia agora, quando foi…

A
Três ganzas por dia, mais ou menos.
(…)

Advogado
Senhor A, diga-me uma coisa, só para ficar aqui assente, o senhor, em primeiro lugar, onde é que comprou este produto estupefaciente?

A
Lá no bairro, onde eu estava a sair, a Rua Quinta do (imperceptível…)

Advogado
Pronto. Ou seja, tinha acabado de comprar. E concretamente quantos gramas é que solicitou?

A
Cinco gramas.

Advogado
E porque é que solicitou cinco gramas?

A
Porque é aquela quantidade que eu sabia que ainda podia meter, dava-me mais ou menos para uma semana. Também não precisava de comprar muito mais.

Advogado - 00:07:00
Pronto. Relativamente aqui ao grau de pureza, o senhor tinha algum conhecimento que esta substância… foi transmitido que esta substância tinha vinte e sete ponto dois por cento de THC?

A
Não, nem nunca temos como saber, não é doutor?

Advogado
Não sabia, ok. Olhe, estes cinco gramas davam para quantos dias de consumo?

A
Cinco, seis.

Advogado
Cinco, seis dias. E então, mais ou menos quanto é que… pelo menos, no mínimo, quantos… que quantidade é que consome por dia?

A
Três ganzas. Consumia.

Advogado
Sim. Mas isso traduz-se em quantos gramas?

A
Uma tira, uma grama, mais ou menos. dependente.

Advogado
Uma tira, um grama. Ok. E isto era todos os dias do mês?
(…)

Meritíssimo Juiz
Muito obrigado. Portanto, o arguido confessou de forma livre, integral e sem reservas os factos que se encontra acusado. Nos termos e para os efeitos… diga doutor.

Advogado
Eu acho que o arguido não confessou ter conhecimento do grau de pureza.
Meritíssimo Juiz

Pois não. Não podia confessar isso. Isso decorre do exame pericial. Portanto, o arguido confessou de forma livre, integral e sem reservas os factos que se encontra acusado, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo trezentos e quarenta e quatro do Código de Processo Penal. Consequentemente dispense-se as testemunhas que se encontrem presentes.
*
Vejamos alguma jurisprudência:
Acórdão da Relação do Porto de 8 de Setembro de 2020 Proc. nº 106/19.2PBMAI.P1   onde se pode ler “ (…) Diversamente do que foi considerado pelo tribunal a quo, não ficou demonstrado que o produto estupefaciente detido pelo recorrente excedia a quantidade necessária para o consumo médio individual por dez dias, não se encontrando preenchido, por isso, o tipo de ilícito do crime de consumo de estupefacientes contido no art.º 40.º, nº 2, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22/1?
Delimitado o thema decidendum, importa conhecer a factualidade em que assenta a condenação proferida.

Factos provados e não provados [1]:
1- No dia 01 de Fevereiro de 2019, pelas 18h05, na Rua …, em …, o arguido detinha na sua posse Cannabis (Resina), com o peso líquido de 9,67 gramas.
2. O arguido detinha consigo a referida quantidade de substância estupefaciente, suficiente para 17 doses, que destinava ao seu próprio consumo e, só por força da intervenção policial e contra sua vontade, não se manteve tal detenção, nem se concretizou o transporte da mesma para outro lugar e o seu consumo integral.
3. Ao agir da forma descrita, tinha o arguido a vontade livre e a perfeita consciência de estar a adquirir, transportar e a deter, em quantidade superior à legalmente fixada para o consumo médio individual para o período de 10 dias, a referida substância estupefaciente, bem sabendo que a aquisição, o transporte e a detenção da mesma, nessa quantidade, era proibida e punida por Lei. (….)
Mais adiante, na análise jurídica dos factos demonstrados, acrescentou o tribunal a quo o seguinte: “O produto apreendido ao arguido (cannabis) vem referida na Tabela 1-C anexa ao Dec.-Lei n.º 15/93, de 22.01.
O limite quantitativo máximo para cada dose média individual diária da referida substância é de 0,5 gramas – cfr. art.º 9.º da Portaria n.º 94/96, de 26.03 e respectivo Mapa.
Face à quantidade de produto estupefaciente apreendido ao arguido – cannabis com o peso líquido de 9,67 gramas – facilmente se conclui que o mesmo detinha uma quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias (5 gramas).
Acresce que se apurou que o arguido naquela data era consumidor dos produtos estupefacientes apreendidos e destinava os mesmos ao seu consumo e que tal quantidade é superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de dez dias e que agiu de modo voluntário e consciente, detendo o produto apreendido, cujas propriedades estupefacientes bem conhecia, sabendo que a quantidade que detinha era superior à necessária para o consumo durante dez dias e que, por isso, a sua conduta constituía crime.
Assim, face ao supra exposto, encontram-se preenchidos os elementos objectivos e subjectivo, sendo este na forma de dolo directo, do tipo de crime de consumo, p. e p. pelo citado art.º 40.º, n.º 2.”.
Assiste razão ao recorrente quando assinala que os valores de “dose média individual” previstos na Tabela anexa à Portaria nº 94/96, de 26/3 não são inderrogáveis, automáticos ou imperativos. Podem ser considerados valores de consumo médio individual diferentes, em função das características individuais do consumidor em questão, como é assinalado no acórdão deste TRP, datado de 2/10/2013 [2].
Além disso, a indicação dos valores correspondentes ao consumo médio de resina de cannabis (0,5 gr. diários) pressupõe um grau de concentração médio de 10% de A9TIIIC, não de 100%. Como se explica no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 25-10-2017, proferido no Proc. n.º 180/16.3PJOER.L1-3[19], «O Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, que instituiu o ainda vigente regime jurídico aplicável ao tráfico e consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas, estabeleceu, no seu artigo 71.º, n.º 1, al. c) que “Os Ministros da Justiça e da Saúde, ouvido o Conselho Superior de Medicina Legal, determinam, mediante portaria: (…) c) Os limites quantitativos máximos do princípio activo para cada dose média individual diária das substâncias ou preparações constantes das tabelas I a IV, de consumo mais frequente».
A Portaria n.º 94/96, de 26 de Março, que, de acordo com o seu preâmbulo, teve o propósito de viabilizar a realização da perícia médico-legal e do exame médico referidos nos artigos 52.º e 43.º do Decreto-Lei n.º 15/93, determinou no seu artigo 9.º que “Os limites quantitativos máximos para cada dose média individual diária das plantas, substâncias ou preparações constantes das tabelas I a IV anexas ao Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, de consumo mais frequente, são os referidos no mapa anexo à presente portaria, da qual faz parte integrante”. Sublinha-se no acórdão do TRL, de 13/2/2020 [3], que a cannabis apresenta-se sob uma forma natural e a presença do tetrahidrocannabinol, ou seja, do componente responsável pelos efeitos psicotrópicos do produto e que determina a potência do estupefaciente, difere significativamente consoante diversos factores próprios da planta, como sejam a zona de cultivo ou a selecção das partes a utilizar.
Compreende-se por isso que a tabela relativamente à cannabis não indique apenas limites quantitativos para a dose média individual diária e afirme que esses mesmos limites dependem de concentrações médias de THC.
Dos elementos constantes do mapa ou tabela anexa à Portaria n.º 94/96, de 26 de Março decorre, em primeiro lugar, que se determina uma quantidade de “substância”, ou seja, de cannabis e não um peso do princípio activo e, em segundo, que a quantidade indicada para a cannabis-resina (0,5 gramas) se refere “a uma concentração média de 10% de A9THC” e não a um estado de pureza absoluta da substância ou uma concentração de 100% [4].
Os valores em causa deverão ser adaptados tendo em conta o concreto grau de pureza inferior ou superior ao previsto na mencionada tabela. Uma concentração média superior de Tetraidrocanabinol justifica que proporcionalmente se reduza a quantidade de cannabis necessária à imputação da conduta como crime, do mesmo modo que uma concentração inferior daquele princípio activo justificará o inverso.
No caso dos autos, em estrita obediência ao que preceitua o art.º 10.º, n.º 1, da mencionada Portaria [5], o relatório de exame pericial indica, para além do mais, o grau de pureza da substância analisada (ou percentagem de princípio activo nela presente), arredando a necessidade de recorrer a critérios jurisprudenciais para suprir a falta de tal elemento.
Assim, satisfazendo o exame laboratorial as exigências da mencionada Portaria e não existindo nos autos qualquer elemento de prova sobre o consumo individual diário susceptível de fundamentar uma divergência relativamente ao valor indicado no relatório de exame pericial efectuado pelo LPC, deve ser tido em conta o que dele resulta.
Na verdade, ponderando que o arguido detinha 9,67 gramas de cannabis (resina), com um grau de pureza de 8,9%, sendo a dose média individual de 0,5 g, para um grau de concentração média de 10%, chegamos à conclusão de que tinha consigo o correspondente a 17 doses diárias: 9,67 x (8,9% / 10%) / 0,5.
Em consequência, ao considerar demonstrado que o arguido detinha uma quantidade de substância estupefaciente suficiente para 17 doses individuais, destinadas ao seu consumo pessoal, o tribunal a quo baseou-se correctamente no resultado do exame pericial, que não foi contraditado pelas declarações do arguido/recorrente.
Com efeito, este, segundo resulta da decisão recorrida, para além de ter referido que não consumia aquelas substâncias diariamente, assumiu que adquiria produtos estupefacientes todas as semanas, geralmente no valor de 5 ou 10€ e, só excepcionalmente, naquela ocasião, adquiriu 15€ de cannabis.
Não estando assente que o recorrente consumia diariamente dose superior a 0,5 gramas e, por isso, dose superior a 5 gramas no espaço de dez dias, não podia o tribunal a quo deixar de considerar provada a apontada factualidade, constante do ponto 3º dos factos assentes.
A propósito desta questão, assinala-se no acórdão do TRL, de 2/4/2019 [6], que o recurso aos critérios jurisprudenciais, que alegadamente se baseiam nas regras da experiência comum e que têm em conta o normal grau de impureza das substâncias estupefacientes quando chegam ao consumidor final, só constitui uma alternativa a uma tabela tornada inaplicável por força da incompletude dos exames laboratoriais. Ou seja, só na ausência dos adequados exames laboratoriais que determinem qual a percentagem do princípio activo contido na substância apreendida é que a jurisprudência tem afastado o recurso à tabela constante da citada Portaria nº 94/96, estabelecendo e definindo, em alternativa, quantidades médias para o consumo médio individual durante um dia - o que não acontece no caso, pois o exame laboratorial junto
aos autos identifica as substâncias em causa, o seu peso (líquido), e bem assim a concentração do respectivo princípio activo.
Ora, tendo os limites fixados na referida tabela um valor de meio de prova, a apreciar nos termos da prova pericial, tal significa que o juízo a fazer sobre a suficiência ou insuficiência desses limites se presume subtraído à livre apreciação do julgador, devendo este fundamentar qualquer divergência desse juízo.”
______________
[1] Mantendo-se a ortografia original do texto, sem prejuízo da correcção de manifestos lapsos de escrita.
[2] Relatado pelo Desembargador Pedro Vaz Pato e disponível em www.dgsi.pt.
[3] Relatado pela Desembargadora Cristina Branco e disponível em www.dgsi.pt.
[4] Neste sentido, os acórdãos do TRP, de 2/10/2013 e do TRL, de 13/2/2020, já citados e, ainda, o acórdão do TRL de 26/9/2017, relatado pelo Desembargador Artur Vargues e disponível em www.dgsi.pt.
[5] Que dispõe: «Na realização do exame laboratorial referido nos n.ºs 1 e 2 do artigo 62.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, o perito identifica e quantifica a planta, substância ou preparação examinada, bem como o respectivo princípio activo ou substância de referência.»
[6] Relatado pela Desembargadora Anabela Simões e disponível em www.dgsi.pt.
[7] Vício decisório que, não tendo sido invocado expressamente pelo recorrente, é de conhecimento oficioso por este tribunal de recurso.
[8] Repete-se: o resultado decorrente da prova pericial não foi contrariado pela demonstração de que o arguido/recorrente consumia diariamente dose superior a 0,5 gramas e, por isso, dose superior a 5 gramas de cannabis resina no espaço de dez dias.
[9] É verdade que, na motivação da decisão de facto, o tribunal a quo começa por fazer referência ao consumo semanal habitual de cannabis por parte do recorrente, mas é perfeitamente perceptível da leitura do conjunto da decisão que a análise efectuada tem por referência o consumo médio individual para o período de 10 dias.
Fonte: http://www.dgsi.pt

Ver ainda o Acórdão da  Relação do Porto de 03.03.2010 in www.dgsi.pt onde se pode ler: “ centremo-nos agora na interpretação do artigo 2º, nº 2, da citada Lei nº 30/2000, mais concretamente na questão conexa atinente às quantidades de estupefaciente e inerentes períodos de consumo.
São sobejamente conhecidas as várias teses sustentadas quanto a esta matéria e, por isso, não procederemos a citações expressas.
Sustentámos nós que há-de ser a prova de cada caso concreto que há-de ditar o possível enquadramento em sede contra-ordenacional, ou, ao invés, no âmbito do citado artigo 40º, nº 2, do Dec-lei nº 15/93, de 22/01.
Na verdade, entendemos que não deve, pura e simplesmente, lançar--se mão do mapa anexo à Portaria nº 94/96, de 26/03.
Com efeito, este critério, e para além da questão da sua abrangência, apenas em sede dos artigos 26º, nº 3 e 40º, nº 2, ambos do Dec-lei nº 15/93, apresenta uma dificuldade, pois que as quantidades a que alude o referido mapa referem-se a quantidades puras, ou seja, ao princípio activo a que alude o artigo 71º, nº 1, al. c) do Dec-lei nº 15/93, o que não pode confundir-se com o peso líquido resultante dos relatórios do LPC, sendo estas as principais críticas conhecidas que ao mesmo são feitas.
Resta, pois, como alternativa, preencher tal conceito através do caso concreto, socorrendo-nos para tal do tipo de estupefaciente em análise, do grau de adição do consumidor e do próprio modo como é consumido, critério este tido como mais consentâneo com o actual quadro legislativo, até pela acrescida impossibilidade de, por via de regra, podermos lidar com os dados de quantidades puras/princípio activo.
É claro que uma tal análise há-de ter um limite razoável, decorrente das próprias e objectivas quantidades “a se”, sob pena de corrermos o risco de contribuir para “branquear” outras actividades “camufladas” em aparente e mero consumo, o que o legislador seguramente não quis.
Aqui chegados, diremos que o caso vertente, atentos os seus específicos contornos, e tal como salienta o Ex.mo PGA, facilita-nos a abordagem da erigida questão. 
Na verdade, e considerando o critério supra preconizado, a quantidade de produto estupefaciente que o arguido detinha em cada uma das duas salientadas ocasiões, para exclusivo consumo pessoal, no seu cotejo com os igualmente demonstrados consumos diários, não excede os dez dias a que alude a citado normativo, pelo que inexiste o propugnado crime a que, na parte vigente, e seguindo o vínculo da referida jurisprudência, alude o mencionado artigo 40º, nº 2, do Dec-lei nº 15/93, de 22/01.
Anote-se ainda que uma tal ilação resulta igualmente da jurisprudência citada na sentença recorrida e que anota que, no tocante à heroína e cocaína, deveria fixar-se em 1,5 gramas a quantidade média para efeitos de consumo diário individual.
Neste contexto, apenas se aplicássemos a Portaria nº 94/96, de 26/03, o que, reitere-se, não perfilhámos, teríamos um consumo superior ao assinalado período.
Flui do que vai dito que, no essencial, concordámos com a sentença recorrida que, por isso, deverá ser mantida, daí decorrendo, obviamente, que não aderimos aos fundamentos que alicerçam o interposto recurso.”
Mas, dizemos nós, não considerar a tabela anexa à Portaria nº 94/96, de 26/03 como inultrapassável permite que haja diferentes decisões para situações idênticas.
Porém, este é o dia a dia dos Tribunais.
A aplicação do Direito e a Justiça de cada caso, raramente é “tabelada”.
O julgador tem que ir mais além.
**
Tal como já resultava da sentença, os factos provados tiveram como base a confissão do arguido.
Porém, a confissão deste não abrange, nem à percentagem de THC, nem a quantidade de doses que, de acordo com a constante da Portaria n.º 94/96, de 26/03, era possível fazer.
Aliás, das declarações do arguido resulta que este comprou 5 gramas, quantidade que ele acreditava poder ter consigo “sem lhe criar problemas”.
Na verdade, é recorrente nos julgamentos de tráfico de estupefacientes ouvir os consumidores/arguidos dizerem, relativamente à canábis resina, que o máximo com que cada consumidor pode andar são 5 gramas.  Esta ideia vem do que consta do Mapa anexo à portaria que relativamente àquele produto considera a quantidade máxima diária é de 0,5.
Assim, no que toca aos factos dados como provados, temos que afastar o conhecimento pelo arguido da percentagem de THC, da quantidade de doses…
Afastado o conhecimento está, necessariamente, afastado o dolo.
Retirados estes elementos, o que resultou da prova – diga-se das declarações do arguido – relativamente ao consumo? Que a quantidade que o arguido detinha não lhe chegava para o seu consumo durante 10 dias.
Concluindo, em face da prova produzida, entendemos que é de alterar a matéria de facto dada como provada e não provada nos seguintes termos:

FACTOS PROVADOS
No dia 22.05.2022, pelas 18 horas e 10 minutos, na Rua …, Bairro …, freguesia de Campo de Ourique, na área desta comarca de Lisboa, o arguido, trazia consigo/detinha/transportava, no interior do bolso direito das calças que trajava na ocasião:
- Canábis (resina) com o peso (g)/volume (ml) total de 5.025 g (L).
- Submetida a exame determinou-se que a mesma tinha um grau de pureza (%) de 27.2 (THC), correspondente a vinte e sete (27) doses individuais, de acordo com o 9.º da Portaria n.º 94/96, de 26.03 e respectivo Mapa.
- O arguido destinava o mencionado produto estupefaciente ao seu consumo
próprio e exclusivo.

FACTOS NÃO PROVADOS
- que o arguido soubesse as características específicas do estupefaciente em causa, designadamente o grau de pureza e correspondente número de doses individuais que podiam ser efectuadas de acordo com o 9.º da Portaria n.º 94/96, de 26.03 e respectivo Mapa e que não podia deter, nem transportar aquele mesmo produto
- que a quantidade detida pelo arguido excedesse o necessário para o seu consumo durante 10 dias.
- que o arguido soubesse que a sua conduta era criminalmente punida.

A acusação partiu o pressuposto de que o estupefaciente detido pelo arguido poderia integrar a prática de um crime de consumo p. e p. no art.º 40º do DL 15/98.
Na verdade, como se escreve no Ac RP de 18.04.2012, in www.dgsi.pt “ o consumo de estupefacientes, em parte, foi descriminalizado, atento o art.º 2.º, da Lei n.º 30/2000, de 29/11, ao estabelecer que o consumo, a aquisição e a detenção para consumo próprio de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas referidas no artigo anterior constituem contra-ordenação. Todavia, para efeitos da presente lei, a aquisição e a detenção para consumo próprio das substâncias referidas no número anterior não poderão exceder a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias. Todavia, no AUJ n.º 8/2008, do STJ, decidiu-se que, não obstante a derrogação operada pelo artigo 28.º da Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro, o artigo 40.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, manteve-se em vigor não só «quanto ao cultivo» como relativamente à aquisição ou detenção, para consumo próprio, de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV, em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias.”
No caso, como resulta da matéria que se logrou comprovar, a quantidade de canábis detida pelo arguido ultrapassava o número de doses referido na tabela anexa à Portaria 94/96 de 26 de Março considerado como adequado a um consumo médio individual durante 10 dias.
Mas, verificou-se também que que a quantidade necessária para o consumo médio individual daquele arguido ultrapassava os valores da tabela.
Assim, tem que se concluir que o comportamento do arguido constitui uma contra-ordenação. Isto porque se vem entendendo que os consumos individuais variam de pessoa para pessoa.
Veja-se AC RP de 02.10.2013 in www.dgsi.pt “A indicação, na tabela a que se refere o artigo 9º da Portaria nº 94/96, de 26 de Março, dos valores correspondentes ao consumo médio de resina de Canabis (0,5 gr. diários) pressupõe um grau de concentração médio de 10% de A9TIIC, não de 100%. Se o grau de pureza desse produto for diferente dessa percentagem, tal valor terá de ser adaptado. II - Os valores indicados nessa tabela podem ser afastados se se provar que são diferentes as necessidades de consumo habitual do arguido.”
Assim, impõe-se a absolvição do arguido da prática do crime que lhe vinha imputado na acusação e pelo qual foi condenado– crime de consumo – art.º 40º do Dec. Lei nº 15/93, de 22/1, - uma vez que destinava o produto apreendido ao seu consumo e a quantidade apreendida não ultrapassava o necessário para o seu consumo durante 10 dias.
Tal conduta é punível, nos termos do 2º, nº1, da Lei 30/2000, de 29 de Novembro, como mera contra-ordenação.
Nos termos do preceituado no art.º 5º da Lei nº 30/2000, de 29/11, o processamento das contra-ordenações e a aplicação das respectivas sanções competem a uma comissão designada «comissão para a dissuasão da toxicodependência», especialmente criada para o efeito, funcionando nas instalações dos governos civis.
Com efeito, nos termos do art.º 41º do Dec. Lei nº130-A/2001 de 23/04, que regula o funcionamento das CDT, quando no decurso de um processo criminal, resultarem indícios suficientes de que o arguido cometeu uma contra-ordenação prevista no art.º 2º da Lei 30/2000 de 29/11, a autoridade judiciária manda extrair certidão, remetendo-a à comissão territorialmente competente”.
Tal dispositivo parece adequar-se mais à fase investigatória e não à presente.
Porém, se assim fosse, haveria que atender ao art.º 26º de tal diploma legal que nos remete para o Regime Geral das Contra-ordenações.
Neste, ao nível do art.º 77º, permite-se ao Tribunal apreciar como contra-ordenação uma infracção que foi acusada como crime, e essa apreciação, se obtiver trânsito, preclude nova apreciação (cfr. art.º 79º).
Porém, face ao peculiar e inovador regime de apreciação de contra-ordenações relacionadas com o consumo de estupefacientes, tramitadas em CDT’s criadas ao longo de todo o país, com regime de funcionamento pessoal, é adequado antes – e à face do espírito subjacente à própria lei, que nos diz que cumpre socializar e tratar, mais do que punir – extrair certidão dos factos e remeter ao CDT competente territorialmente.
Pelo exposto, impõe-se determinar a extracção de certidão do presente acórdão e remeter à referida Comissão.

3. DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes que integram a 9º secção do Tribunal da Relação de Lisboa, em revogar a decisão proferida e em consequência, considerando que o arguido cometeu a contra-ordenação prevista no art.º 2º da Lei 30/2000 de 29/11, absolver o arguido A do crime de consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas, previsto e punível pelo nºs 1 e 2, do artigo 40.º e Tabela I-C, do Decreto-lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro
Sem custas.
DN
Após o trânsito em julgado, extraia-se certidão do acórdão e remeta-se a mesma à Comissão para a Dissuasão da Toxicodependência – art.º 5º da Lei nº 30/2000 de 29/11 – para processamento como contra-ordenação conforme decidido supra relativamente ao arguido

Lisboa, 02 de Fevereiro de 2023
Raquel Correia Lima
Micaela Pires Rodrigues
Madalena Caldeira