Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2773/22.0T9PDL.L1-3
Relator: JOAQUIM CRUZ
Descritores: JULGAMENTO
AUSÊNCIA
EVASÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/22/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: I. O julgamento na ausência do arguido por verificação de alguma das situações previstas no n.º 2, do artigo 334º, do Código de Processo Penal, pode ter lugar a requerimento do próprio arguido ou por impulso do Tribunal;
II. O despacho que, iniciado o julgamento na ausência do arguido, quando este nisso validamente consentiu, indefere a sua audição com fundamento do facto de estar encerrada a produção de prova e designada a data para a leitura da sentença, não padece de nulidade por violação do disposto nos artigos 61º, n.º 1 alínea f), e 64, n.º 1, alínea c) do Código do Processo Penal e artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa;
III. O elemento do tipo objetivo “encontrando-se legalmente privado da liberdade”, do crime de evasão, previsto no n.º 1, artigo 352.º do Código Penal, inclui, além da prisão, detenção ou internamento em estabelecimento prisional, as situações em que o arguido se encontra sujeito a obrigação de permanência na habitação, seja na vertente de medida de coação, seja na vertente de modo de execução da pena de prisão;
IV. As eventuais consequências processuais de agravamento das medidas cautelares que possam ou não resultar da violação dos deveres inerentes à medida de obrigação de permanência na habitação são realidade diversa da consequência tipificada na lei penal substantiva para a conduta do agente que, desrespeitando a autoridade pública encarregada do sistema estadual de justiça, viole a custódia oficial, quando se ausenta ilegitimamente do local a que, nos termos da competente decisão judicial, deveria estar confinado para cumprimento da medida privativa de liberdade.
V. No crime de evasão a consumação ocorre logo que se cria o estado antijurídico, o qual se protrai no tempo enquanto tal for a vontade do agente, que tem a faculdade de por termo a esse estado coisas, pelo que não exige o decurso de um período temporal mínimo para que ocorra a consumação;
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 3.ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. Relatório:
1. No âmbito do processo n.º 2773/22.0T9PDL, do Tribunal Judicial da Comarca dos Açores, Juízo Local Criminal de Ponta Delgada - Juiz 2:
1.1. Foi, em 28.02.2025, proferido despacho [referência citius 58915180], em que foi decidido indeferir, por intempestivo e legalmente inadmissível, o requerimento do arguido que, tendo consentido que o julgamento se iniciasse na sua ausência, solicitou a sua participação na audiência de julgamento, presencialmente ou por videoconferência, após ter sido proferido despacho de encerramento da audiência e designada para a leitura da sentença;
1.2. Foi, em 19.03.2025, proferida sentença, que condenou o arguido nos seguintes termos [transcrição]:
Pelo exposto, decide-se:
I - Condenar o arguido AA pela prática, como autor material, e na forma consumada, dos crimes de evasão, p. e p. pelo artigo 352.º, n.º 1, do Código Penal:
> em número de 11 (onze), praticados nos dias... ..., ..., ...de... ..., ..., ... de..., e ..., ... ...e ... de ... de 2022, nas penas parcelares de 3 (três) meses de prisão por cada um dos crimes;
> em número de 7 (sete), praticados nos dias ..., ... e ... de ..., ..., ... e... de ..., e ... de ... de 2022, nas penas parcelares de 2 (meses) de prisão por cada um dos crimes.
II - Condenar o arguido AA, em cúmulo jurídico das penas parcelares referidas em I, na pena única de 1 (um) ano e 8 (oito) meses de prisão.
III — Custas a cargo do arguido, fixando-se a taxa de justiça em 2 (duas) UC.
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2. Inconformado com tais decisões, delas recorreu o arguido acima identificado, extraindo da motivação as seguintes conclusões [transcrição]:
a. O recorrente não cometeu o crime de evasão pois nunca teve intenção de fugir da habitação em que era obrigado a permanecer;
b. No quintal de tal habitação, deslocou-se até onde estavam os animais domésticos para os alimentar ou lavar o lugar em que estavam encerrados e para comer à mesa da avó dos seus filhos que ali, de verão sempre muito quente, serve as refeições que elabora;
c. Nunca teve intenção de se evadir, ou seja, fugir de vez do lugar em que estava confinado, a ele regressando sempre e logo que acabava de comer ou trabalhar;
d. Duas vezes e a súplicas da "sogra" deslocou-se ao lugar para onde a mãe de seus filhos fugira para se drogar e pelo menos uma vez conseguiu-o;
e. Das 18 vezes em que tais atos ocorreram, não chegou a demorar mais que 19,5 minutos em média por cada um;
Assim, deve ser absolvido da acusação contra si formulada.
A ausência do recorrente na audiência de discussão e julgamento
f. O fato de ter assinado um documento, no Estabelecimento Prisional onde se encontra desterrado da sua ilha natal e onde sempre viveu, em que dispensava a sua presença no julgamento, foi feito sem perceber que isso o impediria de contar ao tribunal o que acontecera (pois até pensou que seria ouvido por vídeo conferência), e não pôde consultar previamente o seu defensor que nunca o aconselharia a não estar presente a defender-se;
g. O douto despacho, referência 59002886, que indeferiu o seu pedido para ser ouvido antes de proferida a decisão final ora recorrida, referência. 51670983, não fez a mais perfeita interpretação do disposto nos artigos 61.1 alínea f), e 64.1 c) do Código do Processo Penal e artigo 32.1 da Constituição da República Portuguesa devendo por isso, e sempre ressalvado o devido respeito, ser mandado substituir, bem como a douta sentença recorrida por não ter feito a mais correta interpretação do disposto no artigo 352.1 do Código Penal.
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3. O recurso foi admitido na 1ª instância, por despacho proferido em 23.05.2025 [referência citius 59454741].
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4. O Ministério Público na 1ª instância, apresentou resposta ao recurso do arguido, que finalizou com as seguintes conclusões [transcrição]:
1ª Para a configuração do crime de evasão, nos termos do artigo 352.º do Código Penal, exige-se que o agente se encontre legalmente privado da liberdade e que, voluntariamente, se subtraia ao espaço de confinamento imposto.
2ª A atual redação legal, introduzida pela reforma penal de 1995, ampliou o conceito de privação da liberdade, incluindo situações como a obrigação de permanência na habitação, além da prisão, detenção ou internamento em estabelecimento prisional.
3ª A deslocação do arguido para fora dos limites autorizados, independentemente do destino ou da sua duração, consubstancia a prática do crime de evasão.
4ª A lei não distingue entre diferentes formas de vigilância ou contenção, pelo que a violação tanto de barreiras físicas quanto de restrições eletrónicas constitui crime de evasão.
5ª A alegada ausência de intenção de fuga (definitiva) é irrelevante porquanto o dolo se basta com a intenção de se afastar do local de confinamento, frustrando assim os objetivos da medida restritiva da liberdade.
6ª O arguido foi regularmente notificado para declarar se consentia na realização do julgamento na sua ausência, tendo respondido de forma inequívoca “Sim, aceito”, o que configura consentimento válido.
7ª Tendo o defensor do arguido estado presente durante toda a audiência, não suscitou qualquer incidente relativo à ausência do arguido, nem requerido a sua audição, conformando-se com a tramitação processual.
8ª No despacho que indeferiu a reabertura da audiência com vista á audição do arguido fez a Meritíssima Juiz uma correta interpretação dos factos e aplicação da Lei.
Em face do exposto, conclui que devem ser mantidos a sentença e despacho recorridos.
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5. Nesta Relação, o Sr. Procurador Geral Adjunto, quando o processo lhe foi apresentado, nos termos e para os efeitos do artigo 416º do C.P.P, emitiu parecer aderindo aos argumentos constantes da resposta do M.P na 1ª instância, concluindo, em conformidade, no sentido da improcedência do recurso.
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6. Foi dado cumprimento ao artigo 417º/2 do C.P.P., não tendo o arguido apresentado resposta;
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7. Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos, teve lugar a Conferência, cumprindo agora decidir.
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II. Fundamentação:
1. Delimitação do objeto do recurso:
Constitui entendimento consolidado que do disposto no n.º 1, do artigo 412º, do CPP, decorre que o âmbito dos recursos é delimitado através das conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso [vide Germano marques da silva, in «Curso de Processo Penal», vol. III, 2ª edição, 2000, pág. 335, Simas Santos e Leal Henriques, in Recursos em Processo Penal, 6ª ed., 2007, pág. 103, acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 7/95 do STJ, de 19-10-1995, in Diário da República – I.ª Série-A, de 28-12-1995 e, entre muitos outros, o Ac. do S.T.J. de 05.12.2007, Procº 3178/07, 3ª Secção, disponível in Sumários do STJ, www.stj.pt,].
Perante as conclusões do recurso, as questões a decidir são as seguintes:
- O despacho proferido no dia 28.02.2025 é nulo por violação do disposto na alínea f), do n.º 1, do artigo 61º, e alínea c), do artigo 64º, ambos do CPP e o n.º 3, do artigo 32º, da Constituição da República Portuguesa (CRP);
- O crime de evasão não se mostra verificado porque: i) o seu tipo objetivo não comporta a situações em que o arguido se encontra sujeito à medida de coação de obrigação de permanência na habitação; ii) o arguido agiu sem dolo;
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2. O despacho recorrido:
Para apreciação da primeira das questões enunciadas, entende-se ser relevante proceder à transcrição do despacho recorrido, cujo teor é o seguinte:
“Fls. 196:
Por requerimento entrado em juízo no dia 13.03.2025, pelas 18h34m (hora dos Açores), veio o arguido dar conta que não percebeu a notificação que lhe foi feita pelo Tribunal, requerendo ser ouvido por videoconferência para se poder defender.
Não obstante o exposto pelo arguido a tais fls. o certo é que o despacho que lhe foi notificado, e que o mesmo recebeu declarando “Sim Aceito”, e assinando o seu nome, é de absoluta simplicidade e não cremos que pudesse merecer qualquer interpretação diversa daquela que claramente resulta da sua leitura.
Com efeito ali apenas se determina a notificação do arguido “Para em 2 dias esclarecer se consente na realização do julgamento na sua ausência.”. Cremos, pois, que o sentido é claro e inequívoco, e ali não cabe nem a interpretação de ser para “dispensar a audiência” nem para “daqui a 2 dias” ir a julgamento para o que tinha de comparecer em tribunal em Lisboa.
Perante a posição clara do arguido, consentindo na realização do julgamento na sua ausência, o Tribunal procedeu à realização da audiência de julgamento, tendo encerrado a produção de prova no passado dia 7.03.2025, após audição das testemunhas da acusação e da defesa, e sem que tenha sido requerido o que quer que fosse, tendo em seguida designado para o próximo dia 19.03.2025 a leitura de sentença, uma vez que nem o tipo de crime objecto dos autos nem a prova produzida levaram o Tribunal a considerar indispensável a presença do arguido.
Assim sendo, indefere-se o requerido pelo arguido, quer por intempestivo, quer porque legalmente inadmissível (a sua audição por videoconferência).
Notifique.
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3. A sentença recorrida:
Para apreciação da segunda das questões enunciadas, na sentença recorrida, com relevância, fez-se constar o seguinte [transcrição parcial]:
Discutida a causa, resultaram provados os seguintes factos
1. Ao arguido AA foi aplicada, no âmbito de interrogatório judicial de arguido detido, realizado a ........2022, no processo..., a medida de coacção de Obrigação de Permanência na Habitação, sujeita a meios técnicos de controlo à distância, a qual deveria ser cumprida na residência sita na ..., uma vez que os familiares do arguido residentes na ... 0 27, na Lagoa, não terem consentido na sua permanência naquela morada.
2. Assim, o arguido ficou, a partir de ........2022, ciente de que, por força daquela decisão, não podia ausentar-se do perímetro fixado dentro da habitação, só o podendo fazer a título excepcional, nos casos de necessidade de comparência perante órgão de polícia criminal, Ministério Público elou Tribunal, comparência em consultas médicas, tratamentos ou similares e em serviços oficiais para a obtenção ou revalidação de documentos oficiais.
3. No entanto, o arguido ausentou-se daquele perímetro, sem prévia comunicação, nas seguintes datas e horas:
........2022, entre as 18h04m e as 18h 15m e das 19h33 às 19h43;
........2022, entre as 15h46m e as 15h55m;
........2022, entre as 12h 15m e as 12h25m e das 17h00m às 17h14m;
........2022, entre as 1 81138 e as 181150;
........2022, entre as 16h09m e as 16h17m;
........2022, entre as 13h49m e as 13h58m e das 1 3h59m às 14h10m;
........2022, entre as 1h33 e as 1h43 e das 7h58m às 8h24m;
........2022, entre as 17h 19m e as 17h 27m e das 17h42m às 17h50m;
........2022, entre as 21h 52m e as 22h00m;
........2022, entre as 22h 54 e as 23h09m e das 23h 20m às 23h30m
........2022, entre as 20h03m e as 20h27m;
........2022, entre as 15h43m e as 16h16m, das 17h 18m às 17h 35m e das 19h 10 às 19h32m;
........2022, entre as 17h49m e as 17h 57 m;
........2022, entre as 20h00 e as 20h10m e das 20h40m às 20h48m;
........2022, entre as 17h 16m e as 17h27m e das 20h16m às 20h31m;
........2022, entre as 20h08m e as 20h20m e das 21h32m.às 21h43m;
•  .......22, entre as 3h 1 1m e as 3h24m e das 3h38m às 3h55m;
........2022, entre as 20h49m e as 20h54m.
4. O arguido agiu com a intenção lograda de se furtar à estrita permanência na sua residência, de violar a limitação da sua liberdade ambulatória que o seu estatuto de coacção impunha, apesar de saber que aquela tinha sido determinada por decisão judicial válida e legal e que não tinha sido autorizado, a qualquer título, a incumprir aquela obrigação, com o que violou a segurança da custódia judicial, encontrando-se aquela pena em vigor.
5. Agiu, em todos os momentos, de forma livre, voluntária, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
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Factos Não Provados:
Provaram-se os factos constantes do auto de notícia e acusação com interesse para a boa decisão da causa, apenas se rectificando que:
1 - A medida coactiva acabou por ser executada na ... e não na ...;
2 - No dia ........2022, não se ausentou das 17h00 às 17h14m.
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Indicação. Probatória:
A factualidade apurada foi dada como provada com base no teor da certidão extraída dos autos de inquérito 208/22.8..., junta a fls. I a 33, onde conta o auto de 1 0 interrogatório de arguido detido, realizado no dia ........2022, data em que o arguido ficou sujeito a medida de coacção de ..., tendo sido conduzido nesse mesmo dia à ..., para ali cumprir a medida de coacção, o que, contudo, não foi possível por os seus familiares não consentirem, tendo, em seguida sido conduzido para a ..., residência da mãe de BB, tendo sido expressamente advertido pelos agentes da PSP que procederam à sua condução que teria de se manter na residência sob pena de incorrer na prática do crime de evasão (fls. 13). Mas dessa mesma certidão resulta que no período compreendido entre ........2022 e ........2022, o arguido ausentou-se do local que lhe havia sido determinado para a vigilância electrónica nos dias e com a duração indicados no relatório de incidentes junto a fls. 19-21, pois em todas essas datas o sistema de monitorização electrónica registou a saída do arguido do respectivo local de V E.
Ora, conjugando aqueles elementos documentais com o depoimento das testemunhas CC, DD e EE, todos eles técnicos da ..., que depuseram com isenção e objectividade, não ficou o Tribunal com dúvidas em como o sistema de monitorização não sofreu qualquer anomalia durante aquele período temporal, pelo que as ausências reportadas ocorreram, de facto. Que as mesmas não foram autorizadas decorre não só do depoimento daquelas testemunhas, como também do depoimento de FF, em casa de quem o arguido cumpria a ..., e de GG, vizinho de FF e que iniciou cumprimento de ... sensivelmente ao mesmo tempo que o arguido, mas com bem mais sucesso, pois, como o mesmo referiu, sabia precisamente qual o perímetro em que se podia movimentar e quando se afastava o sistema apitava logo, pelo que ele voltava logo atrás. Também neste sentido, do sistema apitar foi o depoimento de FF, que depondo com simplicidade esclareceu que o arguido "Tinha a medida direita até onde podia ir" (nas suas palavras, pois foi informado pelos senhores que lá iam (os técnicos da ...), e logo que se afastava um pouco o aparelho começava logo a apitar. Tanto assim foi. que tiveram que puxar uma piscina que tinham no quintal para mais perto de casa para que o arguido pudesse usar a mesma. Como trabalha não sabe se o arguido saia ou não na sua ausência, mas sabe que pelo menos uma vez o arguido saiu de casa para ir procurar a sua (da testemunha) filha HH, que é toxicodependente, estava grávida e já não aparecia há uns 3 ou 4 dias lá em casa (o que, contudo, acabava por ser comportamento habitual).
Perante a conjugação dos supra referidos elementos probatórios não ficou o Tribunal com dúvidas em como o arguido trespassou os limites físicos que lhe eram impostos pela medida de coacção a que se encontrava sujeito, o que fez nas datas e pelos tempos registados pelo sistema de monitorização. Aliás, do depoimento de EE resulta, com clareza, que até foram mais as vezes que o sistema registou saídas, mas, como o próprio referiu, por norma não levantam relatório de incidentes por saídas até 5 minutos, só assim não é quando estão perante um arguido com violações reiteradas. Nesse caso passam a levantar incidente por todos os disparos do sistema. E esta realidade resulta também do relatório de incidentes de fls. 1 8-20. Com efeito, se atentarmos no mesmo verificamos que todos os períodos reportados tiveram sempre duração superior a 5 minutos, com excepção do último, no dia ........2022, em que já é relatado uma saída com duração de 5 minutos.
Em suma, face à prova produzida em audiência de julgamento, analisada conjugadamente, ficou o Tribunal convencido que o arguido se ausentou do perímetro em que estava obrigado a permanecer, sem ter autorização para o fazer e sem que justificasse tais ausências. E certo que fica por perceber qual o motivo concreto para cada uma daquelas ausências, mas fosse para ir à tal cozinha exterior mencionada pelas testemunhas como sendo a justificação dada pelo arguido quando era contactado — mas que as mesmas desconheciam se efectivamente era aquele o local onde o arguido permanecia nas ausências detectadas — fosse para se deslocar rapidamente ao ..., ou a meio do caminho, para adquirir produto estupefaciente — o que era perfeitamente possível, pois, como referiu a testemunha II, agente da PSP, entre o local onde o arguido cumpria ... e o ... distava cerca de 800m/1000m, distância possível de percorrer em poucos minutos (6 minutos, 8 no máximo) o certo é que não estava autorizado a fazê-lo, tanto que violado o perímetro o aparelho emitia um som perfeitamente audível, como explicado por todas as testemunhas.
O elemento subjectivo do tipo assentou na análise dos factos objectivos dados como provados à luz das regras da experiência comum e da normalidade das coisas. Tais regras dizem-nos que alguém que é submetido a um 1º interrogatório e fica sujeito a uma medida de coacção privativa da liberdade 'preso em casa", como tantas vezes se houve dizer — que é levado pela polícia para o local de permanência e logo ali advertido que não pode sair daquele local sob pena de incorrer num crime de evasão; que volta a ser esclarecido de tal realidade, e então ainda com mais pormenor, quando é instalado o sistema de monitorização, sendo-lhe indicado qual o perímetro onde pode permanecer, e da proibição de dali sair sem estar autorizado, que houve um alarme quando se afasta daquele perímetro, que é pronta — e insistentemente - contactado pelos técnicos que acompanham a fiscalização da medida, e ainda assim continua a ausentar-se do espaço onde estava obrigado a permanecer, sabe inexoravelmente que está a furtar-se o poder de custódia que o Estado tem sobre si, o que quer, sabendo que aquele comportamento é proibido e punido por lei. Tudo isto sabe qualquer cidadão médio, mesmo que empiricamente, tendo em conta o senso comum. Mas se assim é quanto a um cidadão médio, no caso do arguido esse conhecimento é inequívoco, pois tudo aquilo lhe foi explicado, de cada vez foi contactado, de cada vez ouviu um alarme, e ainda assim saiu para ir onde bem lhe aprouve, sabendo que não o podia fazer por ser comportamento proibido e punido por lei.
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3. Apreciação:
3.1. Nulidade do despacho recorrido:
Sustenta o recorrente que despacho que inferiu a sua audição e que acima se transcreveu, não fez uma correta interpretação do disposto nas alíneas c) e f), do n.º 1, do artigo 61º, do CPP e o n.º 3, do artigo 32º, da CRP e, como tal, de ser anulado e substituído por outro que ordene a audição do arguido.
Vejamos.
O n.º 3, do artigo 32º, da CRP, estipula que o arguido tem direito a escolher defensor e a ser por ele assistido em todos os atos do processo, especificando a lei os casos e as fases em que a assistência por advogado é obrigatória.
Por seu turno, em consonância com a norma constitucional transcrita, a alínea f), do artigo 61º, do CPP, prescreve o seguinte: O arguido goza, em especial, em qualquer fase do processo e salvas as exceções da lei, do direito de ser assistido por defensor em todos os atos processuais sem que participar e, quando detido, comunicar, mesmo em privado, com ele;
Por último, a alínea c), do artigo 64º dispõe: É obrigatória a assistência do defensor no debate instrutório e na audiência;
Para apreciação da invocada nulidade, entende-se pertinente fazer referência ao requerimento que motivou a prolação do despacho sob recurso, o qual deu entrada no dia 13.03.2025, [ref.ª citius 6194564], e qual apresenta o seguinte teor [transcrição]:
1.- O requerente foi notificado 2 vezes da data da audiência de discussão e julgamento, no estabelecimento prisional onde encontra preso.
2.- Assinou um documento que lhe foi presente pelo Chefe de Ala, de que não lhe deu cópia, tendo percebido que era para "daqui a 2 dias" ir a julgamento para o que tinha de comparecer em tribunal de Lisboa, não tendo conseguido perceber bem se era para "dispensar a audiência" ou se era para lá comparecer "daqui a dois dias".
3.- Sendo assim, e porque tem fatos que pretende, em sua defesa, comunicar ao tribunal, por serem essenciais para aquela, requer a sua audição ainda que seja por videoconferência, a fim de poder defender-se convenientemente.
No requerimento ora transcrito, verifica-se que o recorrente não faz qualquer referência ao facto a que alude no ponto 31 da motivação, ou seja, que não conseguiu contactar o seu defensor para se aconselhar se deveria ou não assinar o papel onde lhe era solicitado se consentia em ser julgado na ausência, que diminui o seu direito de defesa.
Quando o recorrente vem colocar perante o Tribunal superior uma questão que não foi apreciada pelo despacho recorrido, não por omissão de pronúncia, mas porque não foi suscitada a sua apreciação, estamos perante o que se costuma designar de questão nova.
Por definição, a figura do recurso exige uma prévia decisão desfavorável, incidente sobre uma pretensão colocada pelo recorrente perante o Tribunal recorrido, pois só se recorre de uma decisão que analisou uma questão colocada pela parte e a decidiu em sentido contrário ao pretendido.
A única exceção a esta regra são as questões de conhecimento oficioso, das quais o Tribunal tem a obrigação de conhecer.
Não sendo uma situação de conhecimento oficioso, não pode o Tribunal superior apreciar uma questão nova, por pura ausência de objeto, pois, em bom rigor, não existe decisão de que recorrer [ac. do TRG, de 08.11.2018, disponível, em testo integral, no endereço eletrónico www.dgsi.pt].
A questão da impossibilidade de o arguido detido contactar o seu defensor para se aconselhar sobre se deveria consentir em ser julgado na ausência, ainda que se entenda que possa ser objeto de conhecimento oficioso, por ser equiparável a ausência de defensor em ato processual cuja assistência é obrigatória [alínea g), do n.º 1, do artigo 64º e alínea c), do artigo 119º, ambos do CPP] implica a sua prévia invocação e demostração perante a primeira instância, o que não sucede nos autos, dado que, como acima ficou dito, o recorrente no requerimento que esteve na origem do despacho judicial sob impugnação, não invocou e, concomitantemente, não demostrou a falta de assistência de defensor, em caso em que a lei exige a comparência daquele, pelo que improcede a nulidade com fundamento na violação no n.º 3, do artigo 32º, da CRP, alínea f), do n.º 1, do artigo 61º, alínea g), do n.º 1, do artigo 64º e alínea c), do artigo 119º, todos do CPP.
No que concerne a ao disposto na alínea c), do n.º 1, do artigo 64º, do CPP, não se alcança como tal norma possa ser aplicada ao caso dos autos, pois que o defensor do arguido esteve presente na audiência de julgamento, aí tendo oportunidade de exercer uma defesa efetiva, como decorre da audição da gravação referente à mesma, onde foi dado a conhecer pela M.ma Juíza ao ilustre defensor o facto de arguido ter dado consentimento para ser julgado na ausência, porque o corpo da guarda prisional estava de greve e o transporte do arguido não seria efetuado, porque não coberto pelos serviços mínimos, não tendo sido formulada qualquer objeção pelo ilustre defensor a que o julgamento se iniciasse na ausência do mesmo.
Posto isto, forçoso é concluir que o consentimento prestado pelo arguido para que a audiência de julgamento se iniciasse sem a sua presença se mostra prestado de forma válida e, como tal, não ocorreu violação do disposto n.º 2, do artigo 334º, do CPP, o qual dispõe que, sempre que o arguido se encontrar praticamente impossibilitado de comparecer à audiência, nomeadamente por idade, doença grave ou residência no estrangeiro, pode requerer ou consentir que a audiência tenha lugar na sua ausência.
Como refere Tiago Caiado Milheiro [in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo IV, Almedina, anotação ao artigo 334º, § 15, pg.373] de tal normativo decorre que o julgamento na ausência do arguido tanto pode ter lugar por impulso do mesmo [“pode requerer], como na sequência de uma interpelação do Tribunal nesse sentido [“pode consentir”], posto é que se mostrem verificados os pressupostos aí previstos, o que se verifica no caso dos autos, considerando que o arguido, na data agendada para o julgamento, a realizar no Açores, se encontrava recluso num estabelecimento prisional no continente, não sendo transportado porque os guardas prisionais estavam de greve, não estando o serviço transporte assegurado pelos serviços mínimos.
Note-se que nesse segmento, cabem todas as ocorrência da vida real equivalentes e reveladoras de impossibilidade prática [Tiago Caiado Milheiro, in ob., cit., §19, p. 375].
A ausência de transporte, por efeito da greve, conduz a uma impossibilidade prática de o arguido estar presente no julgamento.
Verificando tal impossibilidade, o tribunal interpelou o arguido no sentido de consentir em ser julgado na ausência, tendo aquele manifesta de forma válida [cf. supra] o consentimento para ser julgado na ausência.
Tendo o arguido validamente consentido que a audiência se realizasse na sua ausência, sujeita-se à disciplina processual penal regulada no n.º 4, do artigo 334º CPP, ou seja, é representado, para todos os efeitos possíveis, por defensor, o qual, esteve presente na audiência de julgamento e nada requereu até ao encerramento da mesma, sendo certo que, nessa data o poderia ter feito, invocando o disposto no n.º 3, do artigo 333º, do CPP.
Note-se que de acordo com a sistematização do Código de Processo Penal, a fase de julgamento (Livro VII) está dividida em três subfases autónomas: atos preliminares (Título I), audiência (Título II) e sentença (Título III).
Com o encerramento da discussão, cuja declaração se segue às últimas declarações do arguido [que no caso não tiveram lugar, porque o arguido consentiu em se julgado na ausência], termina a fase da audiência (artigo 361º), seguindo-se-lhe a fase da sentença (artigo 365º).
Assim sendo, o requerimento do defensor do arguido em momento posterior ao encerramento da audiência, como sucedeu no caso dos autos, é, tal como sustentado no despacho recorrido, extemporâneo e, como tal, a sua rejeição mostra-se acertada.
Termos em que improcede a alegada nulidade do despacho.
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3.2. Não verificação do crime de evasão por ausência de dolo e por o tipo objetivo do mesmo não comportar a violação da medida de coação de obrigação de permanência em habitação:
Sustenta o recorrente que agiu sem dolo, pelo que implicitamente está a impugnar a matéria de facto.
No ordenamento jurídico penal português encontram-se previstas duas formas distinta de impugnar a matéria de facto: uma pela via ampla (artigo 412.º, n.os 3 e 4 do CPP) e outra pela via restrita (artigo 410.º, n.º 2, alíneas a) b) e c) do CPP).
A primeira consiste na reapreciação da prova gravada e tem de ser invocada pelo recorrente, pois não é de conhecimento oficioso, recaindo sobre o recorrente o duplo ónus de especificação previsto no artigo 412.º, n.ºs 3 e 4 do CPP. A segunda designada por impugnação restrita, que consiste na invocação dos vícios previstos nas alíneas a), b) e c) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP que, aliás, são de conhecimento oficioso.
O recorrente pretendeu utilizar a primeira daquelas formas, pois embora não o refira expressamente, ao impugnar a matéria de facto dada como provada referente aos atos praticados por si praticados, nos termos em que o fez – convocando a prova testemunhal, produzida na audiência de julgamento e ao criticar a apreciação/valoração dessa prova, feita pelo tribunal recorrido, o arguido/recorrente quis fundamentar essa impugnação no erro de julgamento.
A impugnação ampla da decisão proferida sobre a matéria de facto depende da observância dos requisitos consagrados nos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º do CPP, ou seja:
«(...) 3 – Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.
4 – Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação. (...)».
Ocorrendo a impugnação da matéria de facto, com observância das regras acabadas de mencionar, o Tribunal, conforme dispõe no n.º 6 do artigo 412.º do CPP, «procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta de verdade e a boa decisão da causa.».
Ora, no caso, o recorrente não especificou os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, as provas concretas que impõem decisão diversa da recorrida, nem indicou concretamente as passagens em que funda a impugnação.
Com efeito, quer na motivação, quer nas conclusões, não existe qualquer referência aos pontos 4 e 5 da sentença, onde se mostra descrito o elemento subjetivo do crime de evasão nos seguintes termos:
4. O arguido agiu com a intenção lograda de se furtar à estrita permanência na sua residência, de violar a limitação da sua liberdade ambulatória que o seu estatuto de coacção impunha, apesar de saber. que aquela tinha sido determinada por decisão judicial válida e legal e que não tinha sido autorizado, a qualquer título, a incumprir aquela obrigação, com o que violou a segurança da custódia judicial, encontrando-se aquela pena em vigor.
5. Agiu, em todos os momentos, de forma livre, voluntária, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
Acolhendo-nos ao entendimento do Ac. TRC de 9-01-2012: Se o recorrente não faz, nem nas conclusões, nem no texto da motivação, as especificações ordenadas pelos números 3 e 4, do artigo 412.º do C. Proc. Penal, não há lugar ao convite à correção das conclusões, nos termos do n.º 3, do art.º 417º, do mesmo Código, uma vez que o conteúdo do texto da motivação constitui um limite absoluto que não pode ser extravasado através do referido convite ( não indicou os pontos de facto controvertidos, as provas que imporiam decisão diversa e as que pretenderia ver renovadas… fazendo a necessária ligação com a matéria de facto controvertida… mas que não indica).
Assim sendo, e considerando que a sentença não padece de quaisquer dos vícios previstos nas alíneas a), b) e c) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP que são de conhecimento oficioso, têm-se por assentes os pontos 4. e 5. referentes ao dolo.
Com efeito, os vícios em causa, tem de resultar do texto da sentença, do mesmo não resultando, de forma patente, qualquer dos vícios apontados.
Improcede, assim, a alegação de que o arguido agiu sem dolo.
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O recorrente sustenta ainda, divergindo da posição adotada na sentença recorrida no que tange à qualificação jurídica dos factos apurados, que a violação, ainda que dolosa, da medida de coação de obrigação de permanência em habitação (prevista no artigo 201º do Código de Processo Penal) não chega para configurar o crime de evasão tipificado no n.º 1 do artigo 352º do Código Penal, que lhe vem imputado.
Sobre a questão do enquadramento típico criminal das condutas apuradas, o Tribunal recorrido usou a seguinte argumentação [transcrição]:
O arguido vem acusado de ter praticado, em autoria material e na forma consumada, um crime de evasão, p. e p. pelo artigo 352.º n.º 1, do Código Penal.
Prevê aquele normativo que "quem, encontrando-se legalmente privado da liberdade, se evadir é punido com pena de prisão até dois anos”.
O bem jurídico protegido por esta incriminação é a segurança da custódia oficial, sendo, como refere Cristina Líbano Monteiro, "um dos níveis de refracção do bem jurídico mais lato que abarca todos os crimes contra a administração da justiça: a autonomia intencional do Estado (cfr. aut. Cit., "Comentário Conimbricense do Código Penal", tomo III, Coimbra Editora, 1999, 395).
Como elemento objectivo do tipo, a lei exige a verificação de um estado de privação de liberdade e a modificação desse estado, por iniciativa do detido; em termos subjectivos exigese uma conduta dolosa, em qualquer uma das suas modalidades. Ou seja, exige-se uma privação efectiva da liberdade e que a mesma seja quebrada por actuação daquele que está privado da liberdade — isto é, exige-se a existência de uma custódia efectiva e que seja a actuação daquele que está sujeito a essa custódia a quebrá-la, por si só ou com a ajuda de terceiros.
O crime de evasão consuma-se logo que o detido readquire a liberdade, não importando durante quanto tempo, não comungando por isso das características de um crime permanente. Conforme se refere no acórdão da Relação do Porto, de 7.12.2016, que passamos a citar: "Condição fundamental e, únicos pressupostos, são, assim, por um lado, a legalidade da privação da liberdade e, por outro, o seu afastamento voluntário, por parte do arguido.
Para alguém cometer o crime de evasão p. e p. pelo artigo 352.º/1 C Penal é necessário estar, então, efectivamente, privado da sua liberdade, desde logo. " (ac. cit., disponível na base de dados da DGSI, in www.dgsi. pt\jtrp).
Neste mesmo sentido se pronunciou o acórdão do STJ, de 23.11.2017, onde se decidiu que "Incorre na prática do crime de evasão não só quem se encontrar privado da liberdade em virtude de detenção ou de prisão, mas também quem estiver sujeito a obrigação de permanência na habitação, tenha ela sido aplicada a título de medida processual de coacção ou para efeitos de cumprimento de pena. Entendimento que saiu reforçado com a nova redacção dada pela Lei 94/2017, de 23-08, ao art. 43. 0, do CP. .
Com efeito, cremos ser actualmente pacífico doutrinal e jurisprudencialmente que decisão privativa da liberdade é toda a decisão que ordena prisão, detenção ou internamento, quer seja definitiva quer seja transitória, quer vise imputáveis adultos ou jovens ou inimputáveis, quer a decisão seja tomada no âmbito do processo penal ou do processo de expulsão ou extradição.
E nessas decisões está incluída, inevitavelmente, a obrigação de permanência na habitação, seja como medida de coacção (prevista no artigo 201.º, do Código de Processo Penal), seja como pena (prevista nos artigos 44º e 62º, do Código Penal).
Com efeito, a substituição da expressão "pessoa legalmente presa, detida ou internada em estabelecimento destinado à execução de reacções criminais privativas da liberdade" pela expressão "pessoa legalmente privada da liberdade" aquando da reforma do Código Penal de 1995, visou precisamente o alargamento do âmbito da tipicidade, de modo a incluir todas as formas de privação da liberdade, incluindo as medidas de segurança, a prisão preventiva e a própria obrigação de permanência na habitação (expressamente neste sentido, ACTAS CP/ FIGUEIREDO DIAS, 1993: 409). CRISTINA MONTEIRO (em anotação 13. ao artigo 349.º, in CCCP, 2001) entende que a essência do delito está na quebra da custódia oficial da pessoa e que a pessoa submetida a medida de coacção de obrigação de permanência na habitação ainda não entrou "naquela esfera de controlo cerrado A argumentação, além de contrária à história do preceito, contraria também a natureza privativa da liberdade da própria obrigação' de permanência na habitação, natureza essa agora reforçada pelos artigos 44.º e 62.º (também neste sentido, MAIA GONÇALVES, 2007, 1057) in acórdão do STJ, de 23.11.2017, disponível na base de dados da DGSI, in www.dgsi.pt\jstj.
No fundamental, estamos em sintonia com o enquadramento típico dos factos efetuado pelo Tribunal recorrido.
Com efeito, divergindo da redação original do artigo 392º no Código Penal de 1982 – em que o crime de evasão era aplicável “à pessoa legalmente presa, detida ou internada em estabelecimento destinado à execução de reações criminais privativas da liberdade”, isto é, ao evadido que se encontrasse em prisão preventiva ou em cumprimento de pena de prisão ou de internamento – o legislador da reforma de 1995 (Decreto-Lei 48/95, de 15/3) veio introduzir, no atual artigo 352º do Código Penal, a expressão abrangente “encontrando-se legalmente privado da liberdade”.
Recorrendo-se, em termos interpretativos, ao elemento histórico, verifica-se que, com esta expressão substitutiva, quis a Comissão Revisora abranger precisamente as pessoas submetidas a medida de segurança privativa da liberdade, prisão preventiva e obrigação de permanência na habitação, como resulta da discussão que teve lugar nas 35ª e 51ª sessões [Atas da CRCP/Figueiredo Dias, 1993: Código Penal, Actas e Projecto da Comissão de Revisão, Ministério da Justiça, Lisboa, Rei dos Livros, mormente página 409].
Como refere Maia Gonçalves [Código Penal Português, 18ª edição (2007), Almedina, na anotação nº 2 ao artigo 352º, página 1059], “a evasão abrange todos os casos em que o agente se encontra legalmente privado da liberdade, (…) aqui se incluindo, portanto, a medida de segurança privativa da liberdade e a obrigação de permanência no domicílio”.
No mesmo sentido se direcionam os comentários de outros anotadores da parte especial do Código Penal, como Paulo Pinto de Albuquerque [Comentário do Código Penal (…), 4ª edição (2021), UCE, Anotação 6 ao artigos 349º e nota 7 ao artigo 352º, respetivamente a páginas 1189 e 1193] e J.M. Miguez Garcia/J.M. Castela Rio [Código Penal, Parte geral e especial, com notas e comentários, Almedina, 2014, nota 3 ao artigo 349º e nota 2 ao artigo 352º, páginas1180 e 1183, respetivamente].
Na jurisprudência dos nossos tribunais superiores, parece ser esta também a orientação prevalente.
Assim, no acórdão do STJ de 23/11/2017, recurso 1210/12.3POLSB.L1.S3 [Relatado por Isabel São Marcos e acessível in www.dgsi.pt], citado pela decisão recorrida, entende-se que “(…) incorre na prática do crime de evasão não só quem se encontrar privado da liberdade em virtude de detenção ou de prisão, mas também quem estiver sujeito a obrigação de permanência na habitação, tenha ela sido aplicada a título de medida processual de coação ou para efeitos de cumprimento de pena. Entendimento que saiu reforçado com a nova redação dada pela Lei 94/2017, de 23/08, ao artigo 43.º do Código Penal”.
Mas também acórdão do TRE de 13/12/2012 [processo 50/10.4TASTB.E1, relatora Maria Isabel Duarte], acórdãos de do TRP de 0712.2016 [processo 746/13.3GDGDM.P1, relator Ernesto Nascimento] e 11.11.2020 [processo 760/17.0T9SJM.P1, relator Vítor Morgado], todos disponíveis, in www.dgsi.pt..
Relativamente à objeção da dupla penalização do agente que seja condenado pelo crime de evasão por ilegitimamente se ter ausentado do local onde se encontrava sujeito à medida de coação de obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica – que já acima vimos ter sido concitada pelo recorrente – parece-nos também carecer este de razão.
Com efeito, aderindo ao entendimento do já citado acórdão do TRP de 11.11.2020, estão em causa realidades distintas.
Na verdade, uma coisa são as eventuais consequências processuais de agravamento das medidas cautelares que possam ou não resultar da violação dos deveres inerentes à medida de obrigação de permanência na habitação (cfr. o artigo 203.º, nº 2, do Código de Processo Penal).
Outra coisa é a consequência tipificada na lei penal substantiva para a conduta do agente que, desrespeitando a autoridade pública encarregada do sistema estadual de justiça, viole a custódia oficial, quando se ausenta ilegitimamente do local a que, nos termos da competente decisão judicial, deveria estar confinado para cumprimento da medida privativa de liberdade (no caso, de obrigação de permanência na habitação).
Por último, sustenta o recorrente que, em todas as 18 vezes que saiu do local onde estava sujeito à medida de coação de obrigação de permanência, a ele regressou passados alguns minutos ao local onde estava, pelo que não houve consumação do crime.
Vejamos.
No nosso entendimento, o crime de evasão é de mera atividade, ou seja, o tipo incriminador fica preenchido através da mera execução de determinado comportamento [nesses termos Figueiredo Dias- com a colaboração de Maria João Antunes, Susana Aires de Sousa, Nuno Brandão e Sónia Fidalgo- , in Direito Penal, Parte Especial, Tomo I, 3º Edição, Gestlegal, § 38, p. 356 Paulo Pinto de Albuquerque, in ob. cit., anotação 3 ao artigo 352º, p. 1193] e, na medida em que o bem jurídico protegido não é apenas e só o da a segurança da custódia oficial, mas a autoridade pública do sistema estadual, quando profere decisões de privação de liberdade, valor mais lato e aonde aquele se insere e que abarca todos os crimes contra a administração pública, o mesmo configura-se como um crime duradouro, ou seja, a consumação ocorre logo que se cria o estado antijurídico, o qual se protrai no tempo enquanto tal for a vontade do agente, que tem a faculdade de por termo a esse estado coisas, pelo que não exige o decurso de um período temporal mínimo para que ocorra a consumação [Figueiredo Dias, in ob. cit, p. 366, no que se refere à caraterização do que se deve entender por crime duradouro, e Paulo Pinto de Albuquerque, in, ob., cit., anotação 2 ao artigo 352º, p. 1193 no que se refere ao bem jurídico protegido e a caraterização do crime de evasão como crime permanente – sinónimo de crime duradouro; e na jurisprudência, acórdão do TRL, de 21.03.2018, processo n. 659/99.0TAOER-A.L1-3, relator Vasco Freitas].
Nessa medida, carece de relevo, para afirmar a ocorrência da consumação, o facto de o arguido se ter subtraído à privação da liberdade a que estava sujeito por 19,5 minutos em média por cada uma das 18 vezes.
O crime ficou consumado a partir do exato momento em que o mesmo, quis, de forma livre, voluntária e consciente, sair da residência em que se encontrava a cumprir a medida de coação de obrigação de permanência na habitação.
Improcede, pois, a impugnação do enquadramento típico realizado pelo Tribunal recorrido, que se confirma.
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Responsabilidade pelas custas:
O recorrente, atento o disposto nos termos do artigo 513º, n.º 1 do Código de Processo Penal (CPP), em conjugação com o artigo 8º, n.º 9 e tabela III do Regulamento das Custas Processuais (RCP), é responsável pelo pagamento das custas, cuja taxa de justiça, atenta a atividade processual que este processo implicou, se fixa em 3,5 Unidades de Conta [UC].
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III. Decisão:
Pelo exposto, acordam os Juízes da 3ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, em julgar improcedente o recurso e, em conformidade, decidem:
a. Manter na íntegra o despacho e sentença recorridos;
b. Condenar o recorrente nas custas, cuja taxa de justiça se fixa em 3,5 UC;
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Notifique-se e, após trânsito, remetam-se os autos ao tribunal de origem.
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[Acórdão elaborado pelo 1º signatário em processador de texto informático, tendo sido integralmente revisto pelos signatários, com aposição de assinaturas digitais certificadas- artigo 94º nº2 do CPP].
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Lisboa, 22 de outubro de 2025
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Joaquim Jorge da Cruz
Rui Miguel Teixeira
Sofia Rodrigues