Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | JOSÉ CAPACETE | ||
Descritores: | CONCLUSÕES DE RECURSO CONVITE AO APERFEIÇOAMENTO RESPOSTA DEFICIENTE CONSEQUÊNCIAS INVENTÁRIO SUBSEQUENTE A DIVÓRCIO BENS PRÓPRIOS AQUISIÇÃO DIREITO PRÓPRIO ANTERIOR | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 09/09/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
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Sumário: | Sumário[1]: (Elaborado pelo relator e da sua inteira responsabilidade – art. 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil[2]) 1. A deficiente resposta ao convite para integral cumprimento do disposto nas als. a) a c) n.º 2 do art. 639.º, pode levar à rejeição do recurso, mas este resultado não é automático, tendo que resultar do exame que subsequentemente o tribunal de recurso deve fazer, como solução in extremis. 2. Em particular, a cominação gravosa prevista no art. 690.º, n.º 3, (não conhecimento do objeto do recurso), no que à falta de menção das normas violadas e/ou do sentido em que deveriam ser interpretadas as normas que serviram de fundamento à decisão, não é em absoluto insuprível, pois a sua presença não terá um efeito de revelação do direito ao juiz, desde que o restante conteúdo (mesmo que imperfeito e lacunoso) das conclusões ainda permita a cognição do tribunal ad quem dentro de um certo objeto. 3. A falta de resposta ao convite ao aperfeiçoamento ou a resposta não sanante dos vícios identificados apenas deve dar origem à rejeição de todo o objeto do recurso, nos termos do art. 639º, 3, se o julgador estiver em condições de fazer equivaler as conclusões manifestamente irregulares (que motivaram o convite ao aperfeiçoamento) a uma total omissão de conclusões – o que associaria tal efeito letal à sanção decorrente da aplicação do art. 641º, 2, b), do CPC. 4. Os bens que, ao abrigo da al. c) do n.º 1 do art. 1722.º do CC, são considerados próprios, são aqueles que não resultam do esforço conjunto do casal e, portanto, devem escapar à massa comum, para pertencerem apenas ao cônjuge que os fez entrar para o casamento. 5. Consideram-se adquiridos por virtude de direito próprio anterior os bens adquiridos em consequência de direitos anteriores ao casamento sobre patrimónios ilíquidos partilhados depois dele; 6. (...) relevando o direito adquirido sobre o património ilíquido, sendo no momento da aquisição deste direito que se fixa o seu conteúdo, não passando a partilha de uma concretização do direito anterior, que não acrescenta nem diminui a posição jurídica que o titular já detinha; 7. (...) pelo que, o bem concreto que aparece de novo, depois do casamento, mais não é do que uma representação do valor que já estava no património do cônjuge antes do casamento e que, portanto, deve continuar no seu património exclusivo, podendo afirmar-se que o bem concreto fica sub-rogado no lugar da quota anterior, através da substituição mais direta e patente que se pode equacionar. 8. O bem adquirido na sequência de partilha ocorrida após o casamento, mas por virtude de direito próprio anterior, não deixa de manter a natureza de próprio: - mesmo que haja lugar ao pagamento de tornas aos demais herdeiros; e, - ainda que este seja de valor superior ao quinhão hereditário; e, - ainda que feito à custa de dinheiro comum do casal, caso em que apenas será devida a respetiva compensação ao património comum no momento da dissolução e partilha da comunhão. _______________________________________________________ [1] Neste acórdão utilizar-se-á a grafia decorrente do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, respeitando-se, no entanto, em caso de transcrição, a grafia do texto original. [2] Diploma a que pertencem todos os preceitos legais citados sem indicação da respetiva fonte. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam na 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa: I – RELATÓRIO: PJ instaurou processo de inventário contra JF, para partilha dos bens comuns do casal que entre ambos foi constituído. A requerente foi nomeada cabeça-de-casal tendo, no dia 27 de maio de 2024, apresentado a respetiva relação de bens, contra a qual o requerido apresentou reclamação: - requerendo a exclusão das verbas n.º 1 e 3 dos bens imóveis, por serem bens próprios, e ainda das verbas n.º 5 e 6; e, - impugnando o valor atribuído às verbas n.º 2 e 4. * A cabeça-de-casal respondeu à reclamação, concluindo, no que para aqui e agora interessa, desta forma: «Nestes termos e nos mais de Direito que V/ Exa. doutamente suprirá, deverá a RESPOSTA à Reclamação apresentada pela Requerente ser julgada totalmente procedente por provada, com as legais consequências daí advenientes. Mais se requer a este douto Tribunal que: a) Seja nomeado um perito avaliador para proceder à avaliação do prédio rústico melhor identificado na Verba 2, de modo a determinar o seu valor de mercado atual; b) Seja nomeado um perito para proceder à avaliação do valor global do mobiliário/recheio da casa de morada de família, com vista a apurar o seu valor justo e atualizado; c) Seja o Requerido notificado para juntar aos autos todas as suas Declarações de IRS desde, pelo menos, o ano de 2000 até à presente data, por forma a apurar: i. A evolução dos rendimentos declarados pelo Requerido ao longo dos anos; ii. As despesas efetivamente deduzidas ou relacionadas com encargos patrimoniais alegadamente suportados pelo Requerido; iii. Qualquer outra informação relevante para a apreciação da veracidade das alegações apresentadas pelo Requerido nos autos. d) (...)». * Na subsequente tramitação dos autos foi proferida decisão de cuja parte dispositiva consta o seguinte: «Pelo exposto, julgo parcialmente procedente a reclamação apresentada à relação de bens e, em consequência: a) Elimino as verbas n.º 1 e 3, dos bens imóveis, e as verbas n.º 5 e 6, do dinheiro, da relação de bens; b) Absolvo a cabeça-de-casal do demais peticionado» * Inconformada, a cabeça-de-casal recorre dessa decisão, concluindo assim as respetivas alegações: «i. As presentes Alegações de Recurso têm por objeto o pedido de reapreciação da sentença proferida pelo Tribunal a quo que excluiu a Verba n.º 1 da Relação de Bens, correspondente ao imóvel construído para casa de morada de família, do ativo partilhável no Processo de Inventário. ii. A Recorrente entende que a decisão do Tribunal a quo enferma de erro de julgamento na aplicação do Direito aos factos provados, violando Princípios da Equidade e da Boa-fé, baseando-se numa prova documental manifestamente insuficiente (Doc. 3 da reclamação à relação de bens) e decidindo mesmo contra outra (escritura de mútuo com hipoteca), o que justifica a sua revogação. iii. Porquanto, resulta dos próprios factos provados que a construção do referido imóvel foi realizada com recurso a capital comum, resultante de mútuo bancário contraído pelo ex-casal ainda em momento anterior à celebração do casamento e amortizado durante a constância do mesmo. iv. Ademais, e ainda que o terreno onde se ergueu a construção tenha sido adquirido por sucessão hereditária pelo ora Recorrido, sendo considerado bem próprio seu, o imóvel edificado sobre o mesmo constitui benfeitoria executada com recursos financeiros comuns, devendo, por isso, ser qualificado como bem comum ou, pelo menos, ser gerador de um crédito compensatório a favor do património comum. v. Salvo o devido respeito, andou mal o Tribunal a quo ao reconhecer a comunhão do passivo utilizado para a construção, mas a excluir da comunhão o ativo resultante dessa mesma construção, o que revela uma contradição interna e insanável na fundamentação, tornando a decisão até ferida de nulidade, nos termos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea c) do Código de Processo Civil, por oposição gritante entre a fundamentação e a decisão. vi. Pelo que, em face ao exposto nos números anteriores, outra conclusão não deve ser extraída pelo Tribunal ad quem que não a de que a sentença de que ora se recorre e proferida pelo Tribunal a quo padece de nulidade. vii. Sem nunca descurar, crê a Recorrente que, caso o douto Tribunal ad quem entenda não ser de proceder a nulidade da sentença recorrida, sempre será de atender-se à questão do erro na aplicação da lei por parte do Tribunal a quo ao não ter integrado a verba n.º 1 da Relação de Bens a favor do património comum do ex-casal. viii. Isto porque, o simples facto de constar na certidão predial que o Recorrido figura como proprietário do imóvel, não tem o condão de afastar a natureza comum do bem edificado, porquanto o que verdadeiramente importa é a proveniência dos recursos utilizados na sua construção e a afetação do bem à vida em comum. ix. Ademais, e mesmo que se admitisse, por mera hipótese de raciocínio, que a fração edificada não pudesse ser qualificada como bem comum, o que, desde já, se não concede, nunca poderia deixar de ser reconhecido, no mínimo, um direito de crédito compensatório ao património comum, correspondente à benfeitoria executada. x. Com efeito, a referida verba, tal como foi apresentada na Relação de Bens, sempre teria de representar um direito de crédito sobre o Recorrido, com valor partilhável entre ambos os ex-cônjuges, o que, na prática, produzirá o mesmo efeito económico e patrimonial da qualificação como bem comum: a afetação proporcional do valor atribuído a ambos os (ex) cônjuges. xi. Assim, aceitar a decisão do Tribunal a quo seria transformar o instituto do casamento numa “ferramenta” de enriquecimento injustificado, permitindo que um cônjuge possa beneficiar, na medida em que beneficiou o Recorrido, apropriando-se de um bem edificado com recursos financeiros e contributos diretos e indiretos (também) da Recorrente, com quem foi partilhada uma comunhão de vida e património, ao mesmo tempo que se exime à sua partilha. xii. Razão pela qual, e na ótica da Recorrente, andou mal o Tribunal a quo ao ignorar que em virtude da existência de um mútuo comum para construção da casa de morada de família, essa contribuição não se refletiria automaticamente no reconhecimento do direito da Recorrente à inclusão da referida Verba n.º 1 na Relação de Bens. xiii. Entendimento que, e salvo o devido respeito, ignora o desequilíbrio substancial entre os contributos patrimoniais efetivos das partes e despreza o esforço comum que sustentou a edificação do imóvel em causa, para além de evidenciar uma injustiça atroz, já que em termos práticos a Recorrente fica com o passivo e nada de ativo… xiv. Finalmente, dúvidas não parecem restar de que a aludida verba deve ser considerada bem comum, por ter sido edificada com recurso a crédito comum e esforços conjuntos na constância do matrimónio. xv. Por todo o exposto e com o douto suprimento de V/ Exas., deverá decidir-se conforme supra se enuncia, sendo certo que a não integração da referida benfeitoria no ativo partilhável configura uma situação gritante de enriquecimento sem causa do Recorrido à custa do património da ora Recorrente, em violação dos Princípios da Equidade, da Justiça Material e da Boa-fé entre cônjuges». Conforme refere Rui Pinto, «depois de formular conclusões, o recorrente termina deduzindo um pedido de revogação, total ou parcial, de uma decisão judicial»[1]. Neste recurso, após a formulação das conclusões as apelantes deduzem o seguinte pedido revogatório: «Termos em que, invocando-se o Douto suprimento do Venerando Tribunal, deverá ser dado provimento ao presente RECURSO e, em consequência, revogar-se a decisão do Tribunal a quo na parte em que vem recorrida, substituindo-a por outra, que, i. Declare que a sentença de que ora se recorre e proferida pelo Tribunal a quo padece de nulidade, com todas as devidas e legais consequências; ii. Determine a integração da verba n.º 1 da Relação de Bens no património comum dos ex-cônjuges, por ter sido edificada com recurso a crédito comum e com o contributo conjunto de ambos, na constância do matrimónio; e, iii. Subsidiariamente, e apenas caso assim não se entenda, seja reconhecida a existência de um crédito compensatório a favor da Recorrente, a ser integrado no ativo partilhável, correspondente à benfeitoria realizada com recursos comuns sobre bem próprio do Recorrido, sob pena de se configurar uma situação de enriquecimento sem causa. Só assim se fazendo JUSTIÇA!» * O requerido contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso e, consequentemente, pela manutenção da decisão recorrida. * Na motivação e nas conclusões recursivas a apelante imputa à decisão recorrida, vaga e genericamente, «erro de julgamento na aplicação do direito aos factos», «falta de senso comum na interpretação dos elementos probatórios», violação dos «Princípios da Equidade e da Boa-fé», «errónea interpretação e aplicação do Direito», «errónea aplicação da lei substantiva quanto à qualificação patrimonial da verba n.º 1». No entanto, não menciona sequer uma única norma jurídica que considere ter sido violada pelo tribunal. Sendo fácil imputar às decisões judiciais, vaga e genericamente, como amiúde se faz, e este é um caso paradigmático disso mesmo, erros de julgamento na aplicação do direito aos factos, difícil é, por vezes, desde logo, indicar expressamente a(s) norma(s) jurídica(s) violada(s) pela(s) decisão(ões) recorrida(s). Por outras palavras, difícil é dar cumprimento ao estatuído nas als. a) a c) do n.º 2 do art. 639.º. Foi exatamente o que ocorreu no caso desta apelação, razão pela qual, mediante despacho do relator, datado de 16 de junho de 2025 (Ref.ª 23287340), foi a apelante convidada a dar integral cumprimento ao disposto naquele normativo. Em resposta, a apelante veio apresentar novas conclusões, onde afirma que a decisão recorrida violou os «artigos 1724.º, 1726.º, 216.º, 376.º e 473.º todos do Código Civil, bem como dos artigos 607.º, n.º 3 e 4 e 615.º, n.º 1, alínea c), do Código do Processo Civil». A apelante, apesar do convite que lhe foi feito nesse sentido, continuou a não dar integral cumprimento ao estipulado nas als. a) a c) do n.º 2 do art. 639.º. No entanto, e tal como o relator deixou consignado no despacho datado de 12 de julho de 2025 (Ref.ª 23423349), conforme referem Lebre de Freitas / Ribeiro Mendes/Isabel Alexandre, «a deficiente resposta ao convite pode seguidamente levar à rejeição do recurso, mas este resultado não joga automaticamente, tendo que resultar do exame que subsequentemente o tribunal de recurso tem de fazer, como solução in extremis»[2]. Ou seja, e tal como afirma no Ac. do S.T.J. de 20.10.2019, Proc. n.º 738/03.0TBSTR.E1.S3 (Ricardo Costa), in www.dgsi.pt, a cominação gravosa do art. 639.º, n.º 3, do CPC (não conhecimento do objeto do recurso), «(...) é uma cominação processual a extrair in extremis se a apreciação recursiva for de todo comprometida com o incumprimento, mesmo que, não tendo usado da faculdade de apresentar novas conclusões, ocorra prejuízo para o intuito de a parte recorrente inverter a decisão recorrida. Em particular, a falta de menção das normas violadas e/ou do sentido em que deveriam ser interpretadas as normas que serviram de fundamento à decisão não é em absoluto insuprível: a sua presença não terá um efeito de revelação do direito ao juiz, desde que o restante conteúdo (mesmo que imperfeito e lacunoso) das conclusões ainda permita a cognição do tribunal ad quem dentro de um certo objecto; a sua omissão ou incompletude ou obscuridade, em desconformidade com os ónus centrais da peça recursiva, prejudicará o resultado pretendido e sibi imputet. Por outro lado, a falta de resposta ao convite ao aperfeiçoamento ou a resposta não sanante dos vícios identificados deve dar origem à rejeição de todo o objecto do recurso, nos termos do art. 639º, 3, CPC, se o julgador estiver em condições de fazer equivaler as conclusões manifestamente irregulares (que motivaram o convite ao aperfeiçoamento) a total omissão de conclusões – o que associaria tal efeito letal à sanção decorrente da aplicação do art. 641º, 2, b), do CPC. Não sendo de extrair automaticamente o efeito gravoso da rejeição /não conhecimento do objecto do recurso pelo relator ou colectivo do tribunal ad quem na circunstância de resposta insuficiente ou inexistente, tal efeito não está excluído, sob pena de desvirtuamento da própria ratio legis do art. 639º, 3 (...). De facto, uma vez recebida, ou não, a resposta do recorrente, ou recebida fora de prazo, “o relator deve ponderar de novo, dentro do seu prudente critério e com recurso aos princípios gerais do processo civil, qual a solução que mais se ajusta à concreta situação” – como enfatiza ABRANTES GERALDES. E a cominação gravosa do art. 639º, 3, será justificada se as circunstâncias concretas do comportamento processual quanto ao ónus recursivo revelarem como inevitável decretar um juízo de especial censura à parte inadimplente à luz dos princípios processuais mais pertinentes para tal regime (a tutela da igualdade das partes, a protecção do exercício do contraditório, a cooperação e a boa fé processual assim como o princípio da auto-responsabilidade das partes). Nessa hipótese de actuação intolerável em face da expressão desses princípios, individual ou coligadamente analisados em concreto, poderemos estar nas referidas situações extremas de afastamento do conhecimento do mérito do recurso. Não se tratará apenas de saber se e como deve ser conhecido o recurso em face das insuficiências, deficiências, obscuridades e omissões das conclusões, para o fim de o julgador apreender de forma clara, inteligível e concludente o tema recursivo, mesmo que, ainda que em prejuízo do resultado pretendido pela parte, o faça por dedução ou simples percepção das questões de facto ou de direito que o recorrente suscita e que cabe ao tribunal superior solucionar – apreciação do conteúdo das conclusões não obstante o incumprimento ou o cumprimento defeituoso do convite ao aperfeiçoamento. Trata-se, antes disso e previsivelmente a montante de chegarmos ao conteúdo da peça (até porque pode não haver peça), de saber se a conduta processual em face do convite ao aperfeiçoamento revela uma particular indiferença para com o comando legal em sede de ónus de alegação recursiva – apreciação da forma de cumprimento no exercício do meio de impugnação da decisão recorrida. Se esta apreciação, concreta e referida aos princípios aplicáveis, conduzir positivamente a uma imputação de censura à parte, então estaremos em condições de fazer funcionar o princípio da preclusão do exercício de direitos ou da satisfação de pretensões adjectivas, em particular quando inerente ao não cumprimento do ónus da prática de certos actos processuais dentro dos prazos (considerados) peremptórios ou resolutivos cominados por lei, também plasmado, por isso, no art. 639º, 3, do CPC»[3]. No caso concreto, não obstante a apelante, em resposta ao convite que lhe foi feito, não ter dado integral cumprimento ao disposto no n.º 2 do art. 639.º, concretamente, ao estatuído nas suas als. b) e c), à luz dos antecedentes considerados, de forma alguma se justificaria fulminar o presente recurso com uma decisão de rejeição. Eis a razão pela qual, nos termos do sobredito despacho datado de 12 de julho de 2025 (Ref.ª 23423349), se admitiu o recurso. * II – ÂMBITO DO RECURSO: Como se sabe, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio, é pelas conclusões com que o recorrente remata a sua alegação (aí indicando, de forma sintética, os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida: art. 639.º, n.º 1), que se determina o âmbito de intervenção do tribunal de recurso. Efetivamente, muito embora, na falta de especificação logo no requerimento de interposição, o recurso abranja tudo o que na parte dispositiva da sentença for desfavorável ao recorrente (art. 635.º, n.º 3), esse objeto, assim delimitado, pode vir a ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusões da alegação (n.º 4 do mesmo art. 635.º). Por isso, todas as questões de mérito que tenham sido objeto de julgamento na sentença recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação do recorrente, mostrando-se objetiva e materialmente excluídas dessas conclusões, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso, ainda que, eventualmente, hajam sido suscitadas nas alegações propriamente ditas. Por outro lado, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando, assim, ius novarum, i.e, a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo (cfr. os arts. 627.º, n.º 1, 631.º, n.º 1 e 639.º). Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (art. 5.º, n.º 3) – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respetivo objeto, excetuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras (art. 608.º, n.º 2, ex vi do art. 663.º, n.º 2). À luz destes considerandos, neste recurso importa decidir: - se a decisão recorrida padece da nulidade que lhe é imputada; e, - se o bem imóvel que constitui a verba n.º 1 da relação de bens deve ser considerado comum do casal ou próprio do requerido. * III – FUNDAMENTOS: 3.1 – Fundamentação de facto: 3.1.1 – A sentença recorrida considerou provado que: 1- JF e PJ contraíram casamento católico, [s]em convenção antenupcial, em 30 de Dezembro de 2000. 2- JF é filho de JG e de MF. 3- Em 17 de Setembro de 2019, a requerente/cabeça-de-casal instaurou acção especial de divórcio sem consentimento do outro cônjuge contra o interessado. 4- Por sentença proferida em 18 de Novembro de 2019, foi decretado o divórcio entre as partes. 5- JG faleceu em 18 de Agosto de 1996 no estado de casado com MF. 6- Na relação de bens de JG, constante do Processo de Liquidação de Imposto sobre as Sucessões e Doações, com o n.º ____, consta identificado um prédio rústico e urbano, ao sítio ___, inscrito na matriz a parte rustica sob o artigo ___ e a parte urbana sob o artigo ____. 7- Este prédio encontrava-se descrito na Conservatória do Registo Predial de ____ sob o n.º ____, tendo a propriedade sido registada a favor de JG pela Ap. 01/____. 8- Pela Ap. 02/____ foi registada a propriedade do prédio em comum, sem determinação de parte ou direito, a favor do interessado, de MF e de BF, por dissolução da comunhão conjugal e sucessão. 9- Em 27 de Abril de 2000, o interessado, na qualidade de promotor e dono da obra, celebrou um contrato de empreitada com a sociedade V, Lda. 10- No decurso e execução desse contrato, o interessado levantou numerário da sua conta bancária e efectuou os seguintes pagamentos: i) em 25/5/2000 pagou a quantia de $ 1.000.000,00 (um milhão de escudos) com o contravalor de € 4987,98 euros; ii) em 10/7/2000 pagou a quantia de $ 1.000.000,00 (um milhão de escudos) com o contravalor de € 4987,98 euros; iii) em 25/7/2000 pagou a quantia de $ 2.000.000,00 (dois milhões de escudos) com o contravalor de € 9.975,96 euros; iv) em 21/8/2000 pagou a quantia de $ 1.000.000,00 (um milhão de escudos) com o contravalor de € 4987,98 euros; v) em 1/9/2000 pagou a quantia de $ 1.000.000,00 (um milhão de escudos) com o contravalor de € 4987,98 euros. 11- Em 25 de Outubro de 2000, foi celebrado contrato de mútuo e hipoteca e fiança, nos termos do qual o Banco ____, S.A. concedeu ao interessado e à cabeça-de-casal, para efeitos de construção no imóvel hipotecado, um empréstimo no montante de vinte e seis milhões e quinhentos mil escudos. 12- Para a garantia do empréstimo, o interessado, MF e BF constituíram a favor do banco hipoteca sobre o prédio misto, no sítio ____, inscrito na matriz predial respectiva a parte urbana sob o artigo ____ e a parte rústica sob oito de dezoito avos do artigo ____ e descrito na Conservatória do Registo Predial de ____ sob o n.º ____. 13- MF e BF declararam que solidariamente afiançavam todas as obrigações que o interessado e a cabeça-de-casal assumiram a título do empréstimo e que na qualidade de fiadores e como principais pagadores se obrigavam perante o banco ao cumprimento das mesmas, renunciando ao benefício da excussão prévia. 14- Em 21 de Agosto de 2000, foi emitido alvará de licença de construção em nome de MF e outros para a construção que incide sobre o prédio no Sítio ___, descrito na Conservatória do registo Predial de ____ sob o n.º ____ e inscrito na matriz predial sob o artigo ____. 15- A obra em causa consistiu na ampliação da construção existente, acrescentando mais um piso, com a área de 280 m2 de construção destinado a habitação. 16- Em 29 de Julho de 2002, foi emitido, pela Câmara Municipal de ____, o Alvará de Licença de Utilização n.º ____ em nome de MF e outros que titula a utilização do prédio, sito em Lameiros, freguesia de ____, Município de ____, descrito na Conservatória do Registo Predial de ____ sob o número ____ e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ____ da respectiva freguesia. 17- Em 2 de Abril de 2004, MF requereu à Câmara Municipal de ____, “com relação ao prédio urbano recém ampliado, destinado a comercio e habitação, localizado no referido sítio ____, freguesia de ____” vistoria para efeitos de constituição sob o regime da propriedade horizontal. 18- Em 31 de Maio de 2004, a Câmara Municipal de ____ emitiu certidão, em nome de MF, a declarar que “o imóvel possui as necessárias condições de distinção, isolamento e independência, previstas no artigo 1414 e seguintes do Código Civil.” 19- No auto de vistoria consta a seguinte identificação do imóvel: “Prédio urbano, recém ampliado com a área coberta de duzentos e noventa e nove metros quadrados e descoberta de seiscentos e um metros quadrados, atenta a cedência realizada, para integração no domínio público do município, da área de vinte e três metros quadrados destinada ao alargamento do caminho municipal existente a sul, composto por um edifício de três pisos (rés do chão, piso 1 e sótão), coberto de telha, destinado a comércio e habitação, localizado na Estrada Municipal ____, sítio ____, freguesia e Concelho de ____, inscrito na matriz predial de ____ a parte rústica sob o n.º ____ e a parte urbana sob o n.º ____ e descrito na Conservatória de registo Predial de ____ sob o n.º ____. O edifício é formado por duas únicas fracções autónomas, sendo uma comercial, localizada ao nível do rés do chão, com acesso directo pelo Estrada Municipal ____, existente junto da confrontação Oeste do prédio, e uma habitacional, composta por três pisos, distribuídos pelo rés do chão, primeiro andar e sótão, com acesso pedonal e de automóvel, a partir do caminho Municipal existente junto da confrontação Sul do referido prédio. Descrição das Fracções: Fracção "A" - Fracção autónoma destinada a comércio, minimercado e bar, localizada no lado Oeste do Rés do chão, formada por um único pavimento, composta por três compartimentos, duas arrecadações e duas instalações sanitárias. Tem a área de 230m2. Fracção "B" - Fracção autónoma destinada a habitação, do tipo T3, localizada para Leste e em cota superior à anterior, formada por três pavimentos, sendo composta no rés do chão, por arrecadação e garagem, com acesso directo à via pública, processado a partir de uma rampa de circulação implantada no logradouro sul do prédio (…).” 20- Em 1 de Junho de 2004, MF procedeu ao pagamento da taxa referente à emissão do documento Propriedade Horizontal junto da Câmara Municipal de ____. 21- Em 24 de Junho de 2005, foi constituída, mediante escritura pública outorgada no 1.º Cartório Notarial ____, a propriedade horizontal do referido prédio urbano, constituindo-se as fracções autónomas A e B. 22- Na mesma data, e como acto subsequente à constituição da propriedade horizontal, MF, o interessado e BF procederam à outorga da escritura de partilha da herança deixada por óbito de JG, sendo os bens a partilhar, compostos: pela Verba Um – Fracção autónoma ou unidade comercial individualizada pela letra A, integrada no prédio em regime de propriedade horizontal, localizado ao sitio ____, freguesia e concelho de ____; e pela Verba Dois – fracção autónoma destinada exclusivamente a habitação, individualizada pela letra “B”. 23- Nessa partilha, foi adjudicado ao interessado 1/6 da Verba Um e a Verba Dois, tendo pago tornas à sua mãe e ao irmão no valor de € 50.000,00 (cinquenta mil euros). 24- A propriedade da fracção localizada ____, freguesia e concelho de ____, descrita na Conservatória do Registo Predial de ____ sob o n.º ____, inscrita na matriz predial urbana sob o artigo ____, encontra-se registada a favor do interessado, por partilha de JG, pela Ap. ____. 25- Em 1 de Agosto de 2019, foi celebrada escritura de compra e venda, tendo MF vendido à herança de JG, representada por MF, o interessado e BF, pelo valor de € 4.100,00 (quatro mil e cem euros), o prédio rústico localizado ____, freguesia e concelho de ____, inscrito na matriz sob o artigo ____. 26- A propriedade do prédio rústico localizado ____, freguesia e concelho de ____, descrito na Conservatória do Registo Predial de ____ sob o n.º ____, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ____, encontra-se registada a favor do interessado, de MF e de BF, em comum e sem determinação de parte ou direito, por óbito de JG». 3.1.1 – (...) e não provado que: «a- A cabeça-de-casal contribuiu com o valor de “cerca de” € 15.000,00 (quinze mil euros) como entrada para o empreiteiro para o início da construção do imóvel descrito em 24). b- A cabeça-de-casal despendeu a quantia de “cerca de” € 700,00 (setecentos euros) numa obra de remodelação da casa de banho dos filhos, para substituir a banheira para colocação de base de duche». * Nos termos do art. 662.º, n.º 1, aos enunciados considerados provados e atrás descritos, acrescenta-se o seguinte: «No dia 27 de maio de 2024 a cabeça-de-casal apresentou relação dos bens comuns do casal, da consta, além do mais, o seguinte: “I. ATIVO a. IMÓVEIS 1.º – Fração autónoma, unidade habitacional, tipo T-Três, localizada para Leste e em cota superior a fração A, formada por três pavimentos, rés-do-chão, primeiro andar e sótão ou água furtada, a que lhe pertence um logradouro, localizado a Leste da fração com 601 m2 e ainda o uso exclusivo da cobertura da fração A, envolvente a fração B, correspondente a toda a zona de pátios exteriores do piso um, inserida no prédio urbano, constituído em regime de propriedade horizontal, situado nos Lameiros, freguesia e concelho de ____, descrito na Conservatória do Registo Predial de ____ sob o número ____ e está inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ____, com o valor patrimonial de € 99.672,15 (noventa e nove mil, seiscentos e setenta e dois euros e quinze cêntimos), bem comum”. * 3.2 – Fundamentação de direito: 3.2.1 – Nulidade da decisão recorrida: Afirma a apelante que «(...) andou mal o Tribunal a quo ao reconhecer a comunhão do passivo utilizado para a construção, mas a excluir da comunhão o ativo resultante dessa mesma construção, o que revela uma contradição interna e insanável na fundamentação, tornando a decisão até ferida de nulidade, nos termos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea c) do Código de Processo Civil, por oposição gritante entre a fundamentação e a decisão (...) pelo que, em face ao exposto nos números anteriores, outra conclusão não deve ser extraída pelo Tribunal ad quem que não a de que a sentença de que ora se recorre e proferida pelo Tribunal a quo padece de nulidade». É, salvo o devido respeito, incompreensível uma tal arguição de nulidade da decisão recorrida. Nos termos da al. c) do nº 1 do art. 615º do CPC, «é nula a sentença quando (...) os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível». O vício da sentença a que alude este segmento normativo configura um vício formal, que se traduz em error in procedendo ou erro de atividade que afeta a sua validade. Para que a sentença proferida se encontre em contradição com a fundamentação nela acolhida, necessário se torna que os fundamentos invocados na decisão conduzam, num processo lógico, a solução oposta àquela que foi adotada[4]. A nulidade da sentença decorrente dos fundamentos estarem em oposição com a decisão verifica-se, assim, quando a fundamentação aponta num certo sentido que é contraditório com o que vem a decidir-se, não se confundindo, enquanto vício de natureza processual, com o erro de julgamento, que se verifica quando o juiz decide mal, ou porque decide contrariamente aos factos apurados ou contra lei que lhe impõe uma solução jurídica diferente. Em suma, pois, a nulidade da sentença por oposição dos fundamentos com a decisão apenas se verifica quando os fundamentos invocados conduzem, num processo lógico, a uma solução oposta àquela que foi adotada, e não quando a sentença interpreta os factos, documentos e normas em sentido diverso do propugnado pelo recorrente; de outra forma dizendo, esta nulidade radica numa desarmonia lógica entre a motivação fáctico-jurídica e a decisão resultante de os fundamentos inculcarem um determinado sentido decisório e ser proferido outro de sentido oposto ou, pelo menos, diverso. É por demais evidente que a decisão recorrida não enferma de um tal vício. 3.2.2 – Enquadramento jurídico: Este é um de inventário subsequente a divórcio, destinado à partilha dos bens comuns do ex-casal que foi constituído pela apelante e pelo apelado, onde aquela exerce funções de cabeça-de-casal. A apelante apresentou a respetiva relação de bens, contra a qual o apelado reclamou, pugnando, além do mais, pela exclusão da verba descrita sob o n.º 1, a fração autónoma acima identificada, por entender que esse bem imóvel foi indevidamente relacionado, pois constitui um bem próprio seu, e não um bem comum do ex-casal. A cabeça-de-casal respondeu, esgrimindo argumentos no sentido de que a dita verba deve manter-se relacionada. Alega para o efeito que «tratando-se aquela construção de uma alteração que visa melhorar a utilidade do terreno – construção de um prédio urbano (casa) sobre um terreno – deve considerar-se, por isso, uma benfeitoria. Mais! Importa, também, clarificar que o terreno em questão, apesar de ter sido adquirido por sucessão hereditária pelo Requerido, foi transformado num prédio urbano com a construção da casa de morada de família, realizada por ambos os cônjuges durante o período da união de facto e ainda antes do casamento. Aliás, é claro o disposto na certidão predial do referido imóvel, quanto à sua titularidade, de onde dispõe a aquisição feita pelo ex-casal pela Ap. ____, no estado de casados no regime da comunhão de adquiridos, conforme Doc. já junto no requerimento inicial. (...) tal benfeitoria não só é bem comum, como tem de ser relacionada para efeitos de partilha, aliás, como fez a Requerente. Não obstante, ainda que o estado civil do ex-casal à data da contração do mútuo para construção, em 24.10.2000 (vide Doc. 7, já junto com o requerimento inicial), fosse de “solteiros, maiores”, a verdade é que, em momento algum se contesta haver uma relação de união de facto, à qual tem vindo a ser reconhecida relevância pelos tribunais e pela lei. É evidente que a Requerente contribuiu significativamente, tanto em termos financeiros, quanto no seu esforço pessoal, para a construção da casa de morada de família, entre as quais, e como já indicado, se destaca a entrada inicial de cerca de € 15.000,00 (quinze mil euros) com capitais próprios, que fora utilizada para financiar parte da construção e ainda os cerca de € 700,00 (setecentos euros) para remodelar a casa de banho dos dois filhos de ambos. A conduta do Requerido, ao alegar que o imóvel é bem próprio seu, configura um claro abuso de direito, conforme disposto no artigo 334.º do Código Civil. E mais! A junção de uma certidão desatualizada do imóvel em discussão pelo Requerido, que não reflete a configuração atual do imóvel (vide Doc. 2 da Reclamação), configura, não apenas abuso de direito, como já suprarreferido, mas também a clara má-fé, uma vez que visa confundir o Tribunal, omitindo a realidade do bem em discussão e dificultando a identificação da verdadeira titularidade do mesmo. Este comportamento, ao invés de sustentar a argumentação do Requerido, apenas vem reforçar a evidência de que o referido prédio urbano é fruto de contribuições conjuntas, justificando plenamente que seja considerado um bem comum, tendo, por isso, de ser relacionado para efeitos da partilha por divórcio. Assim, a alegação da exclusividade contradiz a realidade fática de que a parte urbana do referido prédio fora construído e melhorado com recurso a contribuições conjuntas. Pelo que, salvo o devido respeito, e pelos motivos supra expostos, deverá ser notado que, não só do ponto de vista jurídico como do ponto de vista da própria justiça, não faz sentido que venha o Requerido agora beneficiar, de valores e investimentos feitos pela Requerente, os quais se iniciaram antes do casamento e de qualquer união de facto. E tudo com o simples argumento de que o prédio urbano fora construído sobre um terreno propriedade apenas do Requerido, por via da sucessão hereditária. O que é absolutamente contrário a tudo o que se tem exposto ao longo dos presentes autos. Sendo assim, e considerando o desequilíbrio patrimonial evidente, a decisão de que o imóvel, outrora casa de morada de família, deverá ser tido em consideração para efeitos de partilha, configura, aliás e salvo douta opinião, a única solução legal, justa e equitativa para o presente litígio». Adiantando caminho, afirma-se desde já que a decisão recorrida, ao excluir da relação de bens, a verba nela descrita sob o n.º 1, não merece qualquer censura. Como é sabido: - as relações pessoais e patrimoniais entre os cônjuges findam com o trânsito em julgado da sentença que decretou o divórcio; - tendo o casamento sido celebrado segundo o regime da comunhão (de adquiridos (ou da comunhão geral de bens), a cessação dos efeitos patrimoniais entre os cônjuges, retroage, em princípio, à data da propositura da ação de divórcio, no caso de casamento celebrado sob o regime de comunhão (de adquiridos ou de comunhão geral), podendo, qualquer dos ex-cônjuges requerer inventário para partilha dos bens comuns, incumbindo as funções de cabeça-de-casal ao ex-cônjuge mais velho, conforme decorre do art. 1133.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, introduzido pelo art. 4.º da Lei n.º 117/2019, de 13 de setembro, entrada em vigor no dia 1 de janeiro de 2020 (art. 15.º). Conforme é referido por Abrantes Geraldes / Paulo Pimenta / Luís Sousa, «o inventário judicial é instrumento ajustado a obter a partilha dos bens comuns na sequência do trânsito em julgado da sentença de divórcio, separação de pessoas e bens ou declaração de nulidade ou anulação do casamento. (...) O inventário visa pôr termo à comunhão de bens do casal, devendo o cabeça de casal relacionar os bens comuns existentes à data em que se consideram cessadas as relações patrimoniais entre os cônjuges, sendo previamente separados os bens próprios de cada um (...)»[5]. Está em causa nesta apelação, portanto, apenas e só, decidir se o bem imóvel que constitui a verba n.º 1 da relação de bens: - foi devidamente relacionado, por constituir um bem comum do ex-casal, devendo por isso, ser incluído na partilha; ou se, pelo contrário, - foi indevidamente relacionado por constituir um bem próprio do apelado, devendo, por isso, ser excluído da partilha. Dispõe a al. c) do n.º 1 do art. 1722.º do CC, que «são considerados próprios dos cônjuges (...) os bens adquiridos na constância do matrimónio por virtude de direito próprio anterior», acrescentando a al. c) do n.º 2 que «consideram-se, entre outros, adquiridos por virtude de direito próprio anterior, sem prejuízo da compensação eventualmente devida ao património comum (...) os bens adquiridos em consequência de direitos anteriores ao casamento sobre patrimónios ilíquidos partilhados depois dele». Antunes Varela / Pires de Lima salientam que tem-se aqui «especialmente em vista o caso da herança indivisa. recebida antes do casamento, mas partilhada só depois deste»[6]. Rute Teixeira Pedro afirma que pode apresentar-se como exemplo da espécie prevista na al. c) do n.º 2, «o direito adquirido sobre uma quota de um património hereditário, cuja sucessão se abre antes da celebração do casamento (art. 2031.º), mas cuja concretização em espécie, através da partilha hereditária, só ocorre na constância do casamento. A solução que assim se aplica está em consonância com a eficácia retroativa atribuída à partilha, na medida em que, nos termos do art. 2119.º, uma vez feita a partilha, cada um dos herdeiros é considerado, desde a abertura da herança, sucessor único dos bens que lhe foram atribuídos (...)»[7]. Pereira Coelho / Guilherme de Oliveira escrevem que os bens que, ao abrigo da al. c) do n.º 1 do art. 1722.º do CC, são considerados próprios, «não resultam do esforço conjunto do casal, e portanto devem escapar à massa comum, para pertencerem apenas ao cônjuge que os fez entrar para o casamento. O n.º 2 do art. 1722.º dá quatro exemplos destes bens, que são considerados próprios “sem prejuízo da compensação eventualmente devida ao património comum”. Consideram-se adquiridos por virtude de direito próprio anterior os bens adquiridos em consequência de direitos anteriores ao casamento sobre patrimónios ilíquidos partilhados depois dele. Na verdade, o que releva é o direito adquirido sobre o património ilíquido, e é no momento da aquisição deste direito que se fixa o seu conteúdo; a partilha não passa de uma concretização do direito anterior, que não acrescenta nem diminui a posição jurídica que o titular já detinha. Assim, o bem concreto que aparece de novo, depois do casamento, não é mais do que uma representação do valor que já estava no património do cônjuge antes do casamento e que, portanto, deve continuar no seu património exclusivo. Por outras palavras, pode dizer-se que o bem concreto fica sub-rogado no lugar da quota anterior, através da substituição mais direta e patente que se pode congeminar»[8]. Recordemos a matéria de facto provada em primeira instância e que não foi objeto de impugnação neste recurso: - apelante e apelado casaram um com o outro no dia 30 de dezembro de 2000, sem convenção antenupcial[9]; - o apelado é filho de JG e de MF. - por sentença proferida em 18 de Novembro de 2019, foi decretado o divórcio entre apelante e apelado; - JG faleceu em 18 de Agosto de 1996 no estado de casado com MF; - “na relação de bens de JG, constante do Processo de Liquidação de Imposto sobre as Sucessões e Doações, com o n.º ____, consta identificado um prédio rústico e urbano, ao sítio ____, freguesia e concelho de ____, que confronta ao Norte com herdeiros de JMF; Sul com o caminho, Leste com herdeiros de JMF e Oeste com a Estrada Municipal, inscrito na matriz a parte rustica sob o artigo ____ e a parte urbana sob o artigo ____”; - este prédio encontrava-se descrito na Conservatória do Registo Predial de ____ sob o n.º ____, tendo a propriedade sido registada a favor de JG pela Ap. 01/____; - pela Ap. 02/____ foi registada a propriedade do prédio em comum, sem determinação de parte ou direito, a favor do apelado, de MF e de BF, por dissolução da comunhão conjugal e sucessão. - no dia 27 de Abril de 2000, o apelado, na qualidade de promotor e dono da obra, celebrou um contrato de empreitada com a sociedade V, Lda. - no decurso e execução desse contrato, o apelado levantou numerário da sua conta bancária e efectuou os seguintes pagamentos: i) no dia 25/5/2000 pagou a quantia de $ 1.000.000,00 (um milhão de escudos) com o contravalor de € 4987,98 euros; ii) no dia 10/7/2000 pagou a quantia de $ 1.000.000,00 (um milhão de escudos) com o contravalor de € 4987,98 euros; iii) no dia 25/7/2000 pagou a quantia de $ 2.000.000,00 (dois milhões de escudos) com o contravalor de € 9.975,96 euros; iv) no dia 21/8/2000 pagou a quantia de $ 1.000.000,00 (um milhão de escudos) com o contravalor de € 4987,98 euros; v) no dia 1/9/2000 pagou a quantia de $ 1.000.000,00 (um milhão de escudos) com o contravalor de € 4987,98 euros. - no dia 25 de Outubro de 2000, foi celebrado contrato de mútuo e hipoteca e fiança, nos termos do qual o Banco de Investimento Imobiliário, S.A. concedeu ao apelado e à apelante, para efeitos de construção no imóvel hipotecado, um empréstimo no montante de vinte e seis milhões e quinhentos mil escudos; - para a garantia do empréstimo, o apelado, MF e BF constituíram a favor do banco hipoteca sobre o prédio misto, no sítio ____, freguesia e concelho de ____, inscrito na matriz predial respetiva a parte urbana sob o artigo 2469 e a parte rústica sob oito de dezoito avos do artigo ____ e descrito na Conservatória do Registo Predial de ____ sob o n.º ____; - MF e BF declararam que solidariamente afiançavam todas as obrigações que o apelado e a apelante assumiram a título do empréstimo, e que na qualidade de fiadores e como principais pagadores, se obrigavam perante o banco ao cumprimento das mesmas, renunciando ao benefício da excussão prévia. - no dia 21 de Agosto de 2000, foi emitido alvará de licença de construção em nome de MF e outros para a construção que incide sobre o prédio no Sítio ____, freguesia de ____, descrito na Conservatória do registo Predial de ____ sob o n.º ____ e inscrito na matriz predial sob o artigo ____. - a obra em causa consistiu na ampliação da construção existente, acrescentando mais um piso, com a área de 280 m2 de construção destinado a habitação; - no dia 29 de Julho de 2002, foi emitido, pela Câmara Municipal de ____, o Alvará de Licença de Utilização n.º ____ em nome de MF e outros que titula a utilização do prédio, sito em Lameiros, freguesia de ____, Município de ____, descrito na Conservatória do Registo Predial de ____ sob o número ____ e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ____ da respetiva freguesia; - no dia 2 de Abril de 2004, MF requereu à Câmara Municipal de ____, “com relação ao prédio urbano recém ampliado, destinado a comercio e habitação, localizado no referido sítio ____, freguesia de ____” vistoria para efeitos de constituição sob o regime da propriedade horizontal; - no dia 31 de Maio de 2004, a Câmara Municipal de ____ emitiu certidão, em nome de MF, a declarar que “o imóvel possui as necessárias condições de distinção, isolamento e independência, previstas no artigo 1414 e seguintes do Código Civil”; - no auto de vistoria consta a seguinte identificação do imóvel: «Prédio urbano, recém ampliado com a área coberta de duzentos e noventa e nove metros quadrados e descoberta de seiscentos e um metros quadrados, atenta a cedência realizada, para integração no domínio público do município, da área de vinte e três metros quadrados destinada ao alargamento do caminho municipal existente a sul, composto por um edifício de três pisos (rés do chão, piso 1 e sótão), coberto de telha, destinado a comércio e habitação, localizado na Estrada Municipal ____, sítio ____, freguesia e Concelho de ____, inscrito na matriz predial de ____ a parte rústica sob o n.º ____ e a parte urbana sob o n.º ____ e descrito na Conservatória de registo Predial de ____ sob o n.º ____. O edifício é formado por duas únicas fracções autónomas, sendo uma comercial, localizada ao nível do rés do chão, com acesso directo pelo Estrada Municipal ____, existente junto da confrontação Oeste do prédio, e uma habitacional, composta por três pisos, distribuídos pelo rés do chão, primeiro andar e sótão, com acesso pedonal e de automóvel, a partir do caminho Municipal existente junto da confrontação Sul do referido prédio. Descrição das Fracções: Fracção "A" - Fracção autónoma destinada a comércio, minimercado e bar, localizada no lado Oeste do Rés do chão, formada por um único pavimento, composta por três compartimentos, duas arrecadações e duas instalações sanitárias. Tem a área de 230m2. Fracção "B" - Fracção autónoma destinada a habitação, do tipo T3, localizada para Leste e em cota superior à anterior, formada por três pavimentos, sendo composta no rés do chão, por arrecadação e garagem, com acesso directo à via pública, processado a partir de uma rampa de circulação implantada no logradouro sul do prédio (…)»; - no dia 1 de Junho de 2004, MF procedeu ao pagamento da taxa referente à emissão do documento Propriedade Horizontal junto da Câmara Municipal de ____; - no dia 24 de Junho de 2005, foi constituída, mediante escritura pública outorgada no 1.º Cartório Notarial ____, a propriedade horizontal do referido prédio urbano, constituindo-se as frações autónomas A e B; - na mesma data, e como ato subsequente à constituição da propriedade horizontal, MF, o apelado e BF procederam à outorga da escritura de partilha da herança deixada por óbito de JG, sendo os bens a partilhar, compostos: pela Verba Um – Fração autónoma ou unidade comercial individualizada pela letra A, integrada no prédio em regime de propriedade horizontal, localizado ao sitio ____, freguesia e concelho de ____; e pela Verba Dois – fração autónoma destinada exclusivamente a habitação, individualizada pela letra “B”; - nessa partilha, foi adjudicado ao apelado 1/6 da Verba Um e a Verba Dois, tendo pago tornas à sua mãe e ao irmão no valor de € 50.000,00 (cinquenta mil euros); - a propriedade da fração localizada ____, freguesia e concelho de ____, descrita na Conservatória do Registo Predial de ____ sob o n.º ____, inscrita na matriz predial urbana sob o artigo ____, encontra-se registada a favor do apelado, por partilha de JG, pela Ap. ____; - no dia 1 de Agosto de 2019, foi celebrada escritura de compra e venda, tendo MF vendido à herança de JG, representada por MF, o apelado e BF, pelo valor de € 4.100,00 (quatro mil e cem euros), o prédio rústico localizado ____, freguesia e concelho de ____, inscrito na matriz sob o artigo ____; - a propriedade do prédio rústico localizado ____, freguesia e concelho de ____, descrito na Conservatória do Registo Predial de ____ sob o n.º ____, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ____, encontra-se registada a favor do apelado, de MF e de BF, em comum e sem determinação de parte ou direito, por óbito de JG. Perante este acervo factual, e à luz dos considerandos, à luz da matéria de facto provada, a outra conclusão não é possível chegar que não seja a de que a fração autónoma que integra a verba n.º 1 da relação de bens apresentada pela apelante constitui um bem próprio do apelante, devendo, por isso, ser excluído, como foi da relação de bens apresentada pela apelante. Tal como consta do sumário do Ac. da R.P. de 08.06.2022, Proc. n.º 9306/19.4T8PRT.P2 (Maria Graça Mira), in www.dgsi.pt, pertinentemente citado na decisão recorrida, «o bem adquirido na sequência de partilha ocorrida após o casamento, mas por virtude de direito próprio anterior, mantém a natureza de próprio mesmo que haja lugar ao pagamento de tornas aos demais herdeiros e ainda que este seja de valor superior ao quinhão hereditário e feito à custa de dinheiro comum do casal, sendo devida, tão só, a compensação ao património comum no momento da dissolução e partilha da comunhão». Não se provou que: - «a cabeça-de-casal contribuiu com o valor de “cerca de” € 15.000,00 (quinze mil euros) como entrada para o empreiteiro para o início da construção do imóvel descrito em 24)»; «a cabeça-de-casal despendeu a quantia de “cerca de” € 700,00 (setecentos euros) numa obra de remodelação da casa de banho dos filhos, para substituir a banheira para colocação de base de duche». Além disso, tal como afirmado na decisão impugnada, «não foram alegados quaisquer factos que permitam concluir que, na pendência do casamento, a cabeça-de-casal amortizou o empréstimo com valores próprios, empobrecendo o seu património e enriquecendo o património do interessado, o que lhe daria um crédito sobre o mesmo. Por outro lado, desconhece-se os moldes em que tal empréstimo foi pago na pendência do casamento, designadamente se foi com fundos comuns ou próprios de qualquer uma das partes. Nada de concreto foi alegado, com excepção do período de Setembro de 2018 e 2019, em que o interessado invoca que foi o próprio a suportar o pagamento do empréstimo. Ainda assim, sempre se refira que, uma eventual contribuição em dinheiro para o pagamento do empréstimo, após o casamento, não pode ser entendida como benfeitoria, pois não constitui qualquer despesa feita para conservar ou melhorar a coisa, como é próprio das benfeitorias (cf. art. 216.º, n.º 1 do Código Civil)». A tudo acresce, e para finalizar, que eventuais questões relacionadas com compensações, enriquecimento sem causa e/ou abuso de direito, sempre extravasariam, manifestamente, o âmbito deste incidente, apenas sendo suscetíveis de apreciação em sede de ação declarativa comum. Em conclusão, a decisão recorrida não merece censura, devendo por isso, ser mantida. * IV – DECISÃO: Pelo exposto, acordam os juízes que integram a 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, em julgar a apelação improcedente, mantendo, em consequência, a decisão recorrida. As custas do recurso, na vertente de custas de parte, são a cargo da apelante (arts. 527.º, n.ºs 1 e 2, 607.º, n.º 6 e 663.º, n.º 2). Lisboa, 9 de setembro de 2025 José Capacete Ana Rodrigues da Silva Carlos Oliveira _______________________________________________________ [1] Manual do Recurso Civil, Volume I, AAFDL Editora, Lisboa, 2020, p. 293. [2] Código de Processo Civil Anotado, Vol. 3.º, 3.ª Edição, Almedina, 2022, p. 90. [3] Cfr., a propósito, a doutrina e demais jurisprudência citada no acórdão. [4] Cfr. José Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Volume V, Reimpressão, 3ª Ed., 1952, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, p. 141. [5] Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, 2.ª Edição, Almedina, 2022, pp. 667-668. [6] Código Civil Anotado, Vol. IV, 2.ª Edição, Coimbra Editora, 1992, p. 423. [7] Código Civil Anotado, Vol. II (Coord. Ana Prata), Almedina, 2017, p. 628. [8] Curso de Direito da Família, Vol. I – Introdução ao Direito Patrimonial, 5.ª Edição, Imprensa da Universidade de Coimbra, Coimbra, 2016, p. 603. [9] Portanto, segundo o regime da comunhão de adquiridos. |