Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
13933/19.1T8LSB-G.L1-1
Relator: FÁTIMA REIS SILVA
Descritores: RECUSA DE EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
DEVER DE PROCURA ÁTIVA DE EMPREGO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/06/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: 1 – Para cabal cumprimento da obrigação de procura diligente de emprego prevista no art.º 239º nº 4, al. b) do CIRE, não basta a inscrição do insolvente exonerando no Centro de Emprego e a passividade subsequente no período de cessão, sendo, porém, claro que as hipóteses de arranjar emprego aumentam se se proceder a essa inscrição.
2 – Da prova da apresentação de três candidaturas espontâneas, de inatividade superior a dois anos e não inscrição num centro de emprego, resulta claro que a insolvente procurou emprego, mas não o fez de forma diligente.
3 - O que a recorrente fez e não fez foram decisões conscientes suas, ciente da obrigação que sobre si impendia, pelo que, no mínimo, o caráter gravemente negligente da conduta que adotou está verificada.
4 – A óbvia dificuldade na prova do prejuízo derivado desta violação de uma obrigação de meios resolve-se pelo ónus da prova: não é o insolvente que tem de alegar e provar que procurou diligentemente uma profissão remunerada, quando desempregado e que tal não causou prejuízo aos credores, mas sim quem tem a iniciativa da recusa de concessão da exoneração do passivo restante que tem de provar que o mesmo não procedeu àquela procura diligente de trabalho e que tal específica conduta causou prejuízo aos credores.
5 – Nos processos em que ainda não se mostre finda a liquidação e haja que proferir decisão final de exoneração, o perdão apenas abrange a parte dos créditos que foram reclamados no processo de insolvência que não venha a ser satisfeita após finda a liquidação.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam as juízas da Secção de Comércio do Tribunal da Relação de Lisboa:
1. Relatório
PCN apresentou-se à insolvência, com pedido de exoneração do passivo restante.
A insolvência da requerente foi declarada por sentença de 07/08/2019, transitada em julgado.
O pedido de exoneração mereceu a concordância da Administradora da Insolvência em relatório.
Realizou-se assembleia de apreciação do relatório.
O credor EFG opôs-se ao deferimento liminar da exoneração do passivo restante.
Em 02/12/2019 foi proferido o despacho previsto no art.º 239º do CIRE, nos seguintes termos:
«Em face do exposto, decido proferir despacho inicial de exoneração do passivo restante da devedora PCN.
Determino que nos cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência – período de cessão – o rendimento disponível, integrado por todos os rendimentos da devedora se consideram cedidos a fiduciário, com exclusão dos referidos no artigo 239.º n.º 3 do CIRE que no caso fixo em um salário mínimo nacional,
Durante o período de cessão, a devedora fica obrigada a:
a) Não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título, e a informar o tribunal e a fiduciária sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado
b) Entregar imediatamente à fiduciária, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objeto de cessão;
c) Informar o tribunal e a fiduciária de qualquer mudança de domicílio ou de condições de emprego, no prazo de 10 dias após a respetiva ocorrência, bem como, quando solicitado e dentro de igual prazo, sobre as diligências realizadas para a obtenção de emprego;
d) Não fazer quaisquer pagamentos aos credores da insolvência a não ser através da fiduciária e a não criar qualquer vantagem especial para algum desses credores.
e) Durante o período da cessão, esta decisão prevalece sobre quaisquer acordos que excluam, condicionem ou por qualquer forma limitem a cessão de bens ou rendimentos do devedor.»
No mesmo despacho foi ainda determinada a notificação da devedora para “comprovar nos autos as diligências que efetuou até ao momento desde que se apresentou à insolvência para integrar o mercado de trabalho.”
Foram juntos os relatórios da Sra. Fiduciária relativos ao 1º, 2º e último ano de cessão, atenta a entrada em vigor da redação dada aos art.ºs 235º e ss. do CIRE pela Lei nº 9/22 de 11/01.
Por despacho de 26/06/2023 foi notificada a devedora para vir comprovar nos autos o cumprimento do dever de diligenciar pela obtenção de emprego, nomeadamente a sua inscrição no centro de emprego.
A devedora veio juntar declarações de empresas relativas à apresentação de candidaturas de emprego e requereu a concessão da exoneração do passivo restante.
PMD veio, analisando as declarações juntas pela devedora, alegar não ter sido cumprido o dever de procura proactiva e diligente de emprego, entendendo que desse modo prejudicou os credores por não ter auferido quaisquer rendimentos. Mais alega a o incumprimento do dever de informação. Pede a recusa da concessão da exoneração do passivo restante.
A devedora respondeu ao requerimento apresentado pela credora.
Foi ordenada à devedora a junção de declaração emitida pela Autoridade tributária.
A devedora juntou as declarações de rendimentos dos anos de 2021 e 2022, expurgadas dos elementos respeitantes ao seu cônjuge.
Por despacho de 11/09/2023 o tribunal decidiu: «Face ao exposto, e pelos motivos invocados, ao abrigo do disposto no art.º 243.º, n.º 1, al. a), e 244.º, n.º 2, do C.I.R.E., o Tribunal decide julgar improcedente o presente incidente e, consequentemente, recusar a exoneração do passivo restante à devedora PCN.
Sem tributação autónoma – art.º 303.º do C.I.R.E..
Notifique, registe e publique, nos termos previstos no art.º 247.º do C.I.R.E..»
Inconformada apelou a insolvente pedindo seja o recurso julgado procedente por provado, formulando as seguintes conclusões:
“1. Nos autos supra identificados, a Recorrente foi declarada insolvente por sentença datada de 08 de Agosto de 2019, tendo sido nomeado administrador de insolvência.
2. Posteriormente, a 5 de Dezembro de 2019, foi proferido Despacho Inicial de Exoneração de Passivo Restante e Nomeação de Fiduciário.
3. Neste despacho, ficaram assentes as obrigações da Recorrente durante o período de cessão, nomeadamente, e para o que aqui importa, a obrigação de informar o tribunal e o fiduciário, quando solicitado e dentro de 10 dias, sobre as diligências realizadas para a obtenção de emprego.
4. No mesmo despacho foi a Recorrente notificada para vir juntar aos autos “as diligências que efetuou até ao momento desde que se apresentou à insolvência para integrar o mercado de trabalho”.
5. Assim, a Recorrente, por requerimento datado de 19/12/2019 veio juntar uma declaração, na qual se atestava que a mesma havia apresentado currículo em Novembro de 2019 e, por Requerimento datado de 26/12/2019, juntou outra declaração emitida pelo gerente da Empresa A Lda., na qual se atestava que a Recorrente apresentou currículo naquela sociedade em Outubro de 2019.
6. Sobre tais Requerimentos e respectivas declarações juntas, recaiu o Despacho de 29 de Janeiro de 2020 através do qual consignou o Tribunal que as declarações juntas refletiam o cumprimento da obrigação de prestação de informações ínsita no art.º 239.º, n.º 4 al. d) do C.I.R.E..
7. Só três anos depois, a 26 de Junho de 2023, veio o Tribunal a quo requerer (pela segunda vez) que a Recorrente viesse comprovar nos autos o cumprimento do dever de diligenciar pela obtenção de emprego, acrescentando, todavia, um requisito desse dever nunca antes mencionado: “a inscrição no centro de emprego.”
8. Em resposta, a Recorrente declarou que a única obrigação relativa à procura de emprego que sobre si recaía era a que constava do despacho inicial de exoneração, e que corresponde ao dever da Insolvente de juntar aos autos, quando solicitada para tal, comprovativos das diligências realizadas para a obtenção de emprego, o que a mesma, quando solicitado, sempre fez.
9. Não obstante, e por forma a cumprir tal obrigação, a Recorrente juntou nesse mesmo requerimento três declarações, emitidas por três empresas distintas, nas quais tais empresas atestaram que a Recorrente entregou ali o seu currículo em determinadas datas (abril e dezembro de 2022).
10. Face à entrada em vigor da Lei 9/2022 de 22 de Janeiro, que alterou o C.I.R.E., o período de cessão dos rendimentos disponíveis da Recorrente passou de 5 (cinco) para 3 (três) anos, pelo que a Recorrente veio aos autos requerer, a 10/07/2023, a concessão do benefício da exoneração do passivo restante.
11. Qual não foi a surpresa da Recorrente aquando da notificação do despacho de recusa de exoneração do passivo restante que se fundamentou no facto de a Recorrente não se ter inscrito no centro de emprego e, no facto de a Recorrente apenas ter apresentado currículos para candidaturas em outubro de 2019 e abril de 2022, o que, no entender do Tribunal recorrido, consubstancia incumprimento do dever legal imposto pelo art.º 239.º, n.º4, al. d) do C.I.R.E. – é desta decisão de que ora se recorre.
12. Na decisão recorrida o Tribunal a quo, para fundamentar a recusa de exoneração do passivo restante, focou a sua análise na alínea a) do número 1 do artigo 243.º do CIRE, remetendo, in casu, para a al. d) do n.º 4 do art.º 239.º do mesmo diploma.
13. Porquanto considerou que a Recorrente incumpriu a obrigação prevista na al. d), do n.º 4 do art.º 239.º do C.I.R.E., o que, no entender do Tribunal recorrido é fundamento para o despacho de recusa à luz da al. a), do n.º 1 do art.º 243.º do C.I.R.E..
14. Ora a jurisprudência tem-se pronunciado sobre estes requisitos previstos na al. a) do 243.º, n.º 1 do CIRE, referindo nomeadamente que a recusa da exoneração para efeitos do previsto no art.º 243º, n.º 1 al. a), do CIRE, depende da demonstração cumulativa dos pressupostos ali discriminados.
15. Alega o Tribunal recorrido que a Recorrente não procurou ativamente emprego, porquanto não se candidatou ao centro de emprego, remeteu cinco declarações que demonstram que apenas remeteu propostas para integrar empresas que não se encontravam em fase de recrutamento, quando devia ter remetido candidaturas a ofertas de emprego e que apenas se preocupou em procurar emprego em outubro de 2019 e abril de 2022.
16. Sucede que, dos deveres impostos pelo Tribunal de 1.ª instância no despacho inicial de exoneração do passivo restante, resulta que a Recorrente tinha o dever de informar o tribunal sobre as diligências realizadas para a obtenção de emprego quando solicitada para tal – O QUE A MESMA FEZ.
17. Ora, tal solicitação ocorreu apenas duas vezes a 5 de Dezembro de 2019 e a 26 de Junho de 2023, sendo que em ambas as situações a Recorrente apresentou declarações demonstrativas de tais diligências.
18. Pelo que é possível dar como assente, em primeiro lugar, que a Recorrente não tinha qualquer dever de informar o Tribunal de tais diligências, se não quando solicitada para tal, sendo que aquando das duas solicitações realizadas, a Recorrente informou sempre o Tribunal recorrido, cumprindo assim o dever que impedia sobre si.
19. De igual forma, não resulta da obrigação colocada sobre a Recorrente – isto é, quer do despacho inicial de exoneração, quer da lei - que a mesma tinha de se inscrever no centro de emprego, sendo agora, em sede da decisão recorrida, que a Recorrente está pela primeira vez a tomar conhecimento de tal suposta “obrigação”.
20. O pressuposto para provar as suas diligências de procura de emprego não foi, e não é, à luz do que ficou consignado na decisão inicial, e do que resulta da lei, inscrever-se no centro de emprego.
21. Pelo que o Tribunal recorrido, quando afirma que “a insolvente embora instada pelo Tribunal, não provou ter-se inscrito no centro de emprego”, certamente que não poderá estar a referir-se à Recorrente, que nunca foi instada nesse sentido.
22. Sendo certo que muitos cidadãos se encontram inscritos no centro de emprego apenas para efeitos fáticos, ignorando as comunicações de tal entidade relativas a propostas de empregabilidade, e nada fazendo para obter um vínculo laboral.
23. Porém, tenta o Tribunal recorrido fixar a tónica na inscrição no centro de emprego, que em nada prova que o sujeito tenha diligenciado pela procura de emprego.
24. Aliás, a própria jurisprudência que o Tribunal a quo vem juntar da decisão recorrida, para tentar fazer valer a sua pretensão, desvaloriza a inscrição no centro de emprego como requisito (!).
25. Assim, relevante para provar o cumprimento do dever de procurar diligentemente trabalho, é que o insolvente demonstre que, efetivamente, encetou diligências para procurar trabalho, que atuou no sentido de obter alguma remuneração, o que não se traduz na inscrição no centro de emprego, mas sim no envio activo de currículos, o que a Recorrente fez!
26. Pelo que, em vez de assumir que a Recorrente tinha o dever de se inscrever no centro de emprego, o Tribunal deveria ter apurado as obrigações que efetivamente decorriam do despacho inicial, porque bem se sabe que o Mmº Juiz que proferiu o despacho inicial de exoneração do passivo restante não é o Juiz que vem agora proferir a decisão de recusa.
27. Ademais, nenhum dos intervenientes reagiu ao Despacho Inicial, conformando-se com o seu teor e com o que ali ficou decidido, pelo que não se pode colocar agora em causa algo que há muito transitou em julgado.
28. Já quanto ao argumento do Tribunal a quo que a Recorrente juntou cinco declarações que demonstram que apenas remeteu propostas para integrar empresas que não se encontravam em fase de recrutamento, quando devia ter remetido candidaturas a ofertas de emprego, dir-se-á, honestamente, que padece de lógica.
29. Pois a Recorrente, quando foi entregar o seu currículo não sabia se tais empresas estavam ou não em fase de recrutamento, porquanto nem todas as empresas assim o anunciam.
30. E não pode retirar de tal facto a sugestão de que a Recorrente não tinha interesse em obter emprego, muito pelo contrário, a simples evidência da Recorrente ter procurado obter de alguma forma um vínculo laboral preenche, indubitavelmente, o dever de procura diligente de trabalho.
31. Assim, quanto a este aspeto, não se verifica nenhum incumprimento do dever de procura de emprego que se impunha sobre a Recorrente, pois o mesmo foi cabalmente cumprido!
32. Ademais, refere ainda o Tribunal recorrido que a Recorrente apenas se preocupou em procurar emprego em outubro de 2019 e abril de 2022.
33. Sucede, porém que, o que resulta das 5 (cinco) declarações juntas pela Recorrente que constam dos autos é que a mesma apresentou candidaturas em: Outubro de 2019, Novembro de 2019, Abril de 2022 e Dezembro de 2022 - pelo que, conforme resulta expressamente dos autos, está errado o Tribunal a quo ao afirmar que apenas procurou emprego em outubro de abril de 2022.
34. Ademais, ao afirmar que a Recorrente apenas apresentou candidaturas nessas alturas, remetendo, de seguida, para o início e o fim do período de cessão, parece querer indicar que a Recorrente nada fez no período compreendido entre Novembro de 2019 e Abril de 2022.
35. Porém, o Tribunal olvida, em primeiro lugar, que no ano de 2019 a Recorrente esteve em Angola, onde permaneceu durante todo esse período – conforme resulta da Petição Inicial.
36. Assim, a Recorrente nunca poderia remeter candidaturas para ofertas de trabalho em Portugal uma vez que não se encontrava em território português!
37. A Recorrente esteve em Angola a procurar trabalho no país, a tentar recomeçar a sua vida, antes de outubro de 2019, pelo que não assiste razão ao Tribunal recorrido quando afirma que apenas em outubro de 2019 a Recorrente se preocupou em encontrar trabalho, pois tal não corresponde à verdade.
38. No mais, olvidou o Tribunal a quo que a partir de Dezembro de 2019, a nível global, começou a vivenciar-se a situação pandémica que ficará para sempre na memória da Humanidade: a pandemia Covid-19.
39. No caso de Portugal, a partir do dia 16 de Março de 2020 houve um completo lockdown do país, e durante um largo período, milhões de cidadãos foram obrigados a ficar em casa, os estabelecimentos comerciais foram forçados a encerrar, e os únicos serviços disponíveis eram aqueles que vendiam bens de primeira necessidade.
40. Como é consabido, durante esse período, muitas empresas encerraram atividade porque não tinham meios para fazer face a todas as despesas, nomeadamente, para liquidar os salários dos seus trabalhadores.
41. Pese embora se creia que tais factos decorrem do conhecimento geral de todos os portugueses que vivenciaram estas circunstâncias, não será demais afirmar que até meados do ano de 2022 as empresas não estavam a aceitar trabalhadores, porque não tinham meios para tal, aliás, as empresas não só não estavam a recrutar, como estava, isso sim, a despedir trabalhadores!
42. Assim, não se encontra incumprido o dever previsto na alínea b), do número 4 do artigo 239.º do CIRE, porquanto a Recorrente encetou em procura ativa de emprego, e informou o Tribunal das diligências encetadas quando tal lhe foi solicitado.
43. Porém, e ainda que se considerasse – o que se discute como mera hipótese académica e por cautela de patrocínio, concebendo-se sem nunca se conceder – que ocorreu, de alguma forma, incumprimento por parte da Recorrente por não se ter inscrito no centro de emprego, não se pode concluir, sem mais, que tenha havido prejuízo para a satisfação dos créditos sobre a insolvência em razão desse incumprimento (aliás, nem tal é alegado).
44. Na medida em que certamente não seria através do centro de emprego que a Recorrente encontraria um trabalho através do qual auferisse valor superior ao salário mínimo nacional, pois como decorre das regras da experiência comum, aquando de uma candidatura no centro de emprego é avaliado o currículo do candidato, e, no caso da Recorrente, que não possui nenhuma habilitação académica se não o ensino secundário.
45. E não auferindo valor acima do salário mínimo nacional, a Recorrente nunca poderia/teria de entregar qualquer valor à fiduciária porque a lei só permite a entrega de valores quando o insolvente aufere rendimento que é superior ao salário mínimo nacional.
46. Pelo que ainda que se considerasse ter havido incumprimento por não se ter a Recorrente inscrito no centro de emprego, nunca haveria real prejuízo para os credores, pois qualquer emprego obtido pela Recorrente por essa via não lhe permitiria auferir rendimento superior ao salário mínimo nacional.
47. Por fim, refere-se no mais, que admitindo (o que se equaciona por mera cautela de patrocínio) que existindo um qualquer incumprimento por parte da Recorrente por não inscrição no centro de emprego, esse incumprimento teria de ser imputável a título de dolo ou negligência grave, o que não se verifica.
48. Ora, conforme já supra se alegou, não resulta de forma alguma do despacho recorrido que existia a obrigação da Recorrente de se inscrever no centro de emprego, o que afasta, desde logo, qualquer incumprimento a título de dolo ou negligência.
49. Mas ainda que se equacionasse, de alguma forma, que tal obrigação impendia sobre a Recorrente, não existe matéria factual que permita concluir que a recorrente ignorou propositadamente tal obrigação.
50. Veja-se que quando notificada para vir aos autos comprovar as diligências encetadas para obtenção de emprego, a Recorrente sempre informou devidamente o Tribunal recorrido, sendo que este sempre admitiu as declarações juntas pela Recorrente e mais:
como vimos, considerou, através de Despacho datado de 29-01-2020, que as declarações juntas refletiam o cumprimento da obrigação de prestação de informações ínsita no artigo 239.º, n.º 4 alínea d) do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas!
51. A Recorrente tinha consciência da sua obrigação de procurar ativamente emprego bem como da obrigação de informar o Tribunal a quo sobre tais diligências, o que sempre cumpriu.
52. Sendo certo que do que resulta dos autos, nunca se poderá concluir que os três pressupostos se encontram verificados, pelo que a não verificação de apenas um – sendo que a Recorrente considera que nenhum se encontra verificado – sempre afastaria a aplicação do artigo 243.º, n. º1, alínea a) como fundamento para a recusa de exoneração.
53. Por todo o exposto, conclui-se que a Recorrente cumpriu todos os deveres que foram impostos no Despacho Inicial de Exoneração do Passivo Restante, devendo ser revogada a decisão recorrida e substituída por outra que determine a exoneração do passivo restante da Recorrente.”
Contra-alegou a credora PMD, pedindo seja julgado improcedente o recurso e mantido o despacho recorrido, apresentando as seguintes conclusões:
“I – Considerou a douta sentença recorrida que a insolvente não cumpriu com as obrigações que sobre ela impendiam por via do despacho inicial de exoneração do passivo restante, designadamente a procura diligente e pró-activa de emprego.
II – A Insolvente apenas juntou ao processo cinco declarações de quatro empresas que a declarar que receberam o seu CV.
III – O que é manifestamente insuficiente: durante quatro anos – 1460 dias -, a insolvente apenas remeteu, por cinco vezes, a sua candidatura, por forma a tentar encontrar emprego.
IV – Documentos (declarações das empresas) que, conforme referido no requerimento de 21/07/2023 (ref. citius 36614540) padecem das “vicissitudes” e “singularidades” ali melhor descritas.
V – A que acresce o facto de as empresas em causa nem sequer estarem em fase de recrutamento.
VI – Daqui resultava já que a insolvente não tinha procurado emprego de forma diligente e pró-activa.
De todo o modo, caso assim não se considere, sempre se diga por mero dever de patrocínio
VII – A insolvente foi notificada para vir demonstrar a sua inscrição no centro de emprego – o que nunca fez.
VIII – Violando, de forma flagrante, o disposto no artigo 239.º, n.º 4, do CIRE.
IX – Estando a insolvente desempregada, o mínimo que se lhe impunha, por força das obrigações emergentes da fidúcia, seria a sua inscrição no centro de emprego (como mínimo indispensável e exigível).
X – E, paralelamente, enviasse o seu curriculum para diversas empresas e respondesse a anúncios de emprego.
XI – No entanto, nunca o fez - in casu, como vimos, nem a insolvente se inscreveu no centro de emprego, nem demonstrou que tenha diligenciado por uma procura efectiva e reiterada de emprego.
XII – Destarte, dispõe o artigo 243.º, n.º 1, alínea a) do CIRE que “(…) deve o juiz recusar a exoneração (…) quando: a) o devedor tiver dolosamente ou com grave negligência violado alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239.º, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência (…)”.
XIII – A não inscrição no centro de emprego, por parte da insolvente, colocou em causa a possibilidade de aquela vir a ser recrutada e, consequentemente, impossibilitou os credores de serem pagos (ainda que parcialmente) pelos seus créditos.
XIV – De igual modo se diga que a não inscrição no centro de emprego resulta de uma omissão voluntária da recorrente: ao não o fazer, a recorrente não actuou com a diligência mínima que se exige a quem se encontra no período da exoneração do passivo restante.
XV – Diligência que se requer, pois que a exoneração do passivo implica do lado dos credores a extinção dos créditos que não forem pagos no processo; os quais, in casu, ascendem à considerável quantia de 1 791 123.62€ (total de créditos reconhecidos).
XVI - Tal omissão tem, necessariamente, de ser relevada para efeitos da não concessão da exoneração do passivo restante, sob pena de serem violados princípios fundamentais estruturais e fundamentais do ordenamento jurídico português.
XVII – Consequentemente, deverá manter-se inalterada a douta sentença recorrida que decidiu recusar a exoneração do passivo restante à insolvente PCN.
O recurso foi admitido por despacho de 14/11/2023 (ref.ª 429746867).
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Por despacho da relatora de 27/12/2023, constatando-se não se encontrar finda a liquidação e que, na eventualidade de procedência do recurso, a decisão a ser proferida, terá que se debruçar sobre o âmbito da exoneração a conceder, em especial quanto aos créditos já devidamente reclamados no processo de insolvência, nos termos e ao abrigo do disposto nos art.ºs 652º nº1, al. d) e 6º do CPC, a fim de evitar decisões surpresa, foi determinada a notificação de recorrente e recorrida para, querendo, em 10 dias se pronunciarem quanto ao âmbito do passivo a exonerar.
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A recorrida veio, sem conceder, expor que o âmbito do passivo a exonerar deverá abranger o remanescente dos créditos reconhecidos e não pagos por via da liquidação da massa insolvente e dos (eventuais) montantes entregues no período de cessão.
A recorrente veio, considerando, por um lado, que os bens apreendidos são comuns e, por outro lado, que ainda não se mostra concluído o processo de inventário, não ser possível, neste momento, pronunciar-se, em concreto relativamente ao passivo a exonerar por inexistir decisão relativa à adjudicação dos bens apreendidos, mas indicando que, de forma abstrata, desde já se indica que todos os bens que forem adjudicados à Insolvente, ora Recorrente, deverão reverter a favor da massa insolvente e o âmbito do passivo a exonerar deverá corresponder ao remanescente dos créditos.
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Foram colhidos os vistos.
Cumpre apreciar.
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2. Objeto do recurso
Como resulta do disposto nos art.ºs 608º, n.º 2, aplicável ex vi art.º 663º n.º 2, 635º n.ºs 3 e 4, 639.º n.ºs 1 a 3 e 641.º n.º 2, alínea b), todos do Código de Processo Civil, sem prejuízo do conhecimento das questões de que deva conhecer-se ex officio e daquelas cuja solução fique prejudicada pela solução dada a outras, este Tribunal só poderá conhecer das que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objeto do recurso. Frisa-se, porém, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito – art.º 5º, nº3 do mesmo diploma.
Consideradas as conclusões acima transcritas a única questão a decidir é a da verificação de se estão reunidos os requisitos para que seja recusada a exoneração do passivo restante à insolvente, nos termos do disposto no art.º 244º do CIRE.
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3. Fundamentos de facto:
A decisão recorrida fundou-se na seguinte matéria fáctica:
 “Regressando ao caso dos autos, o processo evidencia, com relevância, os seguintes factos:
- a insolvência não foi declarada dolosa;
- o processo encontra-se em fase de liquidação;
- a insolvente ao longo do período de cessão não logrou ceder qualquer quantia pecuniária;
- durante o período de cessão a insolvente não auferiu quaisquer rendimentos;
- notificada para comprovar nos autos a procura de emprego, mormente a sua inscrição no centro de emprego, a insolvente veio responder em 05.12.2019 e em 10.07.2023, alegando que remeteu diversas propostas para integrar empresas, mas sem sucessos, e juntou os seguintes documentos:
i) a insolvente junto aos autos declaração emitida pela sociedade A, Lda., datada de 17.12.2019, que informa que a insolvente apresentou uma candidatura para admissão em outubro de 2019;
ii) a insolvente junto aos autos declaração emitida pela sociedade B, Lda., datada de 18.12.2019, que informa que a insolvente apresentou uma candidatura para admissão em novembro de 2019;
iii) a insolvente junto aos autos declaração emitida pela sociedade C, Lda., datada de 03.07.2023, que informa que a insolvente apresentou uma candidatura para admissão em abril de 2022;
iv) a insolvente junto aos autos declaração emitida pela sociedade A, Lda., datada de 07.07.2023, que informa que a insolvente apresentou uma candidatura para admissão em abril de 2022;
v) a insolvente junto aos autos declaração emitida pela sociedade D, Lda., datada de 03.07.2023, que informa que a insolvente apresentou uma candidatura para admissão em dezembro de 2022;
- em todas as declarações juntas é mencionado que as empresas em causa não se encontram em fase de recrutamento;
- a insolvente não comprovou que tenha estado inscrita no centro de emprego.”
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Com relevância para a decisão do recurso, além dos demais factos referidos no relatório, resultam dos autos os seguintes factos (processuais).
a) em 12/09/2019 foram apreendidos para a massa insolvente os seguintes bens:
- fração autónoma designada pela letra M do prédio urbano designado por lote …, situado na Rua …, freguesia de …, Lisboa, descrito na 8ª Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o nº … e na matriz sob o art.º …;
- embarcação denominada “xxx”, matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Lisboa sob o nº …, do livro D-5, registada na Capitania do Porto de Lisboa sob o nº …;
- embarcação denominada “xxy”, matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Lisboa sob o nº …, do livro D-5, registada na Capitania do Porto de Lisboa sob o nº … (cfr. auto de apreensão de 12/09/2019 – apenso A).
b) em 11/10/2019 foi apreendido para a massa insolvente o seguinte bem:
- fração autónoma designada pela letra A correspondente ao lado esquerdo prédio urbano designado por lote ..., situado na …, descrito na Conservatória do Registo Predial de Castro Marim sob o nº … e na matriz sob o art.º … (cfr. auto de apreensão de 11/10/2019 – apenso A).
c) Por despacho de 10/03/2020, confirmado por Ac. de TRL 23/02/2021 foi indeferido o pedido formulado pela administradora da insolvência de venda imediata dos bens apreendidos e tomada de posse dos mesmos se necessário com recurso à força pública dado, tendo sido verificado tratarem-se de bens comuns, citado o cônjuge da insolvente, este ter deduzido oposição, alegando e demonstrando a pendência de processo de partilha por separação de bens em Cartório Notarial (cfr. apensos A e C).
d) Por despacho de 12/10/2021 foi solicitado para a apensação ao processo de insolvência, o processo de inventário para separação de meações da devedora e do marido a correr termos em Cartório Notarial (cfr. processo principal).
e) Por acórdão TRL de 22/03/2022, a decisão referida em “d)” foi revogada, tendo, em consequência, sido ordenada a devolução do processo de inventário, entretanto apensado, ao Cartório Notarial, por despacho de 21/04/2022 (cfr. apensos E e D).
f) A administradora da insolvência apresentou a relação do art.º 129º do CIRE em 02/10/2019, constando um total de créditos reconhecidos de €1.791.123,62 e um total de créditos não reconhecidos de €49.681,67 (cfr. apenso B).
g) Foram apresentadas impugnações de créditos pelo Ministério Público, relativamente à qualificação do crédito reconhecido ao Estado a título de IMI e por XFD, impugnando o não reconhecimento do crédito por si reclamado (cfr. apenso B);
h) Em 03/03/2020 foi proferido, no apenso de reclamação de créditos, o seguinte despacho, transitado em julgado: “Apenas poderá ser proferida sentença de reclamação de créditos quando estiver consolidada a composição da massa insolvente. Nos presentes autos tal ainda não ocorreu, pois que se desconhece ainda, se a liquidação versará sobre a totalidade de bens imóveis ou móveis sujeitos a registo, ou se versará sobre o simples direito da insolvente à sua meação nos bens comuns que enquanto casal adquiriu com JNS.
Em face do exposto aguarde a consolidação da composição da massa insolvente e após conclua.”
i) a insolvente nasceu em 25/10/1970 (cfr. certidão de assento de nascimento junto em 30/07/2019 ao processo principal).
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4. Fundamentos do recurso:
A exoneração do passivo restante é um instituto introduzido, de forma inovatória, em 2004, pelo Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa, e que confere aos devedores pessoas singulares uma oportunidade de começar de novo – o fresh start.
Nos termos do disposto no art.º 235.º do CIRE[1]: «Se o devedor for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste, nos termos das disposições do presente capítulo.»
“A principal vantagem da exoneração é a libertação do devedor das dívidas que ficaram por pagar no processo de insolvência, permitindo-lhe encetar uma vida nova.”[2]
É, antes de mais, uma medida de proteção do devedor, mas que joga com dois interesses conflituantes: a lógica de segunda oportunidade e a proteção imediata dos interesses dos credores atuais do insolvente.
Não esqueçamos que o processo de insolvência «…tem como finalidade a satisfação dos credores…» como se prescreve logo no art.º 1º do CIRE. Este instituto posterga essa finalidade em nome não apenas do benefício direto (exoneração e segunda oportunidade) do devedor, mas de uma série de interesses de índole mais geral: a possibilidade de exoneração estimula a apresentação tempestiva dos devedores à insolvência, permite a tendencial uniformização entre os efeitos da insolvência para pessoas jurídicas e pessoas singulares e, em última análise, beneficia a economia em geral, provocando, a contração do crédito mas gerando maior responsabilidade e responsabilidade na concessão do mesmo.[3]
Essa tensão entre dois interesses opostos reflete-se nas várias normas que regulam a exoneração, desde logo na opção do nosso legislador pelo regime do earned start, ou reabilitação (por contraposição ao fresh start puro), ou seja, fazendo o devedor passar por um período de prova e concedendo o benefício apenas se o devedor o merecer.
É também o modelo eleito a nível europeu, como resulta da Diretiva 2019/1023 do Parlamento Europeu e do Conselho de 20 de junho de 2019 (sobre os regimes de reestruturação preventiva, o perdão de dívidas e as inibições, e sobre as medidas destinadas a aumentar a eficiência dos processos relativos à reestruturação, à insolvência e ao perdão de dívidas)[4], já transposta[5], e que, em matéria de exoneração ou perdão, na linguagem da diretiva, previu o acesso ao perdão total da dívida aos empresários, deixando aos Estados a opção de o aplicar aos consumidores (cfr. considerando 21), após um prazo não superior a três anos, possibilitando a reserva a devedores de boa-fé e à verificação do cumprimento de determinadas condições – cfr. art.ºs 20º a 24º da diretiva, em especial o artigo 22º.
A ponderação destes interesses contrapostos deve ser considerada como guião para a interpretação das normas dos art.ºs 235º e ss. do CIRE, como resulta, entre outros, do Ac. STJ de 02-02-2016, relatado por Fonseca Ramos (3562/14) e TRP de 15-09-2015, relatado por José Igreja Matos (24/14)[6], entre as quais os art.ºs 243º e 244º.
Estabelece o art.º 244º do CIRE[7], sob a epígrafe Decisão final da exoneração:
«1 - Não tendo havido lugar a cessação antecipada, o juiz decide nos 10 dias subsequentes ao termo do período da cessão, sobre a respetiva prorrogação, nos termos previstos no artigo 242.º-A, ou sobre a concessão ou não da exoneração do passivo restante do devedor, ouvido este, o fiduciário e os credores da insolvência.
2 - A exoneração é recusada pelos mesmos fundamentos e com subordinação aos mesmos requisitos por que o poderia ter sido antecipadamente, nos termos do artigo anterior.
3 - Findo o prazo da prorrogação do período de cessão, se aplicável, o juiz decide sobre a concessão ou não da exoneração do passivo restante nos termos dos números anteriores.»
Por sua vez o artigo anterior, ou seja, o art.º 243º, prevê como fundamentos da cessação antecipada do procedimento de exoneração:
«1 – (…):
a) O devedor tiver dolosamente ou com grave negligência violado alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239.º, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência;
b) Se apure a existência de alguma das circunstâncias referidas nas alíneas b), e) e f) do n.º 1 do artigo 238.º, se apenas tiver sido conhecida pelo requerente após o despacho inicial ou for de verificação superveniente;
c) A decisão do incidente de qualificação da insolvência tiver concluído pela existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência.
(…)
3 – Quando o requerimento se baseie nas alíneas a) e b) do nº 1, o juiz deve ouvir o devedor, o fiduciário e os credores da insolvência antes de decidir a questão; a exoneração é sempre recusada se o devedor, sem motivo razoável, não fornecer no prazo que lhe seja fixado informações que comprovem o cumprimento das suas obrigações, ou, devidamente convocado, faltar injustificadamente à audiência em que deveria prestá-las»
Este preceito deve ser lido em conjunto com a regra do art.º 246º do CIRE, que regula a revogação da exoneração e que estabelece:
«1 - A exoneração do passivo restante é revogada provando-se que o devedor incorreu em alguma das situações previstas nas alíneas b) e seguintes do n.º 1 do artigo 238.º, ou violou dolosamente as suas obrigações durante o período da cessão, e por algum desses motivos tenha prejudicado de forma relevante a satisfação dos credores da insolvência.
2 - A revogação apenas pode ser decretada até ao termo do ano subsequente ao trânsito em julgado do despacho de exoneração; quando requerida por um credor da insolvência, tem este ainda de provar não ter tido conhecimento dos fundamentos da revogação até ao momento do trânsito.
3 - Antes de decidir a questão, o juiz deve ouvir o devedor e o fiduciário.
4 - A revogação da exoneração importa a reconstituição de todos os créditos extintos.»
Resulta do confronto entre os preceitos que a violação das obrigações impostas ao devedor durante o período de cessão é fundamento, tanto da cessação antecipada do procedimento de exoneração e da recusa da exoneração como de revogação da exoneração[8], após concedida, mas com as seguintes assinaláveis diferenças:
- no caso da cessação antecipada e de recusa da exoneração a violação das obrigações deve ser dolosa ou cometida com negligência grave e deve ser causa de prejuízo para a satisfação dos créditos sobre a insolvência;
- no caso da revogação da exoneração a violação das obrigações impostas ao devedor deve ser dolosa e causa de prejuízo relevante para a satisfação dos créditos sobre a insolvência[9].
Sem relevo para a decisão do caso concreto, diremos ainda que, desde a entrada em vigor da Lei nº 9/2022 de 11 de janeiro, a violação das obrigações impostas durante o período de cessão pode dar lugar, não apenas à cessação antecipada (se constatada durante esse período) ou à recusa (quando valorada após o decurso do prazo de cessão) mas à prorrogação do período de cessão prevista nos art.ºs 242º-A e 244º do CIRE[10], como alternativa à cessação antecipada (que no caso já não estava disponível, dado que quando foi proferido o despacho de recusa o período de cessão já tinha terminado) ou como alternativa à recusa de exoneração (a única que hipoteticamente estava disponível, dado que quando a notificação do nº 1 do art.º 244º do CIRE foi enviada, já estava em vigor a nova redação do preceito). Não tendo sido pedida ou sequer ponderada a prorrogação nos termos do nº1 do art.º 244º do CIRE, tal matéria está, claramente, fora do objeto do presente recurso.
Vejamos, então, em concreto, os fundamentos do despacho recorrido e os argumentos trazidos a recurso.
Foram os seguintes os fundamentos do despacho recorrido:
“Prevê o art.º 239.º, n.º 4, do C.I.R.E., que durante o período de cessão o devedor fica obrigado a exercer uma profissão remunerada, não a abandonando sem motivo legítimo, e a procurar diligentemente tal profissão quando desempregado, não recusando desrazoavelmente algum emprego para que seja apto – alínea b).
O dever de “procurar diligentemente” exige da parte do devedor/insolvente, quando desempregado, uma atitude ativa de procura de emprego, isto é, reclama que este procure efetivamente emprego e encete para tal condutas positivas no sentido de encontrar emprego, quer consultando anúncios de oferta de emprego nos órgãos de comunicação social, quer mantendo-se alerta no sentido de detetar conversas ou anúncios de ofertas de emprego, afixados, nomeadamente, nos estabelecimentos industriais ou comerciais, anunciando a admissão de pessoal, quer dirigindo-se às empresas ou estabelecimentos comerciais que eventualmente possam necessitar de contratar pessoal, etc. – neste sentido vide acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 05.11.2020, proc. n.º 1565/14.5TBGMR.G1, disponível em www.dgsi.pt.
Ora, no caso, a insolvente embora instada pelo Tribunal, não provou ter-se inscrito no centro de emprego.
Por outro lado, para prova da procura de emprego remeteu ao processo cinco declarações subscritas pelos representantes de quatro empresas, nas quais as entidades em causa mencionam que a insolvente apresentou candidatura para integrar a empresa, mas tal não foi possível.
Tais declarações referem que as candidaturas foram apresentadas em outubro e novembro de 2019, em abril de 2022 e dezembro de 2022.
Tais declarações mencionam ainda que a admissão da insolvente não foi possível porquanto as empresas não estavam em fase de recrutamento.
Ora, estamos em crer que a factualidade assente evidência que a insolvente, pese embora tenha procurado emprego, não foi diligente nessa procura, pois que não se inscreveu no centro de emprego, que constitui a forma mais eficaz de uma pessoa na sua situação encontrar um emprego remunerado. E apenas de remeteu propostas para integrar empresas que não se encontravam em fase de recrutamento, sendo manifesto que perante essa forma de procura seria pouco plausível que viesse a conseguir um trabalho remunerado. Acresce que as declarações evidenciam que apenas se preocupou em procurar empregou no início (outubro de 2019) e no fim do período de cessão (abril de 2022).
Com efeito, atendo o dever em causa, qualquer cidadão diligente em circunstâncias idênticas às da aqui insolvente ter-se-ia inscrito no centro de empregado e teria remetido candidaturas a ofertas de emprego e não para empresas que não procuravam contratar trabalhadores.
Em suma, julga-se que o comportamento demonstrado da insolvente é sintomático do manifesto desinteresse na obtenção de qualquer emprego e que constitui motivo bastante para ser recusada a exoneração do passivo restante, nos termos do art.º 243.º, n.º 1, al. a), do C.I.R.E., por negligência grave resultante do incumprimento dos deveres legais impostos pelo art.º 239.º, n.º 4, al. b) do C.I.R.E..
Por outro lado, tal acomodação a uma situação de inatividade necessariamente deixou de auferir rendimentos que poderiam servir para satisfazer os créditos sobre a insolvência e, daí, o prejuízo para os credores.”
A recorrente defende que do despacho inicial decorria para si o dever de informar o tribunal sobre as diligências para a obtenção de emprego, quando tal lhe fosse solicitado, o que fez. Foram-lhe solicitadas informações por duas vezes (05/12/2019 e 26/06/2023) e apresentou declarações demonstrativas de tais diligências. Alega, seguidamente, que do despacho inicial não decorria o dever de a mesma se inscrever no Centro de Emprego, inscrição que não prova a diligência na procura de emprego e que a decisão ora proferida contradiz o despacho liminar, transitado em julgado. A recorrente procurou ativamente emprego, entregando o seu currículo, sendo que não sabia se as empresas estavam ou não em fase de recrutamento. Apresentou candidaturas em outubro de 2019, novembro de 2019, abril e dezembro de 2022, sendo que em 2019 esteve em Angola até outubro e em 2020 sobreveio a situação pandémica, não estando as empresas a contratar até meados de 2022.
Considera, assim que cumpriu o dever de procura diligente de emprego e, ainda que assim se não entendesse, não se pode concluir pela existência de prejuízo para os credores. Num centro de emprego, apenas tendo como habilitações literárias o ensino secundário, não encontraria um emprego em que auferisse além do salário mínimo nacional, pelo que nada haveria para entregar à fidúcia.
Igualmente alega que não agiu como dolo ou negligência grave já que não decorria do despacho inicial a obrigação de se inscrever no Centro de Emprego, não sabendo a recorrente que teria tal obrigação.
A credora que respondeu ao recurso, por sua vez, alegou que cabia à devedora demonstrar a procura pró-ativa de emprego e que demonstrou o envio de cinco currículos em quatro anos, o que é insuficiente. Nem a estadia em Angola nem a pandemia justificam que a recorrente não procurasse emprego. As declarações juntas pela insolvente têm as vicissitudes e singularidades que alegou no seu requerimento de 21/07/2023.
A recorrente foi notificada para comprovar a sua inscrição no centro de emprego, inscrição que não efetuou. Não colhe o argumento de que tal obrigação não resulta do despacho inicial, estando incluída na obrigação de procura diligente de emprego.
Entende que a alegação de que apenas auferiria o salário mínimo nacional é futurologia e não afasta a negligência, que, por si só, causa prejuízo aos credores, tendo a recorrente agido de forma voluntária.
Apreciando:
Como se verifica da decisão recorrida, a violação da obrigação prevista no art.º 239º, nº4, al. b) do CIRE foi o único fundamento de recusa da exoneração do passivo restante analisado e julgado procedente pela decisão recorrida.
Não foi imputada à recorrente qualquer violação da obrigação de prestação de informações (causa autónoma de recusa ou cessação antecipada da exoneração prevista no nº 3 do art.º 243º do CIRE), pelo que tal matéria se encontra fora do objeto do presente recurso.
Nem o tribunal recorrido entendeu estar verificado o incumprimento da obrigação prevista na al. d) do nº 4 do art.º 239º do CIRE (cfr. conclusões 11 e 13 das alegações da recorrente), nem esteve em causa o dever de informar por parte da recorrente (cfr. conclusões 16 a 18 das alegações da recorrente).
Por outro lado, a recorrida invoca as vicissitudes e irregularidades relativas às declarações de emprego apresentadas pela recorrente que havia deixado alegadas em requerimento que dá por reproduzido[11], as quais, porém, não foram acolhidas no despacho recorrido, que, de toda a factualidade alegada, apenas valorou o facto de, de todas as declarações constar que a empresa não se encontra em fase de recrutamento.
Tudo o demais ali alegado está, assim, também, excluído do objeto de conhecimento deste recurso e não será conhecido.
São requisitos da recusa da exoneração nos termos conjugados do nº 2 do art.º 244º e da alínea a) do nº1 do art.º 243º:
i) A violação das obrigações previstas no art.º 239º do CIRE;
ii) Com dolo ou negligência grave;
iii) Prejuízo para a satisfação dos créditos sobre a insolvência; e
iv) Nexo de causalidade entre a conduta dolosa ou gravemente negligente do insolvente e o dano para a satisfação dos credores da insolvência[12].
O art.º 239º enumera, no seu nº4 as obrigações do devedor durante o período da cessão, entre as quais exercer uma profissão remunerada, não a abandonando sem motivo legítimo, e a procurar diligentemente tal profissão quando desempregado, não recusando desrazoavelmente algum emprego para que seja apto; (alínea b).
Este quadro de requisitos cumulativos – violação, conduta dolosa ou gravemente negligente, prejuízo e nexo de causalidade entre a conduta e o prejuízo – é exigido em todas as violações das obrigações previstas no nº4 do art.º 239º, exceção feita à violação prevista na al. d)[13], que, como já referimos, não se encontra aqui em causa.
Como melhor se escreveu no Ac. TRG de 09/11/2023 (Maria João Matos – 5712/19):
“Particularizando novamente, lê-se no art.º 239.º, n.º 4, al. b), do CIRE, que, durante o «período de cessão, o devedor fica ainda obrigado a» exercer «uma profissão remunerada, não a abandonando sem motivo legítimo, e a procurar diligentemente tal profissão quando desempregado, não recusando desrazoavelmente algum emprego para que seja apto» [53].
Com efeito, e «de acordo com o que resulta dos art.ºs 81º, nºs 1, 2 e 4, e 84º, nº 1, o insolvente pode - e deve na medida do possível! - providenciar pela realização de um trabalho que lhe garanta meios de subsistência, susceptível também de gerar rendimentos que, uma vez efectivamente obtidos, integram a massa insolvente», sabido que, para a «generalidade das pessoas, o trabalho é a fonte normal e mais significativa dos seus rendimentos» (Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2.ª edição Quid Juris, Lisboa 2013, pág. 709 e 860, com bold apócrifo).
Há mesmo quem considere que a obrigação prevista na al. b), do n.º 4, do art.º 239.º, do CIRE (de exercer uma profissão remunerada ou da procura activa dessa profissão) é a «mais importante», já que «condiciona as restantes, uma vez que só após a aquisição de rendimentos susceptíveis de penhora é que o devedor os pode entregar ao fiduciário» (Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito da Insolvência, 3.ª edição, Almedina, 2011, págs. 329-330, com bold apócrifo) [54].
Precisa-se, porém, que na concreta extensão e no concreto conteúdo desta obrigação de aquisição de rendimento há que ter em conta as circunstâncias pessoais do devedor, sejam as pertinentes à sua pessoa (v.g. idade, estado de saúde, habilitações académicas, formação profissional), sejam as pertinentes ao seu agregado familiar (v.g. existência e composição do mesmo).
Recorda-se, ainda, que neste concreto âmbito estão em causa direitos fundamentais (nomeadamente, de liberdade individual [55] e de defesa, face a circunstâncias laborais que não seja exigível suportar). Logo, a proibição do devedor por fim à sua relação de trabalho (seja unilateralmente, seja por acordo com o seu empregador, seja concorrendo para aquele efeito, pela adopção de conduta em que se baseie o seu posterior e imposto despedimento) pressupõe que não haja causa justificativa, motivo legítimo (v.g. razões de saúde, de perseguição ou de bullying, oferta de melhor emprego).
Precisa-se, igualmente, que na procura activa de emprego, o devedor pode e deve lançar mão de todos os recursos disponíveis para o efeito, nomeadamente agindo por ele próprio, e recorrendo aos centros de emprego ou a agências de colocação.
Compreende-se, por isso, que se afirme que a «obrigação do devedor, quando desempregado, de procurar diligentemente emprego (al. b), do n.º 4 do art.º 239º do CIRE), não se compadece com a mera inscrição daquele no centro de emprego, ficando a aguardar que o último lhe apresente propostas de emprego e comparecendo às entrevistas de emprego que, nessa sequência, lhe venham a ser designadas, mas exige da parte do devedor uma atitude positiva e proativa na procura de emprego» (Ac. da RG, de 05.11.2020, José Alberto Moreira Dias, Processo n.º 1565/14.5TTBGMR.G1) [56].
Reitera-se, por fim, que, salvo circunstâncias ponderosas, não faz sentido que o insolvente procure justificar o incumprimento deste seu particular dever de exercício de uma profissão remunerada, ou procura activa da mesma, na falta de expressa advertência do fiduciário de que se encontrava adstrito ao mesmo, e esclarecimento sobre o seu exacto conteúdo. Com efeito, se o «recorrente foi pessoalmente notificado do despacho inicial», onde «foram descritos os seus deveres, nomeadamente o de procurar diligentemente uma profissão remunerada quando desempregado, não recusando desrazoavelmente algum emprego para que seja apto», não «era necessária qualquer advertência por parte do fiduciário»: bastava ao insolvente «ler o referido despacho»; e, se «tivesse dúvidas acerca do teor do mesmo, poderia obter esclarecimento junto do seu advogado ou do tribunal a quo» (Ac. da RE, de 15.04.2021, Vítor Sequinho, Processo n.º 414/15.1T8OLH.E1).”
O quadro factual dos autos é de que, imposta, por despacho de 05/12/2019 a obrigação, entre outras, de procura diligente de emprego – dado que a recorrente se encontrava desempregada – esta, notificada para comprovar essa diligência, juntou cinco declarações de empresas atestando a entrega de currículos e que as mesmas não se encontravam em fase de recrutamento.
Duas dessas declarações referem-se a período anterior ao despacho liminar e à imposição da obrigação (outubro e novembro de 2019), pelo que atestaram a boa-fé da requerente mas não o cumprimento de uma obrigação ainda não imposta.
O mesmo se diga quanto à alegação de que o tribunal ignorou que a recorrente esteve em Angola no ano de 2019, pelo que não podia procurar emprego em Portugal, não estando no país. Não é, verdadeiramente assim, pode perfeitamente procurar-se emprego estando ausente fisicamente, mas tal não releva, por qualquer forma, no caso concreto, dado que só a partir de dezembro de 2019 se verificava a obrigação relevante.
Ficamos assim com três declarações, atestando entrega de currículos em abril e dezembro de 2022.
O período de cessão decorreu entre dezembro de 2019 abrangendo os anos de 2020, 2021 e 2022 (até dezembro, inclusive).
Durante esses três anos – e apenas nesses três anos e não em quatro como alegado pela recorrida, dado que, nos termos da lei, o período terminou quando completados três anos após 11 de abril de 2022 – temos assim o envio de três currículos e o indício resultante do envio de dois currículos anteriores.
Não tendo colhido a sugerida falsidade das declarações juntas, temos que concordar com a recorrente quando argumenta não lhe ser possível saber, quando se candidata, se as empresas estavam ou não em fase de recrutamento. Assim, temos comprovativos de procura de emprego.
A questão coloca-se na diligência dessa procura. Temos apurado em primeiro lugar a inexistência de qualquer diligência nos anos de 2020, 2021 e primeiro trimestre de 2022 (ou seja, dois anos e três meses). A pandemia deve ser valorada neste ponto, mas não até abril de 2022. Os períodos de confinamento justificam a não procura de emprego, mas nada mais do que isso. É certo que as hipóteses de ser contratada durante o ano de 2020, seriam mais baixas, mas isso não justifica o incumprimento de uma obrigação imposta de procura diligente de emprego.
Resultou igualmente apurado que a recorrente não se inscreveu no Centro de Emprego.
O despacho liminar de exoneração, de facto, não discriminou a específica obrigação de inscrição no Centro de Emprego. Mas não tinha que o fazer. A obrigação imposta por lei e pelo despacho é de procura diligente de emprego e qualquer pessoa média sabe o que isso significa: procurar oportunidades, enviar candidaturas espontâneas, responder a anúncios e inscrever-se no Centro de Emprego.
É evidente que não basta a inscrição no Centro de Emprego e a passividade subsequente no período de cessão – e assim foi doutamente decidido no Ac. TRG de 05/11/2020, José Alberto Moreira Dias (1565/14) – mas é igualmente evidente que as hipóteses de arranjar emprego aumentam se se proceder a essa inscrição, dado que o Centro de Emprego congrega pessoas que procuram emprego e empregadores que necessitam de força laboral – e nesse sentido foi decidido no Ac. TRE de 15/04/2021, Vítor Sequinho (414/15).
O que a decisão recorrida entendeu não foi que a recorrente teria violado uma obrigação de se inscrever num centro de emprego. O que foi decidido, e se subscreve, foi que não se inscrever num centro de emprego demonstra que não usou de toda a diligência devida na procura de emprego.
Ou seja, somando a apresentação de três candidaturas espontâneas, uma inatividade superior a dois anos e a não inscrição num centro de emprego, resulta claro que a recorrente procurou emprego, mas não o fez de forma diligente. Não se trata de censurar apenas o facto de não se ter inscrito num centro de emprego, mas sim verificar a insuficiência do que fez.
Temos, assim, preenchido o primeiro requisito de recusa acima enunciado.
Passando à análise do carater doloso ou gravemente negligente da conduta da recorrente, resulta dos autos que a recorrente optou, conscientemente por cumprir esta obrigação de procura diligente de emprego, de que estava ciente, mediante o envio de candidaturas espontâneas a cinco empresas em três anos.
Dolo é conhecimento e vontade. A ora recorrente pediu a concessão do benefício de exoneração do passivo restante, foi notificada do seu deferimento liminar e de que passava a estar adstrita ao cumprimento de determinadas obrigações, pelo que não pode alegar desconhecimento.
O dolo tem no nosso direito civil uma dupla aceção como aponta Menezes Cordeiro[14], o dolo-vício e o dolo-culpa, correspondendo o dolo previsto no art.º 243º do CIRE ao dolo culpa referido no art.º 483º nº1 do Código Civil, que ali se contrapõe à mera culpa ou negligência.
Não cremos necessário o recurso às categorias correspondentes do direito penal[15], que correspondem genericamente às categorias do direito civil, com maior e compreensível depuramento, não havendo que distinguir entre dolo direto, necessário ou eventual, mas fixando que o dolo compreende conhecimento e intenção, ou seja, o agente tem conhecimento dos deveres que sobre ele recaem e age de forma desconforme bem sabendo que assim viola tais deveres.
A negligência ou mera culpa consiste na violação de deveres de cuidado a que o agente está obrigado e de que é capaz, conduzindo a um resultado desconforme que pode ou não ter sido representado como possível.
Correspondem, quer o dolo, quer a negligência, a representações internas do agente avaliadas pela exteriorização das respetivas ações, ou seja, são factos que se extraem das ações ou omissões dos agentes, não sendo suscetíveis de prova direta, como representações internas que são.
O que a recorrente fez e não fez foram decisões conscientes suas, ciente da obrigação que sobre si impendia, pelo que, no mínimo, o caráter gravemente negligente – enviar cinco candidaturas a empregos durante três anos não é procura diligente de emprego, seja qual a for a perspetiva que se adote – da conduta que adotou está verificada.
Temos assim, apurado o incumprimento da obrigação prevista na al. a) do nº 4 do art.º 239º do CIRE e a existência de negligência grave por parte da recorrente/devedora.
A recorrente centra ainda os seus argumentos no requisito do prejuízo para os credores.
Considera que não se pode concluir pela existência de prejuízo para os credores, dado que mesmo inscrita num centro de emprego, apenas tendo como habilitações literárias o ensino secundário, não encontraria um emprego em que auferisse além do salário mínimo nacional, pelo que nada haveria para entregar à fidúcia.
A credora que assumiu posição nos autos de recurso faz corresponder esta alegação da devedora, de que apenas auferiria o salário mínio nacional a “futurologia”.
O despacho recorrido referiu que, na acomodação a uma situação de inatividade, a recorrente necessariamente deixou de auferir rendimentos que poderiam servir para satisfazer os créditos sobre a insolvência e, daí, o prejuízo para os credores.
Convém recordar que a obrigação cuja violação se verificou é uma obrigação de meios, e não de resultado. O devedor em situação de desemprego está obrigado a procurar diligentemente emprego e não a obter emprego. De forma evidente, as hipóteses de arranjar emprego, quando não se procura o mesmo, são praticamente inexistentes, mas, ainda assim, a obrigação é de procura diligente e não de obtenção.
O que significa uma óbvia dificuldade no apuramento do requisito de prejuízo para os credores.
O prejuízo de que cuidamos aqui é aquele que vem a ser ligado pelo nexo de causalidade com a concreta violação das obrigações impostas durante o período de cessão. Por outras palavras: o prejuízo dos credores tem que resultar da conduta incumpridora do devedor durante o período de cessão.
Isto porque, num panorama mais geral, o prejuízo dos credores já resultou do incumprimento da devedora – situação base da insolvência. Não é desse prejuízo que cuidamos aqui.
O montante referido pela credora na sua conclusão XV (€1.791.123,62) é o prejuízo global da insolvência que não será, sequer, o prejuízo final, dado que existem bens apreendidos e que, a final, serão liquidados, sendo o seu produto aplicado na satisfação das dívidas da massa e dos créditos sobre a insolvência, reclamados, verificados e graduados.
Há, de facto, algo de futurologia em assumir, como o fez a decisão recorrida, que se tivesse procurado mais diligentemente emprego, a recorrente o teria obtido, e que, como o faz a recorrida, esse emprego seria remunerado em mais que o salário mínimo nacional, o montante excluído da cessão de rendimentos pelo despacho liminar, transitado em julgado.
A óbvia dificuldade na prova do prejuízo derivado desta violação de uma obrigação de meios[16] resolve-se pelo ónus da prova: não é o insolvente que tem de alegar e provar que procurou diligentemente uma profissão remunerada, quando desempregado e que tal não causou prejuízo aos credores, mas sim quem tem a iniciativa da recusa de concessão da exoneração do passivo restante que tem de provar que o mesmo não procedeu àquela procura diligente de trabalho e que tal específica conduta causou prejuízo aos credores[17].
Para tanto haveria que analisar a idade da insolvente, as suas habilitações académicas, a sua formação profissional, e destes dados concluir que as probabilidades de arranjar um emprego remunerado com salário superior ao salário mínimo nacional seriam superiores às de não o arranjar, caso tivesse diligentemente procurado tal emprego. Tal exercício não foi sequer ensaiado, pelo que, aplicando as regras do ónus da prova, não podemos ter como verificados, nem o prejuízo para os credores, nem o respetivo nexo de causalidade.
Tendo-se apenas apurado a violação com negligência grave, por parte da recorrente, da obrigação prevista na al. b) do nº4 do art.º 239º, mas não que tenha causado prejuízo aos credores, a decisão recorrida terá que ser revogada, não subsistindo qualquer motivo para a recusa da exoneração do passivo restante à devedora apelante.
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Chegados a este ponto há que ter em conta o facto de ainda não se encontrar apurado nos autos qual o passivo restante. Há ativo apreendido, corre um inventário para separação de meações, a opção tomada foi, aparentemente, a de aguardar pelo final deste para vender os bens que caibam em quinhão à devedora e só então (ou depois de vendido o direito se a opção vier a ser essa) se saberá qual o passivo restante a exonerar.
De facto, a decisão de exoneração do passivo restante apenas perdoa os créditos sobre a insolvência que subsistam à data da sua concessão – art.º 245º nº1 do CIRE.
Interpretando a regra sistematicamente, na economia do processado da insolvência, é bastante claro que a lei pretende que a liquidação esteja finda antes do final do período de cessão de rendimentos.
Prevê o artigo 235º que «Se o devedor for uma pessoa singular pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos três anos posteriores ao encerramento deste nos termos do presente capítulo.» (sublinhado nosso).
Para tanto concorre não só a natureza do instituto – que apenas exonera o passivo que não seja pago no processo da insolvência, mediante a liquidação dos bens apreendidos – como a previsão da urgência de todas as fases, incluindo a liquidação, nos termos dos art.ºs 9º nº1 e 169º do CIRE, bem como a natureza subsidiária e restrita do encerramento subsequente ao despacho liminar de exoneração do passivo restante, como expressamente previsto no nº7 do art.º 233º.
Se necessário fosse, a previsão da possibilidade de liquidação adicional caso surjam novos bens, nos termos do art.º 241º-A, confirma que o pressuposto genérico da lei é de que, antes que a cessão de rendimentos termine, a liquidação, como fase típica da insolvência, esteja já finda. Só assim se explica a necessidade de regras de liquidação adicional, dado que continuando a correr a liquidação, sem encerramento do processo nos termos do art.º 230º nº1, al. a), qualquer bem ou direito suscetível de apreensão que seja conhecido, será regularmente apreendido e liquidado nos termos gerais.
No caso dos autos, excecionalmente, e ao abrigo de várias decisões transitadas em julgado, a liquidação encontra-se, na prática, suspensa, realidade que aqui não pode ser ignorada, sob pena de frustração completa da principal finalidade do processo de insolvência, a satisfação dos credores, nos termos do art.º 1º.
Assim, e sem prejuízo da plena eficácia da decisão de exoneração quanto aos créditos que não tenham sido reclamados no processo de insolvência, nos termos do nº1 do art.º 245º do CIRE, no tocante aos créditos que foram reclamados e que poderão vir a obter, ao menos, parcial satisfação mediante a venda do ativo apreendido, quando ocorrer, a exoneração apenas abrangerá a parte que não vier a ser satisfeita.
Neste exato sentido já se pronunciou o Ac. TRE de 27/10/2022, relatado por Isabel de Matos Peixoto Imaginário (2146/16), no qual se decidiu, precisamente, que, terminando o período de cessão de rendimentos antes de estarem concluídas as diligências de liquidação e rateio final “os créditos que resultam extintos com a concessão da exoneração do passivo restante são aqueles que subsistam à data em que é concedida e não venham a obter pagamento em sede de rateio final.”
Entendimento diverso – que não nos parece sequer possível – acrescentaria ao elenco legal uma nova causa de encerramento (o perdão de todos os créditos reclamados) e uma nova causa de encerramento da liquidação (estando perdoados todos os créditos não poderia prosseguir a liquidação para satisfação dos mesmos).
A decisão a proferir é de concessão da exoneração, limitada, porém, quanto aos créditos reclamados no processo de insolvência, aos subsistentes após a conclusão da liquidação.
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As custas devidas a juízo são suportadas pela recorrida, que ficou vencida – art.ºs 663.º, n.º 2, 607.º, n.º 6, 527.º, n.º 1 e 2, 529.º e 533.º, todos do Código de Processo Civil.
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5. Decisão
Pelo exposto, julgando integralmente procedente a apelação, decide-se:
- conceder à devedora/apelante a exoneração do passivo restante nos termos e com os efeitos previstos no art.º 245º do CIRE, limitada, quanto aos créditos reclamados no processo de insolvência e que venham a ser verificados e graduados, aos subsistentes após a conclusão da liquidação;
- revogar a decisão recorrida.
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Custas pela recorrida.
Notifique.
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Lisboa, 6 de fevereiro de 2024
Fátima Reis Silva
Paula Cardoso
Renata Linhares de Castro
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[1] Na versão em vigor à data da formulação do pedido, à data do seu deferimento liminar, tendo sido alterado no decurso do prazo da cessão de rendimentos pela Lei nº 9/2022 de 11/01, que entrou em vigor em 11/04/2022.
[2] Catarina Serra in Lições de Direito da Insolvência, Almedina, abril de 2018, pág. 560.
[3] Neste sentido Catarina Serra, local citado, págs. 562 e 563.
[4] Texto disponível in https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:32019L1023&from=PT
[5] Pela Lei nº 9/2022 de 11 de janeiro, que entrou em vigor no dia 11 de abril de 2022.
[6] Todos disponíveis em www.dgsi.pt, como todos os demais citados sem referência.
[7] Na versão em vigor à data da prolação da decisão recorrida.
[8] Propondo Catarina Serra uma leitura corretiva do artigo 246º por considerar que a remissão deste deveria ser para o art.º 243º e não para o artigo 239º - “Lições…”, pág. 574.
[9] Neste sentido ver Ac. TRP de 13/06/2023 (Artur Dionísio Alves – 1804/18) no qual se sumariou “O prejuízo para a satisfação dos créditos sobre a insolvência, enquanto requisito legal para a recusa da exoneração (bem como para a cessação antecipada do procedimento de exoneração) não tem de ser relevante, como sucede com o prejuízo enquanto requisito para a revogação da exoneração, como decorre da comparação da letra e da finalidade das normas dos artigos 243.º, n.º 1, al. a), e 246.º, n.º 1, ambos do CIRE.”, Ac. TRP de 06-04-2017 (relatora Judite Pires - 1288/12), no qual se sumariou: “Enquanto a revogação da exoneração pressupõe uma actuação dolosa do devedor faltoso, da qual resulte um prejuízo relevante para a satisfação dos credores da insolvência, a cessação antecipada do procedimento da exoneração basta-se com a culpa grave, sem necessidade de a conduta infractora revestir a modalidade de dolo, não se exigindo que o prejuízo seja relevante.” e Ac. TRL de 23-03-2017 (relatora Ondina Alves - 1438/14) onde se concluiu: “Ao contrário da revogação da exoneração do passivo, na cessação antecipada da exoneração não se exige que a violação das obrigações impostas ao insolvente haja prejudicado, de forma relevante, a satisfação dos credores da insolvência.”
[10] Nos termos do art.º 10º nºs 1, 3 e 4 da Lei nº 9/2022, é aplicável aos presentes autos o disposto no art.º 244º do CIRE na versão dada por este diploma legal.
[11] Requerimento ref.ª 46194178 apresentado nos autos principais em 21/07/2023.
[12] Neste sentido ver Ac. TRP de 04-11-2019 (relator Manuel Domingues Fernandes - 1012/13) e Ac. TRL de 23-03-2017 (relatora Ondina Alves - 1438/14), ambos disponíveis em www.dgsi.pt.
[13] Neste sentido, entre muitos outros, cfr. os Acs. TRP de 09/09/2021 (Filipe Caroço - 1554/16), TRL de 18/04/2023 (Fátima Reis Silva - 2417/20), TRC de 07/02/2023 (Paulo Correia - 926/18), TRG de 07/06/2023 (Maria João Matos - 995/15) e TRE de 25/02/2021 (Francisco Matos - 28/15).
[14] Em Código Civil Comentado, I – Parte Geral, Almedina, 2020, pág. 745.
[15] Como faz Luís M. Martins em Recuperação de Pessoas Singulares, Vol. I, Almedina 2011, pág. 86.
[16] Diferente seria deixar injustificadamente um emprego preexistente, com salário conhecido.
[17] Acs. TRG de 09/11/2023 e de 05/11/20, ambos já citados.