Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
169/22.3PFLRS.L1-9
Relator: MARIA JOÃO FERREIRA LOPES
Descritores: IMPUTAÇÕES CONCLUSIVAS
GENÉRICAS
ABRANGENTES E DIFUSAS
MAUS TRATOS
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
AGRESSÕES RECÍPROCAS
OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA SIMPLES
RELAÇÃO ANÁLOGA À DOS CÔNJUGES
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/25/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário:  (da responsabilidade da relatora)
I. As imputações conclusivas, genéricas, abrangentes e difusas, habitualmente com recurso a expressões vagas, imprecisas, nebulosas e obscuras, sem qualquer especificação das condutas em que se concretizou o mau trato físico e/ou psíquico, com menção do tempo e lugar em que tal aconteceu, por não serem passíveis de um efetivo contraditório e, portanto, do direito de defesa constitucionalmente consagrado e, devem ter-se como não escritas.
II. Tendo presente as particularidades do crime de violência doméstica, apenas deverão ser tidas como não escritas as descrições que não contenham qualquer referência que permita localizar e/ou identificar os concretos episódios e, bem assim, os períodos em que perduraram.
III. E, em situação de agressões recíprocas (seja de que tipo forem), não é atingido o bem jurídico tutelado pelo crime de violência doméstica, não tendo ocorrido uma relação de domínio ou subjugação e submissão, diminuindo a dignidade da pessoa humana, de um agente sobre o outro.
IV. Sob o âmbito incriminador do artigo 143.º do CP caem quaisquer ofensas no corpo ou na saúde de outra pessoa, independentemente da dor ou sofrimento causados, ou de uma eventual incapacidade para o trabalho, sendo igualmente irrelevantes os meios empregues pelo agressor e a duração da agressão.
V. Se a relação entre os recorrentes, tal como resulta da globalidade da matéria de facto dada como provada, é marcada por discussões, com agressões verbais mútuas, denotando um afrouxamento, por ambos, dos especiais vínculos de afecto, respeito e união que caracterizam uma relação análoga à dos cônjuges, não se pode considerar como integrando um crime de ofensas à integridade física qualificada um empurrão desferido pelo arguido sobre a assistente, no decurso de uma dessas discussões.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 9 ª secção criminal do Tribunal da Relação de Lisboa

I. Relatório
1. Findo o inquérito foi deduzida acusação contra AA, natural de Lisboa, filho de BB e CC, nascido em ... de ... de 1977, divorciado, titular do CC n.º … , residente na ..., imputando-se-lhe a prática de:
- um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152º, nº 1, als. b) e c) e n.ºs 2, al. a), 4 e 5 do Código Penal (na pessoa da vítima DD);
- um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152º, nº 1, al. d) e n.º 2, al. a) do Código Penal (na pessoa da vítima EE).
2. Efectuado o julgamento, veio a decidir-se julgar-se a acusação parcialmente procedente e o pedido de arbitramento de indemnização improcedente e o arguido condenado, por sentença datada de ...-...-2023, que
- absolveu o arguido da prática dos dois crimes de violência doméstica, pelo qual vinha acusado;
- condenou o arguido como autor material de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. no artigo 143, n.º 1 do Código Penal na pena de 60 (sessenta) dias de multa à taxa diária de € 6 (seis euros), o que perfaz a multa global de € 360 (trezentos e sessenta euros).
3. Inconformado com tal decisão recorreu o arguido, pugnando pela revogação da decisão e respectiva absolvição, alegando a violação e errada interpretação, pelo tribunal a quo, do disposto nos artigos 32.º, n.º 2 e 5 da CRP, 14.º, n.º 1 e 143.º, n.º1, ambos do CP, 143.º, n.º 1, do CP e 127.º, do CPP.
Rematou o corpo das motivações com as conclusões que se passam a transcrever:
“a) O arguido foi condenado pela prática como autor material de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. no artigo 143, n.º 1 do Código Penal na pena de 60 (sessenta) dias de multa à taxa diária de € 6 (seis euros), o que perfaz a multa global de € 360 (trezentos e sessenta euros).
b) Com relevância para o presente recurso são os seguintes os factos dados como provados que pretende o recorrente ver agora novamente analisados à luz do direito:
5. Em data não apurada, compreendida no decurso do ano de ..., arguido, vítima e o menor EE encontravam-se no domicílio comum.
6. Então, no contexto de discussão, na presença do menor EE, o arguido desferiu um empurrão na vítima, fazendo-a cair sobre uma cama, assim lhe causando dores.
12. Ao agir da forma descrita, actuou o arguido com o propósito alcançado de ofender o corpo de DD, o que fez no domicílio comum e na presença do menor EE, filho da vítima, apesar de saber que devia particular respeito e consideração à ofendida enquanto sua companheira e mãe de seu filho FF.
13. Agiu o arguido de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo ser a sua conduta proibida e punida por lei.
c) E, sendo estes os factos apurados e dados como provados não pode o recorrente concordar com a conclusão a que chegou o tribunal a quo quando afirma na sua motivação que:
Resultou provado que o arguido desferiu um empurrão na ofendida e que a quis agredir, tendo agido com dolo directo - artigo 14 n.º 1 do Código Penal.
É quanto basta para que se julgue que o arguido praticou o crime de ofensa à integridade física simples, pois encontram-se preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do tipo de crime em apreço, inexistindo causas de exclusão da ilicitude e da culpa.
d) Pois os factos dados como provados não são os bastantes para que se julgue que o arguido praticou o crime de ofensa à integridade física simples sendo insuficiente para a decisão a matéria de facto provada.
e) Na perspectiva do recorrente existe clara violação do art.º 32.º, n.º 2 e 5 da CRP, 14.º, n.º 1 e 143.º, n.º1, do CP e 127.º, do CPP.
f) E não interpretou o tribunal a quo correctamente o tipo de ilícito.
Senão veja-se:
g) O princípio do contraditório (cfr. art.º 32.º n.º 5 da Constituição da República Portuguesa) determina que: nenhuma decisão deve ser tomada pelo juiz, sem que previamente tenha sido dada ampla e efectiva possibilidade ao sujeito processual contra o qual é dirigida de a discutir, de a contestar e de a valorar”.
h) E, o balizamento temporal das condutas do arguido não se mostra feito com o mínimo de concretização exigido pelo efectivo exercício do direito de defesa.
i) Dizer-se que: em data não apurada, compreendida no decurso do ano de ..., o arguido desferiu um empurrão na vítima, fazendo-a cair sobre uma cama, assim lhe causando dores; não integra uma certeza que se quer objectiva sobre os factos imputados.
j) E manifesta a ligeireza com que os factos vêm descritos, não se fazendo qualquer menção, por exemplo, à altura do ano, parte do dia, local da casa, etc… (Terá sido no primeiro, segundo, terceiro trimestre do ano de ...? Era dia, tarde, noite? Em que cama? De que cómodo da casa?).
k) Outrossim, ainda que se entenda que não há qualquer violação do princípio do contraditório e bem assim, que os factos apurados não são insuficientes para a decisão; é também entendimento do recorrente que os factos em apreço não constituem a prática do crime que lhe é imputado.
l) Pois que, o crime de ofensa à integridade física supõe a produção de um resultado que é a ofensa do corpo ou da saúde de outra pessoa e que tem de ser imputado à conduta ou à omissão do agente, de acordo com as regras gerais de apuramento da causalidade.
m) Conforme entendimento da doutrina e da jurisprudência das Relações, as lesões insignificantes estarão excluídas do referido tipo legal, tendo em conta que os tipos penais não são neutros mas antes, exprimem já, e de uma forma global, um sentido social de desvalor.
n) Se alguém empurra outrem:
- sem sequer se mencionar onde colocou as mãos (i.e., se foi até com as mãos, pois pode até se colocar a questão de ter sido um mero encontrão com um ombro ou corpo por exemplo, cfr. aliás descrito pelo arguido);
- sem mencionar onde foram sentidas as dores (não é mencionada qualquer zona de impacto);
e essa pessoa cai ou desequilibra-se para cima de uma cama (que, como é do conhecimento geral terá uma superfície amortecida por um colchão), a conclusão não poderá ser outra, que não, a que tal empurrão é insignificante do ponto de vista da afetação da integridade física, enquanto bem jurídico aqui tutelado.
o) Mais, em momento algum – quer na acusação quer na sentença – é mencionado o sítio onde a suposta ofendida terá sentido dores.
p) Sendo previsível e consentâneo com as regras da experiência comum, que os factos dados como provados não provocaram qualquer dor e também não são atentatórios do bem-estar físico da assistente.
q) Mais, quisesse o arguido infligir qualquer dor ou mau estar físico na assistente – agora referindo-nos à imputação da conduta a título de dolo – decerto que não empurrava ou dava um encontrão nesta com vista à mesma vir a embater numa superfície mole, um colchão!
Nestes termos e face ao supra exposto, entende o recorrente que deve a sentença ora recorrida ser substituída por uma sentença absolutória.”
4. Da mesma forma, não concordando com o teor da referida sentença, a assistente DD dela também recorreu, pretendendo que a mesma seja
a) revogada e substituída por outra que condene o arguido pela prática de um crime de violência doméstica, p.e.p. pelo artigo 152º nº1 al. d) e nº 2 al. a) do CP, praticado contra pessoa da assistente/recorrente;
b) Para eficaz tutela das exigências de prevenção especial que se fizeram sentir no caso em concreto, sugeriu ainda a sua condenação nas penas acessórias de
(1) obrigação proibição de contactos com a assistente/recorrente DD, a graduar entre seis meses e cinco anos, com efetivo afastamento da sua atual residência/local de trabalho, a ser fiscalizada por meios técnicos de controlo à distância;
(2) obrigação de frequência de programas específicos de prevenção de violência doméstica;
c) E, em consonância com o defendido, ser condenado no PIC formulado pela assistente, num valor de 3.000,00€ (três mil euros);
d) Caso assim não se considere, subsidiariamente, deve ser o arguido condenado pela prática de um crime de ofensas à integridade física qualificada, p.e.p. no artigo 145º, nº1 al. a), nº2 e 132º, nº2 al. b) do CP.
5. Devidamente admitidos os recursos, o Ministério Público respondeu ao interposto pelo arguido defendendo a manutenção da decisão recorrida e formulando as seguintes conclusões que se passam a transcrever:
“1. Por sentença datada de ... de ... de 2023, o tribunal a quo decidiu absolver o arguido AA da prática de dois crimes de violência doméstica –
pelos quais se encontrava acusado - e condena-lo pela prática, como autor material, de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 60 (sessenta) dias de multa à taxa diária de €6,00 (seis euros), o que perfaz a multa global de €360,00 (trezentos e sessenta euros).
2. Não foi violado o princípio da livre apreciação da prova.
3. O principio do contraditório foi respeitado.
4. Da prova produzida em audiência de julgamento resultaram provados os factos dados como tal.
5. Foi apreciada toda a factualidade relevante em ordem à sentença a proferir.
6. Inexiste erro notório na apreciação da prova.
7. Inexiste, igualmente, uma contradição irremediável ou uma incompatibilidade entre dois ou mais factos contidos no texto da decisão recorrida e dados como provados.
8. A sentença objeto do presente recurso encontra-se devidamente fundamentada, nela constando os motivos de facto e de direito que fundamentaram a decisão.
9. A decisão recorrida não merece reparo.
Termos em que deve ser negado provimento ao recurso, como é de
JUSTIÇA”
6. Da mesma forma, respondeu o MP ao recurso interposto pela assistente junto do Tribunal a quo, defendendo a manutenção da decisão recorrida, concluindo como se transcreve a seguir:
“1. Por sentença datada de ... de ... de 2023, o tribunal a quo decidiu absolver o arguido AA da prática de dois crimes de violência doméstica –
pelos quais se encontrava acusado - e condena-lo pela prática, como autor material, de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 60 (sessenta) dias de multa à taxa diária de €6,00 (seis euros), o que perfaz a multa global de €360,00 (trezentos e sessenta euros).
2. Não foi violado o princípio da livre apreciação da prova.
3. O principio do contraditório foi respeitado.
4. Da prova produzida em audiência de julgamento resultaram provados os factos dados como tal.
5. Foi apreciada toda a factualidade relevante em ordem à sentença a proferir.
6. Inexiste erro notório na apreciação da prova.
7. Inexiste, igualmente, uma contradição irremediável ou uma incompatibilidade entre dois ou mais factos contidos no texto da decisão recorrida e dados como provados.
8. A sentença objeto do presente recurso encontra-se devidamente fundamentada, nela constando os motivos de facto e de direito que fundamentaram a decisão.
9. A decisão recorrida não merece reparo.
Termos em que deve ser negado provimento ao recurso, como é de
JUSTIÇA”
7. Subidos os autos a este Tribunal a Digna Procuradora Geral Adjunta defendeu o aperfeiçoamento das conclusões da recorrente e no mais pugnou pelo não provimento dos dois recursos.
8. Preliminarmente cumpre referir o seguinte:
A recorrente, rematou o corpo da motivação com o que denomina de conclusões, mas que como tal e, na noção comummente entendida de resumo das razões do pedido, não podem ser consideradas e, que por essa razão aqui se não transcrevem.
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da motivação, que devem conter os elementos determinados no artigo 412.º/2 do CPP, no caso de recurso restrito a matéria de Direito.
Determina o artigo 412.º/1 CPP, “que a motivação (…) termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.” Ora, resumir é condensar, sintetizar. Nunca é repetir, nem meramente juntar ou aglomerar o texto.
Neste particular, importa reter a lição do Prof. Alberto dos Reis expressa no Código de Processo Civil Anotado vol. V, pág. 359, em que refere: «No contexto da alegação o recorrente procura demonstrar esta tese: que o despacho ou sentença deve ser revogado, no todo ou em parte. É claro que a demonstração desta tese implica a produção de razões ou fundamentos. Pois bem: essas razões ou fundamentos são primeiro expostos, explicados e desenvolvidos no curso da alegação; hão-de ser, depois, enunciados e resumidos, sob a forma de conclusão, no final da minuta.».
E, mais adiante (pág. 361): «...não valem como conclusões arrazoados longos e confusos, em que se não descriminam com facilidade as questões postas e os fundamentos invocados».
As conclusões são, pois, a enunciação resumida dos fundamentos do recurso, «as proposições sintéticas que emanam naturalmente do que se expôs e considerou ao longo da alegação» (cf. autor e ob. cit., pág. 359), sendo elas que delimitam o objecto do recurso, como acima se referiu.
As conclusões extraídas do recurso da arguida não obedecem aos requisitos formais e materiais do artigo 412.º n.º 1 e 2 do CPP, não tendo a recorrente sido capaz de resumir as razões do seu pedido, «apresentando para o efeito texto conclusivo a que melhor caberia a designação de verdadeira motivação» – cf. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 417/99, de 29-06-1999, in www.tribunalconstitucional.pt.
O artigo 417.º/3 CPP prevê a possibilidade de convite ao aperfeiçoamento, aquando da falta de conclusões ou impossibilidade delas se deduzir as indicações previstas nos nºs. 2 a 5 do artigo 412º.
A possibilidade de rejeição deve ser feita de forma parcimoniosa, procurando-se sempre indagar se estamos de facto perante uma situação de mera repetição da motivação ou se a especialidade ou a peculiaridade da matéria ou a própria natureza já de si condensada da própria motivação, justificam que as conclusões assumam esse cariz pouco sintético.
Haverá assim, sempre que possível, afastar deste domínio juízos meramente subjectivos, já que, tal como se afirma no Ac. STJ de 15.1.2004, in CJ, S, I, 169, é por vezes “muito difícil a tradução para a prática do conceito de concisão (…)”, “a concisão enquanto objecto da praxis é muito relativa, dependendo das concretas circunstâncias do caso e dos objectivos que se pretende alcançar”.
No caso, obviamente, pelo número de artigos das conclusões, conteúdo e extensão, que se traduz no resultado de repetição ipsis verbis do que consta da motivação, não se pode considerar que a recorrente satisfaz as exigências do artigo 412.º/1 CPP.
Só que se voluntariamente, não deu cumprimento ao estatuído no texto legal, a este propósito, não vislumbramos que o pudesse (soubesse) fazer, se fosse convidada para tal.
Assim, para evitar a prática de actos inúteis - o que de resto é vedado pela lei - e avaliando e ponderando os diversos graus dos interesses em jogo, perante o manifesto incumprimento da Lei, por um lado e, o facto de termos sérias e fundadas dúvidas que o convite fosse acolhido, em termos úteis e satisfatórios, damos prevalência àquela vertente, essencialmente por se não vislumbrar qualquer vantagem para a recorrente no endereçar de convite a reformular o que apelidou de conclusões.
Isto posto, embora as entendidas, formalmente, conclusões da motivação da arguida, não respeitem (longe disso) adequadamente as imposições processuais, não constituindo o que vem qualificado de conclusões, o resumo das razões do pedido ou uma síntese do corpo das motivações, onde se concretize o onde e o porquê se decidiu mal e como se deve decidir - permitem, não obstante, surpreender e identificar as questões submetidas, de entre o repetido arrazoado apresentado, à cognição deste Tribunal, e delimitar ainda assim o objecto do recurso.
E, então, as questões a que a assistente reduz as suas razões de discordância para com a decisão recorrida, resumem-se às seguintes:
- do preenchimento do tipo legal de violência doméstica;
- determinação, em caso afirmativo, da pena adequada, bem como de sanções acessórias e fixação de montante compensatório.
- da qualificação do crime de ofensas à integridade física;
9. No cumprimento do estatuído no artigo 417.º/2 CPP nada veio a ser acrescentado.
10. No exame preliminar a relatora deixou exarado o entendimento de que nada obstava ao conhecimento do recurso, que, por sua vez, havia sido admitido com o regime de subida adequado.
11. Seguiram-se os vistos legais.
12. Foram os autos submetidos à conferência e dos correspondentes trabalhos resultou o presente acórdão.
*
II. Fundamentação
1. Tendo presente que o objecto dos recursos é balizado pelas conclusões da motivação apresentada pelo recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas - a não ser que sejam de conhecimento oficioso - e, que nos recursos se apreciam questões e não razões, bem como, não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido, então, a questões suscitadas nos recursos são as seguintes:
No recurso do arguido:
- qualificação jurídica dos factos dados como provados;
- violação do princípio do contraditório, estruturado na indeterminação temporal dos factos dados como provados.
No recurso da assistente:
- do preenchimento do tipo legal de violência doméstica;
- determinação, em caso afirmativo, da pena adequada, bem como de sanções acessórias e fixação de montante compensatório;
- em caso negativo e constatando-se, apenas, a prática de um crime de ofensas à integridade física, ponderar sobre a qualificação do mesmo.
2. Para se aquilatar da bondade de ambas as pretensões recursivas cumpre chamar à colação, antes de mais, a factualidade dada como provada na sentença recorrida:
“II - FUNDAMENTAÇÃO
1. MATÉRIA DE FACTO PROVADA
De relevante para a discussão da causa, resultou provada a seguinte matéria de facto:
1. O arguido e a vítima DD coabitaram, como se casados um com o outro fossem, durante cerca de quatro anos, relacionamento amoroso e coabitação cessados em ... de ... de 2022, altura em que a vítima abandonou o domicílio comum, sito na ....
2. Arguido e vítima são progenitores comuns de FF, nascido em ... de ... de 2020.
3. A vítima é ainda mãe de EE, nascido em ... de ... de 2005, fruto de anterior relacionamento, que sempre esteve à guarda e cuidados da vítima, com a mesma coabitando, e por essa via também com o arguido.
4. Ao longo de todo o período de coabitação, em datas não apuradas, no domicílio comum, no contexto de discussões, e uma vez na presença do menor EE, o arguido apodou a vítima DD de “ESTÚPIDA, MAQUIAVÉLICA” “Psicopata” e “Vai para o caralho”, ao que esta retorquia apodando o arguido de “Cabrão de merda, filho da puta, não vales nada como homem, és um merdas”.
5. Em data não apurada, compreendida no decurso do ano de ..., arguido, vítima e o menor EE encontravam-se no domicílio comum.
6. Então, no contexto de discussão, na presença do menor EE, o arguido desferiu um empurrão na vítima, fazendo-a cair sobre uma cama, assim lhe causando dores.
7. Em data não apurada, compreendida no decurso do ano de ..., no contexto de discussão, o arguido levantou a mão na direção da vítima DD, assim lhe significando que se aprestava a lhe bater.
8. Com vista a repelir o arguido, a vítima desferiu um estalo que atingiu o arguido na cara.
9. Então, com foros de seriedade, o arguido declarou à vítima “SE ME VOLTAS A DAR UM ESTALO, LEVAS UM MURRO NO FOCINHO”, expressões de que a mesma ficou bem ciente.
10. No dia ... de ... de 2022, a ofendida saiu do domicílio comum, levando consigo os seus filhos.
11. Ao proferir as expressões supra mencionadas agiu o arguido com o propósito alcançado de ofender a honra e consideração da ofendida.
12. Ao agir da forma descrita, actuou o arguido com o propósito alcançado de ofender o corpo de DD, o que fez no domicílio comum e na presença do menor EE, filho da vítima, apesar de saber que devia particular respeito e consideração à ofendida enquanto sua companheira e mãe de seu filho FF.
13. Agiu o arguido de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo ser a sua conduta proibida e punida por lei.
14. O arguido não tem antecedentes criminais.
15. É … e aufere € 1300 líquidos mensais e tem uma carteira de clientes de onde retira € 1000 por ano.
16. É divorciado e vive com os sogros e em casa destes.
17. Contribui com 50 euros mensais para as despesas da casa.
18. Tem dois filhos que vivem com as mães, contribuindo o arguido com 150 euros mensais para cada um.
19. Possui como habilitações literárias o 12º ano de escolaridade.
2. MATÉRIA DE FACTO NÃO PROVADA
Com relevo para a discussão da causa não se logrou provar a seguinte matéria de facto:
Que ao longo de todo o período de coabitação, em datas não apuradas, no domicílio comum, no contexto de discussões, e uma vez na presença do menor EE, o arguido apodou a vítima DD de “PUTA DE MERDA, DOENTE, NOJENTA, BURRA, DESEQUILIBRADA, PARVA”.
Em número não apurado dessas ocasiões, o arguido dirigiu tais expressões à vítima quando esta amamentava o filho comum FF, não ignorando nem pudendo ignorar que assim lhe causava sofrimento e angústia, tendo nessas ocasiões a mesma ficado em pranto, em consequência do discurso do arguido.
Em várias ocasiões, de número não apurado, em que o arguido dirigiu tais expressões à vítima DD, o menor EE interpôs-se entre ambos, por recear o que o arguido pudesse fazer a sua mãe.
Nessas ocasiões, o arguido não de coibia de, com foros de seriedade, declarar ao menor EE que lhe bateria se fosse necessário, expressões de que este ficou sempre bem ciente.
Em data não apurada, compreendida no decurso do ano de ..., arguido, vítima e o menor EE encontravam-se no domicílio comum.
Então, no contexto de discussão, na presença do menor EE, o arguido, com as mãos, cingiu e apertou o pescoço da vítima DD, assim lhe causando dores e aflição.
Em data ulterior, não apurada, compreendida em ..., o arguido agarrou o braço direito da vítima, apertando-lho, assim lhe causando dores e hematoma visível na zona atingida.
Em data não apurada, compreendida no ano de ..., na via pública, no contexto de discussão, o arguido desferiu uma pancada com a mão aberta na cara da vítima DD, assim lhe causando dores.
No dia ... de ... de 2022, pelas …H, arguido, vítima e menores EE e FF encontravam-se no domicílio comum,
Então, no contexto de discussão, na presença do menor EE, o arguido, com as mãos, desferiu várias pancadas no mobiliário, e partiu vários objetos, fazendo menção que a vítima ficasse ciente de tais condutas, não ignorando nem pudendo ignorar que as mesmas eram idóneas e adequadas a causar-lhe temor e inquietação, fazendo-a recear o que o arguido lhe pudesse fazer.
Então, o arguido apodou a vítima DD de “CABRA, PSICOPATA, DOENTE MENTAL, DESEQUILIBRADA, FILHA DA PUTA”, e declarou-lhe “VAI PARA O CARALHO, DESAPARECE DAQUI”.
Ao agir da forma descrita, teve o arguido o propósito conseguido e reiterado de maltratar a vítima DD.
Bem sabia e não podia ignorar o arguido que, ao expor o menor EE a tais condutas, em que atentava contra pessoa a quem o menor tinha profunda vinculação pessoal e afectiva, causava-lhe sofrimento e angústia, maltratando-o e turbando o processo de desenvolvimento da sua personalidade, e ainda assim não se coibiu de proceder da forma descrita.
Não se coibiu o arguido de dirigir ao menor EE expressões em que lhe anunciava estar na disposição de lhe bater, não ignorando nem pudendo ignorar que as mesmas eram idóneas e adequadas a causar-lhe temor e inquietação.
Bem sabia e não podia ignorar o arguido que, por força da sua tenra idade, o menor EE não tinha qualquer capacidade séria de oferecer oposição à actuação do arguido.”
3. Porque tal questão releva igualmente para a discussão do recurso, vejamos, também, o que em sede de fundamentação se deixou exarado no que concerne à convicção assim formada pelo Tribunal:
“3. MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO
A convicção do Tribunal relativamente aos factos fundou-se na análise crítica e conjugada da prova, tendo sido determinante as declarações do arguido e o depoimento do filho da ofendida EE.
Assim, o arguido admitiu os factos sob os números 1 a 3; ter dirigido à ofendida as expressões “Estúpida e Maquiavélica” mas referiu que a ofendida o insultava com as expressões dadas como assentes e de ter desferido na mesma um pequeno encontrão, tendo confirmando que esta para o afastar desferiu-lhe uma estalada na cara.
As declarações do arguido foram tranquilas, tendo explicado que as discussões surgiam devido a ciúmes da ofendida e questões económicas.
Os demais factos dados como assentes resultaram do depoimento de EE, filho da ofendida, que presenciou os factos e que prestou um depoimento tranquilo e que só não podemos afirmar que foi absolutamente imparcial, porquanto ao lhe ser questionado se no decurso das discussões a mãe também insultava o arguido apressou-se a responder “Penso que não ouvi”, quando o normal seria afirmar que não ou que sim e, nesse caso, quais as expressões caso ainda se recordasse das mesmas.
Conjugadas as declarações do arguido quanto a esse aspecto com a forma como a testemunha respondeu, ficámos convictos que a ofendida dirigia tais nomes ao arguido, pelo que se deu tal facto como assente.
Mais, teve-se em atenção o registo criminal do arguido junto a fls. 383 e as declarações que prestou quando ouvido sobre as suas condições de vida.
*
No que concerne à matéria não provada e relativa ao filho da ofendida, o arguido negou tais factos e a testemunha EE não os confirmou, referindo apenas que uma vez o arguido dirigindo-se à mãe, mas referindo-se a si disse “agora vou ter que levar com este atrasado”, facto que ignorou.
*
No que concerne à matéria relativa à ofendida o tribunal deu os factos como não provados com base no in dubio pro reo.
O arguido negou os factos, a ofendida confirmou-os e as testemunhas ouvidas nada sabiam sobre os mesmos.
Na ausência de qualquer outro meio de prova as declarações da assistente, para que possam servir de base a uma condenação, tem que ser claras, lineares e escorreitas, o que no caso não ocorreu.
Pese embora a assistente tenha confirmado os factos, as suas declarações foram, por um lado, exageradas chorando copiosamente muito para além do que é espectável que uma vítima sinta ao recordar-se de factos traumáticos e, por outro lado, foram parcas em detalhes quanto às circunstâncias em os factos ocorreram e entrou em contradição com o depoimento do filho quanto ao episódio dado como assente em o arguido a empurrou para cima da cama. Neste episódio afirmou que o arguido após a ter empurrado para cima da cama colocou-se em cima dela e não saía, referindo que o filho assistiu, sendo certo que o filho não confirmou essa parte, tendo até referido que o arguido a atirou para cima da cama e depois saiu do quarto.
A assistente durante as suas declarações aparentou estar de mal com o mundo e sentir-se vitimizada, quando, sem que nada lhe fosse questionado, afirmou que foi pressionada pela assistente social para ir viver para ... e culpabiliza a advogada e o tribunal pela forma como as responsabilidades parentais do filho de ambos foi regulada.
As suas declarações foram frágeis e não tendo sido confirmadas por qualquer outro meio de prova, o tribunal ficou na dúvida irresolúvel quanto à ocorrência de tais factos e, na dúvida, aplicou-se o princípio do in dubio pro reo, como emanação constitucional do princípio da presunção da inocência.
É possível, ou até mesmo provável que seja o arguido o autor dos factos. Mas, como afirma Cavaleiro Ferreira “provável e provado são expressões antitéticas sob o ponto de vista jurídico” e a dúvida terá sempre de funcionar em sentido favorável ao arguido. O que se fez.”
4. Das pretensões recursivas
Por questões de simplificação lógica processual proceder-se-á à apreciação de ambos os recurso conjuntamente, até porque a eventual resposta positiva alguma dessas pretensões poderá ter como consequência necessária a improcedência de alguma ou algumas das pretensões do outro recorrente.
4.1. – Da alegada violação do princípio do contraditório em relação ao arguido, estruturado na indeterminação temporal dos factos dados como provados.
Seguindo de perto, com a douta vénia o Ac. STJ de 07-11-2007 (proc. n.º 07P3630, www.dgsi.pt) “O princípio do contraditório tem no moderno processo penal o sentido e o conteúdo das máximas audiatur et altera pars e nemo potest inauditu damnari (cfr. Figueiredo Dias, “Direito Processual Penal”, 1974, p. 149 e segs). «O princípio, que deve ter conteúdo e sentido autónomos, impõe que seja dada a oportunidade a todo o participante processual de ser ouvido e de expressar as suas razões antes de ser tomada qualquer decisão que o afecte, nomeadamente que seja dada ao acusado a efectiva possibilidade de contrariar e contestar as posições da acusação.
A construção da verdadeira autonomia substancial do princípio do contraditório impõe que seja concebido e integrado como princípio ou direito de audiência, dando «oportunidade a todo o participante processual de influir através da sua audição pelo tribunal no decurso do processo» (cfr. idem, pág. 153).
O princípio tem assento constitucional – artigo 32.º/5, da CRP:
“1. O processo Criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso.
(…)
5. O processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os atos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório.
(…)”
A densificação do princípio deve, igualmente, relevante contributo à jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, que tem considerado o contraditório um elemento integrante do princípio do processo equitativo, inscrito como direito fundamental no artigo 6.º, par. 1º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem: “Qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei, o qual decidirá, quer sobre a determinação dos seus direitos e obrigações de carácter civil, quer sobre o fundamento de qualquer acusação em matéria penal dirigida contra ela.”
Na construção convencional, o contraditório, colocado como integrante e central nos direitos do acusado (apreciação contraditória de uma acusação dirigida contra um indivíduo), tem sido interpretado como exigência de equidade, no sentido em que ao acusado deve ser proporcionada a possibilidade de expor a sua posição e de apresentar e produzir as provas em condições que lhe não coloquem dificuldades ou desvantagens em relação à acusação.
No que respeita especificamente à produção das provas, o princípio exige que toda a prova deva ser, por regra, produzida em audiência pública e segundo um procedimento adversarial; as excepções a esta regra não poderão, no entanto, afectar os direitos de defesa, exigindo o artigo 6º, § 3º, alínea b), da Convenção, que seja dada ao acusado uma efectiva possibilidade de confrontar e questionar directamente as testemunhas de acusação, quando estas prestem declarações em audiência ou em momento anterior do processo (cfr., v. g., entre muitas referências, o acórdão VISSIER c. Países Baixos, de 14 de Fevereiro de 2002).
“Os elementos de prova devem, pois, em princípio, ser produzidos perante o arguido em audiência pública, em vista de um debate contraditório. Todavia, este princípio, comportando excepções, aceita-as sob reserva da protecção dos direitos de defesa, que impõem que ao arguido seja concedida uma oportunidade adequada e suficiente para contraditar uma testemunha de acusação posteriormente ao depoimento; sendo apenas os direitos da defesa limitados de maneira incompatível com o respeito do princípio sempre que uma condenação se baseie, unicamente ou de maneira determinante, nas declarações de uma pessoa que o arguido não teve oportunidade de interrogar ou fazer interrogar, seja na fase anterior, seja durante a audiência. São estes os princípios elaborados pela jurisprudência de Tribunal Europeu dos Direitos do Homem a respeito do artigo 6º, § 1 e 2, alínea d), da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (cfr., v. g., acórdãos CRAXI c. Itália, de 5 de Dezembro de 2002, e S. N. c. Suécia, de 2 de Julho de 2002). Em certas circunstâncias, com efeito, pode ser necessário que as autoridades judiciárias recorram a declarações prestadas na fase do inquérito ou da instrução, nomeadamente quando a impossibilidade de reiterar as declarações é devida a factos objectivos, como sejam a ausência ou a morte, ou por circunstâncias específicas de vulnerabilidade da pessoa (crimes sexuais); se o arguido tiver oportunidade, adequada e suficiente, de contraditar tais declarações posteriormente, a sua utilização não afecta, apenas por si mesma o contraditório, cujo respeito não exige, em termos absolutos, o interrogatório directo em cross-examination.
O princípio do contraditório tem, assim, uma vocação instrumental da realização do direito de defesa e do princípio da igualdade de armas: numa perspectiva processual, significa que não pode ser tomada qualquer decisão que afecte o arguido sem que lhe seja dada a oportunidade para se pronunciar; no plano da igualdade de armas na administração das provas, significa que qualquer um dos sujeitos processuais interessados, nomeadamente o arguido, deve ter a possibilidade de convocar e interrogar as testemunhas nas mesmas condições que ao outros sujeitos processuais (a “parte” adversa). Ac. STJ, ibidem.
No que respeita especificamente à produção das provas, o princípio exige que toda a prova deva ser, por regra, produzida em audiência pública e segundo um procedimento adversarial: os elementos de prova devem, em princípio, ser produzidos perante o arguido em audiência pública, em vista de um debate contraditório. (Ac. STJ 07P3630 de 7/11/07).
O Tribunal na medida do possível deve estruturar um processo justo e equitativo de forma a que as partes não sejam surpreendidas com decisões para as quais as suas exposições, factuais e jurídicas, não foram tomadas em consideração.
“Ora, tendo como fundamento a própria estrutura acusatória do processo penal, o princípio do contraditório significa que ninguém pode ver tomada uma decisão que afecte a sua esfera jurídica sem para tanto lhe ter sido dada a possibilidade de ser ouvido (nemo potest inauditu damnari). Assim, “quando perspetivado da parte do arguido, este princípio é uma das garantias de defesa que o processo criminal lhe deve assegurar (artigo 32º, n.º 1, da CRP)”. “O princípio do contraditório encontra-se constitucionalmente reflectido no artigo 32º, n.º 5 da Lei Fundamental, representando, portanto, uma exigência axiológica estruturante do processo penal. A subordinação do processo penal português a este princípio implica, assim, que a acusação e a defesa se encontram em situação de igualdade de armas na possibilidade de apresentação de razões, de facto (incluindo matéria probatória) e de direito, no sentido das suas teses processuais, devendo os diversos contributos ser (necessariamente) tidos em conta na formulação da decisão judicial. Trata-se, afinal, de dar sentido ao princípio do contraditório em sentido amplo que resulta da Lei Fundamental. Deste modo, sempre que uma questão suscitada seja susceptível de afectar a posição de outro sujeito processual, existe por parte do último, uma legitimidade constitucional de intervir, uma vez que este princípio, tal como constitucionalmente consagrado (art. 32º), apenas pode ser interpretado como uma garantia fundamental dos cidadãos”. (Considerações a Propósito do Princípio do Contraditório no Processo Penal Português de Inês Fernandes Godinho).
Portanto, em obediência ao princípio do contraditório e salvo em casos de manifesta desnecessidade devidamente justificada, o juiz não deve proferir nenhuma decisão, ainda que interlocutória, sobre qualquer questão, processual ou substantiva, de facto ou de direito, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que previamente tenha sido conferida às partes, especialmente àquela contra quem é ela dirigida, a efetiva possibilidade de a discutir, contestar e valorar.
Cabe ao juiz observar e fazer cumprir o princípio do contraditório ao longo de todo o processo, não lhe sendo lícito conhecer de questões sem dar a oportunidade às partes de se pronunciarem sobre as mesmas.
Em termos muito sintéticos e práticos, o princípio do contraditório tem uma série de decorrências marcantes:
- Igualdade das partes:
O contraditório assegura que todas as partes envolvidas tenham igualdade de oportunidades para se manifestar, produzir provas e influenciar o juiz. Isso evita desequilíbrios e garante a imparcialidade do processo.
- Ampla defesa:
O direito à ampla defesa está intimamente ligado ao contraditório. Ele permite que as partes usem todos os meios legais e permitidos para defender seus interesses, incluindo o direito a um advogado, apresentação de provas e realização de argumentações.
- Produção de provas
O contraditório se estende à produção de provas, garantindo que todas as partes tenham acesso aos elementos probatórios apresentados e possam contestá-los, trazendo suas próprias evidências ou questionando a legitimidade das provas adversárias.
- Oportunidade de manifestação
Assegura-se que cada parte tenha o direito de se manifestar sobre todos os pontos do processo, incluindo alegações, contestações e recursos, antes de uma decisão ser proferida.
- Informação e transparência:
O princípio do contraditório promove a transparência do processo judicial, permitindo que todas as partes tenham acesso às informações relevantes para a tomada de decisão.
- Recursos:
Garante-se o direito de interpor recursos contra decisões judiciais, possibilitando que as partes insatisfeitas com o veredito contestem e apresentem argumentos adicionais em instâncias superiores.
4.1.1. Defende o recorrente que tendo o Tribunal a quo dado como provado (o que não foi colocado em crise pelo arguido) que:
“5. Em data não apurada, compreendida no decurso do ano de ..., arguido, vítima e o menor EE encontravam-se no domicílio comum.
6. Então, no contexto de discussão, na presença do menor EE, o arguido desferiu um empurrão na vítima, fazendo-a cair sobre uma cama, assim lhe causando dores.
12. Ao agir da forma descrita, actuou o arguido com o propósito alcançado de ofender o corpo de DD, o que fez no domicílio comum e na presença do menor EE, filho da vítima, apesar de saber que devia particular respeito e consideração à ofendida enquanto sua companheira e mãe de seu filho FF.
13. Agiu o arguido de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo ser a sua conduta proibida e punida por lei.”
Defende o arguido que o balizamento temporal das condutas que lhe são imputadas não se mostra feito com o mínimo de concretização exigido pelo efectivo exercício do direito de defesa; dizer-se que: em data não apurada, compreendida no decurso do ano de ..., o arguido desferiu um empurrão na vítima, fazendo-a cair sobre uma cama, assim lhe causando dores; não integra uma certeza que se quer objectiva sobre os factos imputados; e a manifesta ligeireza com que os factos vêm descritos, não se fazendo qualquer menção, por exemplo, à altura do ano, parte do dia, local da casa, etc… (Terá sido no primeiro, segundo, terceiro trimestre do ano de ...? Era dia, tarde, noite? Em que cama? De que cómodo da casa?).
Ora, nos termos do artigo 374.º/2, do CPP, a fundamentação da sentença consiste, nomeadamente, na enumeração dos factos provados e não provados.
Na seleção da matéria de facto, seja provada ou não provada, o tribunal deve arrimar-se a factos, entendidos estes no sentido naturalístico e histórico, como acontecimentos ou comportamentos devidamente individualizados ou localizados no espaço e no tempo, com um encadear mais ou menos lógico e cronológico, não se devendo aí incluir conceitos de direito, proposições normativas ou juízos de valor.
Caso contrário, as asserções que revistam tal natureza devem ser excluídas do acervo factual relevante.
Como vem sendo pacificamente entendido pela jurisprudência, as imputações conclusivas, genéricas, abrangentes e difusas, habitualmente com recurso a expressões vagas, imprecisas, nebulosas e obscuras, sem qualquer especificação das condutas em que se concretizou o mau trato físico e/ou psíquico, com menção do tempo e lugar em que tal aconteceu, por não serem passíveis de um efetivo contraditório e, portanto, do direito de defesa constitucionalmente consagrado e, devem ter-se como não escritas.
A propósito do crime de violência doméstica afirma-se no Ac. RP 08-09-2020 www.dgsi.pt: “I - As imputações genéricas sem indicação precisa do tempo, lugar e circunstancialismo em que ocorreram, inviabilizam um efetivo direito de defesa, pois impossibilitarem o cabal exercício do contraditório…”
Como salientou o Acórdão do STJ de 21.02.2007, processo n.o 06P4341, www.dgsi.pt), “o princípio ou cláusula geral estabelecido no n. 1 do art. 32.º da CRP significa, ao aludir a todas as garantias de defesa, que ao arguido, como sujeito processual, devem ser assegurados todos os direitos, mecanismos e instrumentos necessários e adequados para que possa, em plena liberdade da vontade, defender-se, designadamente para que possa contrariar a acusação ou a pronúncia, através de um julgamento imparcial, realizado com total independência do juiz, em procedimento leal e justo, sendo certo que a individualização e clareza dos factos objecto do processo são indispensáveis para que o arguido possa valida e eficazmente contraditar a acusação ou a pronúncia, única forma de se poder defender. Devendo, por tal, ter-se por não escritas as mencionadas imputações genéricas.”
Com efeito, para além do direito à tutela penal que assiste à vítima, o arguido tem o direito a conhecer os factos imputados, os concretos factos em que assenta a imputação do crime em apreço, para os rebater e, desse modo, se poder defender, exercendo o seu direito ao contraditório, constitucionalmente garantido.
Assim, não são factos suscetíveis de sustentar uma condenação penal as imputações genéricas, em que não se indica o lugar, nem o tempo, nem a motivação, nem o grau de participação, nem as circunstâncias relevantes, mas um conjunto fáctico não concretizado.
Uma imputação de factos tem de ser precisa e não genérica, concreta e não conclusiva, recortando com nitidez os factos que são relevantes para caracterizarem o comportamento ilícito, incluindo as circunstâncias de tempo e de lugar.

Destarte, como se refere no Ac. do TRPt, de 24-11-21 (proc. n.º 304/20.6PAVLG.P1, www.dgsi.pt) “…, relativamente ao momento e lugar da prática do crime não tem necessariamente de se reportar a uma concreta data e sitio. Como defende Plácido Conde Fernandes, in Jornadas Sobre a Revisão do Código Penal, Estudos, Revista do CEJ, 1º Semestre 2008, nº8, pág.305, o direito ao contraditório, à defesa e ao processo equitativo fica assegurado quando, na impossibilidade da datação de todas as condutas ofensivas, integradoras dos maus tratos, se fixarem apenas balizas temporais da sua verificação. Neste mesmo sentido refere o Ac. RC 25/02/2015, em www.dgsi.pt: “Se é certo que a acusação, além de outros elementos, deve, em princípio ser precisa relativamente a «quando» foi cometido o crime, tal não significa que essa indicação tenha necessariamente de se reportar a uma concreta data”.
Com efeito, tal como se diz no Ac. RE 3/06/14, em www.dgsi.pt: “A indicação das circunstâncias de tempo e de lugar não é, pois, obrigatória (tem de ser feita apenas se for possível), admitindo-se que, caso não seja possível mencionar o lugar e o tempo dos factos com inteira precisão, se refira, por exemplo, “em lugar desconhecido” ou “em local cuja localização exata não foi possível apurar”, e, quanto ao tempo, por exemplo, “em datas que, em concreto, não foi possível apurar”.
Consabidamente, resulta da experiência comum, haver comportamentos humanos, sancionados penalmente, em relação aos quais não é possível (ou humanamente exigível) a concretização, quanto ao dia e à hora, de todos os atos que os integram.
É o que sucede no caso de crimes como os analisados nos autos, em que ocorre uma imputação de um comportamento reiterado, durante um período de tempo longo, num local determinado, mas que é o habitual (casa de habitação), e por um motivo concretizado.

Como se referiu no acórdão do STJ 20/2/2019 (proc. 25/17.7GEEVR.S1 www.dgsi.pt) “… a falta de elementos mais circunstanciados respeitantes à localização temporal dos maus tratos tem que ser compreendida no contexto em que este tipo de crime ocorre, em dinâmica intrafamiliar, a maioria das vezes sem a presença de outras pessoas para além do ofensor e da ofendida (…). Acresce que, perante práticas reiteradas ao longo de dezenas de anos, os episódios em concreto diluem-se na fita do tempo, ganhando antes relevo a visão global da conduta do arguido, um pouco à semelhança de cada árvore que vê a sua individualidade ocultada na floresta. (…).
A questão central que se coloca a respeito deste tipo de crimes consiste em saber qual o grau de precisão e concretização factual, designadamente temporal e espacial, que se exige para a integração de tal ilícito, no qual a reiteração e a intensidade da ação do agente está no centro da sua definição e se vai prolongando ao longo de muitos anos e, por outro, em que medida é que tal se compatibiliza com o direito de defesa do arguido.
Como sobredito, relativamente a comportamentos reiterados que se vão prolongando ao longo dos anos não é exigível de ninguém, sequer a vítima, que fixe/memorize o dia e o lugar concretos em que ocorreu cada um dos comportamentos ofensivos do agente. Ainda assim, a descrição fáctica sempre terá que ter alguma concretização, de forma a que seja possível localizar as imputações no tempo e no espaço com suficiente precisão, ainda que por referência apenas ao ano, a algum momento festivo, a algum acontecimento, com mais ou menos significado.
A solução terá de ser encontrada caso a caso, o que passará por ponderar se a factualidade descrita tem a densidade suficiente para permitir uma defesa eficaz por parte do arguido, ao nível do exercício do seu direito ao contraditório.
Na falta de concretização da data ou janela temporal da ocorrência, cuja relevância varia em função do maior ou menor período em que os factos perduraram, essa garantia será assegurada a partir de quaisquer circunstâncias marcantes e individualizadoras que permitam, por si e/ou conjugadamente com outras, no contexto da narração dos factos, localizar e/ou identificar os concretos episódios designadamente pela excecional intensidade ou gravidade do(s) ato(s), a singularidade e/ou narrativa detalhada do seu modo de execução, o contexto dos atos parciais nomeadamente pelos termos espácio-temporais ou motivacionais.
Tendo presente as particularidades do crime em causa, quando praticado no modo reiterado (trato sucessivo), apenas deverão ser tidas como não escritas as descrições que não contenham qualquer referência que permita localizar e/ou identificar os concretos episódios e, bem assim, os períodos em que perduraram.
Ademais, relevando a concretização dos factos ao exercício do contraditório, não se vê como este possa ter-se como violado se o arguido, apesar da imprecisão temporal, confessa parcialmente um dado facto, identificando de forma clara e esclarecida o evento relatado na acusação, contextualizando-o, ainda que também ele não consiga situá-lo no tempo e lhe dê uma versão diferente da que lhe é imputada.
Como se referiu já, no caso concreto, o arguido confessou os três primeiros factos dados como provados, tendo ainda admitido “ter desferido na mesma (ofendida) um pequeno encontrão”. De tal circunstancialismo, ou seja, da admissão da factualidade nuclear dos factos provados desde logo cumpre concluir que o arguido entendeu, percebeu e situou a factualidade em causa, defendendo-se da mesma, como entendeu melhor.
No que se diz respeito aos factos vertidos sob os pontos 5., 6., 12.,13, não entendemos que os mesmos consubstanciam imputações vagas, genéricas e conclusivas, sem qualquer concretização temporal e, dessa forma, tornaram impossível o efetivo exercício do direito ao contraditório por parte do arguido.
Referiu-se
- o ano em que aconteceram os factos - ...;
- o local do respectivo acontecimento – domicílio comum;
- quem estava presente – o menor EE;
- a actuação concreta do arguido - desferiu um empurrão na vítima, fazendo-a cair sobre uma cama, assim lhe causando dores.
Acresce que a extensão temporal ou melhor, imprecisão ou indeterminação do período em que são narrados tais factos se reporta a um ano, não fazendo qualquer sentido a afirmação feita pelo arguido de que “E ainda que se diga que o arguido confessa tais factos a verdade é que podem até nem ser os mesmos que vêm descritos na acusação…”. Quer com isto dizer o arguido que pelo menos um empurrão existiu, podendo ter havido outros que não lhe foram imputados? A matéria de facto dada como provada, e nos termos em que o foi, não contém uma amplitude que impede o respeito pelos o princípio do contraditório, sendo que o arguido se defendeu da mesma e até confessou parte dela.
Improcede, assim, neste segmento, o recurso do arguido.
4.2. Da qualificação jurídica dos factos
4.2.1. Do crime de ofensa à integridade física simples
Insurge-se o recorrente relativamente à sua condenação pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, defendendo que sendo este um crime de resultado que é a ofensa do corpo ou da saúde de outra pessoa e que tem de ser imputado à conduta ou à omissão do agente, de acordo com as regras gerais de apuramento da causalidade, sendo que as lesões insignificantes estarão excluídas do referido tipo legal.
Mais argumenta que se alguém empurra outrem sem sequer se mencionar onde colocou as mãos; sem mencionar onde foram sentidas as dores, pois que não é mencionada qualquer zona de impacto e essa pessoa cai ou desequilibra-se para cima de uma cama, a conclusão não poderá ser outra, que não, a que tal empurrão é insignificante do ponto de vista da afetação da integridade física, enquanto bem jurídico aqui tutelado.
Adianta ainda que se quisesse infligir qualquer dor ou mau estar físico na assistente – agora referindo-nos à imputação da conduta a título de dolo – decerto que não empurrava ou dava um encontrão nesta com vista à mesma vir a embater numa superfície mole, um colchão.
De harmonia com o estatuído no artigo 143.º/1 do CP, “Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.”
A ofensa à integridade física é um crime comum, de resultado, de dano e de execução livre e tutela o bem jurídico integridade física – que compreende a integridade corporal e a saúde física – e tem como elementos constitutivos do respectivo tipo (artigo 143.º/1 do CP):
- Que o agente ofenda o corpo ou a saúde de outra pessoa - tipo objectivo;
- O dolo, o conhecimento e vontade de praticar o facto, com consciência da sua censurabilidade, em qualquer uma das modalidades previstas no artigo 14.º, do CP – tipo subjectivo.
O bem jurídico protegido por este crime é a integridade física da pessoa humana, ficando o seu elemento objectivo preenchido com a verificação de qualquer ofensa no corpo ou na saúde de outra pessoa, independentemente da dor, sofrimento causados ou incapacidade para o trabalho causados.
Ofensa no corpo é todo o mau trato através do qual a vítima é prejudicada no seu bem-estar físico de uma forma não insignificante. Ofensa na saúde traduz-se em qualquer intervenção que ponha em causa o normal funcionamento das funções corporais da vítima. Muitas vezes, haverá coincidência entre estas duas formas de realização do tipo, mas nem sempre assim sucede.
O referido tipo legal integra um crime material e de dano, passando a respectiva consumação pela produção de um determinado resultado, que é a efectiva lesão do corpo ou da saúde de outrem, e fazendo-se a imputação objectiva deste resultado à conduta activa ou omissiva do agente de acordo com as regras gerais do artigo 10.º do C.P.
A lesão tem que revestir alguma expressão ou significado, devendo o dano causado pelo agente ser juridicamente considerável. A gravidade do dano deverá ser apreciada de acordo com critérios objectivos, como a duração e intensidade da ofensa ao bem jurídico e necessidade de tutela penal, não se devendo perder de vista factores individuais, relacionados com a vítima. É um crime de forma livre, já que o delito pode ser alcançado por qualquer meio.
Por outro lado, reconduzindo-se o crime em análise à figura dos delitos de realização instantânea, o seu preenchimento depende apenas da simples verificação do resultado descrito, pouco importando que este perdure para além da actividade ou omissão causal – cf. Nélson Hungria, Comentário ao Código Penal Brasileiro, p. 323 e segs.
Sob o âmbito incriminador da referida norma cairão, pois, quaisquer ofensas no corpo ou na saúde de outra pessoa, independentemente da dor ou sofrimento causados, ou de uma eventual incapacidade para o trabalho, sendo igualmente irrelevantes os meios empregues pelo agressor e a duração da agressão.
Entrando na análise do tipo subjectivo de ilícito, o crime previsto no citado artigo 143.º/1 exige a actuação com dolo, em qualquer das suas modalidades (cfr. artigo 14.º), referindo-se o dolo de ofensas à integridade física simples ao conhecimento e vontade de produção de ofensas no corpo ou na saúde do ofendido. A este respeito, cabe ainda referir que a motivação do agente é, nesta sede, irrelevante, podendo ser tida em conta apenas para efeitos de determinação da medida da pena.
Seguindo de perto o Ac. de 06-07-2023 desta Relação (proc. 492/21.4PAMTJ.L1-9, www.dgsi.pt), pela clareza e exemplaridade de exposição, “(…) integra uma ofensa no corpo da vítima todo o mau trato através do qual o ofendido é prejudicado no seu bem-estar físico de forma não insignificante.
As lesões insignificantes estarão excluídas do tipo penal, tendo em conta que os tipos penais não são neutros mas antes exprimem já, e de uma forma global, um sentido social de desvalor (Figueiredo Dias, Direito Penal, 2004, pág. 277).
A integridade física constitui um direito de personalidade constitucionalmente protegido.
Assim, o art.º 25º/1 da Constituição da República Portuguesa dispõe que: A integridade moral e física das pessoas é inviolável.
Tal direito encontra-se igualmente tutelado na Carta dos Direitos Fundamentais da UE, cujo art.º 3º preceitua:
Direito à integridade do ser humano
1. Todas as pessoas têm direito ao respeito pela sua integridade física e mental.
2. (…)
O direito à integridade física é o direito à intangibilidade do corpo humano, que é intocável, não podendo ser atingido, afectado, intervencionado ou invadido por qualquer forma sem o consentimento do seu titular, independentemente de serem ou não causadas lesões ou dor.
O direito à integridade física abrange, assim, o direito a não ser tocado no seu corpo.
Porém, ainda que ilícitos, nem todos os actos invasivos da integridade física de outrem enquadrarão o tipo legal de crime ora em análise, exigindo-se ao funcionamento da tutela jurídico-penal a significância do acto no que concerne ao seu resultado ofensivo. E essa significância terá de ser aferida em função do desvalor social e ético que o acto em concreto encerra, avaliado objectivamente, de harmonia com os padrões sociais comummente aceites, pois que, sendo a tutela penal restringida à protecção dos bens jurídicos fundamentais, qualquer conduta que atinja a integridade corporal de outrem só será enquadrável no tipo legal de crime de ofensa à integridade física quando seja ético-socialmente rejeitada, censurada e reprovada.”
De acordo com o que ficou provado, no contexto de uma discussão, na presença do menor EE, o arguido desferiu um empurrão na vítima, fazendo-a cair sobre uma cama, assim lhe causando dores.
Ao agir da forma descrita, actuou o arguido com o propósito alcançado de ofender o corpo de DD, o que fez no domicílio comum e na presença do menor EE, filho da vítima, apesar de saber que devia particular respeito e consideração à ofendida enquanto sua companheira e mãe de seu filho FF.
Agiu o arguido de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo ser a sua conduta proibida e punida por lei.
Será esta uma conduta insignificante? Ou, colocando a questão de outro modo, estaremos perante comportamento sem relevância social bastante para justificar materialmente a censura jurídico-penal? Cremos que a resposta é negativa e que a conduta em apreço merece tipicidade penal.
No léxico comum o verbo empurrar contém sempre a acção forte, vigorosa, dirigida à deslocação de uma pessoa ou objecto – Cf. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Logo, na representação e valorização colectiva, e quando assume a natureza de exercício de vis physica contra outrem constitui uma forma de violência. Violência essa que, sem perder tal caracterização, pode assumir muitas e diversas graduações, algumas em que a discussão sobre a tipicidade encontra relevo.
Na verdade, as situações da vida nos nossos dias colocam-nos muitas vezes em situações de proximidade corporal que proporcionam e de certa forma vulgarizam variados contactos físicos pelo que cobrir com a força repressiva penal uma total ausência de impacto físico noutra pessoa seria manifestamente excessivo. Como se refere no Ac. do TC de 21-01-2009 (proc. n.º 525/06.4GCLRA.C1., www.dgsi.pt) “Exemplificando a partir de uma imagem impressiva do quotidiano pendular urbano, como acontece com o transporte colectivo em hora de ponta, certamente que a conduta do passageiro que exerce alguma – pouca - força sobre os demais utentes do metropolitano em busca da criação de um espaço para poder entrar, obriga outrem a sofrer no seu corpo acção indesejada e não consentida. Mas, cremos seguro afirmar que a censura comunitária desse acto não ultrapassa a do mero incómodo e exige ético-socialmente o afastamento da censura jurídico-penal (Independentemente da afirmação de censura moral, plano de que não cuidamos.)”
Acontece que, no caso dos autos, a vítima da conduta do arguido não se limitou a sofrer o empurrão: em virtude do mesmo, caiu sobre uma cama, e sofreu dores, tudo em resultado da conduta do arguido e do emprego por este de força física importante. Ora, independentemente de não ser elemento exigido pelo tipo (sendo irrelevante, portanto, a parte do corpo em que sentiu essas dores), esse resultado da conduta não pode ser ignorado neste plano de análise, pelo suplemento de afastamento relativamente ao dever ser colectivamente exigido que aduz à conduta.
“Sendo a dor um fenómeno complexo e que pode ter múltiplas origens, certo é que a sua origem no caso em apreço encontra-se claramente associada a reacção bio-fisiológica causada por uma agressão, ao mesmo tempo lesiva da integridade física – pois os tecidos da zona, qualquer que tenha sido) onde foi exercida a força são mecanicamente afectados – e da saúde – pois desencadeou no organismo uma reacção biopsicológica penalizadora, i.e. uma alteração funcional do organismo e também do bem-estar psicológico da vítima (cf. Paula Faria, Comentário Conimbricense, Tomo I, Coimbra Ed., 1999, pág. 206, §11)” – cf. Ac. RC acima citado.
Face a tal factualidade, é inequívoco que o acto perpetrado pelo arguido ofendeu o corpo da ofendida, a molestou fisicamente, exercendo sobre esta um acto de violência, ainda que não se tenha apurado que lhe tenha causado quaisquer lesões ou dor, sendo completamente irrelevante o argumentado pelo arguido de que a ofendida, por via do seu empurrão ou encontrão veio a embater numa superfície mole, um colchão. Na verdade o que se provou é que por via do empurrão a ofendida caiu numa cama (até se podendo presumir que a mesma teria colchão mas, ao invés do que pretende o arguido não se podendo estender essa presunção à circunstância de nenhuma dor ter sido causada à ofendida. Depois, em parte alguma da matéria dada como provada consta que o arguido “escolheu” o local para onde devia empurrara ofendida. Ou seja, face ao que vem provado, a circunstância de a ofendida ter caído numa cama foi puramente fortuita e sem qualquer relação de causalidade com a intencionalidade do arguido.
Analisada à luz da adequação social, tal conduta, precisamente pela violência que encerra, é manifestamente reprovada do ponto de vista ético-social, atingindo o bem jurídico-penal em causa (a integridade física da ofendida) de forma significante, pois que não é, de todo, destituída de relevância, antes sendo intolerável e rejeitada, porquanto violadora do mínimo ético imprescindível à vida em sociedade, com ressonância social e, por isso, exigindo a intervenção jurídico-penal na sua função tutelar do bem jurídico fundamental violado, na sua vertente preventiva e reintegradora.
Conclui-se, assim, não assistir razão ao recorrente, improcedendo, também neste segmento o seu recurso.
*
4.2.2. Do crime de violência doméstica.
Insurge-se a recorrente DD relativamente à não condenação do arguido pela prática de um crime de violência doméstica sobre a sua pessoa, crime p.p. no artigo 152.º/1, als. b) e c) e n.ºs 2, al. a), 4 e 5 do Código Penal.
Nos termos da referida disposição legal:
“1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade, ofensas sexuais ou impedir o acesso ou fruição aos recursos económicos e patrimoniais próprios ou comuns:
(…)
b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação;
c) A progenitor de descendente comum em 1.º grau;
(…)
é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
2 - No caso previsto no número anterior, se o agente:
a) Praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima (…) é punido com pena de prisão de dois a cinco anos.
(…)
4 - Nos casos previstos nos números anteriores, incluindo aqueles em que couber pena mais grave por força de outra disposição legal, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica.
5 - A pena acessória de proibição de contacto com a vítima deve incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância.”
Como se refere no Ac. Supremo Tribunal de Justiça de 12-03-2009 (Proc. n.º 09P0236, www.dgsi.pt), face à redacção dada à norma referenciada pela Lei 59/2007, de 4 de Setembro, aos normativos em causa, o referido crime de violência doméstica, pode ser cometido mesmo que não haja reiteração de condutas, embora só em situações excepcionais o comportamento violento único, pela gravidade intrínseca do mesmo, preencherá o tipo de ilícito - Cfr. Maria Elisabete Ferreira, Da Intervenção do Estado na Questão da Violência Conjugal em Portugal, Almedina, 2005, pág. 106/107 e Ac. STJ de 247/4/2006.
Nesta incriminação protege-se a integridade física e psíquica, a liberdade pessoal, a liberdade e auto-determinação sexual e até a honra, sendo o crime de violência doméstica um crime de dano (quanto ao bem jurídico) e de resultado (quanto ao objecto da acção).
Ou seja, com a incriminação em referência, protege-se a dignidade humana, tutelando, não só, a integridade física da pessoa individual, mas também a integridade psíquica, protegendo a saúde do agente passivo, tomada no seu sentido mais amplo de ambiente propício a um salutar e digno modo de vida, em particular a saúde, como bem jurídico complexo, aqui se compreendendo o bem-estar físico, psíquico e mental e que pode ser afectado por toda a multiplicidade de comportamentos que atinjam a dignidade pessoal, penalizando-se a violência na família – STJ, 06-04-06, proc. n.º 06P1167 - que suscita maiores preocupações, não tendo sequer escapado à atenção do Conselho da Europa, que cedo a caracterizou como “acto ou omissão cometido no âmbito da família por um dos seus membros, que constitua atentado à vida, à integridade física ou psíquica ou à liberdade de um outro membro da mesma família ou que comprometa gravemente o desenvolvimento da sua personalidade” – Projecto de Recomendação e de exposição de Motivos, do Comité Restrito de Peritos Sobre a Violência na Sociedade Moderna – 33.ª Sessão Plenária do Comité Director para os Problemas Criminais, BMJ 335-5.
A necessidade de criminalização das condutas previstas neste preceito adveio da progressiva consciencialização acerca da gravidade de um fenómeno social de proporções tanto mais alarmantes quanto encapotadas e altamente lesivo, com repercussões quer a nível da formação individual, quer a nível da integridade do próprio tecido social. Fenómeno esse do qual são vítimas pessoas particularmente vulneráveis e indefesas em razão dos vínculos, nomeadamente de natureza familiar ou análoga, que as ligam às pessoas dos seus agressores e em resultado dos quais se estabelecem entre estes e aquelas relações de subordinação ou de domínio de facto, que as colocam em situação de dependência económica e/ou emocional. Pretendeu-se, pois, contrariar um sentimento de impunidade - encorajado pelo facto de tais condutas serem habitualmente praticadas em círculos privados ou muito restritos, longe dos olhares alheios, nem sempre denunciadas e ainda mais raramente reclamada a sua punição até às últimas consequências, seja por medo de represálias, vergonha de expor publicamente a situação ou falta de capacidade para o fazer (circunstâncias, aliás, propiciadoras da sua proliferação) -, bem como travar a espiral de violência em que se traduzem e os demais efeitos nocivos que desencadeiam, reprimindo a sua prática.
Como refere Paulo Pinto de Albuquerque (Comentário do Código Penal, 404) o crime em análise é um crime específico impróprio, cuja ilicitude é agravada em virtude da relação familiar, parental ou de dependência entre o agente e a vítima.
O tipo objectivo inclui as condutas de violência física, psicológica, verbal e sexual, que não sejam puníveis com pena mais grave por força de outra disposição legal, salientando-se que o novo elenco legal de maus tratos é meramente exemplificativo, concretizando tal conceito, mas não o esgotando.
O conceito de “maus tratos físicos” engloba qualquer agressão ou acto de acometimento físico que provoque lesão ou doença (hematomas, feridas, fraturas, queimaduras, etc.), susceptíveis de integração dos crimes de ofensa à integridade física simples; os “maus tratos psíquicos” ou o que é o mesmo, qualquer acto ou conduta intencionais que produzam desvalorização, sofrimento ou agressão psicológica (insultos, vexações, crueldade mental, etc.), o que situa a vítima num clima de angústia que destrói o seu equilíbrio emocional, abrangendo situação enquadráveis em crimes de ameaça simples ou agravada, coacção simples, difamação ou injúria simples ou qualificadas e toda e qualquer perturbação psíquica, tenha a mesma, ou não, reflexos físicos; as “privações de liberdade” incluem o sequestro simples mas também qualquer situação de controlo injustificado e excessivo da vítima, que a prive da liberdade de movimentos ou locomoção e nas “ofensas sexuais” inclui-se qualquer contacto sexual realizado a partir de uma posição de poder ou autoridade relativamente à vítima, traduzindo-se em situações de coação sexual, violação nos termos do artigo 164.º/2, importunação sexual, abuso sexual de menores dependentes, nos termos do estatuído no artigo 172.º/2 e 3.
Na violência psíquica o terror psíquico persiste sob a forma de ameaça, espionagem e de interrogatórios. Este tipo de violência baseia-se no abuso emocional, com o denominador comum da vexação, exigências de obediência por parte do agressor, desprezo, burlas verbais (insultos e gestos), intimidação, humilhações em público, manipulações, abandono físico e económico, sexualidade vexatória, etc., assim se obtendo “um domínio, uma subjugação, sobre a pessoa da vítima, sobre a sua vida ou (e) sobre a sua honra ou (e) sobre a sua liberdade e que a reconduz a uma vivência de medo, de tensão, de subjugação” – cf. Ac. TRG de 02-11-2015, proc. n.º 77/14.1TAACC.G1.
Por violência física há-de entender-se toda e qualquer manifestação agressiva ou de maltrato (golpes, contusões, empurrões bruscos, bofetadas, pontapés, etc.) qualquer que seja a sua gravidade. Deverá tratar-se sempre de um ataque, ainda que dissimulado, e independentemente das marcas os sinais físicos que esse ataque possa deixar. A mesma similitude é exigida para a violência física, ou seja, toda a violência exercida sobre a vivência psicológica de uma pessoa e que de maneira mais ou menos relevante, incida sobre a psique do afectado, colocando directamente em perigo a sua saúde mental.
Fazendo uma síntese poder-se-á definir a violência doméstica como como toda a acção, conduta ou comportamento agressivo que, através de distintas formas de expressão, produzem dano ou menoscabam determinados bens jurídicos das pessoas agredidas (vida, integridade física ou psíquica, liberdade, honra, integridade moral, etc.).
Este crime “persiste enquanto durarem os actos lesivos da saúde física (que podem ser simples ofensas corporais) e psíquica e mental da vítima (humilhando-a, por exemplo) e a relação de convivência que faz dele um crime de vinculação pessoal persistente” – J. M. Tamarit Sumalla, Comentarios a la Parte Especial del Derecho Penal, 1996, p. 100, cit. no Ac. TRG de 31-05-04, proc. n.º 719/04-1.
No que respeita ao elemento subjectivo, trata-se de um crime doloso, podendo o dolo revestir qualquer das modalidades previstas no artigo 14.º do Código Penal, resultando claro - afastada que foi a exigência de que o agente agisse por “malvadez ou egoísmo” que constava da redacção do artigo 153.º do Código Penal anterior às alterações introduzidas pelo DL nº 48/95 - que basta o dolo genérico.
Não obstante, como bem se refere no Ac. da RP de 09-05-2018 (proc. n.º 40/17, www.jusnet.pt), “No crime de violência doméstica o bem jurídico tutelado é plural e complexo, visando, essencialmente, a defesa da integridade pessoal e a proteção da dignidade humana no âmbito de uma particular relação interpessoal. Assim, o crime de violência doméstica não pode ser cometido em reciprocidade, quando estamos perante atos agressivos recíprocos, na mesma ocasião e com igual ou idêntica gravidade, pois o bem jurídico tutelado pela norma incriminatória não é afetado.”
A questão da reciprocidade do crime de violência doméstica só não é líquida, como não tem sido vastamente debatida. Cremos que (e continuando a citar o Ac. RP de 09-05-2018 acima mencionado) “quando estamos perante actos agressivos recíprocos na mesma ocasião e com igual ou idêntica gravidade, não por serem recíprocos mas por o fundamento do ilícito penal (o bem jurídico) protegido com tal crime não estar a ser afectado, por em um confronto com o outro, com igual gravidade, não se poder considerar estar a ser afectada a dignidade humana de um perante o outro, ambos capazes e portadores da mesma (in)dignidade, que por essa via não vemos que o direito deva nesse confronto proteger qualquer dignidade, não se manifestando por esse comportamento uma qualquer subjugação ou sujeição ou submissão eivada de medo resultado da aflição de um mal.”
É que quando tal acontece, não é atingido o bem jurídico lesado, não tendo ocorrido uma relação de domínio ou subjugação e submissão, diminuindo a dignidade da pessoa humana, de um agente sobre o outro. Como referimos já o bem jurídico tutelado pelo art. 152.º do CP, é plural e complexo, visando, essencialmente, a defesa da integridade pessoal (física e psíquica) e a proteção da dignidade humana no âmbito de uma particular relação interpessoal, sendo que este tipo legal de crime previne e pune condutas perpetradas por quem afirme e atue, dos mais diversos modos, um domínio ou uma subjugação sobre a pessoa da vítima, sobre a sua vida ou (e) sobre a sua honra ou (e) sobre a sua liberdade e a reconduz a uma vivência de medo, de tensão e de subjugação.
Resultando dos factos, agressões recíprocas (e reportamo-nos a todo o tipo de agressões acima identificadas), com igual intensidade ofensiva, sem que dos factos resulte qualquer relação de domínio, subjugação, manipulação ou menorização de um dos agentes, antes caracterizando uma dinâmica relacional mais ou menos aceite (e em que , normalmente, as discussões são muitíssimo frequentes), então cremos não poder concluir-se pelo preenchimento do crime de violência doméstica, antes devendo falar-se de um “modo de vida” disfuncional, muito pouco saudável e totalmente tóxico (oposto do pretendido ambiente propício a um salutar e digno modo de vida" referido no Ac. RLx de 05/07/2016, www.dgsi.pt) tudo isto sem prejuízo da verificação de outros ilícitos criminais.
Aqui chegados cumpre analisar o caso em apreço, tendo ficado provado que o arguido e a vítima DD coabitaram, como se casados um com o outro fossem, durante cerca de quatro anos, relacionamento amoroso e coabitação cessados em ... de ... de 2022, sendo progenitores comuns de FF, nascido em ... de ... de 2020.
Ao longo de todo o período de coabitação, em datas não apuradas, no domicílio comum, no contexto de discussões, e uma vez na presença do menor EE, o arguido apodou a vítima DD de “ESTÚPIDA, MAQUIAVÉLICA” “Psicopata” e “Vai para o caralho”, ao que esta retorquia apodando o arguido de “Cabrão de merda, filho da puta, não vales nada como homem, és um merdas”.
Em data não apurada, compreendida no decurso do ano de ..., arguido, vítima e o menor EE encontravam-se no domicílio comum. Então, no contexto de discussão, na presença do menor EE, o arguido desferiu um empurrão na vítima, fazendo-a cair sobre uma cama, assim lhe causando dores.
Em data não apurada, compreendida no decurso do ano de ..., no contexto de discussão, o arguido levantou a mão na direção da vítima DD, assim lhe significando que se aprestava a lhe bater e, com vista a repelir o arguido, a vítima desferiu um estalo que atingiu o arguido na cara.
Então, com foros de seriedade, o arguido declarou à vítima “SE ME VOLTAS A DAR UM ESTALO, LEVAS UM MURRO NO FOCINHO”, expressões de que a mesma ficou bem ciente.
Ao proferir as expressões supra mencionadas agiu o arguido com o propósito alcançado de ofender a honra e consideração da ofendida.
Ao agir da forma descrita, actuou o arguido com o propósito alcançado de ofender o corpo de DD, o que fez no domicílio comum e na presença do menor EE, filho da vítima, apesar de saber que devia particular respeito e consideração à ofendida enquanto sua companheira e mãe de seu filho FF, tendo actuado de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo ser a sua conduta proibida e punida por lei.
Perante tal factualidade, concordamos com o juízo feito em primeira instância no sentido de a mesma não plasmar a existência de maus tratos, físicos ou psíquicos, nem traduzem actos que revelam crueldade, desprezo, vingança, especial desejo de humilhar e fazer sofrer a vítima, susceptíveis de integração do crime de violência doméstica, sempre se salientando que para o preenchimento do tipo em causa não é suficiente qualquer ofensa à saúde física, psíquica, emocional ou moral da vítima.
O bem jurídico protegido pelo art. 152.º do Código Penal, repete-se, é, em síntese, a dignidade da pessoa humana, implica que a norma jurídica apenas preveja aquelas condutas efectivamente maltratantes, que, pela sua gravidade, conduzam à degradação daquela dignidade (pois que se assim não fosse qualquer ofensa cometida entre cônjuges ou ex-cônjuges seria automaticamente erigida à categoria de violência doméstica), o que, manifestamente, não acontece relativamente à factualidade descrita na acusação.
Na verdade, da factualidade dada como assente, apenas pode extrair-se, com segurança, que o relacionamento entre o arguido e a assistente se pautou por instabilidade constante, insultos mútuos, e agressões de parte a parte, disfuncionalidade e conflitualidade, com frequentes discussões, não integrando a mesma, contudo a prática, pelo arguido, do crime de violência doméstica que lhe vem imputado, não tendo ficado clara e inequívoca qualquer relação de domínio ou de ascendência do arguido para com a ofendida ou de dependência emocional, ou submissão desta para com aquele, não representando a conduta do arguido um aviltamento da dignidade humana e não sendo a mesma suscpetível de provocar danos na saúde física ou psíquica da ofendida.
E nem se diga, como faz a recorrente, que é contraditório que se haja considerado que as condutas do arguido dadas como provadas assumam a gravidade pressuposta no tipo legal de violência doméstica com o facto de, na análise crítica da matéria de facto, se ter considerado que a ofendida se apresentava “de mal com o mundo”, que chorava copiosamente, “muito para além do expectável do que uma vítima sinta ao recordar-se de factos traumáticos”.
Como nos parece ostensivo e patente, cada pessoa reage de forma diferente à mesma situação. Uma alegada vítima de violência doméstica pode relatar os factos de forma serena e sem chorar sem que desse comportamento se possa extrair, sem mais, se está a ser ou não fiel à verdade. E o contrário, naturalmente, também pode acontecer: chorar copiosamente durante o julgamento ao relatar os factos não significa, necessariamente, que estes ocorreram (ou não) e, muito menos, que tais factos tenham afectado a saúde e o bem estar da vítima.
Em face do que se expôs cremos nada haver a censurar à decisão recorrida, improcedendo, neste segmento, o recurso da recorrente.
4.2.3. Do crime de ofensa à integridade física qualificada.
Defende a recorrente ser a apurada conduta do arguido susceptível de integrar a prática de um crime de ofensa á integridade física qualificada, p. e p. pelo art. 145º, n.º 1, al. a) e n.º 2, ex vi dos art. 143º, n.º 1 e art. 132º, n.º2, al. b) todos do Código Penal, atendo o facto de ter sido praticada contra a companheira, ou simples, p. e p. pelo art. 143º, n.º 1 do Código Penal.
Nos termos do estatuído no art. 145.º/1, a) e 2 do Código Penal, se as ofensas à integridade física forem produzidas em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente, este é punido, com pena de prisão até quatro anos no caso do artigo 143.º, sendo susceptíveis de revelar a especial censurabilidade ou perversidade do agente, entre outras, as circunstâncias previstas no n.º 2 do artigo 132.º.
O crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto no artigo 145.º do Código Penal, é uma forma agravada, em que a qualificação decorre da verificação de um tipo de culpa agravado, definido pela orientação de um critério generalizador enunciado no n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal, moldado pelos vários exemplos-padrão constantes das diversas alíneas do n.º 2 desta mesma disposição.
O crime apenas pode ser qualificado e integrar o tipo criminal do artigo 145.º do Código Penal, se, como se referiu, a atitude do agente manifestada no facto e medida pela valoração inscrita nas circunstâncias enunciadas na lei através dos exemplos-padrão, se apresentar especialmente censurável ou a revelar e a expor externamente especial perversidade.
Para se afirmar a existência de especial censurabilidade ou perversidade no comportamento do agente, impõe-se a análise das circunstâncias concretas que rodearam a prática do facto e a conclusão de que elas são tais que exprimem inequívoca e concretamente uma especial perversidade do agente ou que são merecedoras de um severo juízo de censura.
A questão que se coloca é, pois, é a de saber se a descrita conduta do arguido reveste características tais que a tornem especialmente censurável ou perversa, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 132.º/2 e, por consequência, do artigo 145.º/1, al. a) e n.º 2, também do C.P., isto, é se o crime de ofensa à integridade física praticado pelo arguido deve ser qualificado, nos termos preconizados no recurso.
São susceptíveis de revelar a especial censurabilidade ou perversidade do agente, entre outras, as circunstâncias previstas no citado artigo 132.º/2, nas quais se inclui a de o agente praticar o facto pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges, aludida na al. b) do preceito.
O crime de ofensa à integridade física qualificada está construído, à semelhança do homicídio qualificado para o qual é feita a remissão, segundo a técnica dos exemplos-padrão: no n.º 1 está configurada a tipicidade da qualificativa e no n.º 2 faz-se uma indicação meramente exemplificativa de alguns índices que poderão revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que o tipo se refere.
É o que resulta do disposto no artigo 145.º/1 e da remissão que no n.º 2 do mesmo preceito se faz para o artigo 132.º/2. Cumpre salientar, antes de mais, na esteira de Maia Gonçalves (Código Penal Português Anotado e Comentado - 14ª Ed. - 2001 - pp. 444 e ss), que a enumeração das circunstâncias susceptíveis de revelar a especial censurabilidade ou perversidade feita no artigo 132.º não é taxativa, mas exemplificativa, e que as enunciadas no n.º 2 não são elementos do tipo, mas antes elementos da culpa. O que significa que não são de funcionamento automático, bem podendo dar-se o caso de se verificar qualquer das circunstâncias referidas nas várias alíneas, e nem por isso se poder concluir pela especial censurabilidade ou perversidade do agente.
A propósito desta técnica legislativa, salientou Eduardo Correia, na 2.ª sessão da CRCP (Actas das Sessões da Comissão Revisora do Código Penal (Parte Especial), ed. da AAFDL., Lisboa, 1979, p. 21), que “por um lado as circunstâncias enunciadas no n.º 2 não são elementos do tipo antes elementos da culpa. Portanto não são de funcionamento automático: pode verificar-se qualquer das circunstâncias referidas nas várias alíneas e nem por isso se poder concluir pela especial censurabilidade ou perversidade do agente. Por outro lado, como a enumeração é meramente exemplificativa, outras circunstâncias não escritas são susceptíveis de revelar a censurabilidade e a perversidade pressupostas no n.º 1.”
Por especialmente censuráveis deve entender-se as circunstâncias de tal modo graves que reflectem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normativa, normal de acordo com os valores; e por especial perversidade tem-se em vista uma atitude profundamente rejeitável, no sentido de ter sido determinada e constituir indício de motivos e sentimentos que repugnam a uma sociedade sadia, o que pode reconduzir-se à atitude má, de crasso e primitivo egoísmo do agente – Cf. Teresa Serra, Homicídio qualificado, Tipo de Culpa e Medida da Pena, Almedina, 1990, pág. 63 e 64
Ou, no dizer de Figueiredo Dias, a especial censurabilidade refere-se a condutas em que o especial juízo de culpa se fundamenta na refracção, ao nível da atitude do agente, de formas de realização do facto especialmente desvaliosas; e a especial perversidade refere-se àquelas em que o especial juízo de culpa se fundamenta directamente na documentação no facto de qualidades da personalidade do agente especialmente desvaliosas – Cf. Comentário Conimbricense do Código Penal, 2.ª ed., I, p. 51.
Tais elementos são referentes ao tipo de culpa do agente, o que determina que “(...) a [sua] verificação (...) não leva, só por si, ao agravamento da censura penal, sendo indispensável ainda apurar, no caso concreto, se o índice em causa tem a virtualidade de revelar força que justifique tal agravamento (...)” – Cf. Leal-Henriques e Simas Santos, Código Penal, 2.º vol., p. 39.
Entendeu o legislador que os laços familiares básicos com a vítima, a existência de uma relação de facto análoga à do casamento, ou a existência de um vínculo afectivo ou o facto da vítima ser progenitora de filho em comum com o arguido devem constituir para o agente factores inibitórios acrescidos, cujo vencimento supõe uma especial censurabilidade. E isto mesmo se tiverem já cessado as relações subjacentes a tais laços, pois que estes continuam a impor-se ao respeito dos que naquelas intervieram - Cf. Victor de Sá Pereira e Alexandre Lafayette, Código Penal – Anotado e Comentado, p. 344).
No entanto, não prescinde a lei, para integração do tipo legal em análise, que a conduta do agente, em concreto, revele uma especial censurabilidade ou perversidade que justifique, pela referida relação, a maior severidade da punição devida.
E, subjectivamente, o juízo de especial censurabilidade só é sustentável se o agente actuar com consciência e vontade de que a sua conduta lesa o corpo ou a saúde de uma pessoa nessa condição de especial vulnerabilidade, ou seja, se o elemento subjectivo, o dolo, também abranger essa condição reveladora da especial censurabilidade ou perversidade.
No caso dos autos, conforme se logrou apurar, a agressão foi levada a cabo sobre DD, que coabitou com o arguido, como se fossem casados um com o outro, durante cerca de quatro anos, até ... de ... de 2022.
Mais se provou que o arguido e vítima são progenitores comuns de FF, nascido em ... de ... de 2020.
Em data não apurada, compreendida no decurso do ano de ..., arguido, vítima e o menor EE encontravam-se no domicílio comum.
Então, no contexto de discussão, na presença do menor EE, o arguido desferiu um empurrão na vítima, fazendo-a cair sobre uma cama, assim lhe causando dores.
Ao agir da forma descrita, actuou o arguido com o propósito alcançado de ofender o corpo de DD, o que fez no domicílio comum e na presença do menor EE, filho da vítima, apesar de saber que devia particular respeito e consideração à ofendida enquanto sua companheira e mãe de seu filho FF.
Agiu o arguido de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo ser a sua conduta proibida e punida por lei.
Ora, no caso dos autos, perscrutada a factualidade provada, constata-se que o arguido agiu num contexto sem qualquer especificidade suscetível de configurar os apontados conceitos de especial censurabilidade ou perversidade do agente.
Como se refere no Ac. desta Relação de 08-11-2022 (proc. n.º 987/17.4SDLSB.L1-5, www.dgsi.pt), perante tal factualidade, a relação mantida entre o arguido e a ofendida, sem mais, apenas poderá relevar, no momento oportuno, no plano das consequências jurídicas do crime, na ponderação que eventualmente se venha a fazer da determinação da sanção, “uma vez que se encontra desacompanhado de qualquer outro facto que nos permita concluir por um especial desvalor capaz de denotar uma especial censurabilidade e perversidade do agente.”
Como já acima se referiu, a conduta do arguido, empurrando a vítima, fazendo-a cair numa cama, tendo agido de forma deliberada, livre e consciente, sabendo ser a sua conduta proibida e punida por lei penal, configura uma conduta desvaliosa e preenche, sem dúvida, o tipo legal de crime de ofensa à integridade física.
Porém, tal ofensa à integridade física não é qualificada, pois, pese embora não se esqueça que sobre o arguido impende um especial dever de respeito para com a vítima, atentos os valores éticos inerentes a uma união conjugal/união análoga à dos cônjuges, do que, aliás, o arguido estava ciente, que, sem dúvida, demanda que se reveja na sua conduta um aspeto desvalioso da sua personalidade, tal facto, por si só, não é suficiente para qualificar o crime. Torna-se, portanto, necessário verificar se da conjugação dessa circunstância com a restante factualidade que envolve o ato, se retira a existência de uma especial censurabilidade ou perversidade do agente. E no caso dos autos, perante globalidade da matéria dada como provada, cremos que tal não ocorre.
Na verdade, analisada a factualidade provada entendemos que, apesar do desvalor de ação inerente ao facto de a vítima ser, na data, a companheira do arguido e tendo um filho em comum, o que justifica um elevado juízo de censura no âmbito do tipo do ilícito base, nada mais resulta que revele insensibilidade e desvende uma imagem global do facto agravada suscetível de sustentar um juízo de especial censurabilidade, por fundar um juízo de maior desvalor ético.
No caso dos autos, apesar de o arguido ter vencido as contra motivações éticas que radicam nos laços de uma relação análoga à dos cônjuges, e sobre ele impender um especial dever de respeito que indiciam um aspecto da sua personalidade mais desvaliosa, ficou provado que a agressão ocorreu na decorrência de uma discussão entre o arguido e a vítima; se tratou se uma agressão momentânea e sem outras consequências para além da dor por aquela sentida, naquele momento, na zona de impacto do empurrão.
Cremos que da totalidade da factualidade dada como provada não ressuma que o arguido teve uma atitude profundamente rejeitável, constituindo um indício de motivos e sentimentos absolutamente rejeitados pela sociedade, reconduzindo-se a uma atitude má e de profundo egoísmo, denotando qualidades desvaliosas da sua personalidade a demandar um especial acréscimo de censurabilidade e a configurar um aumento de potencial criminoso pela afronta aos motivos inibitórios do crime que as relações análogas às dos cônjuges devem supor.
Por outro lado, não deixa de relevar para esta conclusão a circunstância de a relação entre os recorrentes, tal como resulta da globalidade da matéria de facto dada como provada ser marcada por discussões com agressões verbais mútuas, denotando um afrouxamento, por ambos, dos especiais vínculos de afecto, respeito e união que caracterizam uma relação análoga à dos cônjuges.
Assim, entendemos, tal com o fez a decisão recorrida, que o arguido não agiu de uma forma especialmente censurável, ou seja, que adoptou uma conduta ostensivamente contra legem, passível, assim, de uma maior censura jurídico-penal, sustentada pela prevalência, no seu íntimo querer, de uma forma de realização do facto especialmente desvaliosa, por visar atingir corporalmente uma pessoa para com a qual tinha especiais deveres.
Assim sendo, também neste segmento improcede o recurso da assistente, ficando prejudicada a questão da não adequação da pena imposta ao arguido já que a recorrente faz derivar tal inadequação na circunstância de o arguido não ter sido condenado pela prática de um crime de violência doméstica, não tendo colocado em causa a pena concreta imposta pela prática de um crime de ofensas à integridade física simples.
Bem como fica prejudicada a averiguação da imposição, ao arguido, das pretendidas sanções acessórias e fixação de montante compensatório.
5. Em conclusão, nenhum reparo merece a decisão recorrida, sendo totalmente improcedente quer o recurso interposto pelo arguido, quer o interposto pela assistente.
III. Dispositivo
Nestes termos e com os fundamentos mencionados, acordam as juízas que compõem este tribunal
- em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido AA;
- em negar provimento ao recurso apresentado pela assistente DD,
Confirmando, na íntegra, a decisão recorrida.
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Taxa de justiça pelos recorrentes, que se fixa em 4 Ucs – artigos 513.º, 514.º e 515.º/1, b), todos do Código de Processo Penal e artigo 8.º/9 do Regulamento das Custas Processuais aprovado pelo Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26 de Fevereiro, por remissão para a tabela III ao mesmo anexa.
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Notifique.
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Lisboa, 25-01-2024
Elaborado e integralmente revisto pela relatora, nos termos do artigo 94.º/2 do CPP.
Assinado digitalmente pela Relatora e pelas Senhoras Juízas Desembargadoras Adjuntas.
Maria João Ferreira Lopes
Carla Carecho
Amélia Carolina Teixeira