Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3094/25.2T8CSC.L2-7
Relator: PAULO RAMOS DE FARIA
Descritores: ENTREGA JUDICIAL DE MENOR
AFASTAMENTO ILÍCITO
EXERCÍCIO DAS RESPONSABILIDADES PARENTAIS
INCUMPRIMENTO
RESPONSABILIDADE PELAS CUSTAS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/02/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: Sumário:
1. É irregular o afastamento do menor de idade (não emancipado) do seu lar, quando impede o efetivo exercício do poder-dever de guarda pela pessoa (ou instituição) a quem esteja legalmente confiado, colocando-o fora do alcance da custódia desta.
2. A circunstância de o autor do afastamento ilícito de uma criança estar obrigado pelo regime do exercício das responsabilidades parentais (como ocorre com os progenitores) não determina, por si só, a inaplicabilidade do processo especial de entrega judicial de criança (art. 49.º do RGPTC).
3. No caso referido no ponto anterior, também não está afastada a aplicabilidade do regime processual destinado ao conhecimento do incumprimento do regime do exercício das responsabilidades parentais (art. 41.º do RGPTC).
4. Tendo sido apropriadamente instaurado um processo especial de entrega judicial de criança, não está vedada ao tribunal a possibilidade de, na tutela do superior interesse daquela, determinar que os autos sigam a forma processual, também apropriada, aplicável ao conhecimento do incumprimento do regime do exercício das responsabilidades parentais.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

A. Relatório
A.A. Identificação das partes e indicação do objeto do litígio
AAA instaurou o presente processo especial de entrega judicial de criança, contra BBB, nos termos previstos no art. 49.º e segs. do Regime Geral do Processo Tutelar Cível (RGPTC) – aprovado pela Lei n.º 141/2015, de 8 de setembro –, pedindo a notificação da requerida “para proceder à entrega imediata” ao requerente da filha comum do casal, CCC (nascida em (...) 2014).
Para tanto, alegou que “foi fixado, por decisão já transitada em julgado, que a menor ficava a residir com o pai, (…) sendo as responsabilidades parentais exercidas em comum por ambos os progenitores”. Por acordo entre o requerente e a requerida, “a menor foi passar uma semana de férias com esta última, na sua residência, entre 25 de agosto e 31 de agosto de 2025”. Terminado este período, a criança não foi entregue ao requerente, recusando-se a requerida a assim proceder.
Liminarmente, o tribunal a quo indeferiu a petição inicial, concluindo nos seguintes termos:
 “Face ao exposto e por o pedido formulado pela requerente ser manifestamente improcedente, importa, por força do que dispõe o artigo 590, n.º 1, do Código de Processo Civil, conhecer do indeferimento liminar do requerimento inicial, o que, sendo de conhecimento oficioso, pode e deve decretar-se de imediato, de acordo com o disposto no citado art. 590.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi art. 33.º, n.º 1, do Regime Geral do Processo Tutelar Cível.
“Nesta conformidade, indefere-se liminarmente o requerimento inicial”.
Inconformado, o requerente apelou desta decisão, concluindo, no essencial:
“III. (…) [A não entrega da criança] consubstancia “retirada/subtração” da criança à responsabilidade de quem está legalmente confiada, preenchendo o pressuposto do artigo 49.º, n.º 1, do RGPTC; não se trata de um mero incumprimento de convívios, próprio do artigo 41.º. (…)
V. Ainda que se entendesse existir dúvida de subsunção, não era legítimo indeferir liminarmente: impunha-se a adoção de diligências mínimas e proporcionadas (audição do MP, eventual audição da menor e contraditório), sob pena de violação do princípio da adequação formal e da natureza tutelar e urgente do processo”.
O Ministério Público contra-alegou, pugnando pela manutenção de decisão do tribunal a quo recorrida.
A.B. Questões que ao tribunal cumpre solucionar
As questões de direito a tratar – em torno da propriedade da forma processual adotada – serão mais desenvolvidamente enunciadas no início do capítulo dedicado à análise dos factos e à aplicação da lei.
*
B. Fundamentação
B.A. Factos assentes
1 – Em 31 de maio de 2025, no processo de regulação das responsabilidades parentais n.º …./20.0T8SNT, requerente e requerido declararam acordar nos seguintes termos, além do mais, e no que para o caso releva:
1 . A menor [CCC] mantém-se confiada à guarda e cuidados do pai [ora requerente], com quem residirá;
2. A menor passará um fim de semana por mês com a mãe [ora requerida], caso seja viável profissionalmente para esta, considerando que trabalha aos sábados, sendo o fim de semana que vier a calhar nas suas folgas e que deverá comunicar ao pai assim que do mesmo tiver conhecimento;
3. Quando tal ocorrer o pai levará a CCC a casa da mãe, às sextas-feiras findas as atividades letivas, e a mãe entregá-la-á na casa do pai aos domingos, às 20 h.
4. Para além desse fim de semana completo, tendo a mãe folgas aos domingos, a menor passará os domingos com a mãe, definindo os pais as horas de recolha e entrega;
5. Natal e Ano Novo: as datas festivas de Natal e Ano Novo serão passados em bloco, os dias 24 e 25 de Dezembro serão passados com um progenitor e os dias 31 de Dezembro e 0 1 de Janeiro serão passados com o outro. Alternarão estes períodos nos anos seguintes.
6. Férias: a menor passará um período de 15 dias de férias com cada um dos progenitores, sendo que os períodos deverão ser comunicados entre os progenitores, por escrito, preferencialmente por correio eletrónico até 31 de Março de cada ano civil. Este ano de 2025, a menor passará o período de férias de 25 a 29 de agosto com a mãe;
7. No dia de aniversário da menor, esta almoça/lancha com um dos progenitores e jantará com o outro, alternando os progenitores tais períodos nos anos seguintes;
8. A menor passará com a mãe o dia de aniversário desta e o dia da mãe, e com o pai o aniversário deste e o dia do pai. (…)
13. No demais, mantêm-se o constante do acordo de regulação das responsabilidades parentais efetuada em 20 de setembro de 2018.
2 – Em 31 de maio de 2025, o acordo referido no ponto 1 – factos assentes – foi judicialmente homologado por sentença.
3 – Em 18 de setembro de 2025, o requerente instaurou o presente processo especial de entrega judicial de criança, contra BBB, nos termos previstos no art. 49.º do RGPTC, pedindo a notificação da requerida “para proceder à entrega imediata” ao requerente da filha comum do casal, CCC, nascida em (...) 2014.
4 – Na petição inicial, o autor alegou, no que releva para o objeto do recurso:
“1. Requerente e requerida são pais da menor CCC, nascida em (...) 2014, atualmente com 11 anos de idade.
2. (…) [F]oi fixado, por decisão já transitada em julgado, que a menor ficava a residir com o pai, ora Requerente, sendo as responsabilidades parentais exercidas em comum por ambos os progenitores. (…)
4. Por acordo entre o requerente e a requerida, a menor foi passar uma semana de férias com esta última, na sua residência, entre 25 de agosto e 31 de agosto de 2025. (…)
6. (…) [Na] data em que a menor deveria regressar à residência do requerente, o mesmo não sucedeu, tendo a requerida (…) afirmado que a menor iria passar mais uma semana com a mãe.
7. Ao que o pai (…) não se opôs (…).
8. No (…) dia 7 de Setembro de 2025, (…) a requerida não entregou a menor ao requerente.
10. (…) [A] progenitora (…) informou o requerente que a menor não lhe seria mais entregue (…).
11. (…) [O] requerente encontrou um email da requerida em que a mesma, simplesmente, afirma que “Até novas ordens de entidade superior vai ao meu cuidado” (…)”.
5 – A petição inicial referida no ponto 4 – factos assentes – termina com o seguinte pedido:
“Termos em que deverá a requerida ser notificada para proceder à entrega imediata da menor ao requerente, com as legais consequências”.
6 – Em 28 de outubro de 2025, pelo tribunal a quo foi proferida a decisão apelada, tendo esta, no essencial e no que para o caso releva, o seguinte teor:
Dispõe o artigo 49.º, n.º 1, do RGPTC que, se a criança abandonar a casa dos pais ou aquela que estes lhe destinaram ou dela for retirada, ou se se encontrar subtraída à responsabilidade da pessoa ou da instituição a quem esteja legalmente confiada, deve a sua entrega ser requerida ao tribunal com jurisdição na área em que ele se encontre.
No caso dos autos, alega o requerente que a filha se encontra na companhia da mãe, em violação do regime de visitas estabelecido no processo de regulação das responsabilidades parentais, porquanto a mesma se encontra na companhia da mãe para além do período que nesse mesmo regime foi estabelecido.
Ora, entende o tribunal, tal como o tem entendido a doutrina, que o processo de entrega judicial de criança não é o indicado para entrega da criança ao progenitor a quem esta foi confiada, no âmbito de ação de regulação das responsabilidades parentais, já que a situação delineada se subsume à violação do regime de visitas aí fixado pelo outro progenitor.
Assim sendo, deverá o progenitor desencadear o incidente de incumprimento previsto no artº 41.º do RGPTC, o qual regula, especificamente, a situação em apreço, no âmbito do qual poderá requerer a aplicação de medida provisória que, no seu entendimento, acautele o superior interesse da sua filha CCC.
Face ao exposto e por o pedido formulado pela [sic] requerente ser manifestamente improcedente, importa, por força do que dispõe o artigo 590.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, conhecer do indeferimento liminar do requerimento inicial, o que, sendo de conhecimento oficioso, pode e deve decretar-se de imediato, de acordo com o disposto no citado art. 590.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi art. 33.º, n.º 1, do Regime Geral do Processo Tutelar Cível.
Nesta conformidade, indefere-se liminarmente o requerimento inicial.
B.B. Análise dos factos e aplicação da lei
São as seguintes as questões de direito parcelares a abordar:
1. Afastamento do julgamento de manifesta improcedência
2. Forma processual apropriada ao conhecimento do mérito da causa
3. Delimitação da questão a resolver
4. Propriedade da forma adotada
5. Conveniência e oportunidade da adoção de diferente forma apropriada
6. Conclusão: adoção de diferente forma no caso dos autos
7. Responsabilidade pelas custas
7.1. Custas da atividade destinada a reparar as falhas do sistema
7.2. Decisão “taxa de justiça a atender a final”
7.3. Conclusão
1. Afastamento do julgamento de manifesta improcedência
Afigura-se-nos ostensiva a contradição entre os fundamentos e o dispositivo da decisão apelada. A contradição, em si, não é de conhecimento oficioso, não estando, pois, em discussão a anulação de decisão (art. 615.º, n.º 1, al. c), do Cód. Proc. Civil), mas o mérito do julgado pode ser por nós revisto.
O tribunal a quo fundamenta a sua decisão sustentando que “o processo de entrega judicial de criança não é o indicado para entrega da criança (…), já que a situação delineada se subsume à violação do regime de visitas (…)”. No entanto, ignorando o teor do n.º 1 do art. 193.º do Cód. Proc. Civil, formula um juízo de mérito – “o pedido formulado pela requerente ser manifestamente improcedente” – e conclui: “indefere-se liminarmente o requerimento inicial”.
Não se alcança, pois, qual é o fundamento do julgamento de manifesta improcedência do pedido. Como é evidente, não é manifestamente improcedente um pedido de entrega de uma criança formulado pelo progenitor que tem a sua guarda, quando esta é desrespeitada.
Somente se poderá discutir se este poder-dever foi exercido através da forma processual apropriada.
2. Forma processual apropriada ao conhecimento do mérito da causa
Tentando sustentar a sua decisão, o tribunal a quo apresenta a seguinte fundamentação, já acima convocada:
“Ora, entende o tribunal, tal como o tem entendido a doutrina, que o processo de entrega judicial de criança não é o indicado para entrega da criança ao progenitor a quem esta foi confiada, no âmbito de ação de regulação das responsabilidades parentais, já que a situação delineada se subsume à violação do regime de visitas aí fixado pelo outro progenitor”.
Trata-se de uma fundamentação estéril, afirmando-se axiomaticamente aquilo que carecia de demonstração. Infelizmente, o tribunal a quo não teve sequer por útil identificar a doutrina (ou a jurisprudência) que teve em consideração.
No sentido da fundamentação (não da decisão) adotada no julgado em 1.ª instância, é, efetivamente, doutrinalmente defendido que o “processo judicial de entrega de criança não é o adequado para a entrega de criança ao progenitor a quem foi confiado, no âmbito de ação de regulação do exercício das responsabilidades parentais, visto tratar-se de violação do regime de visitas aí fixado pelo outro progenitor. // Neste caso, terá de lançar mão do incidente de incumprimento previsto no art. 41.º, o qual regula especificamente essa situação” – cfr. Tomé d’Almeida Ramião, Regime Geral do Processo Tutelar Cível, 4.ª edição, Lisboa, Quid Juris, 2020, p. 231, nota 5; aparentemente também neste sentido, cfr. o Ac. do TRL de 15-11-2001 (0097566).
O regime previsto no art. 41.º do RGPTC tem o seguinte teor, no que para o caso releva:
“Artigo 41.º
Incumprimento
1 – Se, relativamente à situação da criança, um dos pais ou a terceira pessoa a quem aquela haja sido confiada não cumprir com o que tiver sido acordado ou decidido, pode o tribunal, oficiosamente, a requerimento do Ministério Público ou do outro progenitor, requerer, ao tribunal que no momento for territorialmente competente, as diligências necessárias para o cumprimento coercivo e a condenação do remisso em multa até vinte unidades de conta e, verificando-se os respetivos pressupostos, em indemnização a favor da criança, do progenitor requerente ou de ambos. (…)
5 – (…) [N]o incumprimento do regime de visitas e para efetivação deste, pode ser ordenada a entrega da criança acautelando-se os termos e local em que a mesma se deva efetuar, presidindo à diligência a assessoria técnica ao tribunal.
6 – Para efeitos do disposto no número anterior e sem prejuízo do procedimento criminal que ao caso caiba, o requerido é notificado para proceder à entrega da criança pela forma determinada, sob pena de multa. (…)”.
Não parece ser exata a afirmação de que o art. 41.º do RGPTC “regula especificamente” a situação que nos ocupa. Regula, sim, o incumprimento do regime de visitas e para efetivação deste; não dispõe, especificamente, sobre o incumprimento do regime de guarda (confiança) e para efetivação deste. Embora estes regimes devam ser articulados e, na relação entre os progenitores, possam representar duas faces da mesma moeda, não se confundem. A violação do regime de guarda pelo progenitor a quem não foi confiada a criança pode nada ter a ver com o regime de visitas – pense-se no caso de subtração não consentida na ausência de um direito (e dever) de visitas ou no caso de a retenção ilícita ocorrer após o progenitor com a guarda permitir que o outro progenitor passe alguns dias com a criança, sem que tal esteja imposto no regime de visitas.
Ainda no mesmo sentido, é defendido que “[é] de rejeitar a possibilidade (…) de aplicar o processo tutelar cível de entrega judicial de criança (arts. 49.º a 51.º do RGPTC). É que este está previsto para os casos em que a criança abandona ou é retirada da casa morada de família por terceiro, tendo como suporte substantivo o disposto no art. 1887.º do Código Civil” – cfr. Gonçalo Oliveira Magalhães, «Aspetos da ação destinada ao regresso da criança ilicitamente deslocada ou retida, à luz da Convenção da Haia de 25 de outubro de 1980 e do Regulamento Bruxelas II bis», Julgar, n.º 37, janeiro-abril, 2019, p. 35, nota de rodapé 36; cfr., ainda, Maria Oliveira Mendes, «A entrega judicial de criança no confronto com outras providências tutelares cíveis: uma reflexão», RCEJ, 2021, II, pp. 129 a 131.
Vai sem discussão que o processo previsto no art. 49.º do RGPTC constitui o mecanismo processual idóneo a efetivar a tutela prevista no art. 1887.º do Cód. Civil – cfr. Pires Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. V, Coimbra, Coimbra Editora, 1995, p. 356. No entanto, basta atentar nas respetivas hipóteses legais para se concluir que o campo de aplicação do regime adjetivo parece ser mais vasto do que o previsto na lei substantiva.
Mas só assim será se a norma substantiva for interpretada em sentido (excessivamente) estrito. Os enunciados a comparar são os seguintes:

Art. 1887.º, n.º 2, do Cód. CivilArt. 49.º, n.º 1, do RGPTC
Se [os menores] a [casa paterna] abandonarem ou dela forem retirados, qualquer dos pais e, em caso de urgência, as pessoas a quem eles tenham confiado o filho podem reclamá-lo, recorrendo, se for necessário, ao tribunal ou à autoridade competente.Se a criança abandonar a casa dos pais ou aquela que estes lhe destinaram ou dela for retirada, ou se encontrar subtraída à responsabilidade da pessoa ou da instituição a quem esteja legalmente confiada, deve a sua entrega ser requerida ao tribunal com jurisdição na área em que ela se encontre.

Afigura-se-nos que o enunciado do n.º 2 do art. 1887.º do Cód. Civil – e o mesmo se poderia dizer do enunciado do n.º 1 deste artigo – deve ser interpretado extensivamente. Assim se deve entender de modo a preservar a coerência axiológica do atual sistema jurídico (art. 9.º, n.º 1, do Cód. Civil), à luz, designadamente, do art. 3.º da Convenção sobre os Aspetos Civis do Rapto Internacional de Crianças, concluída na Haia em 25 de outubro de 1980, aprovada pelo Decreto do Governo n.º 33/83, de 11 de maio.
Neste sentido, para os efeitos previstos no n.º 2 do art. 1887.º do Cód. Civil, é irregular o afastamento do menor de idade (não emancipado) do seu lar, quando esta deslocação impede o efetivo exercício do poder-dever de guarda pela pessoa (ou instituição) a quem esteja legalmente confiado, subtraindo-o à custódia deste.
Esta interpretação evidencia que a firmação de que o processo previsto nos arts. 49.º a 51.º do RGPTC, por se relacionar com a norma substantiva enunciada no n.º 2 do art. 1887.º do Cód. Civil, é inaplicável, quando o autor do afastamento ilícito está imediatamente obrigado pelo regime do exercício das responsabilidades parentais (tipicamente, um progenitor), assenta numa petição de princípio: a afirmação de que o progenitor não pode violar o n.º 2 do art. 1887.º do Cód. Civil – contra Ac. do TRE de 18-11-2004 (1969/04-2). Trata-se, pois, de um raciocínio falacioso.
Os casos de violação do regime das responsabilidades parentais e os casos de afastamento irregular do menor da sua residência não são necessariamente excludentes – designadamente, quando a criança é confiada apenas a um dos progenitores. Não se pode, pois, sem mais, afirmar que, se há incumprimento do regime das responsabilidades parentais, não pode haver violação do regime previsto no art. 1887.º do Cód. Civil.
E se assim se deve entender – como inquestionavelmente se deve –, então, à partida, não está afastada a possibilidade do recurso ao processo previsto nos arts. 49.º a 51.º do RGPTC quando o autor do afastamento ilícito é um progenitor.
3. Delimitação da questão a resolver
O n.º 1 art. 193.º do Cód. Proc. Civil determina, recorde-se: “O erro na forma do processo importa unicamente a anulação dos atos que não possam ser aproveitados, devendo praticar-se os que forem estritamente necessários para que o processo se aproxime, quanto possível, da forma estabelecida pela lei”. Em coerência com esta ideia de aproveitamento dos atos praticados – isto é, de economia processual e de prevalência do mérito sobre a forma –, “o erro na qualificação do meio processual utilizado pela parte é corrigido oficiosamente pelo juiz, determinando que se sigam os termos processuais adequados” – n.º 3 art. 193.º do Cód. Proc. Civil.
No Ac. do TRE de 26-01-2012 (506/07.0TBVVC-G), foi entendido que a “pedra de toque” na distinção dos casos e fixação do regime processual aplicável é a qualidade do autor do facto ilícito: quando o autor do afastamento ilícito está imediatamente obrigado pelo regime do exercício das responsabilidades parentais (tipicamente, um progenitor), é aplicável o regime do incumprimento das responsabilidades parentais; sendo um terceiro, é aplicável o processo especial de entrega da criança. Note-se, no entanto, que neste aresto, a errada escolha do meio processual apenas resultou na convolação do processo para a forma apropriada. Esta solução (convolação) foi também adotada no processo n.º 459/05.0TMFAR, conforme se pode ler no relatório do TRE de 31-01-2013 (459/05.0TMFAR-M.E1).
Sobre esta questão, é esclarecedora a posição adotada no Ac. do TRE de 18-11-2004 (1969/04-2): a entrega judicial de criança “é um processo de jurisdição voluntária”, logo “o tribunal não está sujeito a critérios de legalidade estrita, devendo antes adotar em cada caso a solução que julgue mais conveniente e oportuna, como claramente estatui o art. 1410.º do C.P.C. [art. 987.º do atual Cód. Proc. Civil], pelo que nada impedia e tudo aconselhava que, entendendo o tribunal que não havia lugar à entrega judicial, mandasse seguir a forma de processo adequada, designadamente como incidente de incumprimento do regime da patria potestas cujo figurino legal vem gizado no art. 181.º da OTM [art. 41.º do RGPTC]”.
“Se até no domínio da jurisdição contenciosa, o erro na forma do processo importa unicamente a anulação dos atos que não possam ser aproveitados, determinando a lei ao juiz a prática dos atos que forem estritamente necessários para que o processo se aproxime, quanto possível, da forma estabelecida por lei, como comanda o art. 199.º do C.P.C. [art. 193.º do atual Cód. Proc. Civil], por maioria de razão, na jurisdição graciosa ou voluntária, não há que se fixar em padrões de rigidez formal excessiva, indeferindo liminarmente o requerimento dos progenitores que denunciam determinadas situações em que se encontram os seus filhos menores, pedindo determinada providência ao tribunal.
“Na jurisdição voluntária, de índole essencialmente administrativa, o tribunal deve pautar-se pelo predomínio do critério da equidade sobre a legalidade e do inquisitório sobre o dispositivo”.
Em face do exposto, é patente o erro da decisão apelada – pelo que não poderá ser mantida –, nunca podendo ser ratificado o indeferimento liminar do requerimento inicial. Repisa-se: não é manifestamente improcedente um pedido de entrega de uma criança formulado pelo progenitor que tem a sua guarda, quando esta custódia é, alegadamente, impedida.
Três soluções plausíveis para a questão que nos ocupa são equacionáveis:
a) afirmar a existência de um erro na forma do processo, sendo ordenado que a forma apropriada seja seguida – e, se necessário, conhecida a incompetência relativa do tribunal (não tendo a questão da competência para o conhecimento do incumprimento das responsabilidades parentais sido objeto de pronúncia anterior nesta ação);
b) recusar a existência de um erro na forma do processo, sendo promovido o andamento dos autos, nos termos previstos no art. 49.º e segs. do RGPTC (por se entender ser a forma adotada a mais apropriada);
c) recusar a existência de um erro na forma do processo, mas, ainda assim, explorando a ductilidade da jurisdição voluntária, determinar que o processo siga outra forma não menos apropriada.
Vejamos qual o melhor caminho a seguir.
4. Propriedade da forma adotada
Não existe relação de especialidade entre os processos previstos nos arts. 41.º e 49.º e segs. do RGPTC, pelo que a solução da questão que nos ocupa não pode ser encontrada nos arts. 33.º, n.º 1, do RGPTC e 546.º, n.º 2, do Cód. Proc. Civil. Também não existe inadequação do processo à tutela do poder-dever exercido: quer à causa de pedir – considerando os termos abrangentes do n.º 1 do art. 49.º do RGPTC –, quer ao pedido – que é identitário desta forma de processo especial.
Propendemos, assim, a acompanhar a posição adotada no Ac. do TRE de 18-11-2004 (1969/04-2), no sentido de a possibilidade de recurso ao regime das responsabilidades parentais (art. 41.º do RGPTC) não afastar, à partida, a possibilidade de recurso alternativo ao processo de entrega judicial de criança (art. 49.º do RGPTC). Estamos apenas perante um concurso de títulos aquisitivos do poder-dever de entrega da criança a quem tem a sua guarda legítima, o que explica a existência de duas formas processuais disponíveis.
Posto isto, podemos, ainda assim, discutir a admissibilidade de uma convolação processual, precisamente por admitirmos que ambas as formas processuais são apropriadas à satisfação da pretensão do requerente.
5. Conveniência e oportunidade da adoção de diferente forma apropriada
Como é sabido, nos processos de jurisdição voluntária, “o tribunal não está sujeito a critérios de legalidade estrita, devendo antes adotar em cada caso a solução que julgue mais conveniente e oportuna” (art. 987.º do Cód. Proc. Civil). Nos processos tutelares cíveis, esta ductilidade pode ser estendida, até por maioria de razão, às resoluções de âmbito essencialmente processual, quando a boa decisão do mérito da causa o justifique – cfr., de resto, o regime geral previsto nos arts. 6.º e 547.º do Cód. Proc. Civil.
O mesmo é dizer que, ainda que a forma processual adotada – no caso, a entrega judicial de criança – não seja imprópria, poderá o processo ser convolado para outra forma não menos apropriada, quando em tal convolação se encontre benefício para a plena tutela do superior interesse da criança. Este juízo só é sindicável pelo tribunal superior nos estritos termos previstos no art. 630.º, n.º 2, do Cód. Proc. Civil.
Não se nos afigura descabido o entendimento de que o processo mais apropriado para resolver a questão vertente é o previsto no art. 41.º do RGPTC (incumprimento do regime do exercício das responsabilidades parentais). Os motivos são vários, todos orientados pela satisfação do superior interesse da criança:
a) a autora do afastamento ilícito está imediatamente obrigada pelo regime do exercício das responsabilidades parentais, pelo que, tendo este regime sido fixado por um tribunal, terá este um conhecimento mais profundo do caso e dos seus protagonistas;
b) o incumprimento daquele regime pode justificar a adoção de medidas distintas da entrega da criança ou que vão para além desse entrega;
c) “sendo as responsabilidades parentais exercidas em comum por ambos os progenitores” – como, no caso, admite o requerente –, a solução simples e dicotómica – procedência ou improcedência do pedido: entrega ou não entrega da criança – pode não oferecer a resposta mais conveniente;
d) a manutenção de um relacionamento próximo com a progenitora com a qual a criança não reside pode limitar o âmbito do ilícito, se a criança tiver mantido a inserção no meio escolar e social, tendo sido preservados, por exemplo, os contactos com a família paterna;
e) poder-se-á mesmo chegar à conclusão de que a criança (uma menina na pré‑adolescência), afetivamente, tem dois lares, não se revestindo a situação de gravidade (instabilidade) que justifique a sua entrega imediata ao pai – nem mesmo a (potencialmente traumatizante) imediata passagem de mandados: art. 49.º, n.º 2, do RGPTC –, mas, ainda assim, a justificar uma reação por parte do tribunal.
6. Conclusão: adoção de diferente forma no caso dos autos
Em face do exposto, não temos por acertado censurar o juízo de maior propriedade da adoção do processo previsto no art. 41.º do RGPTC, na tutela do superior interesse da criança, no caso concreto. Já não podemos acompanhar a conclusão de que deste juízo deve decorrer o indeferimento liminar da petição inicial.
Deve, sim, o processo continuar perante o tribunal a quo, nos termos previstos no art. 41.º do RGPTC, cabendo a este tribunal, se assim o entender, conhecer da sua competência e, sendo caso disso, remeter imediatamente o processo (agora de incumprimento) para o diferente tribunal julgado competente (designadamente, para apensação ao processo acima identificado).
7. Responsabilidade pelas custas
Resta decidir a questão tributária, sendo certo que os autos pendentes neste tribunal de recurso não evidenciam que o requerente litigue com o benefício de apoio judiciário nem que tenha já liquidado a taxa de justiça devida pela interposição do recurso (art. 15.º, n.º 1, al. f), do Reg. Cust. Processuais).
Estabelece o n.º 1 do art. 527.º do Cód. Proc. Civil que, não havendo vencimento entre partes – melhor, decaimento –, a decisão que julgue a ação ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que do processo tirou proveito – isto é, condena-a nos encargos ainda não suportados e nas custas de parte.
7.1. Custas da atividade destinada a reparar as falhas do sistema
Pode se entender que, neste caso – inexistência de decaimento de uma das partes num incidente ou recurso meramente apendiculares –, por regra, dá causa a todo o processo – incluindo a estes incidentes e recursos, não autonomamente imputáveis a um dos litigantes – a parte vencida na ação (instância principal), na proporção em que o for. Os custos de funcionamento do sistema (humano) de justiça também compreendem os custos da sua ineficiência, designadamente, do pontual normal erro judiciário em questões adjetivas, meros percalços no desenvolvimento da instância – que correspondem aos custos da sua reparação.
Neste sentido – e admitindo-se que a lei impõe que as normais imperfeiçoes do sistema sejam suportadas pelos litigantes, e não pelo erário público –, quem dá causa a um recurso (procedente) destinado a garantir o prosseguimento da ação é, na falta de vencimento específico, quem dá causa à ação. Reconhece-se, assim, que a instância recursiva interlocutória (quando desprovida de uma controvérsia própria entre as partes) não tem nenhuma autonomia relativamente à instância principal, no que toca aos interesses cuja tutela é reclamada.
A letra dos enunciados dos n.os 1 e 2 do art. 527.º do Cód. Proc. Civil parece caucionar esta solução interpretativa. Responsável pelas custas da ação ou de “algum dos seus incidentes ou recursos” é quem lhes dá causa, isto é, quem decaiu (na respetiva proporção). No entanto, não havendo causador (vencido), a lei apenas configura o caso de inexistência de “vencimento da ação” – não de inexistência de vencimento do incidente ou do recurso. Dir-se-ia que estas instâncias apendiculares têm sempre um causador, na falta de um autónomo vencido no seu julgamento: o vencido na ação, causador de todos os seus desenvolvimentos não imputáveis à contraparte (ou, no limite, quem da instância principal tirou proveito).
Poder-se-á ver aqui um problema da adjudicação do risco de falhas no sistema, havendo que determinar se o custo por estas gerado deve ser suportado pela parte que tem o direito ou pela parte que deu causa à ação. Ora, ofende a consciência coletiva sobre o que é justo e juridicamente aceitável a solução segundo a qual o Estado (tribunal) que pratica um ato (erro judiciário), ofendendo o direito subjetivo (adjetivo ou substantivo) do sujeito processual, pode cobrar-lhe uma quantia (taxa de justiça) para reparar o erro por si cometido, vedando-lhe depois a possibilidade de obter da contraparte responsável pela demanda o seu ressarcimento.
7.2. Decisão “taxa de justiça a atender a final”
Não está verdadeiramente em causa condenar o recorrente (efetivamente vencedor, embora sem vencido) no pagamento das custas dependentes do vencimento. Em casos como o vertente, não há encargos e a contraparte não interveio na instância de recurso. Não há custas a liquidar (hoc sensu).
O que está em causa é saber se o recorrente vencedor – o seu recurso mereceu provimento –, que liquidou a taxa de justiça por ser responsável pelo seu pagamento, independentemente do vencimento, pode obter uma compensação ressarcitória pelo valor da taxa paga, proporcional ao vencimento (na instância principal e, por inerência, neste recurso), satisfeita pela contraparte (art. 26.º, n.º 3, al. a), do Reg. Cust. Processuais), ou o seu reembolso (art. 26.º, n.º 6, do Reg. Cust. Processuais).
A resposta específica que o regime legal vigente oferece para os casos em que se deve entender que “dá causa” a uma instância apendicular a parte que “dá causa” à instância principal não é a condenação da “parte vencida a final” nas custas. Isto é, não é a condenação da (ainda incerta) parte que decair no futuro julgamento do mérito da causa (na medida do decaimento).
Esta resposta é, sim, a da atendibilidade na instância principal da taxa de justiça paga na instância apendicular –  cfr. os n.os 2 e 3 do art. 539.º do Cód. Proc. Civil. Em termos práticos, o que a lei estabelece no primeiro destes números é que a taxa de justiça liquidada por uma parte que, por não ter dado causa à ação (havendo um causador), não deu causa ao processo apendicular, deve ser reembolsada (hoc sensu) pela contraparte ou pelo Estado (art. 26.º, n.º 6, do Reg. Cust. Processuais), através do mecanismo das custas de parte, na instância principal.
Neste cenário, em caso de recurso sem decaimento, a taxa de justiça, indiferente ao vencimento, é suportada, como não podia deixar de ser, pelo recorrente responsável. No entanto, a decisão quanto a custas (dependentes do vencimento ou do proveito), no cumprimento dos comandos dos arts. 527.º, n.º 1, e 607.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil,  deve ser, como sempre, ajustada ao caso concreto, pelo que deve incidir mais esclarecedoramente sobre as que, dependendo do vencimento, sejam efetivamente devidas.
Pode o recorrente ser condenado nas custas do recurso, mas também pode ser proferida a decisão “sem (mais) custas” – que, devidamente interpretada, tem um sentido e alcance próximos. Em qualquer caso, todavia, deve ser emitida pronúncia específica sobre uma das partes componentes das custas de parte – a compensação ressarcitória pela taxa de justiça liquidada ou o seu reembolso. É a lei que, nos n.os 2 e 3 do art. 539.º do Cód. Proc. Civil, opera uma distinção na imputação causal entre o reembolso (hoc sensu) da taxa de justiça e as restantes custas, a qual deve refletir-se na decisão quanto a custas.
As normas enunciadas nos n.os 2 e 3 do art. 539.º do Cód. Proc. Civil são meros afloramentos e afeiçoamentos de uma regra geral – princípios da causalidade e da proporcionalidade – a um tipo de casos, e não disposições contrárias aos princípios que informa o regime tributário processual, constituindo-se como um subsídio na interpretação (meramente enunciativa) da norma prevista no n.º 1 do art. 527.º do Cód. Proc. Civil.
Em suma, para os efeitos previstos na norma enunciada no n.º 1 do art. 527.º do Cód. Proc. Civil, no que toca à compensação ressarcitória pela taxa de justiça liquidada ou ao seu reembolso, entende-se que dá causa ao recurso (no qual a contraparte não decaiu) a parte responsável pelas custas processuais (em sentido estrito) da instância principal, na respetiva proporção. Esta solução representa o afastamento da presunção enunciada no n.º 2 do art. 527.º do Cód. Proc. Civil, porque da norma legal enunciada no n.º 2 do art. 539.º do Cód. Proc. Civil também resulta esse afastamento.
A decisão a proferir no fim do acórdão revogatório, na satisfação do disposto nos arts. 527.º, n.º 1, e 607.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil, deve, assim, ser complementada com um esclarecedor “sendo a taxa de justiça liquidada atendida, a final, no âmbito das custas de parte”.
7.3. Conclusão
A presente instância recursiva não tem nenhuma autonomia relativamente à instância principal, no que toca aos interesses em discussão. O mesmo é dizer que os custos do funcionamento do sistema de justiça – custos da apelação – se devem repercutir sobre a esfera jurídica patrimonial da parte responsável pelas custas do processo no qual se desenvolve a instância principal.
Porque só ulteriormente se poderá conhecer quem deu causa à ação (ou dela tirou proveito, sem vencimento) e, consequentemente, ao recurso, apenas podemos, por ora, no que diz respeito à única questão carecida de pronúncia jurisdicional – o único custo suportado pelos sujeitos –, decidir da sua atendibilidade, ou não, em sede de custas de parte.
A responsabilidade pelas custas cabe, pois, ao apelante – por não haver imediato decaimento da contraparte nem norma que a esta adjudique todos os custos do recurso –, mas a taxa de justiça por este liquidada é atendida, a final, no processo principal – no caso, o incidente de incumprimento do regime do exercício das responsabilidades parentais.
C. Dispositivo
C.A. Do mérito do recurso
Em face do exposto, na procedência da apelação, acorda-se em revogar o despacho recorrido e determina-se o prosseguimento do processo perante o tribunal a quo, nos termos previstos no art. 41.º do RGPTC, sem prejuízo do conhecimento da competência relativa do tribunal e, sendo caso disso, da imediata remessa do processo para o tribunal julgado competente.
C.B. Das custas
Custas a cargo do apelante, sendo a taxa de justiça respeitante à apelação atendida, a final, no processo principal (incidente de incumprimento do regime do exercício das responsabilidades parentais).
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Notifique.

Lisboa, 02 de dezembro de 2025
Paulo Ramos de Faria
Rute Alexandra da Silva Sabino Lopes
Carlos Oliveira