Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
820/21.2T8TVD-A.L1-8
Relator: MARÍLIA LEAL FONTES
Descritores: INVENTÁRIO
AUTORIDADE DE CASO JULGADO
INVENTARIADO ESTRANGEIRO
RESIDÊNCIA EM PORTUGAL
LEI APLICÁVEL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/08/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I – Não se verifica violação da autoridade de caso julgado quando entre duas acções, o Tribunal que decidirá em segundo lugar, não se veja confrontado com a possibilidade de reproduzir ou contrariar a decisão judicial primeiramente proferida.
II – Na Grã Bretanha coexistem diversos sistemas legislativos locais e não contém normas de direito interlocal ou normas de direito internacional privado unificado, pelo que, por excepção, a sucessão por morte de cidadão inglês residente em Portugal é regulada pela Lei da residência habitual, ou seja, pela Lei portuguesa – artsº 20, nºs 1 e 2 e 2031 do Código Civil.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam as Juízes na 8ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – RELATÓRIO
1.1. Em 20.09.2017, foi iniciado processo de inventário junto do Cartório Notarial do Cadaval, sito na Av. …, da Lic. ……………., na sequência do óbito de ………………., falecida em 22.03.2013, natural do Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte, de nacionalidade britânica, viúva, com última residência na Rua …………………….
Apresentaram-se como herdeiras ………., residente no ………., e , residente em……………………, ambas filhas da inventariada.
Foi junta declaração subscrita por ……………., advogado inglês do Supremo Tribunal de Justiça em Inglaterra, onde foi declarado que a inventariada deixou testamento válido e que, de acordo com o mesmo, são suas herdeiras testamentárias, de todos os bens móveis e imóveis, situados e existentes em Portugal, as indicadas ……………………… e ……………………., e que, de acordo com a Lei de lnglaterra e do País de Gales não existem outras pessoas com direito a herança face à sua Lei Nacional.
Dos documentos juntos aos autos, resulta que a inventariada era proprietária de bem imóvel sito em Portugal.
Convocada a cabeça-de-casal, ………………….., para prestação de compromisso de honra do bom desempenho da sua função e tornada de declarações, alegou a mesma que a inventariada deixou testamento, outorgado no Reino Unido, em 19.07.2002, elaborado nos termos previstos na legislação aplicável naquele país, o qual foi homologado pelo District Probate Registry at Winchester do High Court of Justice em 26.08.2015, através de documento intitulado de Grant of Probate, tendo sido nomeada Executora testamentária do testamento deixado pela inventariada. Mais alegou que, sendo a inventariada nacional do Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte, é a lei britânica a competente para regular a sua sucessão por morte, não havendo lugar ao processo de inventário e, consequentemente, o notário carece de competência para proceder nestes termos. Mais alegou que, a inventariada nomeou as suas filhas corno testamenteiras e beneficiárias de todo o seu património, constituído sob a forma de trust, com instruções para o venderem, converterem em dinheiro e, após pagamento das despesas funerárias, de execução de herança testamentária e dos impostos correspondentes, distribuírem entre ambas, em partes absolutamente iguais. Por fim, alegou que o executor testamentário tem plenos poderes para, sozinho, executar o testamento, sendo essa execução válida como se tivesse sido realizada com a concordância dos demais testamenteiros, pelo que tem plenos poderes para vender quaisquer bens da inventariada, sem necessidade de consultar ou obter previamente qualquer consentimento da interessada para o efeito, uma vez que o testamento da inventariada exclui expressamente a aplicacão da Secção 11, da Trusts of Land and Appointment of Trustees Act, 1996.
Requereu o seu reconhecimento nessa qualidade e, consequentemente, que o Tribunal declare a extinção dos autos, por impossibilidade superveniente da lide, ou, caso assim se não entenda, a remessa do processo para os meios comuns, a fim de decidir a questão.
Por fim, alegou da existência do proc. n.° ……………….., a correr termos no Juiz 5, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte — Loures — Juízo Central Cível, onde, para, além do mais, pediu o reconhecimento da sua qualidade de executora testamentária da inventariada, pelo que há uma relação de prejudicialidade e/ou dependência directa relativamente aos presentes autos, devendo os mesmos serem suspensos.
A cabeça-de-casal procedeu à junção de documentos.
Notificada a interessada, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 12.°, n.° 2, da Lei n.° 117/2019, de 13 de Setembro, a mesma nada disse.
Por requerimento de 27.01.2020, a cabeça-de-casal requereu a remessa dos autos para o Tribunal competente, o que foi determinado por despacho de 19.01.2021.
Por despacho proferido em 17.10.2021, foi a interessada notificada para, no prazo de dez dias, se pronunciar sobre a aplicabilidade da lei britânica enquanto lei da nacionalidade da inventariada; a impossibilidade superveniente da lide; e a prejudicialidade da acção de petição de herança.
Por requerimento de 18.10.2021, a interessada juntou aos autos documento que Ihe confere poderes de executora testamentária da inventariada.
A interessada …………….., em sede de resposta, alegou que a inventariada faleceu em Portugal, onde residia desde 2008, sendo que a lei inglesa, lei pessoal da inventariada, faz reenvio para a Iei portuguesa, que aceita o reenvio, pelo que é esta a lei aplicável à sucessão, sendo o Tribunal competente para o inventário. Alegou, também, que a inventariada também a instituiu como executora testamentária, pelo que os autos não podem ser declarados extintos por impossibilidade superveniente da lide. Por fim, alegou que o proc. n.° 9254/17.2T8LRS não tem por objecto a partilha do acervo hereditário deixado pela inventariada, não havendo lugar à extinção da instância, ou mesmo suspensão.
Em 29.03.2022, foi junta aos autos certidão da sentença proferida no proc. n.° …………, em que foi decidido, entre o mais: “a,) Se reconhecem a A. e a R. como únicas herdeiras testamentárias e beneficiárias do património deixado, sob trust, por óbito de ………... b) Se reconhece a A. como executora testamentária do testamento de ………….. C) Se condenam os RR. a restituir à herança de …………. a quantia de € 6 794 (seis mil, setecentos e noventa e quatro euros e trinta e seis cêntimos), acrescida de juros, à taxa legal em cada momento vigente, desde a citação até integral pagamento.”
Notificadas as partes para, querendo, se pronunciarem sobre a competência dos tribunais portugueses para o inventário, atentos os bens em causa nos autos, veio a cabeça-de casal alegar que foi reconhecida como a única executora testamentária da inventariada e a lei aplicável é a Iei britânica, a qual é a aplicável ao testamento, não havendo lugar a processo de inventário e, consequentemente, o tribunal português não é competente, que o documento junto pela interessada designado por “Concessão da Sucessão” tem um selo cuja autenticidade se desconhece e sem a necessária homologação pelo District Probate Registry at Winchester do [-11gb Court of Justice, não lhe reconhecendo qualquer autenticidade, não podendo a interessada ser tida como executora testamentária da inventariada com base em tal documento. A final, pede o reconhecimento como única executora testamentária da inventariada.
Por sua vez, a interessada reiterou que a lei aplicável à sucessão é a portuguesa, sendo o Tribunal competente, e que também é executora testamentária da inventariada.
Em 11.10.2022, foi proferido despacho a solicitar os bons ofícios do Departamento de Cooperação Judiciária e Relações Internacionais da PGR para que informasse quanto ao significado, conteúdo e efeitos do direito/qualidade das partes no quadro do direito britânico/inglês determinado.
Após estudo da informação facultada pelo Gabinete de Documentação e Direito Comparado da PGR, a Mmª Juiz “a quo”considerou-se apta a aferir da competência do Tribunal.
E, invocando o seguimento da interpretação do Supremo Tribunal de Justiça, entendeu que a lei pessoal da de cujus é a lei da sua residência habitual ao tempo do seu falecimento - Portugal —, sendo, por isso, aplicável a lei portuguesa, pelo que o processo de inventário deve prosseguir, sendo o presente Tribunal o competente.
Acrescentou ainda que, sem prejuízo da sentença proferida no proc. n.° ………., ter decidido as questões que lhe foram colocadas por aplicação da lei do Reino Unido da Grã Bretanha e Irlanda do Norte, tal não impede a decisão tomada, na medida em que não se debruçou sobre os ordenamentos jurídicos plurilegislativos, como é o caso do mencionado Reino Unido.
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1.2. ………….. recorreu desta decisão, pedindo a respectiva revogação e substituição da mesma por outra que determine o arquivamento do processo de inventário a correr em Portugal por impossibilidade e inutilidade superveniente da lide, nos termos e para os efeitos do artº 277, al. e) do CPC e, por efeito direto da autoridade de caso julgado, apresentando os argumentos sintetizados nas respectivas conclusões, que seguem:
- O despacho em crise colocou em causa o disposto na lei sobre o valor da sentença transitada em julgado, bem como o seu alcance e efeitos, e dessa forma violou o disposto nos artigos 2º, 205º, nº 2, da CRP, 24º, nº 2, da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto (LOSJ), bem como nos artigos 580º nº 1, 2ª parte, e nº 2, 619º, nº 1, e 621º e seguintes do CPC.
- A decisão em crise viola a autoridade de caso julgado, com efeito vinculativo, pois colide frontalmente com a decisão anterior que expressamente determinou a aplicação da lei inglesa à herança de ………, decisão proferida anteriormente pelo Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte, Juízo Central Cível de Loures, Juiz 5, no âmbito do processo nº …………...
- O testamento em causa foi celebrado em Inglaterra, à luz da lei inglesa, homologado pelo District Probate Registry at Winchester do High Court of Justice em 26 de agosto de 2015, através do documento intitulado “Grant of Probate”, e a ora Recorrente foi judicialmente nomeada sua Executora.
- Através do referido Grant of Probate, a Recorrente, enquanto Executora Testamentária, tem plenos poderes para sozinha, executar o testamento, sendo essa execução válida como se tivesse sido realizada com a concordância dos demais testamenteiros.
- Foi com base na interpretação e aplicação direta da lei inglesa, inequivocamente aplicável ao testamento e, por conseguinte, à herança, que o tribunal do Juízo Central Cível de Loures reconheceu a qualidade de herdeiras à Recorrente e Recorrida, bem como a qualidade de executora testamentária da ora Recorrente.
- Em conformidade com a douta sentença transitada em julgado, e à luz da competência que lhe foi reconhecida através do ordenamento jurídico inglês, a Recorrente procedeu à execução do testamento, nomeadamente à venda dos bens que integravam a herança de …………., de forma a partilhar o produto dos mesmos entre as herdeiras, conforme ali previsto.
- Tal entendimento foi sufragado nos presentes autos pelo Departamento de Cooperação Judiciária e Relações Internacionais da Procuradoria-Geral da República que prestou informação concluindo ter o Executor testamentário poderes exclusivos, sem necessidade de qualquer consentimento dos herdeiros, para executar o testamento, o que é legalmente impossível e à luz da lei portuguesa.
- Não pode decisão posterior arredar o que foi anteriormente decidido, por ofensa direta da autoridade de caso julgado ao abrigo do qual as partes conformam as respetivas atuações.
- A segurança jurídica e a proteção da confiança assumem-se como princípios classificadores do Estado de Direito Democrático que implicam um mínimo de certeza e segurança nos direitos das pessoas e nas expectativas juridicamente criadas a que está imanente uma ideia de proteção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na atuação do Estado, confiando que as decisões que incidem sobre esses atos e relações tenham os efeitos estipulados nas normas que os regem.
- E foi com base na decisão anteriormente proferida, devidamente consolidada na ordem jurídica, que a Recorrente encetou as diligências necessárias à realização da partilha da herança de …………………., tendo em conta os formalismos e procedimentos legais que o ordenamento jurídico britânico, tido como o legalmente competente, preceitua.
- Pelo que a solução jurídica apresentada pelo tribunal a quo viola claramente a autoridade de caso julgado, e, simultaneamente, configura uma solução jurídica legalmente impossível, ao pretender aplicar a lei portuguesa à partilha de uma herança que decorre de um testamento sob a forma de trust, outorgado, interpretado e executado à luz do ordenamento jurídico inglês.
- O que, aliás, coloca a herança em crise perante uma perigosa dualidade de ordenamentos distintos e incompatíveis entre si, chamados a reger a mesma situação jurídica, o que não se admite.
- Tal como não pode ser de admitir que a norma prevista no artigo 20º do CC, que deverá ser aplicada por via de exceção, (vide, assim, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16.05.2018, proferido no âmbito do processo nº 2341/13.8TBFUN.L1.S1, acessível em www.dgsi.pt), venha sustentar uma solução jurídica legalmente impossível, utilizada pelo tribunal a quo.
- Tal exceção não se verifica in casu, porquanto a falecida nasceu no Reino Unido, nunca teve outra nacionalidade que não a inglesa, o testamento foi outorgado no Reino Unido, ao abrigo da lei inglesa, viveu quase toda a sua vida no Reino Unido, tendo apenas residido em Portugal dos 80 (oitenta) aos 85 (oitenta e cinco) anos de idade, o que importa relevar.
- O elemento de conexão mais estreito da falecida é, indubitavelmente, a lei inglesa, país onde durante 80 anos a mesma criou as suas raízes, cresceu, instruiu-se, constituiu família, e adotou as suas culturas e tradições.
- Sendo indiscutível que ao celebrar testamento em Inglaterra à luz da lei inglesa, a falecida demonstrou uma vontade inequívoca de que à sua sucessão fosse aplicável a lei inglesa, vontade que deverá ser respeitada.
- Pelo que bem andou o Juízo Central Cível de Loures ao aplicar a lei inglesa à herança de …………….., reconhecendo Recorrente e Recorrida como únicas herdeiras testamentárias e beneficiárias do património deixado, sob trust, reconhecendo ainda, ao abrigo do mesmo ordenamento jurídico, a Recorrente como única executora testamentária, condenando a Recorrida à restituição à herança da quantia indevidamente subtraída.
- Qualquer decisão que colida com o anteriormente decidido viola a autoridade de caso julgado, cujo objeto, ainda que parcialmente distinto, é condição imperativa nos presentes autos, excluindo obrigatoriamente toda a situação contraditória ou incompatível com a que ficou definida na decisão transitada.
- Sendo o objeto da ação de petição da herança parcialmente idêntico ou conexo com o subsequente processo de inventário, mesmo não ocorrendo completa identidade, os efeitos do caso julgado material projetam-se nas mesmas partes, no segundo, como autoridade do caso julgado material, em que o conteúdo da decisão anterior constitui uma vinculação à decisão de distinto objeto posterior, de modo a evitar que a relação jurídica material já definida possa vir a ser apreciada diferentemente, com ofensa da segurança jurídica.
- Sendo obrigatória a vinculação ao resultado da aplicação do direito ao caso concreto que foi realizada por tribunal anterior que proferiu a decisão, impõe-se pela necessidade da certeza e da segurança nas relações jurídicas.
- Caso assim não suceda, a decisão anterior sairá particularmente ofendida, o que dará lugar a decisões legalmente impossíveis de concretizar, seja no ordenamento jurídico português, seja no ordenamento jurídico inglês, por violação direta da autoridade de caso julgado formada.
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…………….., Recorrida nos autos, pugnou pela improcedência do recurso, alegando, em suma, o seguinte:
- A decisão recorrida não merece qualquer reparo, pois resultou da correcta interpretação da lei aplicável.
- A Recorrente pretende legitimar actos que praticou ao arrepio do que foi a vontade da falecida, dando como caso julgado a decisão num processo de petição de herança, onde não estava a ser discutida qualquer partilha de bens, nem o Tribunal que julgou esse processo se debruçou sobre os ordenamentos jurídicos plurilegislativos, como é o caso do mencionado Reino Unido.
- Pelo que o Douto Despacho proferido nos presentes autos de Inventário em nada contende com o caso julgado formado na dita acção de petição da herança.
-Não existe causa julgado, pois, entre ambas as acções, não existe identidade de causa de pedir e pedido, nos termos do disposto no art. 581º do CPC.
- Na acção de petição da herança, a causa de pedir é existir valores pertencentes à herança na posse da então Ré, e o pedido a sua restituição; no Inventário, a causa de pedir é o óbito da Inventariada que deixou herdeiros e bens para partilhar, e o pedido a respectiva partilha entre os herdeiros.
- Não havendo caso julgado, e não sendo o Inventário dependente da acção de petição da herança para achar a lei aplicável, deve este prosseguir os seus trâmites, e não ser extinto por inutilidade superveniente.
- Todos os actos que a Recorrente praticou deve prestar contas deles em sede de Inventário, e a partilha dos bens que compõem o acervo hereditário deve ser realizada no Inventário.  –
- A Inventariada tinha a nacionalidade britânica, e residia em Portugal, onde tinha bens.
- Não se conseguiu determinar o direito interno do Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte que se aplica, uma vez que nele coexistem diferentes sistemas legislativos locais –o direito inglês, o direito escocês, o direito do País de Gales e o direito da Irlanda do Norte- e perante a impossibilidade de recorrer ao direito interno desse Estado para resolver o conflito, dispõe o art. 20º nº. 2 2ª parte do CC, que se considera “como lei pessoal do interessado a lei da sua residência habitual”.
- Assim, se conclui que a lei portuguesa é a aplicável, o Inventário o processo próprio e o tribunal português o competente. 
- Ao contrário do que pretendem a Recorrente não merece a Sentença recorrida qualquer censura.
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O recurso foi admitido como sendo de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito devolutivo, nada obstando ao conhecimento do seu mérito.
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Foram colhidos os vistos legais.
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São as conclusões formuladas pelo recorrente que delimitam o objeto do recurso, no tocante ao desiderato almejado por aquele, bem como no que concerne às questões de facto e de Direito suscitadas, conforme resulta das disposições conjugadas dos arts. 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1 do CPC.
Esta limitação dos poderes de cognição do Tribunal da Relação não se verifica em sede de qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cfr. art. 5º n.º 3 do CPC)[1].
Por outro lado, não pode o Tribunal de recurso, conhecer de questões que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas[2].
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2. Do objecto do recurso
São questões a decidir:
-   Saber se o despacho recorrido viola a autoridade do caso julgado;
- Qual o ordenamento jurídico aplicado à partilha (um dos existentes na Grã-Bretanha ou o Português).
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II – FUNDAMENTOS
2.1. Fundamentos de facto
2.1.1. Na decisão recorrida consideraram-se sumariamente provados os seguintes factos:
 1) Através da Ap. 2 de 2008/11/19, foi registada a aquisição a favor de …………, residente na Rua …….., Cadaval, do prédio urbano denominado ……….. (cfr. certidão de registo predial de fis. 8 e 8v.);
2) Em 22.03.2013, na freguesia de ., concelho do Cadaval, faleceu …………., natural do Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte, de nacionalidade britânica, viúva, com última residência na Rua…………., Cadaval (cfr. assento de óbito de fis. 7 e 7v.);
3) Em 24.09.20 13, ………….., advogado inglês do Supremo Tribunal de Justiça em Inglaterra, declarou que ………. outorgou um testamento inglês, datado de 19.07.2002, testamento este válido “[...] com as suas disposições de acordo com a Lei de Inglaterra e do País de Gales, e de acordo com o mesmo são suas herdeiras testamentárias de todos os bens móveis e imóveis, da falecida, situados em Portugal as suas filhas:
- …………………., casada sob o regime de separação de bens com ………………., residente em Rua ……………………… Cadaval e;
- …………………………, casada sob o regime de separação de bens com …………………………., residente em ………………………………….., Inglaterra e, de acordo com a Lei de Inglaterra e do País de Gales não existem outras pessoas com direito a herança face à sua Lei Nacional.” (cfr. declaração a fls. 3 a 6);
4) Em 18.08.2016, ……………………….., Advogada, traduziu para língua portuguesa registo testamentário, apostilha da Convenção de Haia de 5 Outubro de 1961, e testamento de ……………………, a fls. 124 a 129v.;
5) Em 26.08.2016, compareceu no Cartório Notarial de Lisboa, sito na Rua dos Sapateiros n.° 39, 1.0 Direito, perante o respectivo notário ………………., compareceram …………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………….., as quais declararam o constante do documento que é fis. 122 a 123v. dos autos, epigrafado “HABILITAÇÃ0”, que aqui se dá por integralmente reproduzido, no qual se refere que recorrente e recorrida são as únicas interessadas na herança da falecida mãe.
6) Em 08.02.2022, transitada em julgado em 14.03.2022, foi proferida sentença no proc. n.° ……………………………, que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte — Juízo Central Cível de Loures — Juiz 5, em que foi decidido, entre o mais: “a) Se reconhecem a A. e a R. como únicas herdeiras testamentárias e beneficiárias do património deixado, sob trust, por óbito de ……………. b) Se reconhece a A. como executora testamentária do testamento de …………….. c) Se condenam os RR. a restituir à herança de ……………………………. a quantia de € 6794, 36 (Seis mil, setecentos e noventa e quatro euros e trinta e seis cêntimos), acrescida de juros, à taxa legal em cada momento vigente, desde a citação até integral pagamento.” (cfr. fls. 215 e segs.).
Nesta acção figurava como autora …………………….. e como réus ……………………… e …………………………………..;
7) Em 03.05.2022, compareceu no Cartório Notarial de Leiria, sito na Avenida Marques de Pombal, Lote 21, R/C Dto., perante …………………………., colaboradora, com poderes delegados pela notária …………………., ……………………………., solteira, maior, com domicílio profissional na Rua …………………………………..., Leiria, “[...j que apresentou tradução, em duas folhas, impressas apenas no rosto, do documento qual fica em anexo. A tradução é parcial, feita apenas quanto a primeira e segunda folha do documento original, que se encontra escrito em inglês e que traduziu. A tradutora afirmou sob compromisso de honra que o texto foi por ela fielmente traduzido e está conforme o original (cfr. fls. 221);
8) Do mencionado documento pode ler-se, além do mais que foi emitido em 26 de novembro de 2019, ………….., faleceu a 22 de marco de 2013, o seu testamento foi registado em 10 de Junho junto do Tribunal Superior de Justiça, a administração da herança de …………………. foi concedida à executora testamentária ……………………, esta é a segunda homologação do testamento. A anterior homologação do testamento decorreu em Winchester no dia 26 de agosto de 2015. O requerimento indica que o valor bruto da herança no Reino Unido ascende a 16 768 £ e o valor líquido ascende a 12 918 £.
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Factos não provados:
Não existem.
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3. Fundamentos de direito
Do Direito
Da autoridade do caso julgado:
Invoca a recorrente a violação da autoridade de caso julgado, referindo que o despacho recorrido entra em contradição com a sentença proferida no proc. nº …………………….., que decidiu as questões que lhe foram colocadas por aplicação da lei do Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte.
“O caso julgado visa garantir fundamentalmente, o valor da segurança jurídica”[3] “fundando-se a protecção a essa segurança jurídica, relativamente a actos jurisdicionais, no princípio do Estado de Direito, pelo que se trata de um valor constitucionalmente protegido”[4].
O Prof Rui Pinto[5], a propósito da distinção entre caso julgado formal e autoridade do caso julgado, discorre o seguinte:
“I. A força obrigatória desdobra-se numa dupla eficácia, designada por efeito negativo do caso julgado e efeito positivo do caso julgado. O efeito negativo do caso julgado consiste numa proibição de repetição de nova decisão sobre a mesma pretensão ou questão, por via da exceção dilatória de caso julgado, regulada em especial nos artigos 577.º, al. i), segunda parte, 580.º e 581.º. Classicamente, corresponde-lhe o brocardo non bis in idem. O efeito positivo ou autoridade do caso lato sensu consiste na vinculação das partes e do tribunal a uma decisão anterior.
Classicamente, corresponde-lhe o brocardo judicata pro veritate habetur. Enquanto o efeito negativo do caso julgado leva a que apenas uma decisão possa ser produzida sobre um mesmo objeto processual, mediante a exclusão de poder jurisdicional para a produção de uma segunda decisão, o efeito positivo admite a produção de decisões de mérito sobre objetos processuais materialmente conexos, na condição da prevalência do sentido decisório da primeira decisão. Neste sentido, veja-se o Ac. do TRG de 07-08-2014/Proc. 600/14TBFLG.G1 (JORGE TEIXEIRA) enunciou que os “efeitos do caso julgado material projectam-se no processo subsequente necessariamente como excepção de caso julgado, em que a existência da decisão anterior constitui um impedimento a decisão de idêntico. Assim, TEIXEIRA DE SOUSA, O objecto da sentença e o caso julgado material objecto posterior, ou como autoridade de caso julgado material, em que o conteúdo da decisão anterior constitui uma vinculação a decisão do distinto objecto posterior”; identicamente, veja-se o Ac. do TRG de 17-12-2013/Proc. 3490/08.0TBBCL.G1 (MANUEL BARGADO). Explicado de outro modo, enquanto com o efeito negativo um ato processual decisório anterior obsta a um ato processual decisório posterior, com o efeito positivo um ato processual decisório anterior determina (ou pode determinar) o sentido de um ato processual decisório posterior”.
Para melhor entender a diferença entre a excepção de caso julgado e a autoridade de caso julgado, relembra-se o que decidiu o TRC, em acórdão proferido em 12.12.17, disponível em www.dgsi.pt., segundo o qual:
“I- A expressão “caso julgado” é uma forma sincopada de dizer “caso que foi julgado”, ou seja caso que foi objeto de um pronunciamento judicativo, pelo que, em sentido jurídico, tanto é caso julgado a sentença que reconheça um direito, como a que o nega, tanto constitui caso julgado a sentença que condena como aquela que absolve.
II- O instituto do caso julgado exerce duas funções: uma função positiva e uma função negativa. A primeira manifesta-se através de autoridade do caso julgado, visando impor os efeitos de uma primeira decisão, já transitada (fazendo valer a sua força e autoridade), enquanto que a segunda de manifesta-se através de exceção de caso julgado, visando impedir que uma causa já julgada, e transitada, seja novamente apreciada por outro tribunal, por forma a evitar a contradição ou a repetição de decisões, assumindo-se, assim, ambos como efeitos diversos da mesma realidade jurídica.
III- Enquanto na exceção de caso julgado se exige a identidade dos sujeitos, do pedido e da causa de pedir em ambas as ações em confronto, já na autoridade do caso julgado a coexistência dessa tríade de identidades não constitui pressuposto necessário da sua atuação”.
No processo proc. nº ……….. são partes …………. (que assume a posição de autora e …………. e o seu marido, ……….. (que assumem a posição de réus). Há identidade parcial de sujeitos.
Acontece porém, que o dito processo é uma acção de petição de herança de um valor monetário, sendo a causa de pedir a alegada existência de valores que a Recorrida teria em seu poder e pertenciam à herança, e o pedido a restituição desses valores à herança.
O objecto do litígio restringiu-se a “determinar se a Autora aqui cabeça de casal enquanto herdeira e executora testamentária, podia obter a condenação dos Réus a restituírem à herança de …………, a quantia de € 6.6867,00.”
Essa acção não teve por objecto a partilha do acervo hereditário deixado por ….
Os presentes autos de Inventário têm por objecto a partilha dos bens que compõem essa herança.
Ou seja, não há identidade nem de pedido nem de causa de pedir entre estes dois processos.
Mas, como referido “supra”, pode haver violação da autoridade de caso julgado, sem que se exija a coexistência da tríade de identidades.
Interessa pois, apurar se este tribunal se encontra numa posição em que possa contradizer a decisão judicial transitada em julgado no processo …………...
Como se diz e bem, no despacho recorrido, a sentença proferida proc. nº ……………. não só não levou em consideração a existência de ordenamentos jurídicos plurilegislativos, como é o caso do Reino Unido, como, acrescentamos nós, não abordou sequer o debate jurídico da questão ora em discussão. Não foi proferida na mesma qualquer decisão com força de caso julgado material que possa influir na tramitação destes autos.
Pelo que, não está o Tribunal “a quo” impedido de se pronunciar sobre qual deve ser a lei sucessória aplicável neste processo de inventário.
Conclui-se, pois, que não se verifica violação de autoridade de caso julgado.
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Do ordenamento jurídico aplicado à partilha:
Resulta dos factos provados que a Inventariada, …………., natural do Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte, de nacionalidade britânica, faleceu em 22.03.2013, no estado de viúva, na freguesia de …….., concelho do Cadaval, com última residência na ……………………………, Cadaval, tendo instituído como suas herdeiras testamentárias ………………………… e ………………………., suas filhas.
Foi igualmente dado como provado que adquiriu o imóvel onde residia, sito em Portugal, imóvel que faz parte da herança.
Refere o despacho ora posto em crise que, “o Regulamento (UE) n.º 650/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de Julho de 2012, relativo à competência, à lei aplicável, ao reconhecimento e execução das decisões, e à aceitação e execução dos actos autênticos em matéria de sucessões e à criação de um Certificado Sucessório Europeu, não é aplicável às sucessões das pessoas falecidas em 17.08.2015, ou após essa data. E que, tendo …………………… falecido em 22.03.2013, não tem o Regulamento aplicabilidade ao caso.
Efectivamente, considerando que o Reino Unido saiu da União Europeia em 31.01.2020, o referido regulamento nunca seria aplicável ao caso.
Não sendo aplicável o referido Regulamento, o passo seguinte, é o da verificação das normas internas de conflito aplicáveis.
O art.25º do Código Civil dispõe que as sucessões por morte são reguladas pela lei pessoal do sujeito.
O art. 31º nº. 1 do mesmo diploma, por sua vez, estatui que a lei pessoal é a da nacionalidade do individuo e o art. 62º nº.1 do CC, dispõe que “a sucessão por morte é regulada pela lei pessoal do autor da sucessão ao tempo do falecimento deste”.
Dos factos provados resulta que a Inventariada tinha a nacionalidade britânica à data do seu falecimento, que faleceu em Portugal e que o imóvel a partilhar se situa no território luso.
Acontece, porém que, do Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte coexistem diferentes sistemas legislativos locais, nomeadamente, o direito inglês, o direito escocês, o direito do País de Gales e o direito da Irlanda do Norte.
Não foi possível recorrer ao direito interno do desses Estados para resolver o conflito, porque, ao contrário do que a recorrente afirma, o Departamento de Cooperação Judiciária e Relações Internacionais da Procuradoria-Geral da República, não emitiu qualquer parecer no sentido de ser aplicável qualquer lei ao caso concreto. Como é possível, constatar da análise do documento 3 junto com a certidão de recurso instruída pela recorrente, este departamento limitou-se a indicar legislação e referencias bibliográficas, descrevendo o instituto das sucessões em Inglaterra, como sendo um “termo utilizado para o processo de obtenção do direito de se poder lidar com os processos legas e financeiros envolvidos no tratamento do património: dinheiro e imóveis (activos)de uma pessoa que faleceu”. Acrescentando que, na maioria dos casos, todos os executores nomeados têm de solicitar a concessão de um inventário de uma herança. No entanto, um ou mais executores podem solicitar por si próprios, desde que notifiquem os outros co executores. O co executor não candidato pode então opor-se ao pedido ou pedir para também ser um dos executores”.
Ou seja, havendo aqui referência expressa para o direito inglês, que nem sequer sabemos se é o aplicável (pois pode ser o do País de Gales, por exemplo), constata-se que a existência da nomeação de um executor do testamento, não constitui qualquer óbice à existência de um inventário em Tribunal. Até porque, havendo divergência entre as herdeiras, como já percebemos que há, quer pela existência desta acção, quer pela anteriormente identificada, o Tribunal sempre será o local próprio para definir os direitos de cada uma, relacionados com a sucessão de sua mãe.
Ora, dispõe precisamente, o artº 20 do Código Civil o seguinte:
1. Quando, em razão da nacionalidade de certa pessoa, for competente a lei de um Estado em que coexistam diferentes sistemas legislativos locais, é o direito interno desse estado que fixa em cada caso o sistema aplicável.
2. Na falta de normas de direito interlocal, recorre-se ao direito internacional provado do mesmo Estado; e, se este não bastar, considera-se como lei pessoal do interessado a lei da sua residência habitual”.
E por esta via, somos obrigados a concluir pela aplicação da lei portuguesa, pois é facto dado como provado que a falecida ………………….. residia em Portugal, à data da sua morte, abrindo-se a sucessão no momento da morte do seu autor e no lugar do último domicílio dele” (artº 2031 do Código Civil).
Em caso em tudo idêntico, decidiu deste modo o STJ, em acórdão proferido em 16.05.2018, no Processo 2341/13.8TBFVN.L1.[6]
Nessa mesma decisão, podemos atentar no seguinte:
“Nos termos do art.25º, do C.Civil (serão deste Código as demais disposições citadas sem menção de origem), em princípio, as sucessões por morte são reguladas pela lei pessoal dos respectivos sujeitos. Sendo que, por força do disposto no art.31º, nº1, a lei pessoal é a da nacionalidade do indivíduo. Por último, de harmonia com o disposto no art.62º, a sucessão por morte é regulada pela lei pessoal do autor da sucessão ao tempo do falecimento deste. Logo, no caso dos autos, tendo o falecido nacionalidade britânica, será, em princípio, a lei britânica a aplicável. Mas, sendo assim, estamos perante uma situação em que é competente a lei de um Estado em que coexistem diferentes sistemas legislativos locais, designadamente o direito inglês, o direito escocês e o direito da Irlanda do Norte. Trata-se, pois, de um ordenamento jurídico plurilegislativo, caso em que, nos termos do art.20º, a concretização do elemento de conexão (a nacionalidade) se fará com recurso ao direito interlocal do Estado estrangeiro e, na sua falta, ao respectivo DIP.
Se nem assim puder resolver-se a questão, então considera aquela disposição legal como lei pessoal do interessado a da sua residência habitual. Resulta, ainda, da mesma disposição legal que, no caso dos autos, o ordenamento jurídico plurilegislativo é de base territorial, já que o âmbito de aplicação de cada um dos sistemas de normas depende do território (cfr. os nºs 1 e 2, do citado art.20º). O princípio fundamental adoptado pelo legislador no nº1, do art.20º, é o de que compete ao Estado para o qual se remeteu determinar qual o sistema normativo que deve ser aplicado.
Naturalmente, bem se compreende que pertença ao legislador do sistema complexo determinar a esfera de competência de cada um dos sistemas particulares. Porém, no caso sub judice, todos estão de acordo em que não existem regras unificadas de direito interlocal no Reino Unido, assim como também não existe aí um Direito Internacional Privado unificado. O que implica que, nos termos da parte final do nº2, do art.20º, haja que considerar como lei pessoal do interessado a lei da sua residência habitual.
E é quanto a esta solução que não há unanimidade de pontos de vista, porquanto uns defendem que se trata de um critério subsidiário destinado a determinar apenas um dos sistemas regionais vigentes dentro do Estado nacional, ao passo que outros entendem que se prevê aí o recurso imediato a uma regra de conflitos subsidiária, considerando que tudo se devia passar como se não fosse possível determinar a nacionalidade do interessado.
A 1ª orientação foi seguida, designadamente, por uma lei sueca e pelo anteprojecto de 1951 do Professor Ferrer Correia, onde a ideia basilar era a de que a solução do problema tinha de procurar-se sempre no âmbito do sistema jurídico que fosse concretamente designado pelo factor de conexão nacionalidade (cfr. Ferrer Correia, in Lições de Direito Internacional Privado, I, pág.400, e Baptista Machado, in Lições de Direito Internacional Privado, 3ª ed., pág.240, autores que seguiremos de perto na exposição subsequente).
Nesse anteprojecto mandava-se atender, em 1º lugar, à nacionalidade de cada um dos Estados federados (quando se trate de um Estado federal e, além da nacionalidade federal, se reconheça ainda um vínculo de nacionalidade estadual), e, na falta deste vínculo, recorrer-se-ia, sucessiva e subsidiariamente, ao domicílio actual num dos territórios do Estado em causa, ao último domicílio num desses territórios (se o interessado estivesse agora domiciliado noutro país) e, por último (no caso de o interessado nunca ter tido domicílio num dos territórios do Estado em causa), aplicar-se-ia o direito vigente na capital do Estado plurilegislativo.
A 2ª orientação foi a preconizada no anteprojecto Ferrer Correia de 1964, por se ter considerado que a orientação do anteprojecto de 1951, além de complexa e um tanto arbitrária numa das suas soluções (aquela que consistia em aplicar o direito vigente na capital do país, quando o interessado nunca teve domicílio no seu Estado nacional) talvez não fosse inteiramente justificável.
E foi por esta 2ª orientação que o nosso legislador optou, seguindo a linha do anteprojecto de 1964, considerado bastante mais simples e prática.
Assim, o legislador do Código Civil considerou o mesmo ponto de partida, isto é, em princípio, o problema pertence ao sistema jurídico que se pretende aplicar e deve resolver-se de acordo com os critérios que ele mesmo forneça.
Porém, na hipótese de falharem sucessivamente os dois expedientes descritos no nº1 e na 1ª parte do nº2 do art.20º - direito interlocal e DIP do Estado estrangeiro – desiste-se de resolver a questão pela lei nacional do interessado, trocando-se a perspectiva desse sistema jurídico pela da lei da residência habitual.
Ou seja, face à impotência da lex patriae em resolver o problema que ela própria gerou, tudo se passa como se o interessado não tivesse nacionalidade, ou como se a nacionalidade dele fosse de averiguação impossível.
Deste modo, a regra da 2ª parte do nº2 do art.20º tanto se aplica no caso da pessoa que reside habitualmente no Estado de que é nacional, como no daquela que sempre residiu, ou pelo menos reside agora, em país estrangeiro.
Foi esta, pois, a opção do legislador português, embora possa, eventualmente ser susceptível de crítica, designadamente tendo em conta que a orientação das legislações mais recentes não é a mesma, mas sim a correspondente ao critério da conexão mais estreita.
Segundo Baptista Machado, ob.cit., pág.241, o vínculo de subnacionalidade que liga a pessoa a um dos Estados federados tem em geral um reduzido significado jurídico e pesa bem pouco no ânimo do interessado.
E acrescenta, ob. e loc. cits., «Além de que, em regra, a nacionalidade particular de um dos Estados federados estará ligada ao domicílio nesse Estado; e, em casos em que isso se não verifique, essa nacionalidade particular dilui-se quase por completo em face da nacionalidade federal, sobretudo se o interessado tem o seu domicílio em país estrangeiro».
Termina, dizendo que «Por outro lado, havia que considerar a importância fundamental da lex domicilii em matéria de estatuto pessoal. A aplicação da lex patriae não é nenhum imperativo categórico; é antes o resultado duma opção necessária entre duas conexões, ambas fundamentalmente válidas e legítimas em matéria de estatuto pessoal. Por último, há-de notar-se que o problema apresenta uma certa semelhança com aquele que resolve o nº2 do art.23º: perante a impossibilidade de determinar com segurança o conteúdo das normas materiais da lex patriae aplicáveis ao caso, haverá que recorrer a uma regra de conflitos subsidiária».
(…)
Na determinação do elemento de conexão, no que respeita aos interesses individuais, tem-se em consideração que os indivíduos tiram vantagens de serem submetidos, em tudo o que concerne ao seu estatuto pessoal, a uma lei a que se sintam ligados de maneira estreita e permanente.
Essa lei, obviamente, só poderá ser a do Estado nacional ou a do Estado do domicílio, sendo a tendência legislativa e doutrinária no sentido de substituir ao domicílio a residência habitual do indivíduo.
Na verdade, tanto a competência da lei da residência habitual como da lei nacional na definição do estatuto pessoal representam soluções justas e praticamente equivalentes.
Aliás, no próprio Parecer junto pela recorrente, da autoria do Professor Lima Pinheiro, faz-se referência a várias situações em que releva a residência habitual em matéria de estatuto pessoal (arts.17º, nº2, 18º, nº2, 31º, nº2, 32º, nº1, 52º, nº2, 53º, nº2, 54º, 56º, nº2, 57º, nº1 e 60º, nº3).
A 1ª orientação atrás referida é seguida, designadamente, por Magalhães Collaço e Lima Pinheiro, defendendo estes ilustres Professores que, no caso de o interessado não ter residência habitual dentro do Estado da nacionalidade, há uma lacuna, resultante da interpretação restritiva que fazem do art.20º, nº2, in fine, já que, segundo eles, a função deste preceito é indicar o sistema aplicável de entre os que integram o ordenamento complexo. Lacuna essa que deve ser integrada com recurso ao princípio da conexão mais estreita com um dos sistemas vigentes dentro da ordem jurídica da nacionalidade, que, no caso dos autos, seria o sistema inglês. Foi este, também, o entendimento seguido no acórdão recorrido, com base essencialmente na argumentação expendida pelo Professor Lima Pinheiro, aí citado. No entanto, salvo o devido respeito, tal argumentação não se nos afigura decisiva, ou, pelo menos, suficientemente decisiva para o efeito de impedir a interpretação da lei em causa nos termos preconizados pelo art.9º. Na verdade, o nº1 deste último artigo, manda reconstituir o pensamento legislativo e atender às circunstâncias em que a lei foi elaborada. Ora, o que resulta das circunstâncias históricas em que a lei foi elaborada é que o legislador do Código Civil optou pela orientação preconizada no anteprojecto Ferrer Correia de 1964, em detrimento da do anteprojecto de 1951, pelos motivos atrás referidos.
Sendo que tal orientação é no sentido de, no caso de falharem os dois expedientes descritos no nº1 e na 1ª parte do nº2 do art.20º, se trocar a perspectiva do sistema da lei nacional do interessado pela da lei da residência habitual, ainda que esta não coincida com o Estado de que é nacional.
Note-se que a expressão utilizada na 2ª parte, do nº2, do art.20º, é a seguinte: «considera-se como lei pessoal do interessado a lei da sua residência habitual».
A nosso ver, o texto da lei é fortemente impressivo no sentido de se ter pretendido, naquelas circunstâncias, substituir a lei pessoal da nacionalidade pela da residência habitual.
Não se pode, pois, dizer que o pensamento legislativo não tem na letra da lei um mínimo de correspondência verbal (cfr. o nº2, do art.9º). Antes pelo contrário, consideramos que a vontade real do legislador está clara e inequivocamente demonstrada através do texto legal.
A outra tese, interpretando restritivamente a 2ª parte, do nº2, do art.20º, implica a descoberta de uma lacuna, o que é pouco compaginável com a regra fixada no nº3, do art.9º, nos termos da qual: «Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados».
Refira-se, por último, que, no já aludido Parecer junto aos autos, da autoria do Professor Lima Pinheiro, diz-se, a dada altura (pág.7, nota 7) que o entendimento de Isabel Magalhães Collaço foi seguido no Acórdão da Relação de Évora de 28/10/93 e no Acórdão do STJ, de 27/9/94.
(…).
Entendemos, pois, que, no caso dos autos, há que considerar como lei pessoal do falecido BB a lei da sua residência habitual ao tempo do seu falecimento, ocorrido em 9/5/2010 (arts.62º e 20º, nº2, 2ª parte)”.
Nessa decisão do Tribunal superior, após exaustivo debate, sob as posições doutrinárias sobre o caso, entendeu-se que “no caso de falharem os dois expedientes descritos no nº1 e na 1ª parte do nº 2 do artº 20, se troca  perspectiva do sistema da lai nacional do interessado pela da lei da residência habitual, ainda que esta não coincida com o Estado de que é nacional.
Note-se que a expressão utilizada na 2ª parte do nº 2 do artº 20 é a seguinte: considera-se como lei pessoal do interessado a lei da sua residência habitual.
E, efectivamente, no referido preceito não se distingue os casos em que a residência habitual do “de cujus” é dentro ou fora do seu país de origem.
Quando a lei não distingue, a nosso ver, não deve o intérprete distinguir.
No caso em apreço, para além da residência última da testadora se situar no território nacional, um outro forte elemento de conexão existe, que permite reconhecer as vantagens da aplicação da lei portuguesa ao caso, o facto de o único bem a partilhar, ser um imóvel que se situa neste território.
Pelo que, concluímos que a lei aplicável à sucessão por morte de ………… é a lei portuguesa, pelo que o processo de inventário instaurado pela filha ………… deve prosseguir, tal como decidido na primeira instância.
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III – DECISÃO
Pelo exposto, atentas as disposições legais citadas e as considerações expendidas, julga-se improcedente o presente recurso e, confirma-se a decisão recorrida.
Custas pela apelante (art. 527 nºs 1 e 2 do Código de Processo Civil).
Notifique.
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Lisboa,8/2/2024
Marília Leal Fontes
Amélia Puna Loupo
Carla Mendes
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[1] Neste sentido cfr. GERALDES, Abrantes António, in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 5ª Edição, Almedina, 2018, págs. 114 a 116.
[2] Neste sentido cfr. GERALDES, Abrantes António, in “Opus Cit.”, 5ª Edição, Almedina, 2018, pág. 116.
[3] (cfr. Miranda, Jorge, in Manual de direito Constitucional, t.II, 3.ª ed., reim., Coimbra,1966, p.494),
[4] Canotilho, Gomes, in Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Coimbra, 1998, p.257).
[5] Revista Jugar on line, Novembro de 2018
[6] Disponível em www.dgsi.pt.