Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4817/19.4T9CSC.L1-9
Relator: FERNANDA SINTRA AMARAL
Descritores: CÓDIGO DA PROPRIEDADE INDUSTRIAL
COLOCAÇÃO NO MERCADO
CONTRAFACÇÃO DE MARCA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/25/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: (da responsabilidade da relatora)
I. Não se vê outra interpretação possível da expressão “puser em circulação” do art. 234.º, do CPI, na sua anterior versão, senão a de que equivale a “colocar no mercado” do actual art. 320º, al. d), do CPI, na redacção que lhe foi conferida pelo DL n.º 110/2018, de 10 de Dezembro.
II. Portanto, a anterior colocação em circulação, agora com a designação de colocação no mercado, passou a ficar incriminada na contrafacção, imitação e uso ilegal de marca, p. e p. pelo art. 320.º do CPI,.
III. De resto, só assim faz sentido tal previsão legal (seja a anterior “puser em circulação”, ou a actual “colocar no mercado”), pois o que o legislador do CPI pretende é evitar que o produto contrafeito entre no giro comercial, seja objecto de compra e venda comercial, o que só será possível com uma interpretação no sentido exposto.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 9ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação de Lisboa:

I- RELATÓRIO
I.1 No âmbito do processo de instrução nº 4817/19.4T9CSC, que correu termos pelo Juiz 2 do Juízo de Instrução Criminal de Cascais, Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, em que são arguidos a pessoa colectiva AA. e os seus administradores, BB e CC, com os demais sinais nos autos, foi proferida decisão instrutória, em .../.../2023, no que agora interessa, com o seguinte dispositivo [transcrição]:
“(…)
IV - DECISÃO
Em função do expendido, não pronuncio os arguidos AA, BB e CC pela prática de um crime de Contrafação, imitação e uso ilegal de marca, previsto e punido pelo Artigo 320.º do Código da Propriedade Industrial, aprovado pelo DL n.º 110/2018, de 10 de Dezembro que lhes vinha imputado, e consequentemente determino o oportuno arquivamento dos autos.
Custas pelo assistente, fixando-se a taxa de justiça em 2 U.CS – art. 515º, n.º 1, al. a) do Código de Processo Penal.
Notifique. (…)”
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I.2 Recurso da decisão
Inconformado com tal decisão, dela interpôs recurso o assistente DD, por requerimento datado de .../.../2023, para este Tribunal da Relação, com os fundamentos expressos na respectiva motivação, da qual extraiu as seguintes conclusões [transcrição]:
“(…)
Conclusões:
a) Em causa, nos presentes autos, está a prática de um crime de contrafação, imitação e uso ilegal de marca, previsto e punido pelo art.º 320.º do Código da Propriedade Industrial, aprovado pelo DL n.º 110/2018, de 10 de Dezembro, consubstanciam-se na comercialização de um Disco de fonogramas, vulgo “compilação”, intitulado “…”, que além de constituir uma marca registada a favor do Assistente, é também o título do maior sucesso da sua carreira musical (foi um dos maiores sucessos da música de dança a nível mundial, mantendo-se no topo de vendas, em vários países, durante largos meses).
b) O Despacho recorrido, não se pronunciou relativamente à subsunção da conduta da Denunciada AA, ao crime de Contrafação, imitação e uso ilegal de marca, considerando ter ocorrido ultrapassagem do direito de apresentação de queixa, fundando-se apenas na data em que o Assistente terá tido conhecimento da comercialização do Disco em causa, e a data de apresentação da queixa.
c) Mal: porque o Crime de contrafação, imitação e uso ilegal de marca, previsto e punido pelo art. 320.º do Código da Propriedade Industrial, traduz uma situação de crime permanente ou de execução contínua, em que está em causa apenas uma única conduta – um único crime – cuja execução se mantém ao longo de determinado período de tempo mais ou menos prolongado.
d) É a própria nomenclatura do tipo que o diz: “uso ilegal de marca” – enquanto a marca for (estiver a ser) ilegalmente usada, a conduta constitui crime, ou seja, enquanto persistir a comercialização de um produto sob uma marca registada, ocorrendo uso ilegal da mesma, a lesão do bem objeto de tutela é única e o facto perdura, protraindo-se no tempo a conduta ofensiva, apenas cessando a consumação (o crime é exaurido) no momento em que cessa o comportamento anti-jurídico (ação ou omissão ou ação e omissão) por vontade do agente ou por qualquer outra causa,
e) Sendo que, no caso, tal não ocorreu, dado que (aliás!), o Arguido fez prova de que a comercialização do CD que deu azo à queixa apresentada, se mantém, juntando aos autos comprovativos da aquisição do mesmo, já depois de apresentada a queixa.
f) Subjacente à decisão recorrida, está conclusão simplesmente bizarra, porque contrária à própria lógica do sistema jurídico, de que à Denunciada AA será então permitido continuar, hoje, e doravante, a lucrar com uma prática que, além de ilícita, é penalmente tutelada perpetrar um crime (porque, lá está, ele é “permanente”), nada podendo o Assistente – ou a justiça, aparentemente também de “mãos atadas” – fazer para que seja respeitado o inerente direito subjectivo!
g) Obviamente, a decisão recorrida violou o art.º 115.º, n.º 1 do Código Penal.
Termos em que deverá o Despacho recorrido ser revogado e substituído por Acórdão que julgue não verificada a caducidade do Direito de Queixa, assim se fazendo Sã e Serena
(…)”
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Foi admitido o recurso nos termos do despacho proferido a .../.../2023.
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I.3 Resposta ao recurso
Efectuada a legal notificação, a Digna Magistrada do Ministério Público respondeu ao recurso interposto pelo assistente, pugnando pela sua improcedência, apresentando as seguintes conclusões [transcrição]:
“ (…)
IV – Conclusões do Ministério Público:
1-Em tese a situação em apreço poderá preencher as alíneas a) e i) do artigo 320.º do Código de Propriedade Industrial, mas no particular afinal se entende que não preenche em virtude de se considerar, ao contrário do assistente, que com a celebração do contrato datado de ........2009, o assistente autorizou a prática pelos arguidos da publicação e comercialização do CD Duplo em causa.
2- Na situação em apreço e conforme requerimento de abertura de instrução a publicação e comercialização do CD Duplo em causa foi conhecida pelo assistente em ..., sendo que em declarações em instrução o afirmou que afinal foi em ..., em que a Sociedade arguida usou dois temas seus e bem ainda foi usado no título daquele a marca sua”...” sem o seu consentimento, sendo que tal se encontrava protegido pelo registo no INPI.
3-Conforme descrito no requerimento de abertura de instrução, e não tendo resultado versão diferente em sede de instrução, a comercialização do CD em causa não foi cessada por parte dos arguidos desde que o assistente teve conhecimento da situação em causa, pelo que efetivamente a conduta dos mesmos tem persistido no tempo, verificando-se assim uma conduta continuada.
4-O crime previsto no artigo 320.º do Código de Propriedade Industrial é um crime semi-público nos termos do disposto no artigo 328.º, n.º1, deste mesmo Diploma legal, devendo o procedimento criminal apenas se iniciar com a apresentação de queixa, a qual deverá ser efetuada no prazo de 6 meses a contar da data em que o ofendido tomou conhecimento dos factos, nos termos do artigo 115.º, n.º1, do C.P., pelo que, sendo a conduta dos arguidos continuada, o procedimento criminal apenas se encontra legalmente admissível 6 meses antes da queixa apresentada e tendo esta sido apresentada em ........2019, apenas podem estar em causa os factos parciais praticados a partir de ........2019, pelo que todos os demais atos parciais praticados pelos arguidos não podem ser apreciados porquanto a queixa efetuada pelo assistente não foi apresentada tempestivamente pelo assistente, tal como considerou o Tribunal na douta decisão instrutória (cfr. douto Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto em 26.11.2014 no processo n.º 201/10.3TAPVZ.P1, consultado em www.dgsi.pt que analisa uma situação de crime continuado e que aprecia o prazo de apresentação de queixa).
5-Relativamente aos factos alegadamente praticados a partir de ........2019 sempre cumpre dizer tal como já antes se sustentou em sede de inquérito em despacho final e em sede de debate instrutório “constata-se que, no contrato celebrado entre as partes datado de ........2009, encontra-se previsto que o queixoso “concede à Editora o direito e licença exclusivos de usar toda e qualquer gravação “master” sob o nome “...”, com o propósito de fabrico, venda, publicitação e qualquer forma de exploração, incluindo, mas não limitada, a todas as formas de difusão e execução pública, direitos de sincronização, direitos para uso online/internet e o direito ao uso do nome da master e do artista em toques digitais e de telemóvel…”. Ora, segundo o referido contrato o queixoso concedeu à denunciada o direito de realizar as operações acima elencadas “a todas as formas de difusão e execução pública” e não apenas em toques digitais e de telemóvel. Esta previsão contratual permite, a nosso ver, o direito de a denunciada identificar coletâneas de músicas de verão não exclusivamente da autoria do denunciante e mixadas por outro DJ e editar, produzir e distribuir um CD de compilação de músicas intitulado “...”
Nestes termos, devem Vossas Excelências fazer assim, como sempre, a costumada
JUSTIÇA.
(…)”
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I.4 Parecer do Ministério Público
Remetidos os autos a este Tribunal da Relação, nesta instância o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, nos termos do qual, aderindo à posição da Digna Magistrada do Ministério Público na primeira instância, pronunciou-se no sentido da improcedência do recurso.
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I.5. Resposta
Pese embora tenha sido dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não foi apresentada resposta ao sobredito parecer.
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I.6 Concluído o exame preliminar, prosseguiram os autos, após os vistos, para julgamento do recurso em conferência, nos termos do artigo 419.º do Código de Processo Penal.
Cumpre, agora, apreciar e decidir.
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II- FUNDAMENTAÇÃO
II.1- Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objeto do recurso:
Conforme decorre do disposto no n.º 1 do art.º 412.º do Código de Processo Penal, bem como da jurisprudência pacífica e constante [designadamente, do STJ1], e da doutrina2, são as conclusões apresentadas pelo recorrente que definem e delimitam o âmbito do recurso e, consequentemente, os poderes de cognição do Tribunal ad quem, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso a que alude o artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal3, relativas a vícios que devem resultar directamente do texto da decisão recorrida, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum, a nulidades não sanadas (n.º 3 do mesmo preceito), ou quanto a nulidades da sentença (artigo 379.º, n.º 2, do C.P.P.).
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II.2- Apreciação do recurso
Face às conclusões extraídas pelo recorrente, da motivação do recurso interposto, a questão decidenda a apreciar e decidir é a seguinte:
- se a queixa apresentada pelo assistente, que deu origem aos presentes autos, é extemporânea.
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Vejamos.
II.3- Da decisão recorrida [transcrição dos segmentos relevantes para apreciar a questão objecto de recurso]:
“(…)
III- Iniciou-se o presente inquérito com a queixa apresentada em ........2019, constante de fls. 4 a 8 dos autos, por DD contra AA, imputando-lhe factos susceptíveis de configurar, em abstrato, a prática de um crime de uso indevido de marca, p. e p., pelos artigos 222º, n.º 1 e 245.º, n.º 1, als. a), b) e c), todos do Código de Propriedade Industrial.
Posteriormente, em ........2022 o Ministério Público proferiu a fls. 89 e ss. despacho de arquivamento do inquérito por entender que os autos não reuniam indícios da prática de qualquer crime por parte da denunciada AA..
Sucede que por discordar de tal arquivamento, veio assistente DD a abertura da instrução, requerer a abertura de instrução, requerendo que a arguida AA e seus administradores, BB e CC, fossem pronunciados pela prática de um crime de Contrafação, imitação e uso ilegal de marca, previsto e punido pelo Artigo 320.º do Código da Propriedade Industrial, aprovado pelo DL n.º 110/2018, de 10 de Dezembro.
Nessa sequência, veio a arguida AA apresentar a fls. 128-129 requerimento, em que invoca, em síntese, que não é verdade que o assistente apenas tenha tomado conhecimento do lançamento do CD em ... como alega no requerimento de abertura de instrução, pois a coletânea começou a ser produzida no início de ... e foi editada em ...-...-2009, com o conhecimento e anuência daquele.
Mais invoca aquela arguida que resulta dos documentos juntos com o mencionado requerimento que, pelo menos desde o dia ...-...-2010, o assistente tem conhecimento da produção e edição do álbum, pelo que atento o disposto no art. 115.º do Cód. Penal já se extinguiu o direito de queixa.
Apreciando.
A queixa do assistente DD contra AA, foi apresentada em ........2019 (fls. 4-8).
O crime de contrafação, imitação e uso ilegal de marca, previsto e punido pelo art. 320.º do Código da Propriedade Industrial, aprovado pelo DL n.º 110/2018, de 10 de Dezembro tem natureza semi-pública, atento o disposto no art. 328.º, n.º1 do mesmo diploma legal.
Por sua vez, consagra o art. 115.º n.º1 do Código de Processo Penal que "O direito de queixa extingue-se no prazo de seis meses a contar da data em que o titular tiver conhecimento do facto ou dos seus autores...".
Decorre do teor da queixa crime, concretamente, do seu artigo 3.º, que o queixoso/ofendido e, agora, assistente teve conhecimento dos factos em apreço neste processo no primeiro fim de semana de ... .
Nesta fase de instrução, o assistente prestou declarações e tendo sido instado dobre a altura em que teve conhecimento dos factos dos autos, reiterou que teve conhecimento na altura em que indicou na sua queixa, a saber o primeiro fim de semana de ....
Assim, das declarações do assistente resulta que o assistente teve conhecimento da produção e edição do álbum, pelo menos, desde o primeiro fim de semana de ....
Ora, a queixa crime foi apresentada, via mensagem correio electrónico, no dia ...-...-2019.
Como já referimos, o procedimento criminal quanto àqueles factos depende de queixa dos ofendidos, nos termos do n.º 3 do artigo 205.º do Código Penal, direito a exercer pelos seus titulares no prazo de seis meses a contar da data em que os mesmos tiverem tido conhecimento dos factos, conforme prescrito no artigo 115.º, n.º 1 do Código Penal.
Assim sendo, no caso em apreço, quando foi apresentada queixa quanto a esses factos – em ... de ... de 2019 - o direito de queixa relativamente a tais factos já tinha caducado, segundo aquela disposição penal, pelo que o procedimento criminal relativamente a estes factos não é legalmente admissível.
Atento o exposto e por se verificar a caducidade do direito de queixa nos termos sobreditos, importa proferir despacho de não pronuncia dos arguidos quanto aos factos de que se encontram acusados pelo assistente.
(…)”
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II.4- Da questão decidenda
Pretende o recorrente, com o presente recurso, que o despacho recorrido seja revogado e substituído por “Acórdão que julgue não verificada a caducidade do Direito de Queixa”.
Está, pois, em causa, no presente recurso, face ao teor das respectivas conclusões, apenas a questão da caducidade do direito de queixa, pois é exclusivamente sobre esta questão que versam as conclusões de recurso apresentadas pelo recorrente, que, como expusemos supra, definem e delimitam o âmbito do recurso e, consequentemente, os poderes de cognição do Tribunal ad quem.
Vedada está, pois, a apreciação deste Tribunal, relativamente à apreciação substancial da existência ou não dos indícios da prática do crime imputado pelo assistente, por parte dos arguidos [matéria aludida na resposta ao recurso, por parte do Ministério Público, na 1ª instância]. Aliás, sempre se acrescente, também o despacho recorrido apenas versou sobre a questão da caducidade do direito de queixa e nada mais.
Vejamos.
Como o próprio assistente recorrente o refere, na sua peça recursiva, o que está em causa, nos presentes autos, é a alegada prática de um crime de contrafação, imitação e uso ilegal de marca, previsto e punido pelo art. 320.º do Código da Propriedade Industrial (CPI), aprovado pelo DL n.º 110/2018, de 10 de Dezembro, imputado por aquele aos arguidos.
Argumenta o recorrente que o referido crime traduz uma situação de crime permanente ou de execução contínua, em que está em causa apenas uma única conduta, um único crime, cuja execução se mantém ao longo de determinado período de tempo mais ou menos prolongado.
Alega o recorrente que é a própria nomenclatura do tipo que o diz: “uso ilegal de marca”, que enquanto a marca for e estiver a ser ilegalmente usada, a conduta constitui crime, ou seja, enquanto persistir a comercialização de um produto sob uma marca registada, ocorrendo o uso ilegal da mesma, a lesão do bem objecto de tutela é única e o facto perdura, protraindo-se no tempo a conduta ofensiva, apenas cessando a consumação (o crime é exaurido) no momento em que cessa o comportamento anti-jurídico.
Acrescenta que tal cessação ainda não ocorreu no caso concreto, tendo o recorrente apresentado prova no sentido de demonstrar que a comercialização do CD que deu azo à queixa apresentada, se mantém (juntando aos autos comprovativos da aquisição do mesmo, já depois de apresentada a queixa).
Conclui, assim, o recorrente que não se verifica a caducidade do seu direito de queixa, a qual, no seu entendimento, entrou em tempo, tendo o Tribunal a quo, ao concluir pela não pronúncia dos arguidos, violado o disposto no art.º 115.º, n.º 1 do Código Penal.
Pretende, portanto, o recorrente que se considere o crime em análise como permanente, alegando que enquanto persistir a comercialização de um produto sob uma marca registada, ocorrendo o uso ilegal da mesma, a lesão do bem objecto de tutela é única e o facto perdura, apenas cessando a consumação no momento em que cessa o comportamento anti-jurídico.
Não assiste, porém, razão, ao recorrente.
A questão prende-se com a definição da colocação no mercado, mencionada na al. d) do preceito legal em análise.
Na verdade, a indiciada conduta dos arguidos, no novo Código de Propriedade Industrial (CPI), aprovado pelo DL n.º 110/2018, de 10 de Dez., encontra-se prevista e punida, desde logo, na alínea d) do artigo 320º, que, sob a epígrafe “Contrafação, imitação e uso ilegal de marca”, dispõe nos termos seguintes:
«É punido (…) quem, sem consentimento do titular do direito: d) Importar, exportar, distribuir, colocar no mercado ou armazenar com essas finalidades, produtos com marcas contrafeitas ou imitadas; (…).».
Ora, o significado e o alcance do acto de “colocar no mercado”, previsto na al. d) do art. 320.º do actual Código da Propriedade Industrial, aprovado pelo DL nº 110/2018, de 10/12, equivale ao acto de “pôr em circulação” previsto no art. 324.º da versão anterior do mesmo Código, ou seja, na do DL nº 36/2003, de 05-03, com a redacção introduzida pela Lei n.º 83/2017, de 18-08 – veja-se neste sentido, entre outros, o Ac. RC, datado de 02/03/2022, P. nº 58/18.6PEVIS.C1, in www.dgsi.pt..
Pode ler-se na Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 132/XIII ( - Publicada no Diário da Assembleia da República, II Série A, n.º 114, em 16-5-2018.) que esteve na origem do DL n.º 110/2018, de 10 de Dez., diploma que aprovou o novo Código de Propriedade Industrial:
“ (…) a presente proposta de lei de autorização legislativa visa autorizar o Governo a: a) transpor para a ordem jurídica interna a Diretiva (UE) n.º 2015/2436, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de dezembro de 2015, que aproxima as legislações dos Estados-Membros em matéria de marcas (reformulação); b) transpor para a ordem jurídica interna a Diretiva (UE) 2016/943, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 8 de junho de 2016, relativa à proteção de know-how e de informações confidenciais (segredos comerciais) contra a sua obtenção, utilização e divulgações ilegais; c) simplificar e clarificar os procedimentos administrativos relativos à atribuição, manutenção e cessação de vigência dos direitos de propriedade industrial previstos no Código da Propriedade Industrial; e, por último, d) introduzir mecanismos que permitam fortalecer o sistema de proteção dos direitos e imprimir maior eficácia à repressão das infrações.
(…) A introdução de melhorias aos regimes previstos no Código da Propriedade Industrial passa também por aperfeiçoar alguns dos mecanismos em matéria de repressão das condutas que violem direitos de propriedade industrial, em linha com a aposta e o investimento que tem vindo a ser feito pelas autoridades públicas no combate à contrafação. (…).”
Portanto, ao reconhecer-se o investimento das autoridades públicas no combate à contrafacção, não faria sentido que o legislador ao alterar o Código de Propriedade Industrial deixasse cair da tutela penal determinadas condutas com relevância para os direitos da propriedade industrial e para o crescimento económico.
Impõe-se, portanto, concluir que o legislador não fez cair a anterior previsão legal do acto de “pôr em circulação” previsto no art. 324.º da versão anterior do CPI, ou seja, na do DL nº 36/2003, de 05-03, antes a tendo substituído pela previsão do acto de “colocar no mercado”, previsto na al. d) do art. 320.º do actual CPI, aprovado pelo DL nº 110/2018, de 10/12.
É unânime a jurisprudência conhecida sobre esta matéria: Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra de 29/09/98, in CJ , ano XXIII, Tomo IV; Ac. de 10/02/2010, proferido pelo Tribunal da Relação do Porto (Processo nº 5/06.8FBVRL.P1), disponível in www.dgsi.pt; Ac. da Relação do Porto, processo 0545151, de 29-3-2006; Ac. da Relação do Porto, de 5-2-2007 no processo 0714122, 5-2-2007(JTRP00040845; Ac. da Relação do Porto, de 16-12-1998, processo 9640888; Ac. da Relação do Porto, de 5-3-2008, processo 0746287; e Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 05-12-2007 (Processo nº 0714122), in www.dgsi.pt..
Assim, transpondo os ensinamentos dali decorrentes, para a situação in casu, terá que se entender que o produto (alegadamente) contrafeito (no caso um CD musical) é posto em circulação, ou seja, é colocado no mercado, no momento do seu lançamento – data de que não dispomos, mas que necessariamente terá que ser anterior à data do conhecimento de tal facto, por parte do assistente – ..., conforme declarações do mesmo em Instrução.
Foi nesse momento que o crime se consumou – no momento do seu lançamento público, altura em que o CD foi introduzido no giro comercial.
Não se vê outra interpretação possível de “puser em circulação” do art. 234.º, do CPI, que equivale a “colocar no mercado” do actual art. 320º, al. d), do CPI, na redacção que lhe foi conferida pelo DL n.º 110/2018, de 10 de Dezembro.
Portanto, a anterior colocação em circulação, agora com a designação de colocação no mercado, passou a ficar incriminada na contrafacção.
De resto, só assim faz sentido tal previsão legal (seja a anterior “puser em circulação”, ou a actual “colocar no mercado”), pois o que o legislador do CPI pretende é evitar que o produto contrafeito entre no giro comercial, seja objecto de compra e venda comercial, o que só será possível com uma interpretação, in casu, no sentido exposto.
Veja-se, neste sentido, relativamente à versão antiga do CPI, mas totalmente aplicável, adaptadamente, à situação in casu, o Ac RL, datado de 15/02/2011, P. nº 736/08.8PBBRR.L1-5, in www.dgsi.pt..
Assim, aqui chegados, é indiferente à consumação do crime que o agente continue a vender o CD alegadamente contrafeito.
Ele consumou-se, como supra expusemos, quando foi colocado no mercado, ou posto em circulação, o que ocorreu no momento do seu lançamento público, momento em que foi introduzido no giro comercial – data, repetimos, de que não dispomos, mas que necessariamente terá que ser anterior à data do conhecimento de tal facto, por parte do assistente – ..., conforme declarações do mesmo em Instrução.
Não estamos, portanto, ao contrário do aduzido pelo recorrente, perante um crime permanente, nem tão-pouco, como foi sustentado pelo Ministério Público, um crime continuado, mas, antes, perante um crime que se consumou no momento concreto, preciso e único, da colocação no mercado do CD (alegadamente) contrafeito.
Portanto, a tese avançada pelo assistente, de considerar o crime em apreço como um crime permanente, sustentando estar sempre em tempo, enquanto persistir a comercialização do mencionado CD, o exercício do direito de queixa, não deve, assim, ser aceite.
O crime de contrafação, imitação e uso ilegal de marca, p. e p. pelo art. 320.º do CPI, aprovado pelo DL n.º 110/2018, de 10 de Dezembro, tem natureza semi-pública, atento o disposto no art. 328.º, n.º1 do mesmo diploma legal, ou seja, portanto, o respectivo procedimento criminal depende de queixa dos ofendidos.
Vejamos, então, se a queixa apresentada nos autos, pelo assistente recorrente, em .../.../2019, o foi em tempo, ou se, pelo contrário, se verifica a caducidade de tal direito, como decidido no despacho recorrido.
Impõe-se, desde logo, saber qual a natureza do prazo para o exercício do direito de queixa, ou seja, se a sua natureza é substantiva ou processual/adjectiva.
O prazo substantivo é o estabelecido para o exercício de um direito subjectivo, ou seja, é o período durante o qual o direito tem de ser exercido.
Já os prazos processuais são fixados para, depois de submetida a apreciação do direito perante o tribunal, se delimitar o tempo em que, dentro dos processos já instaurados, devem ser praticados os actos considerados pela lei adjectiva como adequados para serem discutidas as questões processuais colocadas pela controvérsia entre os intervenientes sobre o direito invocado.
A queixa, em si, está abrangida pelo direito constitucional de petição previsto no artigo 52.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa e funciona como uma das formas de defesa dos cidadãos dos seus direitos.
No âmbito do processo penal, a queixa é um pressuposto da punição de certos crimes, em que o respectivo titular é o ofendido, considerado este último pelo artigo 113.º n.º 1 do Código Penal (CP), como sendo o titular do interesse protegido.
O direito de queixa é conferido a quem a lei quis especialmente proteger com a incriminação. Todo o direito subjectivo nasce para o seu titular a partir do momento da violação do direito e tem um prazo para ser exercido.
O prazo para o exercício de um direito é um prazo de caducidade ou de preclusão, exterior ao exercício processual desse direito e como tal um prazo peremptório fixado na lei.
Como salienta Carvalho Fernandes 4, o direito, não sendo respeitado, extingue-se pelo seu não exercício dentro do limite temporal fixado na lei.
Em termos penais, o direito de queixa pode ser exercido, dado o disposto no artigo 115.º, n.º 1 do CP, entre outros casos, quando o titular tiver conhecimento do facto (violação desse direito) e dos seus autores e no prazo de seis meses.
Com efeito, consagra o citado normativo, que "O direito de queixa extingue-se no prazo de seis meses a contar da data em que o titular tiver conhecimento do facto ou dos seus autores...".
Trata-se de um prazo de caducidade, subordinado às regras do artigo 279.º do Código Civil, conforme defendido pelas doutrina 5 e jurisprudência 6, ao qual não são aplicáveis as normas processuais, ou seja, o Código Processo Civil, mas as normas substantivas relativas à caducidade do referido direito, no caso o Código Penal e subsidiariamente pelo Código Civil.
Assim, baixando à situação in casu, temos o seguinte cenário:
- a queixa foi apresentada nos autos, pelo assistente recorrente, em .../.../2019;
- o crime que foi objecto de denúncia, consumou-se no momento do lançamento público do CD (alegadamente) contrafeito, data de que não dispomos, mas que necessariamente terá que ser anterior à data do conhecimento de tal facto, por parte do assistente;
- a data do conhecimento de tal facto, ou seja, o momento do conhecimento do direito por parte do assistente, ocorreu, como resulta das suas próprias declarações já em sede de Instrução, em ....
Ora, perante tal cenário, dependendo o procedimento criminal quanto ao crime denunciado, de queixa do ofendido, nos termos do nº 1, do art. 328.º, do CPI, direito a exercer pelo seu titular no prazo de seis meses a contar da data em que o mesmo teve conhecimento dos factos, conforme prescrito no artigo 115.º, n.º 1 do Código Penal, logo resulta claro e manifesto que, quando foi apresentada queixa, nos presentes autos, em ... de ... de 2019, o direito de queixa relativamente a tais factos tinha já caducado, pelo que o procedimento criminal relativamente a tais factos não é legalmente admissível.
Atento o exposto, o despacho do juiz de instrução que decidiu não pronunciar os arguidos pelo referido crime, com base na caducidade do referido direito de queixa, não merece qualquer censura, improcedendo, portanto, o recurso interposto.
»
III- DISPOSITIVO
Pelo exposto, acordam os juízes da 9.ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação de Lisboa em negar provimento ao recurso interposto pelo assistente, mantendo-se o despacho recorrido nos seus precisos termos.
Custas pelo recorrente, fixando a taxa de justiça em 3 UCS [artigo 515º, nº 1, al. b) do Código de Processo Penal e artigo 8º, nº 9, do RCP, com referência à Tabela III].
Notifique nos termos legais.
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Lisboa, 25 de Janeiro de 2024
(O presente acórdão foi processado em computador pela relatora, sua primeira signatária, e integralmente revisto por si e pelos Exmos. Juízes Desembargadores Adjuntos – art. 94.º, n.º 2 do Código de Processo Penal - encontrando-se escrito de acordo com a antiga ortografia)
Os Juízes Desembargadores,
Fernanda Sintra Amaral
Maria Ângela Reguengo da Luz
José António Gonçalves Castro
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1. Indicam-se, a título de exemplo, os Acórdãos do STJ, de 15/04/2010 e 19/05/2010, in http://www.dgsi.pt.
2. Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág.335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., Rei dos Livros, 2011, pág.113.
3. Conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada pelo Acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95 de 19/10/1995, publicado no DR/I 28/12/1995.
4. FERNANDES, Carvalho – “Teoria Geral do Direito Civil II: Fontes, Conteúdo e Garantia da Relação Jurídica”. Universidade Católica Editora. 5.ª edição revista e atualizada. 2014. P. 706. ISBN 978-972-54-0274-0.
5. [3] Cf. ALBUQUERQUE, Paulo Pinto – “Comentário do Código Penal: À Luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”. 3.ª edição atualizada. Universidade Católica Editora. P. 471 anotação 11. ISBN 978-972-54-0489-8.
6. [4] Entre inúmeros Acórdãos que podem ser consultados a este propósito, designadamente na anotação ao artigo 115.º do Código Penal publicado no site da PGR, cabe salientar o Ac. do TRP de 13-07-2011, proferido no processo n.º 773/08.2TAVRL.P1 em que foi relatora EDUARDA LOBO onde é referido o seguinte: “I. O prazo para o exercício do direito de queixa [artº115º, do CP] é um prazo de caducidade, de natureza substantiva, uma vez que ainda não existe um processo. II. Tal prazo está sujeito à contagem do artº279º do CC, pelo que se o seu termo ocorrer ao domingo ou feriado, transfere-se para o primeiro dia útil seguinte. III. O mesmo acontece se o termo do prazo acorrer a um sábado. IV. A forma de contagem de um prazo, ainda que de natureza substantiva, em nada contende com a forma de entrega ou remessa a juízo de peças processuais [artº150º, do CPC]. V. Se a queixosa optou por praticar o acto [apresentação da queixa] em juízo e por escrito, através da remessa pelo correio, sob registo, vale como data da prática do acto a da efectivação do respectivo registo postal [artº150º, nº2, al. b)].