Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
20237/21.8T8LSB.L1-6
Relator: NUNO LOPES RIBEIRO
Descritores: OMISSÃO DE REALIZADAÇÃO DA AUDIÊNCIA PRÉVIA
NULIDADE DA DECISÃO
CONVITE ÁS PARTES PARA PRONÚNCIA POR ESCRITO
CUMPRIMENTO DO CONTRADITÓRIO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/08/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I. A omissão de audiência prévia quando a mesma não podia ser dispensada determina a nulidade da decisão.
II. Se a autora não responde aos convites para pronúncia por escrito e no prazo concedido por despacho, sobre a excepção de prescrição e para discussão de facto e direito sobre o mérito da causa, não se mostra cumprido o contraditório nem se mostra precludido o direito a pronúncia no início da audiência prévia, pelo que não será admissível a dispensa desta.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa

I. O relatório
A
interpôs a presente acção comum, contra
B, C, D, E e F,
peticionando:
1) a presente ação ser julgada procedente por provada e, consequentemente, devem os Réus ser condenados a:
a. Reparar as canalizações, paredes e o pavimento do prédio sito na Rua A, nº 17 em Lisboa de modo que os mesmos não afetem o imóvel da A.
b. Reparar a parede e o pavimento do prédio sito na Rua A nº 15, cave direita, em Lisboa de modo a reparar os danos provocados pela má manutenção e conservação do imóvel dos RR, para prevenir infiltrações de água e humidades no imóvel da A.
c. Indemnizar a A pelos danos patrimoniais emergentes, já verificados e bem assim os a verificar em execução de sentença, quer lucros cessantes e 
d. bem assim os danos não patrimoniais pela ansiedade que este problema provoca à A, em valor não inferior a €5.000,00.
e. A título de privação do uso do imóvel a A deve ser indemnizada por todos os meses, desde Setembro de 2017, que a aqui A não conseguiu arrendar o imóvel sua propriedade, pelos valores mensais a fixar pelos senhores peritos.
f. A título de sanção pecuniária compulsória, pagar à A o montante de que vier a ser fixado pelo tribunal, mas não inferior a €100,00 (cem euros) por cada dia de atraso no cumprimento do que os RR forem sentenciados.
Invoca a autora, em resumo, que a fracção autónoma de que é proprietária sofreu infiltrações provenientes da canalização do prédio contíguo, propriedade dos réus, que lhe causaram os danos que discrimina, cuja reparação e indemnização estes se recusam a suportar.
Citados, os réus contestaram, excepcionando a prescrição do direito invocado pela autora, impugnando motivadamente parte da factualidade alegada – em síntese, alegando que as infiltrações se devem a deficiente vedação da boca-de-incêndio no local - e propugnando pela improcedência total da demanda.
Convidada para tanto, a autora respondeu à excepção de prescrição, propugnando pela respectiva improcedência e alegando, em resumo, que, antes da presente, propôs uma acção com os mesmos fundamentos contra o administrador do condomínio do prédio dos réus, sendo que a referida acção improcedeu por se ter apurado que o mesmo prédio não se encontra sujeito ao regime de propriedade horizontal, circunstância que não terá impedido a interrupção do direito invocado pela autora bem como a suspensão de prazos de prescrição decorrente da legislação aprovada em virtude da epidemia covid-19.
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Com data de 21/9/2022, foi proferido o seguinte despacho:
Por despacho proferido em 28.03.2022 determinou-se a notificação da autora para responder à excepção de prescrição deduzida pelos réus.
Tal despacho foi notificado por transmissão electrónica de dados, por documento elaborado em 29.03.2022.
A autora apresentou resposta por requerimento de 05.06.2022
Assim, e considerando o disposto no artigo 248º do CPC, o prazo para apresentação de terminou no dia 11.04.2022, ao qual acresceriam 3 dias úteis, nos termos previstos no artigo 139º do CPC, ou seja, 14.04.2022.
Face ao exposto, o requerimento de resposta é intempestivo, pelo que é o mesmo rejeitado.
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Em 28/2/2023, foi proferido o seguinte despacho:
Compulsados os autos, considera-se que os mesmos dispõem de todos os elementos necessários que permitem conhecer, de imediato, do mérito da causa.
De tal decorre que a audiência prévia apenas se destinaria ao fim previsto na alínea b) do nº 1 do artigo 591.º do CPC, motivo pelo qual, por razões de simplificação e agilização processual, deve ser ponderada a dispensa da sua realização.
Assim, e antes de mais, ao abrigo do disposto nos artigos 3º, nº 3, 6º, nº 1, e 547º do CPC (neste sentido, cfr. o Ac. da Relação de Lisboa de 05.05.2015, p. 1386/13.2TBALQ.L1- 7, in www.dgsi.pt), notifique as partes para, em 10 dias, dizerem o que tiverem por conveniente quanto dispensa de audiência prévia e usarem, por escrito, a faculdade prevista na mencionada alínea b) do nº 1 do artigo 591º do CPC.
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Notificados, a autora nada declarou e os réus responderam, dado o seu acordo à dispensa da audiência prévia.
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Em 29/5/2023, foi proferido decisão, com o seguinte dispositivo:
Encontrando-se assegurado o exercício do contraditório e inexistindo necessidade de realização de audiência prévia, ao abrigo do disposto nos artigos 593º, n.º do Código de Processo Civil, dispenso a sua realização.
(…)
Pelo exposto, julgo procedente, por provada, a excepção de prescrição invocada e, consequentemente, absolvo os réus … do pedido formulado pela autora ….
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Inconformada, a autora interpôs recurso de apelação para esta Relação, formulando na sua alegação as seguintes conclusões:
1- O presente recurso tem como fundamentos:
a) a nulidade da sentença proferida, por omissão da audiência prévia que a lei considera obrigatória.
b) a interpretação errada dos factos expostos subsumidas em normas jurídicas não aplicáveis ao caso concreto, porquanto os factos continuados ainda não cessaram e por tal o prazo de prescrição ainda não começou a contar.
c) Uma interpretação inconstitucional do artigo 279º do CPC porquanto se os aqui RR contestaram a primeira acção ao receberem a citação da mesma, deve considerar-se que tomaram conhecimento dos factos e dos seus direitos, pelo ao intervirem nessa acção, deve considerarse o prazo suspenso.
2- A A., aqui recorrente intentou ação declarativa de condenação contra os RR visando a reparação e/ou indemnização dos danos sofridos em sua propriedade, nomeadamente danos resultantes de infiltrações, desde 2017 até à presente data, causadas pelo prédio adjacente ao seu, da propriedade dos RR.
3- A A. por não ter conhecimento da natureza do prédio da propriedade dos RR. intentou previamente uma ação, com o mesmo fim, contra o condomínio que presumiu ser o prédio adjacente uma propriedade horizontal.
4- Motivo pelo qual tal sentença deve ser considerada nula, por omissão de ato que a lei determina como obrigatório, qual seja a realização da Audiência Prévia.
5- Determina a lei que, nas acções que não hajam de prosseguir o juiz é obrigado a convocar a audiência prévia, nº1 do art.º 593 (à contrário); al. b) do nº 1 do art.º.591.
6- Os RR da presente acção foram citados na primeira acção e vieram, nessa ação anterior, contestar como se RR fossem dizendo que o prédio não estava constituído em propriedade horizontal, o que lhe resultou uma sentença de absolvição da instância de um condomínio que nunca existiu.
7- A aqui A propôs a segunda ação, com o mesmo fim, mas agora contra os reais proprietários e aqui RR / recorridos, os quais contestaram por uma segunda vez, contestaram por impugnação e exceção peremptória de prescrição.
8- O Tribunal a quo julgou, em saneador-sentença, procedente a excepção de prescrição deduzida pronunciando-se sobre as infiltrações que ocorreram em 2017.
9- Mas não se pronunciando sobre as infiltrações que ocorreram entre 2017 e 2023 (à presente data), omitindo na sua decisão sobre as infiltrações socorridas durante esse período de onde resulta a nulidade da sentença, por omissão de pronúncia (art.º 615º, nº 1, d)
10- Isto porque todo o articulado da petição inicial foi elaborado transmitindo a ideia clara e irrefutável de danos continuados, motivo pelo qual, o prazo de prescrição não começou a correr. cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14.03.2019 - processo 2446/15.0T8BRG.G2. S1
11- Ou seja, o prazo de prescrição dos danos decorrentes das infiltrações sofridas na propriedade da Autora, não começam a correr porquanto estamos diante de danos continuados;
12- Se a aqui A não se pronuncia sobre a prescrição sobre as infiltrações ocorridas em 2017, não podia o saneador deixar de considerar que, sendo infiltrações ainda a decorrer, como facto continuado, não podia haver prescrição referente a infiltrações que a PI descreve como ainda estando a recorrer.
13- A inobservância dessa obrigação, gera uma nulidade processual, por omissão de acto que a lei determina como obrigatório, nº 1 art.º 195, nº 3 art.º 3 e nulidade da sentença, por omissão de pronúncia (art.º 615º, nº 1,
d) sobre as infiltrações ocorridas entre 2017 e 2023.
14- Se a aqui A não se pronunciou, em tempo, sobre as infiltrações em 2017, era um direito que lhe cabia, não podendo, porém, a douta sentença pronunciar-se sobre infiltrações ocorridas depois de 2017 até 2023.
15- Se ainda estão a ocorrer as infiltrações, estamos perante factos continuados que ainda não tiveram o seu términus, pelo que não começou ainda a contar o prazo de prescrição.
16- Apreciar de forma diferente é dar ao Meritíssimo Dr. Juiz o poder de apreciar factos que as partes não articularam, ou seja, as infiltrações continuaram e ninguém disse que as mesmas tinham cessado e isso não resulta dos autos.
17- O prazo de prescrição de três anos só começa a contar a partir do momento em que o lesado tomou conhecimento da produção efectiva desses novos danos, pelo que não tendo ainda terminado não pode ter conhecimento de algo que ainda não acabou de produzir efeitos.
18- Mais que não seja, o prazo prescricional apreciado foi erradamente apreciado porquanto a decisão nos presentes autos não interpreta correctamente o art.º 323º do CC.
19- Diz a presente sentença que que a citação no primeiro processo (o primeiro processo 27339/18.6T8LSB no Juiz 2 do Juízo Local Cível da Comarca de Lisboa), não tendo sido dirigida aos aqui réus, não pode considerar-se como acto interruptivo da prescrição a decorrência desse processo.
20- Porquanto "é indispensável que a acção seja proposta (a primeira) de tal modo que o devedor venha a tomar efectivo conhecimento da reclamação do direito que é feita, o que decorre do nº 4 do referido artigo 323º do Código Civil”.
21- Conclui a sentença nos presentes autos que, os RR da segunda acção não eram RR naquele primeiro processo e que por isso não há suspensão do prazo prescricional durante o tempo de decorrência da primeira.
22- Sucede que a sentença do primeiro processo e que foi junto à PI deste segundo processo, considera que nessa primeira acção, os aqui RR tiveram intervenção directa, como é claro na sentença junta dessa primeira acção.
23- Se isso decorre da informação, junto aos autos, a douta sentença ora proferida, deve ter esse dado como presente e os aqui RR como tendo tido tomado efectivo conhecimento da reclamação do direito que é feita no primeiro e no segundo processo, pois são o mesmo.
24- Tendo os aqui RR contestado na primeira acção, como se RR fossem, tomaram conhecimento e agiram como se RR fossem, apesar de o não serem.
25- Ou seja, os aqui RR defenderam os seus direitos na primeira acção, face à PI da aqui A que ali pedia o mesmo que aqui pede, não se aplicando a doutrina aqui carreada de Lebre de Freitas e Isabel Alexandre.
26- Será de considerar inconstitucional qualquer interpretação do artigo 279º do CPC por violação do princípio constitucional da igualdade (art.º 13º da Constituição da República Portuguesa) e o princípio constitucional do acesso da justiça – art.º 20º, também da Constituição se se achar que os RR intervieram como RR na primeira acção e mesmo assim o art.º 279º do CPC os considere terceiros à mesma, quando de tudo tomaram conhecimento.
Termos em que e nos demais de direito, deve ser dado provimento a este recurso e ser mandado baixar o presente processo para a continuação dos seus termos marcada audiência prévia ou, se assim se não entender, marcar a audiência de julgamento.
E só assim se fará a costumada JUSTIÇA
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Os réus não contra-alegaram.
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O recurso foi admitido como sendo de apelação, com subida de imediato, nos autos e efeito meramente devolutivo.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
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II. O objecto e a delimitação do recurso
Consabidamente, a delimitação objectiva do recurso emerge do teor das conclusões do recorrente, enquanto constituam corolário lógico-jurídico correspectivo da fundamentação expressa na alegação, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio.
De outra via, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo.
Por outro lado, ainda, o recurso não é uma reapreciação ‘ex novo’ do litígio (uma “segunda opinião” sobre o litígio), mas uma ponderação sobre a correcção da decisão que dirimiu esse litígio (se padece de vícios procedimentais, se procedeu a incorrecta fixação dos factos, se fez incorrecta determinação ou aplicação do direito aplicável). Daí que não baste ao recorrente afirmar o seu descontentamento com a decisão recorrida e pedir a reapreciação do litígio (limitando-se a repetir o que já alegara na 1ª instância), mas se lhe imponha o ónus de alegar, de indicar as razões porque entende que a decisão recorrida deve ser revertida ou modificada, de especificar as falhas ou incorrecções de que em seu entender ela padece, sob pena de indeferimento do recurso.
Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respectivo objecto, exceptuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.
Assim, em face do que se acaba de expor e das conclusões apresentadas, são as seguintes as questões a resolver por este Tribunal:
Nulidade da decisão recorrida.
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III. Os factos
Encontram-se provados os factos descritos no relatório que antecede.
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IV. O Direito
Da omissão de audiência prévia
Em primeiro lugar, vem a recorrentes impugnar a decisão final, arguindo que tal decisão deveria ter sido proferida em sede de audiência prévia e não por despacho contemporâneo à decisão de dispensa da mesma.
A este respeito, veja-se desta Relação e Secção, o arresto de 8/2/2018 (Cristina Neves), disponível em www.dgsi.pt:
I.– No NCPC (Lei 41/2013), passou a dispor-se como regra a obrigatoriedade da realização de audiência prévia, agora previsto no art.º 591 do C.P.C., nomeadamente quando “tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa.” (nº1 b)
II.– A lei processual apenas autoriza o juiz a dispensar a audiência prévia nas acções que hajam de prosseguir e, a realizar-se, a audiência prévia só tivesse por objecto as finalidades indicadas nas alíneas d), e) e f) no n.º 1 do artigo 591.º
III.– A dispensa da audiência prévia fora destes casos, só é possível por via do mecanismo da adequação formal prevista no art.º 547 e 6 do C.P.C. sem prejuízo de a dispensa ser precedida de consulta das partes, por exigência do princípio do contraditório, como decorre do art.º 3º, nº 3, do NCPC.
IV.– Sendo esta uma formalidade obrigatória e essencial, a sua não observância é fundamento de nulidade, que inquinou a sentença proferida por ter decidido de questão de que não podia conhecer e apenas impugnável por via do competente recurso.
A obrigatoriedade de realização da audiência prévia, por contraponto à possibilidade de dispensa prevista no art.º 508-B nº1 b) do Código de Processo Civil anterior, tem sido defendida de forma unânime pela nossa jurisprudência (Relação de  Évora de 30/06/2016 (Mário Serrano); Relação de Lisboa de 9/10/2014 (Jorge Leal), de 5/5/2015(Cristina Coelho).
Também na doutrina, a obrigatoriedade de realização desta audiência prévia, é defendida de forma igualmente unânime, referindo Ferreira de Almeida, in Direito Processual Civil, vol. II, 2015, pág. 190, o seguinte: «Uma vez executado o despacho pré-saneador (ou seja, uma vez concluídas as diligências resultantes do preceituado no nº 3 do art.º 590º - correcção das irregularidades formais dos articulados), ou, não tendo a ele havido lugar, logo que o processo lhe seja feito concluso, após a fase dos articulados, o juiz, observado o preceituado pelo art.º 151º, nºs 1 e ss., designa dia para a audiência prévia indicando o seu objecto e finalidade de entre os constantes do nº 1 do art.º 591º, a realizar num dos 30 dias subsequentes, salvo se ocorrer alguma das hipóteses previstas no art.º 592º (em que a mesma não pode ex-lege realizar-se) ou no art.º 593º (em que o juiz a entenda dispensável). Conforme a exposição de motivos da Reforma de 2013, «a audiência prévia é, por princípio, obrigatória. Porquanto só não se realizará: - nas acções não contestadas que tenham prosseguido em regime de revelia inoperante; - nas acções que devam findar no despacho saneador pela procedência de uma excepção dilatória, desde que esta tenha sido debatida nos articulados» (sic). E obviamente que também se não realizará no caso de revelia absoluta (operante) do réu, hipótese em que haverá lugar ao julgamento abreviado previsto no art.º 567º, por reporte ao art.º 56º.»
No mesmo sentido, JOÃO CORREIA, PAULO PIMENTA e SÉRGIO CASTANHEIRA defendem que que «por princípio, no processo comum de declaração, é obrigatória a realização de audiência prévia» (Introdução ao Estudo e à Aplicação do Código de Processo Civil de 2013, Almedina, Coimbra, 2013, p. 73). Sobre a questão do conhecimento de mérito no despacho saneador, referem que «(…) sempre que o juiz projecte conhecer no despacho saneador de uma excepção peremptória ou de algum pedido (independentemente do possível sentido da decisão), deverá convocar audiência prévia para os efeitos do art.º 591º.1.b)», aditando que «está em jogo assegurar o exercício do contraditório, na acepção de direito a produzir alegações antes de uma decisão final (art.º 3º.3)» (idem, p. 77)
Por sua vez, Paulo Pimenta, Processo Civil Declarativo”, 2014, Almedina, págs. 231, 232, refere, relativamente à necessidade de ser convocada a audiência prévia: “Antes de mais, impede que as partes venham a ser confrontadas com uma decisão que, provavelmente, não esperariam fosse já proferida, isto é, evita-se uma decisão-surpresa (art.º 3º 3). Depois, são acautelados os casos em que a anunciada intenção de conhecimento imediato do mérito da causa derive de alguma precipitação do juiz, tanto mais que não é frequente a possibilidade de, sem a produção de prova, ser proferida já uma decisão final. Desse modo, a discussão entre as partes tanto poderá confirmar como infirmar a existência de condições para o tal conhecimento imediato do mérito (…). Por outro lado, sabendo as partes que, no caso de o juiz pretender decidir o mérito da causa logo no despacho saneador, serão convocadas para uma discussão adequada, não terão de preocupar-se em utilizar os articulados para logo produzirem alegações completas sobre a vertente jurídica da questão. A solução consagrada permite, portanto, que os articulados mantenham a sua vocação essencial (exposição dos fundamentos da acção e da defesa), ao mesmo tempo que garante a discussão subsequente, se necessária, em diligência própria.”
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No caso e como se viu, com data de 21/9/2022, foi proferido o seguinte despacho:
Por despacho proferido em 28.03.2022 determinou-se a notificação da autora para responder à excepção de prescrição deduzida pelos réus.
Tal despacho foi notificado por transmissão electrónica de dados, por documento elaborado em 29.03.2022.
A autora apresentou resposta por requerimento de 05.06.2022
Assim, e considerando o disposto no artigo 248º do CPC, o prazo para apresentação de terminou no dia 11.04.2022, ao qual acresceriam 3 dias úteis, nos termos previstos no artigo 139º do CPC, ou seja, 14.04.2022.
Face ao exposto, o requerimento de resposta é intempestivo, pelo que é o mesmo rejeitado.
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Em 28/2/2023, foi proferido o seguinte despacho:
Compulsados os autos, considera-se que os mesmos dispõem de todos os elementos necessários que permitem conhecer, de imediato, do mérito da causa.
De tal decorre que a audiência prévia apenas se destinaria ao fim previsto na alínea b) do nº 1 do artigo 591.º do CPC, motivo pelo qual, por razões de simplificação e agilização processual, deve ser ponderada a dispensa da sua realização.
Assim, e antes de mais, ao abrigo do disposto nos artigos 3º, nº 3, 6º, nº 1, e 547º do CPC (neste sentido, cfr. o Ac. da Relação de Lisboa de 05.05.2015, p. 1386/13.2TBALQ.L1- 7, in www.dgsi.pt), notifique as partes para, em 10 dias, dizerem o que tiverem por conveniente quanto dispensa de audiência prévia e usarem, por escrito, a faculdade prevista na mencionada alínea b) do nº 1 do artigo 591º do CPC.
Notificados, a autora nada declarou e os réus responderam, dado o seu acordo à dispensa da audiência prévia.
E, em 29/5/2023, foi proferido decisão, com o seguinte dispositivo:
Encontrando-se assegurado o exercício do contraditório e inexistindo necessidade de realização de audiência prévia, ao abrigo do disposto nos artigos 593º, n.º do Código de Processo Civil, dispenso a sua realização.
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Ou seja, a Sra. Juíza a quo começou por convidar a autora a pronunciar-se sobre a excepção de prescrição invocada na contestação, em prazo que fixou.
De seguida, a Sra. Juíza a quo julgou intempestiva a pronúncia da autora sobre a excepção de prescrição, determinando o seu desentranhamento.
Esquecendo que o art.º 3º, nº4 do Código de Processo Civil atribui à autora a faculdade de resposta à excepção de prescrição, na audiência prévia ou, não havendo lugar a ela, na audiência final.
Nada temos a opor ao convite à pronúncia antecipada sobre a excepção, por escrito. Mas não podemos esquecer que tal convite não é vinculativo, na medida em que não pode cercear o direito da parte à pronúncia no início da audiência prévia ou da audiência final.
Não admitindo a pronúncia sobre a excepção, porque a considerou intempestiva, na medida em que não respeitou um prazo por si fixado (ao arrepio do direito ao contraditório previsto naquele art.º 3º, nº4), restaria à parte a faculdade de exercício desse contraditório nas fases subsequentes, repete-se, na audiência prévia ou na audiência final.
A faculdade de exercício do contraditório foi limitada, por via de um despacho atípico (admissível, apenas enquanto não vinculativo) e que apresenta a seguinte redacção:
Sendo invocada pelos Réus a excepção de prescrição do direito dos Autores, notifique estes últimos para, querendo, responder por escrito, no prazo de dez dias.
A autora não exerceu a faculdade que lhe foi concedida, de pronúncia no prazo de 10 dias; exerceu essa faculdade em prazo acrescido e, por isso, foi determinado o desentranhamento da peça.
A consequência natural e legal apenas poderia ser uma: o exercício dessa faculdade na fase processual subsequente, prevista na Lei. 
Novamente, a Sra. Juíza a quo fez tábua rasa desse direito, proferindo despacho, em 28/2/2023, no seguinte sentido:
Assim, e antes de mais, ao abrigo do disposto nos artigos 3º, nº 3, 6º, nº 1, e 547º do CPC (neste sentido, cfr. o Ac. da Relação de Lisboa de 05.05.2015, p. 1386/13.2TBALQ.L1- 7, in www.dgsi.pt), notifique as partes para, em 10 dias, dizerem o que tiverem por conveniente quanto dispensa de audiência prévia e usarem, por escrito, a faculdade prevista na mencionada alínea b) do nº 1 do artigo 591º do CPC.
Nada temos, também, a obstar a este despacho, pois trata-se apenas de um convite dirigido às partes.
Sucede que a autora nada respondeu, ou seja, não concordou com a dispensa de audiência prévia nem exerceu por escrito a faculdade de discussão de facto e de direito, prevista no art.º 591º, nº1, b) do Código de Processo Civil – sendo que (recorde-se) ainda mantinha o direito a pronúncia sobre a excepção de prescrição.
E a aceitação da parte ou a renúncia expressa ao direito do contraditório, constituíam condição essencial à adequação do processado pretendida pela Sra. Juíza a quo, não se podendo retirar do silêncio um valor que a Lei não lhe atribui.
Continuando.
Face ao silêncio da parte, a Sra. Juíza proferiu despacho de dispensa da audiência prévia, agora com distinta fundamentação (pois o acordo das partes não havia sido obtido, impossibilitando a adequação formal):
Encontrando-se assegurado o exercício do contraditório e inexistindo necessidade de realização de audiência prévia, ao abrigo do disposto nos artigos 593º, n.º do Código de Processo Civil, dispenso a sua realização.
Sendo que discordamos de ambas as justificações apresentadas para essa dispensa; senão, vejamos:
Por um lado, não foi assegurado o exercício do contraditório. Pelo contrário, o exercício desse direito ao contraditório foi sucessivamente limitado por dois despachos, que concederam prazos para esse mesmo exercício, legalmente previsto para a audiência prévia ou para a audiência final. Não exercendo o contraditório nesses prazos, judicialmente fixados, a autora podia exercê-lo no início da audiência prévia. Nunca tendo sido obtida a sua concordância para a dispensa da mesma, repete-se.
Por outro lado, existia necessidade de realização da audiência prévia, para que as partes procedessem à discussão de facto e de direito e, concretamente a autora, à resposta à excepção de prescrição, pretendendo a Sra. Juíza a quo conhecer da referida excepção por despacho escrito (por referência aos citados art.ºs 3º, nº4 e 591º, nº1, b), citados).
E, no mesmo acto, a Sra. Juíza a quo julgou procedente a excepção de prescrição, conhecendo totalmente do mérito da causa.
Decisão que culmina três passos antecedentes – convite a pronúncia escrita sobre a excepção, convite a discussão escrita de facto e de direito e dispensa de audiência prévia – que, por não terem merecido a aceitação da autora, anulam o direito da mesma ao contraditório, à pronúncia sobre a excepção de prescrição, apreciada na decisão sob recurso.
Do que se conclui pela procedência da alegação, no que concerne à nulidade do despacho recorrido, de dispensa da realização da audiência prévia e processado subsequente, de apreciação do mérito da causa.
Revisitemos, ainda que brevemente, as palavras de Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, pg. 26 e segs: Mas a questão nem sempre encontra resposta tão evidente noutros casos, designadamente quando é cometida nulidade de conhecimento oficioso ou em que o próprio juiz, ao proferir a sentença, omite uma formalidade de cumprimento obrigatório, como ocorre com o respeito pelo princípio do contraditório destinado a evitar decisões-surpresa.
A sujeição ao regime das nulidades processuais, nos termos dos art.ºs 195º e 199º levaria a que a decisão que deferisse a nulidade se repercutisse na invalidaçãoda sentença, com a vantagem adicional de tal ser determinado pelo próprio juiz, fora das exigências e dos encargos (inclusive financeiros) inerentes à interposição do recurso.
Porém, tal solução defronta-se com o enorme impedimento constituído pela regra praticamente inultrapassável, ínsita no art.º 613º, norma a que presidem razões de certeza e de segurança jurídica que levam a que, proferida a sentença (ou qualquer outra decisão), esgota-se o poder jurisdicional, de modo que, sendo admissível recurso, é exclusivamente por esta via que pode ser alcançada a revogação ou modificação do teor da decisão.
(…)
Por conseguinte, num campo de direito adjectivo em que devem imperar factores de objectividade e de certeza no que respeita o manuseamento dos mecanismos processuais, parece mais seguro assentar em que sempre que o juiz, ao proferir alguma decisão, se abstenha de apreciar uma situação irregular ou omita uma formalidade imposta por lei, a parte interessada deve reagir através da interposição de recurso sustentado na nulidade da própria decisão, nos termos do art.º 615º, nº1, al. D). Afinal, designadamente quando a sentença traduza para a parte uma verdadeira decisão-surpresa (não precedida do contraditório imposto pelo art.º 3º, nº3), a mesma nem sequer dispôs da possibilidade de arguir a nulidade processual correspondente à omissão do acto, sendo o recurso a via mais ajustada a recompor a situação integrando no seu objecto a arguição daquela nulidade.
Naturalmente, este Ilustre Juiz Conselheiro plasmou a sua opinião no Ac. do STJ de 23/6/2016, por si relatado, disponível em www.dgsi.pt.:
É usual afirmar-se que a verificação de alguma nulidade processual deve ser objecto de arguição, reservando-se o recurso para o despacho que sobre a mesma incidir.
Sendo esta a solução ajustada à generalidade das nulidades processuais, a mesma revela-se, contudo, inadequada quando nos confrontamos com situações em que é o próprio juiz que, ao proferir a decisão (in casu, o despacho saneador), omitiu uma formalidade de cumprimento obrigatório, como ocorre com a falta de convocação da audiência prévia a fim de assegurar o contraditório.
Em tais circunstâncias, depara-se-nos uma nulidade processual traduzida na omissão de um acto que a lei prescreve, mas que se comunica ao despacho saneador, de modo que a reacção da parte vencida passa pela interposição de recurso da decisão proferida em cujos fundamentos se integre a arguição da nulidade da decisão por excesso de pronúncia, nos termos do art.º 615º, nº 1, al. d), in fine, do CPC.
No mesmo sentido, veja-se o Ac. deste Tribunal da Relação, de 11/7/2019 (Ana de Azeredo Coelho), disponível na mesma base dados:
III) O princípio do contraditório independe de o juiz considerar irrelevante a audição das partes, quando persistam no processo questões sobre que se não pronunciaram, v.g., a possibilidade de decisão de mérito sem produção de prova.
IV) A omissão de audiência prévia quando a mesma não podia ser dispensada determina a nulidade da decisão.
V) Esta nulidade deve ser invocada em sede de recurso da decisão de mérito, pois é o conteúdo desta que impõe a realização da audiência prévia e revela a omissão de acto prescrito pela lei; a reação adequada é a do recurso da sentença.
No mesmo sentido, veja-se Amâncio Ferreira, in Manual dos Recursos em Processo Civil, pg. 52 bem como Teixeira de Sousa, em comentário ao Ac. da Rel. do Porto de 2/3/2015, consultado em https://blogippc.blogspot.pt.
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Seguindo este entendimento – a violação do princípio do contraditório consequencia a nulidade da decisão final proferida, a arguir em sede de recurso (sendo este admissível), nos termos do art.º 615º, nºs1, d), in fine e 4 do Cód. Proc. Civil – conclui-se pela procedência da apelação.
Os autos deverão regressar à primeira instância, com vista à marcação da audiência prévia, com reconhecimento à autora do exercício do contraditório sobre a excepção de prescrição e a ambas as partes, da faculdade de discussão de facto e de direito, nessa mesma audiência.
Ouvida que seja a autora sobre a excepção e caso a mesma invoque a interrupção da mesma, por força da interposição prévia de outra acção (invocação que se adivinha como certa, pois já foi efectuada na petição inicial, na resposta e nas alegações de recurso), sempre a Sra. Juíza a quo deverá decidir na posse de todos os elementos (data de interposição, identidade dos réus, data da sua citação, data da sentença final e do trânsito em julgado), após prolacção de despacho pré-saneador, com vista à junção do necessário documento (art.º 590º, nº2, c) do Código de Processo Civil).
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V. A decisão                                                       
Pelo exposto, os Juízes da 6.ª Secção da Relação de Lisboa acordam em, na procedência da apelação:
b) anular o despacho que dispensou a audiência prévia bem como o subsequente despacho saneador que conheceu do mérito da causa;
c) determinar que a Sra. Juíza a quo proceda à realização de audiência prévia, onde deverá ser retomado o correcto processado, sem prejuízo da eventual prolacção de despacho pré-saneador, com vista à junção de documento necessário.
Sem custas.
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Lisboa, 8 de Fevereiro de 2024
Relator: Nuno Lopes Ribeiro
1.ª Adjunta: Maria de Deus Correia
2.º Adjunto: Jorge Almeida Esteves