Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
368/22.8T8RGR.L1-8
Relator: RUI MANUEL PINHEIRO DE OLIVEIRA
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
CONDUÇÃO SOB O EFEITO DE ÁLCOOL
DIREITO DE REGRESSO
DANO BIOLÓGICO
ABUSO DE DIREITO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/25/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I – São factos constitutivos do direito de regresso previsto no art. 27.º, n.º 1 al. c) do DL n.º 291/2007, de 21.08 (Regime do Sistema Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel): a) que o condutor do veículo seguro tenha sido o responsável pelo acidente e que se encontrasse com uma T.A.S. superior à legalmente permitida (sem que se exija a prova da existência de um nexo de causalidade entre esse facto ilícito e o acidente); b) a verificação dos pressupostos gerais da responsabilidade civil subjectiva e da obrigação de indemnizar: o facto, a culpa, o dano e nexo de causalidade;
II – O facto do tribunal não ter julgado como provado ou não provado determinados factos essenciais integradores da causa de pedir reconduz-se ao vício da deficiência do julgamento da matéria de facto, carecendo esse erro de julgamento de ser superado pelo Tribunal da Relação, fazendo uso dos seus poderes de substituição, nos termos do nº 1 do art. 662.º do CPC, salvo se esse erro de julgamento não puder ser superado com os elementos constantes do processo ou da gravação (al. c) n.º 2 do art. 662.º, do CPC).
III – Tal intervenção do Tribunal da Relação tem carácter oficioso, não carecendo, portanto, da iniciativa da parte interessada na alteração da decisão de facto.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes na 8.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – RELATÓRIO
1.1. …. Companhia de Seguros, S.A., intentou acção declarativa de condenação, com processo comum, contra F, peticionando a condenação deste no pagamento da quantia de € 42.5000,00, acrescida de juros vincendos desde a citação até total e efectivo pagamento.
Para tanto, alegou, em síntese, que, em virtude do contrato de seguro por si celebrado, pagou a quantia mencionada a título de indemnização pelos danos decorrentes do acidente de viação em que foi interveniente o veículo automóvel com a matrícula …, acidente esse que é, exclusivamente, imputável ao R., que conduzia o referido veículo sob a influência do álcool, razão pela qual não dispunha de aptidão técnica para uma condução segura.
1.2. O R. contestou, pronunciando-se pela improcedência da acção, arguindo a excepção peremptória da prescrição do direito de crédito invocada pela A. e impugnando a dinâmica do acidente por ela descrita, bem como a culpa que lhe é imputada e os danos alegados, concluindo que a A. não estava obrigada a suportar os danos reclamados.
1.3. A A. respondeu, propugnando pela improcedência da referida excepção.
1.4. Foi proferido despacho saneador, no qual se julgou improcedente a excepção da prescrição (decisão que foi confirmada por acórdão desta Relação de 12.09.2023).
1.5. Foi fixado o seguinte objecto do litígio: «Nos termos do artigo 596.º, n.º 1, do CPC, o objeto do presente litigio consiste em aferir da obrigação do réu pagar à autora a quantia de € 42.500,00».
1.6. Foram enunciados, sem reclamações, os seguintes temas da prova:
«- Da dinâmica do acidente de viação;
- Da taxa de álcool no sangue (TAS) do réu no momento do acidente;
- Da culpa do réu no acidente de viação;
- Dos danos sofridos por S em consequência do acidente e do seu montante».
1.7. Procedeu-se à realização de audiência final, após o que foi proferida sentença, que julgou a acção totalmente procedente, por provada e, em consequência, condenou o R. a pagar à A. o montante € 42.5000,00, acrescido juros de mora vencidos e vincendos à taxa legal de 4,00% ao ano, desde a citação, em 29.09.2022, até efectivo e integral pagamento.
1.8. Inconformado, apelou o R., pedindo que tal sentença seja revogada e que o R. seja absolvido do pedido, formulando, para tanto, as seguintes conclusões:
«1. I-O Tribunal «a quo», considera nos FACTOS PROVADOS, no seu ponto 10. tão só que «Submetido a analise de sangue para pesquisa de álcool, o réu acusou uma T.A.S. de 1,33 g/l, descontado o erro máximo admissível». Para fundamentar este ponto considera a decisão recorrida, na sua motivação o seguinte: “No que concerne à taxa de álcool no sangue do réu no momento do acidente o Tribunal atendeu, em primeiro lugar, às declarações de S, os quais afirmaram que momentos antes do acidente o réu, juntamente com eles, ingeriu bebidas alcoólicas e, em segundo lugar, ao teor do relatório do INML junto com a petição inicial como doc. nº 5, de fls.. 78, referente ao exame toxicológico efetuado ao arguido, o qual confirma que no momento dos factos o mesmo apresentava uma taxa de álcool no sangue de 1,33 g/l, descontado o erro máximo admissível” (negrito e sublinhado nosso), e ainda que: “Não obstante não estar expressamente alegado que o réu conduzia com uma taxa de álcool no sangue de 1,33 g/l, consta da alegação da autora que o réu conduzia com uma T.A.S. de 1,77 g/l, o que foi impugnado pelo réu, tendo ambas as partes em sede de audiência de julgamento questionado as testemunhas sobre esta realidade. Nessa medida, porquanto se apurou em sede de instrução da causa que a taxa de álcool no sangue que o réu possuía no momento do sinistro era de 1,33 g/l e não 1,77 g/l, conforme alegado pela autora, levou-se o ponto 10) à factualidade provada, em conformidade com o disposto no art. 5.º, n.º 2, al. a), do CPC.
II-Porém, importa ter presente, por um lado, que o acidente, ocorreu no dia 13-02-2018, pelas 17h35m, que no local do acidente não foi feita qualquer recolha e análise de sangue e por outro que a colheita de sangue para análise apenas foi efectuada no Centro de Saúde das …., nesse mesmo dia 13-02-2018, apenas pelas 19h15m conforme consta à evidência do doc. 5 junto com a pi, sendo a indicação TAS aí apontada de 1,53 (+/-0,20 G/L). Pelo que desde logo;
III-Não podia ser dado como provado que à hora do acidente (17h35m) o recorrente conduzia com a TAS de 1,53, conforme incorrectamente fez o tribunal recorrido. Assim;
IV-Verifica-se erro notório na apreciação da prova que constitui um vício de raciocínio na apreciação das provas, evidenciada pela simples leitura do texto da decisão, erro tão evidente que salta aos olhos do leitor médio, pois as provas revelam um sentido e a decisão recorrida extrai ilação contrária, incluindo quanto à matéria de facto provada.
V-Na verdade, o documento nº 5 não permite de modo algum dar como provado que no momento do acidente o recorrente conduzia com a TAS mencionada, evidenciando precisamente o contrário, ou pelo menos coisa totalmente diferente.
VI-Por outro lado, no mesmo sentido, a sentença recorrida, salvo o devido respeito que é muito, confunde factos essenciais (nucleares) alegados para sustentar a causa de pedir, ou outros factos que embora complementares se revelem também essenciais e necessários para a demanda, com meros factos instrumentais os quais têm de se integrar e harmonizar com a matéria de facto provada (ou não provada - o que não é manifestamente o caso – com a mesma especial cautela e prudência que se aplica às presunções judiciais (Cfr. Antunes Varela, in RLJ, Ano 123,58 e Ac. Do STJ, de 23-06-2016, tirado por unanimidade).
VII- Desde modo violou a sentença recorrida o disposto no art. 5.º, n.º 2, al. a), do CPC, que deve ser interpretado e aplicado com o alcance referido no AC. Do STJ, antes invocado, acabando por beneficiar a Seguradora, ora recorrida, que não os trouxe de modo claro a colação invocando até TAS diferente 1,77 g/l (sem qualquer suporte probatório). Acresce que;
VIII- À luz do estatuído na alínea b) do nº 1 do artigo 640º do CPC e do alegado supra deve esse douto tribunal «ad quem», considerar NÃO PROVADO o ponto 10. dos factos provados da sentença recorrida «Submetido a análise de sangue para pesquisa de álcool, o réu acusou uma T.A.S. de 1,33 g/l, descontado o erro máximo admissível», o que se pede.
Sem prescindir,
IX-A recorrida entregou a quantia que alega ter pago de € 42.500,00 ao sinistrado por sua iniciativa e por sua exclusiva vontade, nunca tendo sido obrigada judicialmente ou extra – judicialmente a pagar ou suportar qualquer montante por força do contrato de seguro titulado pela apólice 850005203.
X-No entanto, não constando da sentença recorrida, como já se realçou, qualquer relação de causalidade entre o pagamento efectuado pela Seguradora recorrida e quaisquer danos justificativos de tal pagamento, os quais aliás nem sequer foram alegados pela recorrida, sendo factos constitutivos do seu pretenso direito de regresso, violando-se, assim, o estatuído no nº 1 do artigo 342º do CC e o disposto art. 27.º do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21/08.
XI-A recorrida, caso direito lhe assistisse, o que não se concede, encontra-se na presente lide em autêntica situação de “venire contra factum proprium”, censurado pelo artigo 334º do CC que, ademais é de conhecimento e aplicação oficiosa».
1.9. A A. contra-alegou, defendendo que o recurso deve improceder e ser mantida a decisão recorrida, deduzindo as seguintes conclusões:
«1. Não existe qualquer erro de apreciação da prova ou de julgamento da sentença em crise, como apontado pelo Recorrente, bastando, para concluir neste sentido, ler a totalidade da fundamentação e o raciocínio perfeitamente claro e escorreito que é feito pelo Tribunal “a quo”.
2. Pelo contrário, o recurso apresentado pelo Réu funda-se numa interpretação errónea da lei e meras falácias, contrariando, inclusivamente a jurisprudência existente quanto situações semelhantes.
3. O Tribunal a quo proferiu a decisão em crise em consonância com as peças processuais, documentos e demais elementos de prova produzidos nos autos, bem como legislação aplicável, em total obediência ao princípio da livre apreciação da prova.
4. Pelo que a Recorrida vem pugnar pela manutenção da douta sentença, a qual, quer na sua fundamentação, quer na sua decisão, não merece qualquer reparo.
5. Impõe-se, desde logo, analisar uma questão prévia: pretende o Réu/Recorrente apresentar recurso de apelação em crise “com subida imediata nos próprios autos e efeito suspensivo”.
6. O artigo 647º do CPC dita a regra que o recurso de apelação tem efeito meramente devolutivo, salvo as exceções expressamente previstas na lei (vide n.º 1 e 2). No entanto, a decisão que é posta em causa pelo Recorrente não se subsume a nenhuma das exceções previstas no n.º 3 do artigo 647º do CPC.
7. Para que fosse possível atribuir efeito suspensivo à presente apelação, deveria o Recorrente ter requerido que lhe fosse atribuído tal efeito aquando da interposição do recurso, demonstrando que a execução da decisão lhe causa prejuízo considerável e oferecendo-se para prestar caução, ficando a atribuição desse efeito condicionada à efetiva prestação da caução no prazo fixado pelo Tribunal a quo.
8. Sendo que, o valor da caução a prestar para fixação de efeito suspensivo quanto a apelação de sentença condenatória deve corresponder ao valor do pedido, portanto, €42.500,00, por ser esse o limite da condenação e liquidação.
9. Manifestamente, o Recorrente não cumpriu com nenhum dos supra elencados requisitos, pelo que é forçoso concluir que ao recurso de apelação interposto pelo Réu deve ser atribuído efeito meramente devolutivo, o que se pede.
10. Entende o Recorrente que a Mma. Juiz a quo incorreu num erro notório de apreciação da prova, na medida em que deu como provado no ponto 10. tão só que “Submetido a análise de sangue para pesquisa de álcool, o réu acusou uma T.A.S. de 1,33 g/l, descontado o erro máximo admissível;”. Concluindo que não podia ser dado como provado que à hora do acidente (17h35m) o recorrente conduzia com a TAS de 1,53.
11. Ora, o erro notório de apreciação da prova verifica-se quando no texto da decisão recorrida se dá por provado, ou não provado, um facto que contraria com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum.
12. No dizer dos Juízes Conselheiros Leal-Henriques e Simas Santos existe, designadamente, “... quando se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, ou ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado facto (positivo ou negativo) contido no texto da decisão recorrida” (Cfr., entre outros , os acórdãos do STJ de 4-10-2001 (CJ, ASTJ, ano IX, 3º , pág.182 ) e Ac. da Rel. Porto de 27-9-95 ( C.J. , ano XX , 4º, pág. 231).
13. Pelo contrário, decorre limpidamente do texto do ponto 10. dos factos provados que o Tribunal a quo não utilizou a expressão “momento do acidente ou à hora do acidente”.
14. Não obstante constar da fundamentação da matéria de facto a referência ao momento do acidente, tal terá de ser interpretado de forma lógica e coerente atenta a questão a dirimir, que é a de aferir se o Réu conduzia o veículo interveniente no acidente dos autos com uma TAS superior ao legalmente permitido, de forma a ver preenchido um dos pressupostos do direito de regresso da Autora.
15. A alegação do Recorrente mostra-se, na verdade, absolutamente inócua quanto ao efeito pretendido, pois baseia-se em mera semântica.
16. É incontornável que o Réu acusou a referida TAS após o deflagrar do acidente dos autos, conforme resultou do relatório do INML, de fls.78, documento esse que, conforme decorre da sentença em crise, não foi impugnado pelo Réu, nem arguida a sua falsidade!
17. Atenta a ordem natural das coisas, apenas se consegue aferir a TAS de que o Réu era portador após a ocorrência do acidente e não aquando da própria condução.
18. Mas o Recorrente mostra-se inconformado com o facto de na fundamentação da matéria de facto a Mma. Juíza a quo ter referido que aquela foi a TAS que o Réu detinha no momento do acidente (o qual ocorreu em 13/02/2018, pelas 17h35), e a colheita de sangue realizada ao Réu, para efeitos de submissão ao teste toxicologia, foi realizada nesse mesmo dia mas pelas 19h15, entende o Réu que nunca se poderia dar como provado que à hora do acidente o recorrente conduzia com a TAS de 1,33 g/l…
19. Efetivamente, nunca será possível aferir a concreta TAS no momento exato do acidente, essa seria uma prova impossível, pois inexiste qualquer mecanismo que permita apreender imediatamente tal realidade…pelo que a alegação do Réu acaba por ser descabida.
20. Em todo e qualquer acidente de viação, aquilo que é possível aferir é a TAS que o condutor/Réu detinha nos momentos posteriores ao acidente, que foi o que aconteceu.
21. Se formos rigorosos, a TAS registada no momento mais próximo ao acidente dos autos sempre seria superior àquela dada como provada!
22. Em todo o caso, ainda que considerássemos a TAS dada como provada (1,33 g/l), atento o disposto no artigo 81º do Código da Estrada, esta mostra-se bem acima do permitido legalmente aquando do exercício da condução de veículo automóvel!
23. Não podemos olvidar que, aquando da chegada das autoridades ao local do acidente, o Réu foi submetido a teste qualitativo de controlo de álcool, o qual acusou uma TAS de 1,77 g/l (conforme auto lavrado pela PSP e junto com a Petição Inicial sob Doc. n.º 3).
24. Posteriormente, foi realizada a colheita de sangue ao Réu no Centro de Saúde de …., pelas 19h15, a qual resultou em 1,53 +- 0,20 g/l.
25. A este propósito, cumpre fazer um parêntesis, na medida em que, quando o método de pesquisa e de quantificação de álcool no sangue usado, for a análise sanguínea, o valor da taxa de álcool, no sangue (TAS), por esse meio apurado, é fidedigno, não havendo, nessa situação que deduzir o erro máximo admissível (EMA). A dedução desse erro apenas se impõe, quando o método de quantificação da TAS utilizado, tiver sido o do ar expirado e relativamente aos valores verificados nos alcoolímetros, conforme decorre da Portaria n.º 1556/2007, de 19 de Dezembro. Assim, até podemos afirmar que a TAS que o Réu realmente acusou em tal exame foi de 1,53 g/l e não de 1,33 g/l.
26. Além do mais, a lei não estabelece qualquer limite temporal, para a colheita de sangue, com vista à realização de análise para a deteção e quantificação de álcool no sangue, preceituando apenas, no artigo 5º, n.º 1, da Lei n.º 18/2007, de 17 de maio, que «é efetuada no mais curto prazo possível». Não nos parecendo estar ultrapassado este pressuposto ao ter sido realizada a colheita de sangue 1h40 após o deflagrar do acidente, atento o circunstancialismo que rodeia um acidente de viação.
27. Ora, de acordo com estudos científicos realizados, o pico máximo da TAS é, por norma, atingido cerca de 1 hora após a ingestão das bebidas alcoólicas, tendendo a partir daí a haver a diminuição da TAS (o mesmo é dizer a eliminação do álcool pelo organismo), a qual, embora seja variável de pessoa para pessoa – estando dependente da velocidade de degradação do álcool no fígado e das caraterísticas de cada individuo –, é, em média, 0,10 g/l de álcool no sangue, por hora.
28. Relembre-se que, as testemunhas S, passageiros do veículo acidentado, declararam em sede de audiência de julgamento que, momentos antes do acidente, o Réu ingeriu bebidas alcoólicas. O que ocorreu em quantidade tal que levou a que, cerca de 1h40 após o deflagrar do acidente, o Réu ainda acusasse uma TAS de 1,53 g/l!
29. Pelo que, forçoso será concluir que, o valor da TAS que o recorrente apresentava no momento em que ocorreu o acidente era necessariamente superior àquele registado e dado como provado, na medida em que o organismo do Recorrente já havia eliminado parte do álcool ingerido aquando da colheita de sangue. Ou seja, no momento em que ocorreu o acidente dos autos o Recorrente encontrava-se incontestavelmente sob a influência do álcool!
30. Logo, andou bem o Tribunal a quo ao dar como provado os factos vertidos no ponto 10., inexistindo qualquer erro de apreciação da prova.
31. Acresce que, o Recorrente entende que a sentença recorrida confunde factos essenciais com meros factos instrumentais, os quais têm que se harmonizar com a matéria de facto provada e não provada. Fazendo alusão ao Ac. do STJ, de 23-06-2016, conclui o Recorrente pela violação do artigo 5º, n.º 2, alínea a) do CPC, entendendo que o Tribunal a quo beneficiou a Recorrida, já que esta, no seu entendimento, não trouxe, de modo claro, à colação os factos, até invocando TAS diferente. (??)
32. Salvo o devido respeito, a citada alegação mostra-se aleatória, confusa e descontextualizada.
33. Foi dado pleno cumprimento pela aqui Autora/Recorrida e pelo Tribunal a quo ao disposto no artigo 5º do CPC.
34. No caso dos autos, em que a Autora pretende exercer o seu direito de regresso sobre o Réu, com base no artigo 27º, n.º 1, al. c) do Decreto-Lei 291/2007, mostra-se a causa de pedir complexa, pois é composta pelo próprio acidente, mais concretamente pela responsabilidade civil do Réu no deflagrar do acidente, e ainda pela condução com uma taxa de alcoolémia superior ao legalmente permitido.
35. Para o efeito, alegou a Autora todos os factos que compõem a dinâmica do acidente e responsabilidade civil do Réu pela ocorrência do mesmo, factualidade essa que veio a ser dada como provada pelo Tribunal a quo sob os pontos 3 a 13.
36. Tal factualidade (com exceção do ponto 10) não foi sequer objeto de pedido de alteração por parte do Recorrente, tampouco o sendo a sua responsabilidade. Dando-se, assim, por assente, um dos pressupostos que compõem a causa de pedir da Autora – que o Réu tenha dado causa ao acidente.
37. No que toca à condução com uma taxa de alcoolémia superior ao legalmente permitido, alegou a Autora que o Réu/Recorrente “Acusou uma taxa de álcool no sangue (TAS) de, pelo menos, 1,77 g/l (gramas por litro) - cfr. doc. n.º 3, já junto, e doc. n.º 5 que ora se junta e aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os legais efeitos.” Tal taxa, conforme decorre da participação de acidente de viação, junta aos autos com a P.I. sob Doc. n.º 3, corresponde à TAS apurada em consequência da submissão do Réu a teste qualitativo de controlo do álcool.
38. Foi igualmente junto aos autos pela Autora/Recorrida o relatório do INML, de fls. 78, do qual resulta a TAS dada como provada sob o ponto 10., conforme melhor se expôs supra.
39. Portanto, no presente caso, o facto (essencial) que compõe a causa de pedir (o Réu conduzir com uma TAS superior ao limite legal permitido, por referência ao disposto no artigo 81.º, n.º 1 e n.º 2 do Código da Estrada), foi alegado pela Autora.
40. O que acontece é que, por via da instrução da causa (prova documental junta aos autos - o aludido relatório de fls. 78, não impugnado pelo Réu; conjugada com a prova testemunhal - declarações de S), veio a ser dada como provada outra TAS, a qual ainda assim é, notoriamente, superior ao limite legal de 0,50 g/l previsto no n.º 2 do artigo 81º do C.E..
41. Acresce que, sobre tais factos teve o Réu/Recorrente oportunidade de se pronunciar/exercer o seu direito de contraditório em sede de contestação e de audiência de julgamento, tendo oportunidade de questionar as testemunhas, fossem elas o Sr. Agente da PSP que elaborou a participação junta sob Doc. n.º 3, ou os ocupantes do veículo, supra mencionados, acerca de tal matéria.
42. Contudo, não logrou o Recorrente de fazer prova de que, aquando do acidente dos autos, não seguia com TAS superior à legalmente permitida!
43. Resulta à saciedade do supra exposto, para onde se remete por economia, que andou bem o Tribunal a quo ao dar como provado no ponto 10. que “Submetido a análise de sangue para pesquisa de álcool, o réu acusou (pelo menos, dizemos nós) uma T.A.S. de 1,33 g/l, descontado o erro máximo admissível”.
44. Ainda que tal valor tenha sido aferido apenas aquando da colheita de sangue, efetuada cerca de 1h40 minutos após o deflagrar do acidente, mostra-se a TAS daí resultante perfeitamente correlacionada com o acidente dos autos.
45. A circunstância de terem decorrido 1h40 minutos entre a ocorrência do acidente e a colheita de sangue para exame, não invalida, de modo algum, o valor do exame realizado, sendo que a única conclusão a extrair de tal facto é ter ocorrido a colheita do sangue num momento em que já se havia iniciado a curva descendente, tendo por isso sido já eliminada do organismo parte do álcool ingerido (vide Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 23/03/2021, Proc. 22/20.5GCLGS.E1, in www.jurisprudencia.pt).
46. Sempre se diga que, o Recorrente não alegou os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo da gravação que impunham decisão diversa no que toca à matéria dada como provada sob o ponto 10.
47. Deste modo, toda a matéria dada como provada, encontra-se devida e suficientemente motivada, porquanto a Mma. Juíza a quo teve em consideração a posição vertida pelas partes nos respetivos articulados, os dados objetivos fornecidos pelos documentos dos autos, e os depoimentos prestados pelas testemunhas em sede de audiência de discussão e julgamento. Ou seja, todos os factos e prova trazida aos autos passaram pelo crivo do Tribunal a quo, sendo a mesma apreciada segundo as regras da experiência comum e lógica do homem médio, suposto pelo ordenamento jurídico, fazendo o Tribunal, no uso da sua liberdade de apreciação, uma análise crítica das provas.
48. Mostra-se, deste modo, a alegação do Recorrente manifestamente infundada, devendo improceder, o que se pede. Devendo, assim, manter-se a resposta dada ao ponto 10 dos factos provados.
49. Por outro lado, cumpre realçar, que o Recorrente não pugnou pela alteração da matéria de facto dada como provada sob os pontos 2 e 11 a 13 da sentença recorrida, respeitante aos danos decorrentes do acidente dos autos, e pagamento desses danos realizado pela Autora.
50. Assim, necessariamente, se terá por assente que:
“2. No exercício desta sua atividade e por força do contrato de seguro celebrado com …., titulado pela apólice n.o ….. - ramo automóvel - aceitou a transferência da responsabilidade civil por danos decorrentes da circulação do veículo automóvel com a matrícula …, marca NISSAN;
11. Em consequência do embate, resultaram danos materiais para o veículo envolvido e para o muro onde embateu, numa extensão de nove metros;
12. Mais resultaram ferimentos corporais graves para o ocupante do veículo S;
13. Em 30.03.2019, a autora procedeu ao pagamento da quantia de €42.500,00 a S a título de indemnização pelos danos corporais e morais sofridos em consequência do acidente.”
51. Na verdade, pressuposto do direito de regresso da seguradora é igualmente, além da responsabilidade do condutor que tenha acusado TAS superior ao limite legalmente admitido (a qual se mostra válida, ao contrário do alegado pelo recorrente! aliás, nada alegou o Recorrente que demonstre a “invalidade” da TAS apurada), que a seguradora tenha suportado os danos decorrentes do acidente.
52. Neste conspecto, compete apenas à seguradora alegar e provar que satisfez a indemnização a terceiro lesado por ocorrência de acidente de viação em que foi envolvido um veículo seu segurado, o que a aqui Recorrida fez, tanto mais que tal matéria foi levada à matéria de facto provada pelo Tribunal a quo. Neste sentido, atenda-se ao exemplarmente exposto no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 14/07/2021, Proc. 24/18.1T8ODM.E1, in www.dgsi.pt.
53. Ao que parece o recorrente pretende fazer valer a tese de que apenas existindo decisão judicial nesse sentido é que a Autora seria obrigada a indemnizar os lesados, por um acidente que decorreu manifestamente da atuação culposa do Recorrente, seu segurado.
54. Ora, tal posição não encontra assento na lei, mormente no artigo 27º do DL 291/2007, no qual se pode ler apenas “satisfeita a indemnização”. Sendo, isso sim, manifestamente alheada dos princípios e normas jurídicas que regem esta matéria no nosso ordenamento jurídico.
55. É incontestável que, no exercício da sua atividade e por força do contrato de seguro celebrado com …., proprietária do veículo automóvel com a matrícula …., conduzido pelo Réu aquando do acidente dos autos, titulado pela apólice n.º ….. - ramo automóvel - aceitou a Recorrida a transferência da responsabilidade civil por danos decorrentes da circulação do referido veículo.
56. Demonstrando-se a responsabilidade civil do Réu quanto ao acidente dos autos, e ainda que, no caso, a condução se tenha realizado sob influência de álcool em medida superior à legalmente permitida, a responsabilidade civil da Seguradora não fica excluída perante terceiros lesados. Vendo-se, assim, a Recorrida obrigada legalmente a indemnizar os lesados.
57. Já no plano das relações internas entre Seguradora e Segurado, o risco coberto pelo contrato de seguro não pode salvaguardar situações contrárias à lei sem que daí advenham as necessárias consequências para o incumpridor.
58. Assim, o condutor que circula com o veículo automóvel seguro, denunciando uma T.A.S. igual ou superior à legalmente fixada, não tem de estranhar o facto de a Seguradora lhe vir exigir aquilo que pagou, uma vez que sabe que em tais circunstâncias lhe era vedada a condução.
59. A seguradora ao efetuar o pagamento, adquire, desta forma os direitos contra o agente da lesão
60. Este sistema visou acautelar o legítimo direito dos lesados a se verem ressarcidos de forma célere, face proposta razoável por parte da seguradora, e ainda da seguradora poder recuperar os valores despendidos junto do culpado pelo acidente.
61. De facto, o DL 291/2007 fixa, inclusivamente, as regras e os procedimentos a observar pelas empresas de seguros com vista a garantir, de forma pronta e diligente, a assunção da sua responsabilidade e o pagamento das indemnizações devidas em caso de sinistro no âmbito do seguro de responsabilidade civil automóvel. Veja-se a este título o que decorre dos artigos 37º e 39º.
62. Sendo certo que, no presente caso, a Autora/Recorrida alegou e provou que, em consequência do acidente dos autos, resultaram ferimentos graves no ocupante do veículo seguro S, melhor descritos no documento n.º 8, de fls. 89 e ss., do qual resulta que este sofreu uma lesão grave no esfacelo da mão direita, face dorsal, com fratura intra-articular de D1 exposta e avulsão de aparelho tendinoso, apresentando graves cicatrizes em toda extensão de D2 e D3, com compromisso motor.
63. E ainda do Doc. n.º 9, igualmente junto com a petição inicial, de fls. 9, referente ao pedido de liquidação da seguradora, onde está descrita a dinâmica do acidente, as lesões e o estado atual de S.
64. Documentos esses que, mais uma vez, não foram impugnados pelo Réu.
65. Vindo tal testemunha a confirmar em sede de audiência de julgamento que, em consequência do acidente, ficou com lesões na mão, tendo sido intervencionado cirurgicamente 7 vezes e necessitado de fisioterapia durante cerca de 7 meses, padecendo atualmente de uma incapacidade na mão.
66. Consequentemente, a Autora/Recorrida apresentou ao referido lesado proposta razoável no sentido de indemnizar os danos corporais sofridos por este ocupante, no valor global de € 42.500,00 assim discriminados:
c) Dano biológico = € 20.000,00;
d) Danos morais complementares = € 25.000,00.
67. Proposta essa que foi aceite por aquele lesado, confirmando este ter recebido da Autora/Recorrida a quantia de €42.500,00. O que se deu como provado em conjugação com o teor do documento n.º 10 junto com a petição inicial, de fls. 99, correspondente à “Ata de Avaliação de Danos e Prejuízos”, e dos documentos juntos com o requerimento com ref.ª citius 5143892, de20.04.2023, referentes à carta-cheque do montante de € 42.500,00 remetida pela Autora a S, bem como outra carta enviada por aquela a este da qual consta que ao aceitar o mencionado montante se considera totalmente ressarcido dos danos emergentes do sinistro.
68. Sempre se diga que, os valores referidos se encontram conformes à mais recente e maioritária jurisprudência quanto a esta matéria, atenta a idade do lesado (23 anos), a atividade profissional exercida (canalizador), a remuneração auferida pelo lesado (€636,04), uma incapacidade de 12 pontos, Q.D avaliado em 5/7, D.E de 6/7, prejuízo de afirmação pessoal de 3/5, conforme melhor decorre do Doc. 9 de fls. 9.
69. Pelo que, é completamente descabida, sem fundamento de facto e de direito, e até atentatória dos mais elementares valores éticos e morais da nossa sociedade, a alegação realizada pelo recorrente (o qual, sem qualquer pejo, ingeriu avultadas doses de bebidas alcoólicas antes de conduzir o veículo onde seguia o lesado, provocando-lhe lesões que o vão acompanhar para o resto da vida!) de que a Recorrida enriqueceu injustificadamente o património do terceiro lesado.
70. Nessa medida, não se mostram violados os artigos 342º do C.C., nem o artigo 27º do DL 291/2007, devendo improceder em toda a linha o pedido do Recorrente.
71. O que se aplica igualmente quanto à alegação do recorrente de que estamos perante uma situação de venire contra factum proprium, pois não alega os respetivos pressupostos, pelo que se vê a recorrida impedida de exercer o seu direito ao contraditório.
72. Pelo que, devem improceder totalmente as alegações de recurso do Recorrente».
1.10. Colhidos os vistos, cumpre decidir.
II – DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO
Decorre do disposto nos arts. 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1 do CPC, que as conclusões delimitam a esfera de actuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial (cfr., neste sentido, Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2017, pág. 105 a 106).
Assim, atendendo às conclusões supra transcritas, as questões essenciais a decidir consistem, basicamente, em saber:
a) se deve ser considerado não provado o n.º 10 da matéria de facto: «submetido a análise de sangue para pesquisa de álcool, o réu acusou uma T.A.S. de 1,33 g/l, descontado o erro máximo admissível»;
b) se a sentença recorrida fez errada aplicação do art. 342.º, n.º 1 do CC e do art. 27.º do DL n.º 291/2007, de 21.08, por dela não constar qualquer relação de causalidade entre o pagamento efectuado pela A./recorrida e os danos justificativos de tal pagamento;
c) se, caso assista à A./recorrida direito de regresso, o mesmo deve ser paralisado, nos termos do art. 334.º do CC, por a A./recorrida se encontrar em situação de “venire contra factum proprium”.
III – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
3.1. A sentença sob recurso considerou provada a seguinte matéria de facto:
«1. A Autora é uma sociedade constituída sob a forma comercial que tem por objeto a realização de todas as operações referentes à atividade seguradora e, bem assim, a prática de quaisquer atos necessários ou acessórios dessas mesmas operações;
2. No exercício desta sua atividade e por força do contrato de seguro celebrado com …., com sede na …., titulado pela apólice n.º …. - ramo automóvel - aceitou a transferência da responsabilidade civil por danos decorrentes da circulação do veículo automóvel com a matrícula …., marca NISSAN;
3. No dia 13-02-2018, pelas 17h35m, na Estrada Regional ER2, da Ilha de São Jorge, na freguesia de Santo Amaro, concelho de Velas, na ilha de São Jorge, nos Açores, ocorreu um acidente de viação, no qual foi interveniente o veículo com a matrícula …., conduzido pelo réu;
4. O réu seguia no sentido Velas-Calheta, quando ao chegar à Igreja da Boa-Hora, sita na Queimada, Santo Amaro, ao passar numa curva aí existente e ao desfazê-la, perdeu o controlo da viatura e embateu num muro das obras públicas aí existente, capotando de seguida;
5. O local do sinistro configura uma zona de curva para a direita, com contracurva para a esquerda;
6. No local é permitido o tráfego em ambos os sentidos, existindo uma via para cada sentido, separadas por uma linha longitudinal descontínua;
7. A faixa de rodagem não é ladeada por bermas e não apresenta inclinação;
8. No momento do sinistro, o piso era em asfalto sem irregularidades;
9. No local a velocidade mínima permitida é de 40 km/h e a velocidade máxima permitida é de 50 km/h;
10. Submetido a analise de sangue para pesquisa de álcool, o réu acusou uma T.A.S. de 1,33 g/l, descontado o erro máximo admissível;
11. Em consequência do embate, resultaram danos materiais para o veículo envolvido e para o muro onde embateu, numa extensão de nove metros;
12. Mais resultaram ferimentos corporais graves para o ocupante do veículo S;
13. Em 30.03.2019, a autora procedeu ao pagamento da quantia de € 42.500,00 a S a título de indemnização pelos danos corporais e morais sofridos em consequência do acidente».
3.2. A sentença recorrida considerou não provados os seguintes factos:
«a. No circunstancialismo referido em 3) e 4), o réu conduzia com uma T.A.S. de 1,77 g/l;
b. No mencionado circunstancialismo o piso estava seco;
c. Aquando do sinistro estava bom tempo e a visibilidade não estava afetada;
d. No mencionado circunstancialismo, o piso continha grande quantidade de sedimentos terrosos e arenosos e detritos vários;
e. Os referidos detritos foram trazidos para a via publica pelas chuvas e provinham, de um caminho rural que desemboca naquela;
f. Tais detritos causaram a derrapagem e posterior capotamento do veículo conduzido pelo réu».
IV – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
4.1. Comecemos pela impugnação da matéria de facto (conclusões I a VIII).
O R./recorrente considera que deve ser considerado não provado o ponto 10 dos factos assentes, que tem a seguinte redacção: «submetido a análise de sangue para pesquisa de álcool, o réu acusou uma T.A.S. de 1,33 g/l, descontado o erro máximo admissível».
Assenta o seu entendimento nas seguintes ordens de razões:
- verificou-se erro notório na apreciação das provas por parte do tribunal recorrido, na medida em que o documento n.º 5 (relatório do INMLCF referente ao exame toxicológico efetuado ao R./recorrente), referido pelo tribunal a quo, não permite dar como provado que, no momento do acidente (17h35m), o recorrente conduzia com a T.A.S. de 1,33 g/l, já que a colheita de sangue para análise foi efectuada, apenas, pelas 19h15m;
- a A./recorrida invocou a T.A.S. de 1,77 g/l, sendo que a sentença recorrida confunde os factos essenciais alegados para sustentar a causa de pedir com meros factos instrumentais, que  têm de se integrar e harmonizar com a matéria de facto provada ou não provada.
Vejamos.
Decorre do documento n.º 3 junto com a petição inicial (auto de participação de acidente de viação), não impugnado pelo R./recorrente, que a PSP se deslocou ao local do acidente, onde verificou a existência do mesmo, e que o condutor do veículo …., o ora R./recorrente, foi submetido a controlo do álcool, apresentando uma taxa qualitativa de 1,77 g/l.
Do referido documento n.º 5 junto com a petição inicial  (relatório final do INMLCF), também não impugnado pelo R./recorrente, resulta que o mesmo foi submetido a colheita de sangue pelas 19h15 e que apresentava uma taxa quantitativa de 1,53 g/l (+/- 0,20).
De acordo com o disposto no art. 156.º do Código da Estrada, «os condutores e os peões que intervenham em acidente de trânsito devem, sempre que o seu estado de saúde o permitir, ser submetidos a exame de pesquisa de álcool no ar expirado, nos termos do artigo 153.º».
Este art. 153.º preceitua, para o que ora releva, que:
«1 - O exame de pesquisa de álcool no ar expirado é realizado por autoridade ou agente de autoridade mediante a utilização de aparelho aprovado para o efeito.
2 - Se o resultado do exame previsto no número anterior for positivo, a autoridade ou o agente de autoridade deve notificar o examinando, por escrito ou, se tal não for possível, verbalmente:
a) Do resultado do exame;
b) Das sanções legais decorrentes do resultado do exame;
c) De que pode, de imediato, requerer a realização de contraprova e que o resultado desta prevalece sobre o do exame inicial; e
d) De que deve suportar todas as despesas originadas pela contraprova, no caso de resultado positivo.
3 - A contraprova referida no número anterior deve ser realizada por um dos seguintes meios, de acordo com a vontade do examinando:
a) Novo exame, a efetuar através de aparelho aprovado;
b) Análise de sangue.
(…)
5 - Se o examinando preferir a realização de uma análise de sangue, deve ser conduzido, o mais rapidamente possível, a estabelecimento oficial de saúde, a fim de ser colhida a quantidade de sangue necessária para o efeito.
6 - O resultado da contraprova prevalece sobre o resultado do exame inicial».
Por sua vez, o Regulamento de Fiscalização da Condução sob Influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas, aprovado pela Lei n.º 18/2007, de 17.05., estabelece que:
«Artigo 1.º
Detecção e quantificação da taxa de álcool
1 - A presença de álcool no sangue é indiciada por meio de teste no ar expirado, efectuado em analisador qualitativo.
2 - A quantificação da taxa de álcool no sangue é feita por teste no ar expirado, efectuado em analisador quantitativo, ou por análise de sangue.
3 - A análise de sangue é efectuada quando não for possível realizar o teste em analisador quantitativo.
Artigo 2.º
Método de fiscalização
1 - Quando o teste realizado em analisador qualitativo indicie a presença de álcool no sangue, o examinando é submetido a novo teste, a realizar em analisador quantitativo, devendo, sempre que possível, o intervalo entre os dois testes não ser superior a trinta minutos.
2 - Para efeitos do disposto no número anterior, o agente da entidade fiscalizadora acompanha o examinando ao local em que o teste possa ser efectuado, assegurando o seu transporte, quando necessário.
3 - Sempre que para o transporte referido no número anterior não seja possível utilizar o veículo da entidade fiscalizadora, esta solicita a colaboração de entidade transportadora licenciada ou autorizada para o efeito.
4 - O pagamento do transporte referido no número anterior é da responsabilidade da entidade fiscalizadora, sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 158.º do Código da Estrada.
Artigo 3.º
Contraprova
Os métodos e equipamentos previstos na presente lei e disposições complementares, para a realização dos exames de avaliação do estado de influenciado pelo álcool, são aplicáveis à contraprova prevista no n.º 3 do artigo 153.º do Código da Estrada.
Artigo 4.º
Impossibilidade de realização do teste no ar expirado
1 - Quando, após três tentativas sucessivas, o examinando não conseguir expelir ar em quantidade suficiente para a realização do teste em analisador quantitativo, ou quando as condições físicas em que se encontra não lhe permitam a realização daquele teste, é realizada análise de sangue.
2 - Nos casos referidos no número anterior, sempre que se mostre necessário, o agente da entidade fiscalizadora assegura o transporte do indivíduo ao estabelecimento da rede pública de saúde mais próximo para que lhe seja colhida uma amostra de sangue.
3 - A colheita referida no número anterior é sempre realizada nos estabelecimentos da rede pública de saúde que constem de lista a divulgar pelas administrações regionais de saúde ou, no caso das Regiões Autónomas, pelo respectivo Governo Regional.
Artigo 5.º
Colheita de Sangue
1 - A colheita de sangue é efectuada, no mais curto prazo possível, após o acto de fiscalização ou a ocorrência do acidente.
2 - Posteriormente, a amostra de sangue é enviada à delegação do Instituto Nacional de Medicina Legal da área respectiva, pelo estabelecimento que procedeu à colheita.
3 - Na colheita e acondicionamento da amostra de sangue são utilizados os procedimentos e o material aprovados, salvaguardando-se a protecção de dados pessoais.
Artigo 6.º
Exame toxicológico de sangue para quantificação da taxa de álcool
1 - O exame para quantificação da taxa de álcool no sangue é efectuado com recurso a procedimentos analíticos, que incluem a cromatografia em fase gasosa.
2 - O exame referido no número anterior é sempre efectuado pelo Instituto Nacional de Medicina Legal.
3 - No prazo máximo de 30 dias a contar da data da recepção da amostra, a delegação do Instituto Nacional de Medicina Legal que proceder ao exame envia o resultado obtido à entidade fiscalizadora que o requereu, em relatório de modelo aprovado em regulamentação.
4 - Sempre que o resultado do exame seja positivo, a entidade fiscalizadora procede ao levantamento de auto de notícia correspondente, a que junta o relatório.
5 - O resultado do exame de sangue para quantificação da taxa de álcool prevalece sobre o resultado do teste no ar expirado realizado em analisador quantitativo.
(…)».
No caso dos autos, o R. foi submetido a pesquisa de álcool pelo método qualitativo, isto é, pelo teste no ar expirado.
Apresentou uma TAS de 1,77g/l, que, nos termos legais, constitui um resultado meramente indiciário.
Foi, por isso, submetido a um método quantitativo de pesquisa de álcool no sangue, que, por razões que desconhecemos (Inexistência de analisador quantitativo?  Incapacidade do R. de expelir ar? Exigência dessa contraprova por parte do R.?), consistiu na análise ao sangue, feita no Centro de Saúde de Velas.
O resultado da análise ao sangue foi a presença de uma T.A.S. de 1,53 g/l com uma variação de erro de mais ou menos 0,20 g/l.
O artigo 5.º, n.º 1, do Regulamento supra referido dispõe, como se viu, que a colheita de sangue é efectuada, no mais curto prazo possível, após o acto de fiscalização ou a ocorrência do acidente, não impondo ou estabelecendo, no entanto, um intervalo de tempo preciso.
É do conhecimento comum que a alcoolemia afecta as capacidades físicas e psíquicas do condutor quase logo a seguir à ingestão da bebida alcoólica, atingindo um valor máximo em cerca de uma a duas horas, conforme as circunstâncias do momento, após o que se inicia o processo de decomposição ou eliminação pelo organismo (a uma média de 0,1 g/l por hora).
No caso concreto, o R./recorrente foi submetido a colheita de sangue 1 hora e 40 minutos após o acidente, numa altura em que, com muita probabilidade, já se havia iniciado o processo de eliminação do álcool, pelo que a demora na colheita de sangue terá, quanto muito, favorecido o R. e possibilitado um resultado inferior ao que teria no momento preciso do acidente.
Seja como for, o resultado do exame de sangue prevalece, como se viu, sobre o resultado do teste do ar expirado (que, repete-se, é meramente indiciário), sendo, portanto, esse o resultado que, para todos os efeitos legais, se deve ter por verificado no momento do acidente.
Desta forma, a T.A.S. que o R. apresentava no momento do acidente era de 1,33 g/l, descontado o erro máximo admissível, não merecendo censura o ponto 10 dos factos provados.
Improcede, pois, o recurso nesta parte, mantendo-se o n.º 10 dos factos provados, nos seus precisos termos.
4.2. Prossegue o recorrente, defendendo que não consta da sentença recorrida qualquer relação de causalidade entre o pagamento efectuado pela A./recorrida e quaisquer danos justificativos de tal pagamento, que, sendo factos constitutivos do seu alegado direito de regresso, nem sequer foram alegados, pelo que considera que a A./recorrida entregou a quantia que alega ter pago de € 42.500,00 ao sinistrado por sua iniciativa e por sua exclusiva vontade (conclusões IX e X).
O que entender?
Através da presente acção, a A./recorrida pretende fazer valer o direito de regresso previsto no art. 27.º, n.º 1 al. c) do DL n.º 291/2007, de 21.08 (Regime do Sistema Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel), de acordo com o qual, no caso de o condutor causador do acidente conduzir com uma taxa de alcoolémia superior ao legalmente permitido, a Seguradora tem direito de regresso contra o mesmo pela indemnização satisfeita em consequência directa do acidente.
São facto constitutivos desse direito:
a) a condução com uma TAS superior à legalmente permitida (sendo certo que «com a revisão do regime do seguro obrigatório de responsabilidade automóvel, realizada pelo Dec. Lei nº 291/07, de 21-8, caducou a jurisprudência uniformizadora do AcUJ nº 6/02 que fazia depender o direito de regresso da seguradora contra o condutor que conduzisse sob o efeito do álcool, da prova da existência de um nexo de causalidade entre esse facto ilícito e o acidente e passou a dispensar-se essa relação de causalidade, bastando que se apure que na ocasião do embate o condutor apresentava taxa de alcoolemia superior à legalmente permitida, e que foi o responsável pelo acidente» - cfr., por exemplo, ac. do STJ de 10.12.2020, in www.dgsi.pt);
b) a verificação dos pressupostos gerais da responsabilidade civil subjectiva e da obrigação de indemnizar: o facto, a culpa, o dano e nexo de causalidade.
Da matéria de facto provada, resulta, à evidência, a ocorrência, no circunstancialismo de tempo e lugar referidos no ponto 3.1., de um acidente de viação imputável à culpa exclusiva do condutor do veículo …, uma vez que, ao descrever uma curva, e sem que se tivesse verificado qualquer causa ou factor externo determinante, perdeu o controlo do veículo e embateu num muro, não logrando controlar o trajecto e a marcha do mesmo, o que demonstra uma condução pouco prudente, cautelosa ou atenta, sendo certo que o condutor deve moderar especialmente a velocidade nas curvas (art. 25.º, n.º 1 al. h) do Código da Estrada).
Provou-se, também, que o referido condutor conduzia com uma T.A.S. de 1,33 g/l, pelo que, não se exigindo, como se viu, o nexo de causalidade dessa taxa com o acidente, conclui-se que se encontra preenchido o primeiro pressuposto do direito de regresso invocado.
No que respeita aos pressupostos gerais da responsabilidade civil subjectiva, decorre, apenas, da matéria de facto provada na 1.ª Instância que:
«11. Em consequência do embate, resultaram danos materiais para o veículo envolvido e para o muro onde embateu, numa extensão de nove metros;
12. Mais resultaram ferimentos corporais graves para o ocupante do veículo;
13. Em 30.03.2019, a autora procedeu ao pagamento da quantia de € 42.500,00 a S a título de indemnização pelos danos corporais e morais sofridos em consequência do acidente».
Tem de reconhecer-se que tal factualidade é, manifestamente, insuficiente para concluir-se que a A. se constituiu na obrigação de indemnizar o ocupante S pelo montante de € 42.500,00.
Aliás, a expressão “ferimentos corporais graves” é, inequivocamente, conclusiva, encerrando já um conteúdo normativo, o que impede que possa constar do elenco dos factos provados.
Ora, na matéria de facto, à qual se irá, em momento posterior, aplicar o direito, não pode conter-se «qualquer valoração segundo a interpretação ou aplicação da lei, ou qualquer juízo, indução ou conclusão jurídica» (cfr. Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Código de Processo Civil, Lex, 1997, p. 312).
Como refere Helena Cabrita, in A Fundamentação de Facto e de Direito da Decisão Cível, Coimbra Editora, Coimbra, 2015, p. 106-107, «os factos conclusivos são aqueles que encerram um juízo ou conclusão, contendo desde logo em si mesmos a decisão da própria causa ou, visto de outro modo, se tais factos fossem considerados provados ou não provados toda a ação seria resolvida (em termos de procedência ou improcedência) com base nessa única resposta».
Não desconhecemos que a mais recente jurisprudência dos tribunais superiores tem vindo a admitir a inclusão na decisão de facto de factos com alguma componente conclusiva, desde que tenham, ainda, um substrato relevante para o acervo dos factos que importam para uma decisão justa (cfr., neste sentido, por exemplo, o acórdão do STJ de 14.07.2021, in www.dgsi.pt), por se considerar ser praticamente impossível formular questões rigorosamente simples, que não tragam em si implicados juízos conclusivos sobre outros elementos de facto.
Contudo, mesmo essa jurisprudência exige que se esteja perante realidades apreensíveis e compreensíveis pelos sentidos e pelo intelecto dos homens, estando vedado ao julgador da matéria de facto a formulação de juízos sobre questões de direito.
Embora seja certo que o actual Código de Processo Civil não contem norma, absolutamente, equivalente à do art. 646.º, n.º 4, do anterior Código, a verdade é que o art. 607.º, n.º 4 do CPC, consagra o mesmo princípio, ao prever que da fundamentação da sentença devem constar os factos julgados provados e não provados. A expressa menção aos “factos” reconduz-se ao velho princípio de que a fundamentação de facto deve ser expurgada de toda e qualquer matéria susceptível de ser qualificada como de direito, conceito que abarca, de igual modo, os juízos conclusivos.
Pelas razões expostas, impõe-se eliminar do n.º 12 dos factos provados a expressão “ferimentos corporais graves”.
4.3. Ora, tal como bem defende o R./recorrente, competia à A. alegar e provar os factos constitutivos do seu direito e, desta forma, demonstrar que o valor que pagou ao sinistrado era, efectivamente, o valor que era devido pelos danos por ele sofridos em consequência do acidente (ainda que, obviamente, não fosse necessário demonstrar que tal pagamento decorreu de uma decisão judicial condenatória, como parece pretender o recorrente).
Sucede que, na petição inicial, a A. alegou a este respeito que:
«21.
Em consequência deste sinistro resultaram (…)
22.
Ferimentos graves no ocupante do veículo seguro S - cfr. docs. . n.ºs 8 e 9 que ora se juntam e aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os legais efeitos.
23.
(…)
24.
Atentos os ferimentos graves no ocupante do veículo seguro S, a Autora indemnizou os danos corporais sofridos por este ocupante, no valor global de € 42.500,00 assim discriminados - cfr. doc. n.º 10 que ora se junta e aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os legais efeitos:
a) Dano biológico = € 20.000,00
b) Danos morais complementares = € 25.000,00».
Será tal suficiente para se entender que a A. alegou os factos constitutivos da responsabilidade civil subjectiva e, por conseguinte, do direito de regresso de que se arroga?
Nos termos do disposto no art. 186.º, n.º 2 al. a) do CPC, diz-se inepta a petição quando falte ou seja ininteligível a indicação da causa de pedir, isto é, o acto ou facto jurídico concreto, simples ou complexo, de que deriva o direito que se invoca ou no qual assenta o direito que o autor pretende fazer valer (art. 581.º, n.º 4 do CPC).
Inegável é, também, que compete ao autor o ónus de alegar os factos constitutivos essenciais do direito que invoca (cf. art. 5.º, n.º 1, do CPC).
Importa, contudo, distinguir a falta ou ininteligibilidade da causa de pedir da mera insuficiência desta.
De acordo com o ensinamento de Alberto dos Reis, in Comentário ao Código de Processo Civil, II, p. 364 e371, «se o autor exprimiu o seu pensamento em termos inadequados, serviu-se de linguagem tecnicamente defeituosa, mas deu a conhecer suficientemente qual o efeito jurídico que pretendia obter, a petição será uma peça desajeitada e infeliz, mas não pode qualificar-se de inepta. Importa não confundir petição inepta com petição simplesmente deficiente. Claro que a deficiência pode implicar ineptidão: é o caso de a petição ser omissa quanto ao pedido ou causa de pedir; Mas, aparte esta espécie, daí para cima são figuras diferentes a ineptidão e a insuficiência da petição. Quando a petição, sendo clara quanto ao pedido e à causa de pedir, omite facto ou circunstancias necessárias para o reconhecimento do direito do autor, não pode taxar-se de inepta: o que então sucede é que a acção naufraga».
Em sentido idêntico, Abílio Neto, in Breves Notas ao CPC, 2005, p. 61, considera que só a omissão total do pedido ou da causa de pedir ou a sua formulação em termos de tal modo obscuros, que não se compreenda qual a tutela jurídica pretendida pelo autor ou o facto jurídico em que alicerça o pedido, constitui vicio gerador de ineptidão. Já a mera imperfeição, equivocidade, incorrecção ou deficiência pode ser corrigida mediante convite do juiz, nos termos do art. 590.º, n.º 4 do CPC.
Também a jurisprudência tem, uniformemente, entendido que a insuficiência ou incompletude do concreto factualismo consubstanciador da causa de pedir não é determinante, em termos formais, de ineptidão da petição, apenas podendo contender, em termos substanciais, com a atendibilidade do pedido. Nesta conformidade, só haverá falta de indicação da causa de pedir determinante da ineptidão quando falte de todo a indicação dos factos que sustentam a pretensão submetida a juízo ou quando tais factos sejam expostos de modo tal que seja impossível ou, pelo menos, razoavelmente inexigível determinar qual o pedido e a causa de pedir (daí, aliás, a solução consagrada no 186.º, n.º 3 do CPC).
In casu, há que reconhecer que a A. recorreu a uma alegação fáctica, temerariamente, breve e concisa, quase postergando os princípios gerais da concretização, em termos de integração dos pressupostos de facto da respectiva norma jurídica substantiva.
Ainda assim, atenta a remissão que a A. faz para os documentos n.ºs 8 e 9 que junta, entendemos que se mostra alegada, de forma inteligível e compreensível, os factos integradores da causa de pedir, sendo possível extrair-se da petição inicial os factos que integram a responsabilidade civil subjectiva e a consequente a obrigação de indemnizar.
É certo que a A. não alegou, expressamente, as concretas lesões sofridas pelo ocupante S, os períodos de internamento, consultas, tratamentos e cirurgias a que foi sujeito, as incapacidades, quantum doloris e dano estético que sofreu ou sofrerá, as repercussões das lesões na sua vida profissional e geral ou outros factos necessários ao apuramento da justa indemnização (idade, profissão, rendimentos, etc.).
Remeteu, no entanto, para os documentos n.ºs 8 (documentação clínica diversa, certificados de incapacidade temporária, cópia do cartão de cidadão e recibo de vencimento) e 9 (relatório de avaliação da seguradora), de onde alguns desses factos emergem.
Ora, a alegação de factos por via indirecta, isto é, através da remissão para documentos, pode ser admitida quando a remissão se destine a completar a exposição feita no articulado, como sucede com a alegação das concretas lesões sofridas e suas repercussões ou consequências.
Esta Relação, em acórdão de 15.10.2014, in www.dgsi.pt, decidiu já que «a alegação dos factos essenciais que integram a causa de pedir apenas se poderá fazer por remissão para documentos, na perspetiva da estrita “complementação” do alegado na petição inicial, e assim desde que não redunde tal remissão, atenta a extensão e, ou, complexidade dos ditos documentos, na subalternização da petição inicial, enquanto lugar primeiro de exposição da factualidade que fundamenta a ação» (cfr. no mesmo sentido, o acórdão da RP de 19.04.2021, in www.dgsi.pt).
Também a Relação de Guimarães, em acórdão de 12.09.2013, in www.dgsi.pt., entendeu que: «I - Se em documento junto com a petição inicial estiverem concretamente descriminados e percetíveis os factos alegados, e resultar daquele articulado a clara intenção do autor em deles se servir, de tal forma que a parte contrária o perceba e possa cabalmente exercer o contraditório, não há razão para não admitir a remissão feita para esse documento, considerando este parte integrante da petição inicial. II - Este entendimento está mais de acordo com a moderna filosofia processual que aponta no sentido de uma cada vez maior preocupação com a busca da verdade material».
No caso em apreço, os factos essenciais, integradores e individualizadores da causa de pedir, estão, genericamente, alegados na petição inicial (arts. 22.º e 24.º), sendo que os documentos n.ºs 8 e 9 os concretizam e complementam.
O R. impugnou tais factos (quer, portanto, os expressamente alegados, quer os alegados por via indirecta, por remissão para os documentos), mas não os documentos juntos para prova dos mesmos.
Por isso, aliás, constituía tema da prova: «Dos danos sofridos por S em consequência do acidente e do seu montante».
A sentença recorrida não se pronunciou sobre os factos alegados por via indirecta (nomeadamente, os supra mencionados: concretas lesões sofridas pelo ocupante S; períodos de internamento, consultas, tratamentos e cirurgias a que foi sujeito; incapacidades, quantum doloris e dano estético que sofreu ou sofrerá; repercussões das lesões na sua vida profissional e geral; outros factos necessários ao apuramento da justa indemnização, como a idade, profissão, rendimentos, etc.).
Todavia, na motivação da decisão de facto, o tribunal a quo não deixou de considerar tais factos como assentes, fazendo constar que «o ponto 12) da factualidade provada resultou assente em face das declarações de S, o qual confirmou que, em consequência do acidente, ficou com lesões na mão, tendo sido intervencionado cirurgicamente 7 vezes e necessitado de fisioterapia durante cerca de 7 meses, padecendo atualmente de uma incapacidade na mão. As declarações de S mostram-se corroboradas pela informação clínica junta com a petição inicial, correspondentes ao documento n.º 8 de fls. 89 e ss., das quais resulta que este sofreu uma lesão grave no esfacelo da mão direita, face dorsal, com fratura intra-articular de D1 exposta e avulsão de aparelho tendinoso, apresentando graves cicatrizes em toda extensão de D2 e D3, com compromisso motor, bem como o documento n.º 9, igualmente junto com a petição inicial, de fls. 9, referente ao pedido de liquidação da seguradora, onde está descrita a dinâmica do acidente, as lesões e o estado atual de S. Uma vez mais, não tendo tais documentos sido impugnados, nem arguida a sua falsidade, o Tribunal convenceu-se da sua veracidade» (sublinhados nossos).
A decisão proferida sobre a matéria de facto é, assim, deficiente, pois não contém todos os factos alegados pela A., ainda que indirectamente, embora os tenha pressuposto como certos na sua motivação, sendo notória a formação de uma convicção positiva, por parte da 1.ª instância, quanto à sua verificação.
O elenco dos factos provados é, pois, manifestamente insuficiente para se concluir pela verificação dos pressupostos da responsabilidade civil e, por consequência, do direito de regresso invocado.
Sucede que, nos termos previstos no n.º 1 do art. 662.º do CPC, a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
Tal como demonstra Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2022, p. 333, «com a redacção do art. 662.º pretendeu-se que ficasse claro que, sem embargo da correção, mesmo a título oficioso de determinadas patologias que afetam a decisão da matéria de facto (v.g. contradição) e também sem prejuízo do ónus de impugnação que recai sobre o recorrente e que está concretizado nos termos previstos no art. 640.º, quando esteja em causa a impugnação de determinados factos cuja prova tenha sido sustentada em meios de prova submetidos a livre apreciação, a Relação deve alterar a decisão da matéria de facto sempre que, no seu juízo autónomo, os elementos de prova que se mostrem acessíveis determinam uma solução diversa, designadamente em resultado da reponderação dos documentos, depoimentos e relatórios periciais, complementados ou não pelas regras da experiência».
Desta forma, respeitado o princípio do dispositivo quanto à identificação dos pontos da discórdia, a Relação deve assumir-se como verdadeiro tribunal de instância e introduzir na decisão de facto impugnada as alterações que considere justificadas, ao abrigo dos poderes de livre apreciação/valoração/ponderação dos meios de prova indicados pela parte ou que se mostrem acessíveis e de acordo com a convicção própria que formule (a tanto não obstando, como alguns erradamente defendem, os princípios da imediação e da oralidade).
Com efeito, a Relação só deve anular a decisão da 1ª instância «… quando, não constando do processo todos os elementos que permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto ou quando considere indispensável a ampliação desta».
No caso que nos ocupa, os autos contêm elementos (documentos n.ºs 8 e 9 juntos com a petição inicial e depoimento gravado de S) que permitem que esta Relação se substitua à 1.ª instância e se pronuncie sobre os mencionados factos, que são, como se viu, imprescindíveis para a decisão.  
Saliente-se que tal faculdade não está sequer dependente da iniciativa do recorrente, bastando que a Relação se confronte com uma omissão objectiva de factos relevantes (cfr. Abrantes Geraldes, Ob. Cit., p. 294.). Com efeito, a intervenção do Tribunal da Relação nesse âmbito ocorre a título oficioso, independentemente, portanto, da iniciativa da parte interessada na alteração da decisão de facto (cfr. a este propósito, os acs. do STJ de 24.05.2018 e de 17.10.2019, ambos acessíveis in www.dgsi.pt).
Assim sendo, passa a suprir-se o supra pontado vício da decisão de facto proferida pela 1.ª instância, aditando-se aos factos provados os seguintes factos (com base, repete-se, na análise conjugada e crítica dos documentos n.ºs 8 e 9, não impugnados pelo R./recorrente, e no depoimento da testemunha S, que revelou conhecimento pessoal e directo desses factos e os confirmou de forma espontânea e credível):
12. Em consequência do embate, S, ocupante do veículo …., sofreu grave esfacelo da mão direita, face dorsal, com fratura intra-articular de D1 exposta e com avulsão de aparelho tendinoso;
12a. Esteve internado 42 dias no Hospital Divino Espirito Santo de Ponta Delgada, tendo sido submetido a 7 cirurgias;
12b. Sofreu dores quantificáveis no grau 5 de uma escala de 7;
12c. Ficou com graves cicatrizes em toda extensão de D2 e D3, com compromisso motor;
12d. Apresenta um dano estético quantificável de 6, numa escala de 7;
12e. Sofreu prejuízo de afirmação pessoal quantificável de 3 numa escala de 7;
12f. Apresenta os dois dedos atrofiados com cicatrização patológica, com força muscular diminuta, apenas conseguindo uma pinça pouco eficaz;
12g. A imobilidade articular de D1 é irreversível;
12h. Ficou a padecer de um défice funcional permanente (DFP) quantificável em 12 pontos;
12i. S nasceu no dia 31.07.1994;
12j. À data do acidente, S era canalizador e, em Fevereiro de 2018, auferiu o salário mensal de € 636,04.
4.4. Em virtude das alterações supra referidas (pontos 4.2 e 4.3), os factos provados a considerar passam a ser os seguintes:
«1. A Autora é uma sociedade constituída sob a forma comercial que tem por objeto a realização de todas as operações referentes à atividade seguradora e, bem assim, a prática de quaisquer atos necessários ou acessórios dessas mesmas operações;
2. No exercício desta sua atividade e por força do contrato de seguro celebrado com …., com sede na …, titulado pela apólice n.º … - ramo automóvel - aceitou a transferência da responsabilidade civil por danos decorrentes da circulação do veículo automóvel com a matrícula …., marca NISSAN;
3. No dia 13-02-2018, pelas 17h35m, na Estrada Regional ER2, da Ilha de São Jorge, na freguesia de Santo Amaro, concelho de Velas, na ilha de São Jorge, nos Açores, ocorreu um acidente de viação, no qual foi interveniente o veículo com a matrícula …., conduzido pelo réu;
4. O réu seguia no sentido Velas-Calheta, quando ao chegar à Igreja da Boa-Hora, sita na Queimada, Santo Amaro, ao passar numa curva aí existente e ao desfazê-la, perdeu o controlo da viatura e embateu num muro das obras públicas aí existente, capotando de seguida;
5. O local do sinistro configura uma zona de curva para a direita, com contracurva para a esquerda;
6. No local é permitido o tráfego em ambos os sentidos, existindo uma via para cada sentido, separadas por uma linha longitudinal descontínua;
7. A faixa de rodagem não é ladeada por bermas e não apresenta inclinação;
8. No momento do sinistro, o piso era em asfalto sem irregularidades;
9. No local a velocidade mínima permitida é de 40 km/h e a velocidade máxima permitida é de 50 km/h;
10. Submetido a analise de sangue para pesquisa de álcool, o réu acusou uma T.A.S. de 1,33 g/l, descontado o erro máximo admissível;
11. Em consequência do embate, resultaram danos materiais para o veículo envolvido e para o muro onde embateu, numa extensão de nove metros;
12. Em consequência do embate S, ocupante do veículo …, sofreu grave esfacelo da mão direita, face dorsal, com fratura intra-articular de D1 exposta e com avulsão de aparelho tendinoso;
12a. Esteve internado 42 dias no Hospital Divino Espirito Santo de Ponta Delgada, tendo sido submetido a 7 cirurgias;
12b. Sofreu dores quantificáveis no grau 5 de uma escala de 7;
12c. Ficou com graves cicatrizes em toda extensão de D2 e D3, com compromisso motor;
12d. Apresenta um dano estético quantificável de 6, numa escala de 7;
12e. Sofreu prejuízo de afirmação pessoal quantificável de 3 numa escala de 7;
12f. Apresenta os dois dedos atrofiados com cicatrização patológica, com força muscular diminuta, apenas conseguindo uma pinça pouco eficaz;
12g. A imobilidade articular de D1 é irreversível;
12h. Ficou a padecer de um défice funcional permanente (DFP) quantificável em 12 pontos;
12i. S nasceu no dia 31.07.1994;
12j. À data do acidente, S era canalizador e, em Fevereiro de 2018, auferiu o salário mensal de € 636,04;
13. Em 30.03.2019, a autora procedeu ao pagamento da quantia de € 42.500,00 a S a título de indemnização pelos danos corporais e morais sofridos em consequência do acidente».
4.5. Vejamos, então, se, em face da factualidade provada, era ou não devida a indemnização paga pela A. a S, sendo certo que dos € 42.500,00 pagos, € 20.000,00 respeitaram a indemnização por dano biológico e € 22.500,00 a indemnização por danos não patrimoniais complementares (cfr. arts. 3.º, al. b), e 4.º da Portaria n.º 377/2008, de 26.05., que fixou, nos termos do disposto no n.º 5 do artigo 39.º do DL n.º 291/2007, de 21.08., os critérios e valores orientadores, para efeitos de apresentação aos lesados por sinistro automóvel, de proposta razoável para indemnização do dano corporal, e que foi alterada pela Portaria n.º 679/2009 de 25.06).
Concluiu-se já que o acidente dos autos é imputável à culpa exclusiva do condutor do veículo … .
A responsabilidade civil emergente de acidentes de viação ocasionados pela circulação do veículo de matrícula … encontrava-se transferida para a A./recorrida, através de contrato de seguro, pelo que a mesma ficou constituída na obrigação de indemnizar S, ocupante do veículo …, pelos danos decorrentes desse acidente.
Mas, quais os danos que a A. estava obrigada a indemnizar?
Consistindo o dano num prejuízo real que é causado nos bens jurídicos ou na supressão ou diminuição de uma situação favorável que estava protegida pelo direito (cfr. Menezes Cordeiro, Direito das Obrigações, II, Lisboa, 1986, p. 283), os danos que a pessoa responsável é obrigada a indemnizar são os que tiverem como causa o acidente, tendo em conta o conceito de causalidade adequada plasmado no art. 563.º do CC.
Tais danos podem ser de carácter patrimonial, se susceptíveis de avaliação pecuniária, ou de carácter não patrimonial (cfr. art. 496.º do CC), quando o não forem e a sua reparação seja alcançada, apenas, mediante compensação.
O dano patrimonial, enquanto reflexo do dano real sobre a situação patrimonial do lesado, abrange, por sua vez, os danos emergentes - perda, privação ou estrago de bens ou direitos existentes no património do lesado - e os lucros cessantes - benefícios que o lesado deixou de obter em consequência das lesões, frustrando-se o rendimento ou acréscimo do seu património, como sejam os direitos ao ganho que se frustraram, em virtude do acidente (art. 564.º, n.º 1 do CC).
Numa outra classificação, o dano pode ser presente, se já estiver concretizado no momento em que é fixada a indemnização que lhe corresponde, ou futuro, caso não esteja verificado nessa data, mas seja previsível ou suficientemente provável, por resultar de um desenvolvimento seguro de um dano actual (cfr. art. 564.º, n.º 2 do CC).
Certo é, também, que quem se encontra constituído na obrigação de indemnizar deve reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação: princípio da restauração natural (art. 562.º do CC).
Nem sempre é, contudo, possível a reconstituição natural, pelo que, nesses casos e nos termos do art. 566.º do CC, há que fixar a indemnização em dinheiro, a qual deverá ter como medida a situação patrimonial do lesado na data mais recente que o Tribunal puder atender e a que teria nessa data, se não existissem danos (teoria da diferença).
Tendo em conta os considerandos expostos, vejamos, em face da factualidade provada, quais os danos decorrentes para SF do acidente de viação dos autos e o respectivo quantum.
Comecemos pelo “dano biológico”.
Tradicionalmente, a análise dualista – dano patrimonial/não patrimonial – abarcava todo o campo da discussão que os danos corporais comportavam, situando-se toda a discussão em volta da parametrização ressarcitória de tal tipo de danos e da autonomização de um ou outro parâmetro de avaliação, sempre inserido num dos termos da referida dualidade.
Posteriormente (antes mesmo da Portaria n.º 377/2008, de 26.05., prever o “dano biológico”, como ofensa à integridade física e psíquica de que resulte ou não perda da capacidade de ganho, determinado segundo a Tabela Nacional para Avaliação de Incapacidades Permanentes em Direito Civil – art. 3.º al. b)), passou a aludir-se ao “dano biológico” para referir-se a lesão causada ao corpo e à saúde do lesado ou a lesão causada à integridade física e psíquica, reconhecendo-se que o dano causado por tal lesão merece ser reparado independentemente de repercussões sobre a sua capacidade de ganho.
Com efeito, o homem, na sua integridade psico-somática, desenvolve a sua existência terrena na sua vida e realização profissionais e na sua vida relacional – relacionando-se e interagindo com os demais seres humanos – pelo que pode haver dano corporal, nesta faceta da sua vida relacional, tenha ou não havido qualquer rebate anátomo-funcional.
Importa, no entanto, evitar “super-equações” de danos (com indemnizações em duplicado ou em triplicado), tendo presente que há zonas de tangência e até de intersecção entre vectores diferenciados e autonomizados duma mesma realidade.
Daí que, após um momento inicial, em que alguns chegaram a admitir que o “dano biológico” seria um tertium genus, com um lugar próprio que não caberia no clássico dualismo patrimonial/não patrimonial, se tenha passado a entender que o mesmo (autónomo ou não) cabe em tal dualismo, sem prejuízo de poder ter uma vertente patrimonial e uma vertente não patrimonial, sendo que, quando está em causa e se pretende indemnizar o dano causado por uma incapacidade permanente geral (que impõe ao lesado esforços acrescidos no desempenho da sua profissão, mas que não se repercute numa perda da capacidade de ganho), se está perante a vertente patrimonial do “dano biológico”.
Em síntese, a lesão do direito ao corpo e à saúde é, enquanto dano autónomo, fonte de obrigação de indemnização, a suportar pelo autor do facto ilícito e em benefício de quem viu a sua integridade corporal beliscada, independentemente de quaisquer consequências pecuniárias ou actuais repercussões patrimoniais de qualquer natureza, mas a sua avaliação tem que ser acompanhada duma correta delimitação de realidades e conceitos, para que não haja sobreposições (cfr. ac. do STJ de 17.01.2023, in www.dgsi.pt).
No caso que nos ocupa, fazendo parte da  indemnização paga pela seguradora uma componente relativa a danos não patrimoniais complementares (art. 4.º da Portaria n.º 377/2008), afigura-se-nos que a indemnização de € 20.000,00 relativa a “danos biológicos” teve como intuito compensar o dano causado pelo défice funcional permanente de 12 pontos sofrido por S, mesmo que tal défice não tenha tido  repercussões na sua capacidade de ganho (o que se desconhece), estando-se, portanto, perante uma vertente mais patrimonial do “dano biológico” (art. 3.º al. b) da mesma Portaria).
Conforme se disse, e de acordo, aliás, com a jurisprudência dos nossos tribunais superiores, nomeadamente, do Supremo Tribunal de Justiça, a limitação funcional ou o dano biológico em que se traduz esta incapacidade é apta a provocar no lesado danos de natureza patrimonial e de natureza não patrimonial, sendo que os danos futuros decorrentes de uma lesão física não se reconduzem apenas à redução da capacidade de trabalho, na medida em que se traduzem, desde logo, numa lesão do direito fundamental do lesado à saúde e à integridade física.
Ora, de acordo com o art. 8.º da Portaria n.º 377/2008, a compensação prevista na alínea b) do artigo 3.º (dano biológico) é calculada de acordo com o quadro constante do respectivo anexo IV.
Assim, tendo em conta a idade do lesado à data do acidente (23 anos) e a pontuação atribuída pelo DFP (12 pontos), o valor a considerar por cada ponto seria de € 1.349,19 a € 1.395,36, o que equivaleria a uma compensação de € 16.190,28 a € 16.744,32.
De acordo com a Portaria em causa, deverão considerar-se os pontos mínimos e máximos do intervalo em função da proximidade do caso concreto aos limites para os quais cada intervalo foi construído: i) o limite máximo corresponde à menor idade e à maior pontuação; ii) o limite mínimo corresponde à maior idade e à menor pontuação.
Relembramos que o objectivo da Portaria n.º 377/2008 não foi o de proceder à fixação definitiva de valores indemnizatórios, mas estabelecer um conjunto de regras e princípios que permitissem agilizar a apresentação de propostas razoáveis, não substituindo os critérios legais previstos no Código Civil, que, obviamente, se sobrepõem aos da Portaria.
Desta forma, sendo os critérios da Portaria meramente indicativos e atendendo, ainda, ao tempo decorrido entre a verificação do dano e o pagamento realizado, afigura-se-nos justa e criteriosa a indemnização de € 20.000,00, pelo dano biológico sofrido por S.
No que concerne aos danos não patrimoniais complementares, não sendo possível a reconstituição natural, impunha-se, também, a fixação da indemnização em dinheiro, nos termos do art. 566.º do CC.
São de vária ordem os problemas suscitados pela avaliação do prejuízo causado ao nível do dano moral, funcionando o critério da equidade a que alude o art. 566.º, n.º 3 do CC, por ser impossível, como facilmente se depreende, averiguar do valor exacto do dano, dado o seu cariz não patrimonial e ausência de valor venal.
O art. 496.º, n.º 3, do CC impõe que se atenda às circunstâncias plasmadas no art. 494.º do CC (grau de culpabilidade do agente, situação económica deste e do lesado e demais circunstâncias do caso).
O método geralmente seguido consiste na consideração de que se o prazer compensa a dor, há que procurar obter a reparação através de prazeres que o dinheiro pode facultar.
A partir daqui, serão a experiência geral da vida e o bom senso que, atentas as circunstâncias do caso e segundo padrões objectivos, permitirá um cálculo indemnizatório.
E, embora seja possível compreender a dor física através da extensão e gravidade das lesões e da complexidade do seu tratamento clínico, já a dor moral, traduzida nas aflições, desgostos, angústias e inquietações, tem de ser aferida através dos dados da experiência, sobretudo quando nem sequer é exteriorizada.
Enfim, o dano moral tem de ser aferido em concreto, estabelecendo-se a sua gravidade em função da sua intensidade, impacto, mal-estar ou ressonância que produzem sobre a sensibilidade do lesado, mas também, da sua duração, sendo certo que a indemnização não visará, nunca, “pagar” o dano, mas atenuar o mal consumado.
No caso sub judice, inexistem dúvidas de que estão provados danos não patrimoniais com gravidade suficiente para serem indemnizáveis (cfr. art. 496.º, n.º 2 do CC).
Com efeito, provou-se que S sofreu grave esfacelo da mão direita, face dorsal, com fratura intra-articular de D1 exposta e com avulsão de aparelho tendinoso; esteve internado 42 dias no Hospital Divino Espirito Santo de Ponta Delgada, tendo sido submetido a 7 cirurgias; ficou com graves cicatrizes em toda extensão de D2 e D3, com compromisso motor; apresenta um dano estético quantificável de 6, numa escala de 7; sofreu prejuízo de afirmação pessoal quantificável de 3 numa escala de 7; apresenta os dois dedos atrofiados com cicatrização patológica, com força muscular diminuta, apenas conseguindo uma pinça pouco eficaz; a imobilidade articular de D1 é irreversível; ficou a padecer de um défice funcional permanente (DFP) de 12%.
Da matéria de facto provada, decorre, ainda, que S sofreu dores quantificáveis no grau 5 de uma escala de 7.
É, pois, evidente a intensidade dos danos não patrimoniais sofridos, sendo patentes as limitações de S que ficou a padecer durante largo período de tempo, bem como as dores, as angústias, preocupações, receios, desconforto e mal-estar a que foi sujeito, com repercussões, claramente, relevantes na organização da sua vida pessoal e familiar, merecedores, portanto, de tutela jurídica e, por isso, indemnizáveis.
Não podemos, ainda, esquecer-nos que, à data dos factos S tinha 23 anos de idade e que a esperança de vida à nascença para os homens foi estimada pelo INE em 77 anos, o que o obrigará a viver com a sua lesão e respectivas repercussões por largos anos.
Ora, devendo o montante da reparação ser proporcionado à gravidade do dano, atendendo-se, na sua fixação, a todas as regras de boa prudência, do bom sendo prático, da justa medida das coisas e da criteriosa ponderação das realidades da vida, afigura-se equitativamente justa e criteriosa a quantia de € 22.500,00, a título de indemnização global pelos danos não patrimoniais supra referidos.
A idêntico resultado se chegaria pela aplicação dos critérios da Portaria n.º 377/2008, pois que, de acordo com o art. 4.º e respectivo anexo I, por cada dia de internamento era devida a quantia de € 20,52 a 30,78 (o que x 42, perfaz € 1.292,76), pelo dano estético de grau 6 era devida a quantia de € 7.438,50 e pelo quantum doloris de grau 5 era devida a quantia de € 1.641,60, importando, ainda, ter presente os tratamentos e cirurgias a que S foi sujeito e as repercussões das lesões sofridas, nomeadamente, o prejuízo de afirmação pessoal.
Finalmente, os montantes em causa mostram-se conforme às últimas decisões jurisprudenciais sobre a matéria (veja-se, por exemplo, o acórdão da RG de 22.01.2015, in www.dgsi.pt), pois que a aplicação de critérios equitativos não afasta a necessidade de ponderar as exigências do princípio da igualdade, o que aponta para uma tendencial uniformização de parâmetros na fixação judicial das indemnizações, sem prejuízo da consideração das circunstâncias do caso concreto (cfr. art. 8.º, n.º 3 do CC, e acórdão do STJ de 07.05.2014, www.dgsi.pt).
E, assim sendo, conclui-se que a indemnização paga pela A. a S foi razoável e adequada e era, por isso, a devida, mostrando-se, também, preenchido o segundo pressuposto do direito de regresso supra enunciado.
4.6. Entende, por fim, o recorrente que, caso assista à A./recorrida direito de regresso, o mesmo deve ser paralisado, nos termos do art. 334.º do CC, por a A./recorrida se encontrar em situação de “venire contra factum proprium” (conclusão XI).
Como é consabido, o abuso de direito consiste num exercício inadmissível de posições jurídicas, isto é, num exercício de posições permitidas, mas em termos tais que são contrariados os valores fundamentais do sistema, expressos, por tradição, na boa fé.
Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral, I, 6.ª ed., p. 516, refere que «para que haja lugar ao abuso de direito é necessário a existência de uma contradição entre o modo ou o fim com que o titular exerce o seu direito e o interesse a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito».
Trata-se de uma válvula de segurança, de conhecimento oficioso, que obsta a situações de injustiça reprováveis para o sentimento jurídico prevalente na comunidade social.
Existirá abuso do direito quando, admitido um certo direito como válido em tese geral, aparece, todavia, no caso concreto, exercitado em termos, clamorosamente, ofensivos da justiça e contrários ao seu fim (económico e social), ainda que ajustados ao conteúdo formal do direito.
Muito embora o intérprete-aplicador da lei tenha uma lata disponibilidade na concretização da boa fé, têm-se apontado dois instrumentos que conferem maior segurança na decisão: o princípio da tutela da confiança legítima e o princípio da materialidade subjacente.
Através do primeiro princípio, subjacente ao abuso de direito, protegem-se situações de confiança justificada ou plausível, alicerçada em elementos razoáveis, susceptíveis de provocar a adesão de um pessoa normal, com base na qual alguém actua de acordo com o que acreditava ir acontecer (cfr. Baptista Machado, no estudo Tutela da Confiança e Venire Contra Factum Proprium, in Obra Dispersa, I, p. 415 a 418, e RLJ anos 116, 117 e 118, n.º 3735, p. 171 e segs.).
A protecção da confiança salda-se na constituição, a favor do confiante, de direitos que, de outra forma, não lhe assistiriam, permitindo assegurar uma solução justa ou equitativa.
Já a ideia que aflora do princípio da materialidade subjacente é a de que o Direito visa, através dos seus preceitos, a obtenção de  certas soluções efectivas, para o que é insuficiente a adopção de condutas que só formalmente correspondem aos objectivos jurídicos. Ou seja, a boa fé exige que os exercícios jurídicos sejam avaliados em termos materiais, de acordo com as efectivas consequências que acarretam, pois que o cumprimento formal de uma norma jurídica pode, materialmente, contrariar a boa fé ou traduzir-se num exercício desequilibrado de posições jurídicas.
Com recurso a tais princípios, a doutrina e a jurisprudência têm tipificado certos comportamentos inadmissíveis, entre os quais, para o que ora releva, se destacam o venire contra factum proprium, em que o exercente deixa entender ou declara ir tomar uma certa atitude e, depois, toma atitude contrária.
Ora, nada disso ocorre no caso que nos ocupa, o que impõe a conclusão de que o exercício do direito que a A./recorrida pretende fazer valer, assente quer no contrato de seguro que celebrou com o proprietário do veículo …, quer em lei vigente, não é abusivo nem pode ou deve ser paralisado.
E, assim sendo, improcede, totalmente, a apelação.

V – DECISÃO
Pelos fundamentos expostos, acorda-se em julgar a apelação totalmente improcedente, e em consequência, mantém-se a sentença recorrida.
Custas pelo recorrente.
Notifique.
*
Lisboa, 25.01.2024
Rui Oliveira
Maria do Céu Silva
Teresa Prazeres Pais