Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
14066/22.9T8LSB.L1-7
Relator: JOSÉ CAPACETE
Descritores: DANO NO VEÍCULO
INCÊNDIO
RESPONSABILIDADE CIVIL
RESPONSABILIDADE PELO RISCO
DIRECÇÃO EFECTIVA DE VIATURA
DANOS
RISCOS PRÓPRIOS DO VEÍCULO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/06/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1. São razões de certeza e segurança jurídica explicam que as hipóteses legais de responsabilidade objetiva ou pelo risco obedeçam ao princípio da tipicidade ou de numerus clausus, o que significa que haverá regras que, para determinados âmbitos, preveem responsabilidade objetiva com requisitos que vão variando, e com algumas diferenças nos efeitos, o que conduz à criação de um sistema de previsões normativas conformadas de forma estrita, como ocorre, v. g., no caso do art. 503.º, n.º 1 CC.
2. (...) preceito à luz do qual se deve considerar acidente de viação todo aquele em que se encontra envolvido um veículo, desde que os danos se possam imputar aos riscos que ele, como veículo, é apto a provocar ou produzir, independentemente de se encontrar ou não em circulação.
3. Assim, no âmbito da sua previsão cabem apenas os prejuízos que, de algum modo, traduzam a especificidade dos riscos induzidos pelo veículo, em circulação ou imobilizado, isto é, o “perigo típico” que ele envolve, o que implica a existência de uma conexão causal, ainda que indireta, entre aqueles prejuízos e este perigo, também chamada “conexão de risco”.
4. A formulação “riscos próprios do veículo” tem sido objeto de interpretação ampla pela jurisprudência, em ordem a assegurar o adequado ressarcimento dos lesados, estando neles abrangidos não apenas os riscos inerentes aos mecanismos e peças integrantes da viatura (falhas de travões, pneus que rebentam, direção que se parte, “capot” que se abre com a viatura em andamento, janelas que se quebram com as vibrações provocadas pela passagem de pesados), mas também fatores relativos à pessoa do condutor (como sejam desmaios, acidentes cardíacos, cegueira repentina, etc.), às condições atmosféricas e ao estado das vias.
5. Estão, assim, abrangidas naquele conceito todas as circunstâncias de força maior que se repercutam de forma direta no funcionamento do veículo, ou de forma indireta, por intermédio da pessoa do condutor ou das condições das vias de circulação (derrapagens em piso escorregadio, buracos na via, gelo acumulado nas faixas de rodagem, etc.), bem como os próprios danos causados pelo veículo ainda que imobilizado (v. g., incêndio provocado por curto-circuito).
6. Fora do círculo dos danos abrangidos pela responsabilidade objetiva prevista no mesmo preceito ficam os que não têm conexão com os riscos específicos do veículo, que dele exorbitam, que não são efeito dos seus perigos especiais, como ocorre, por exemplo, quando alguém tropeça numa viatura que estava estacionada numa garagem, ou entala os dedos numa porta de um automóvel, ou é agredido por alguém que se serve de uma peça de um automóvel, ou quando o proprietário do veículo o deixa estacionado de forma legal na rua porque lhe faltou a gasolina, e uma bicicleta choca com ele, já que, no seu lugar, podia muito bem estar outra coisa (v. g., um montão de pedras, para arranjo do pavimento) e a consequência seria a mesma.
7. Não cabe no âmbito da responsabilidade objetiva por acidente de viação prevista no art. 503.º, n.º 1 CC, um caso em que:
a) deflagrou um incêndio na zona de estacionamento automóvel de uma artéria de Lisboa;
b) (...) com origem na zona da roda dianteira esquerda de um veículo ligeiro de passageiros ali estacionado;
c) (...) incêndio esse que derivou de intervenção humana;
d) (...) e depois atingiu outros veículos estacionados na mesma zona, entre eles, o veículo da autora,
pois inexiste nexo causal entre os danos sofridos pelo veículo da autora, referido em d), e os riscos ou perigos próprios, específicos, do veículo referido em b).
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – RELATÓRIO:
M intentou a presente ação declarativa de condenação contra VD – Companhia de Seguros, S.A., alegando, em síntese, que é dona do veículo automóvel de marca Mercedes Benz, modelo ____ com a matrícula __-AA-__.
No final do dia __ de ____ de ____, a autora estacionou o AA na Rua ____, freguesia de ____, em Lisboa.
Na manhã do dia seguinte encontrou o AA com estragos, provocados por um incêndio que teve origem no pneu dianteiro do lado esquerdo do veículo de marca SMART, modelo ____, com a matrícula __-BB-__, pertença de terceiro, estacionado à esquerda do AA, e que se alastrou a este veículo.
A autora pretende ser indemnizada pelos prejuízos que sofreu em consequência daquele sinistro, à data do qual se encontrava transferida para a ré a responsabilidade civil decorrente de acidentes provocados pelo II.
Sucede que, apesar de interpelada para o efeito, a ré não ressarciu a autora de tais prejuízos.
A autora conclui assim a petição inicial:
«Termos em que deverá a presente ação vir a ser julgada procedente, por provada e em consequência condenar-se a Ré a pagar à A. todos os danos causados no seu veículo supra referido emergentes do sinistro em referência, nomeadamente:
a) A quantia de 28.000,00 € (vinte e oito mil euros) relativa aos danos relativos à perda total do veículo.
b) A quantia de 450,00 € (quatrocentos e cinquenta euros) relativa aos danos causados na cadeira de bebé deteriorada que se encontrava no interior do mesmo.
c) Todos e quaisquer encargos com o transporte e, ou depósito do veículo, ou outros do mesmo decorrentes.
d) A pagar juros sobre todas as quantias em que vier a ser condenada desde a sua citação até integral e efetivo pagamento.»
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A ré contestou, alegando, também em síntese, e com relevo, que o incêndio com origem no BB, e que alastrou ao AA, provocando-lhe estragos, teve causa humana, o que afasta a sua responsabilidade.
Conclui assim a contestação:
«Nestes termos e nos melhores de Direito, que V.Ex.ª doutamente suprirá, deve a presente acção ser julgada improcedente, por não provada.»
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Na subsequente tramitação dos autos, com dispensa da audiência prévia, realizou-se a audiência final, após o que foi proferida sentença, de cuja parte dispositiva consta o seguinte:
«Pelo exposto, e nos termos de direito invocados, julga-se a ação totalmente improcedente, por não provada nos termos supra aludidos e, em consequência, decide-se absolver a ré V – Companhia de Seguros, S.A. do pedido.»
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Inconformada, a autora interpôs o presente recurso de apelação, concluindo assim as respetivas alegações:
«PRIMEIRA – (...) não há o mínimo indício que pudesse levar a concluir que o incêndio teria sido provocado por ação humana;
SEGUNDA – De acordo com a normalidade do acontecer, podia tal incêndio ter origem no próprio veículo, a partir da roda / pneu dianteiro esquerdo, em consequência de fricção dos travões ou escorrência de líquido inflamável – nomeadamente óleos – (...);
TERCEIRA – (...);
QUARTA – (...);
QUINTA – (...) deveria o Tribunal a quo ter considerado como não provado o facto levado ao ponto 13 do elenco da matéria considerada provada, antes considerando que o incêndio teve início no próprio veículo sem intervenção humana na sua génese.
SEXTA – Atendendo às regras de repartição do ónus da prova, que fariam recair sobre a recorrida a prova que o incêndio não teria causa acidental por se tratar de matéria impeditiva do direito invocado, deveria a consequência de tal ausência de prova consistente funcionar contra quem tinha o ónus de demonstrar que o incêndio não foi intencional, ou seja, contra a recorrida (...);
SÉTIMA – Por consequência, ao absolver a recorrida do pedido, considerando aplicável o disposto no artigo 505º do Código Civil, assim excluindo a responsabilidade do proprietário do veículo segurado na recorrida, violou o Tribunal a quo o disposto nos artigos 499º a 510º, 483º nº 2 e 342º nº 1 e 2 todos do Código Civil, bem como o disposto no artigo 607º nº 4 do Código Processo Civil.
OITAVA – Diversamente, deveria o Tribunal a quo ter decidido estarem preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual prevista nesses normativos de natureza substantiva, e, excluindo a aplicação do artigo 505º do mesmo diploma, decidir pela condenação da recorrida no pedido, no caso concreto e atendendo à matéria assente no ponto 9) do elenco dos factos provados, no pagamento à recorrente do montante de 28.000,00 € (vinte e oito mil euros) relativos ao valor dos danos causados no seu veículo.
NONA – Assim, revogando a douta sentença no sentido apontado, farão VOSSAS EXCELÊNCIAS
JUSTIÇA[i]»
*
A ré contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso e, consequentemente, pela manutenção da sentença recorrida.
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II – ÂMBITO DO RECURSO:
Como se sabe, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio, é pelas conclusões com que o recorrente remata a sua alegação (aí indicando, de forma sintética, os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida: art. 639.º, n.º 1), que se determina o âmbito de intervenção do tribunal de recurso.
Efetivamente, muito embora, na falta de especificação logo no requerimento de interposição, o recurso abranja tudo o que na parte dispositiva da sentença for desfavorável ao recorrente (art. 635.º, n.º 3), esse objeto, assim delimitado, pode vir a ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusões da alegação (n.º 4 do mesmo art. 635.º).
Por isso, todas as questões de mérito que tenham sido objeto de julgamento na sentença recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação do recorrente, mostrando-se objetiva e materialmente excluídas dessas conclusões, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso, ainda que, eventualmente, hajam sido suscitadas nas alegações propriamente ditas.
Por outro lado, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando, assim, ius novarum, i.e, a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo (cfr. os arts. 627.º, n.º 1, 631.º, n.º 1 e 639.º).
Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (art. 5.º, n.º 3) – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respetivo objeto, excetuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras (art. 608.º, n.º 2, ex vi do art. 663.º, n.º 2).
À luz destes considerandos, neste recurso importa decidir:
a) se a decisão sobre a matéria de facto deve ser alterada nos termos pretendidos pela apelante; e, em caso afirmativo,
b) se a sentença recorrida deve ser revogada e substituída por outra que condene a apelada indemnizar a apelante pelos prejuízos sofridos pelo AA.
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III – FUNDAMENTOS:
3.1 – Fundamentação de facto:
3.1.1 – A sentença recorrida considerou provado que:
«1) A Autora é proprietária do veículo automóvel ligeiro de passageiros de marca Mercedes Benz, modelo ____ com a matrícula __-AA-__;
2) No dia 13 de setembro de 2021 deflagrou um incêndio na zona de estacionamento automóvel que se encontra junto ao n.º _, da Rua ____, em Lisboa;
3) Aí encontravam-se estacionadas as seguintes viaturas:
a. Viatura ligeira de passageiros, de marca Smart, modelo ____, com a matrícula __-BB-__;
b. Viatura ligeira de passageiros, de marca Mercedes-Benz, modelo ____, com a matrícula __-AA-__;
c. Viatura ligeira de passageiros, de marca Peugeot, modelo ____, com a matrícula __-CC-__; e
d. Viatura ligeira de passageiros, de marca Kia, modelo ____, com a matrícula __-DD-__.
4) O incêndio teve origem na zona da roda dianteira esquerda do veículo ligeiro de passageiros marca Smart, com a matrícula __-BB-__, propriedade de B;
5) Tendo depois atingido os restantes veículos indicados em 3: numa primeira fase o veículo de marca Kia, que se encontrava à esquerda do veículo de marca Smart, e numa segunda fase e por força do sentido do vento, o veículo da Autora e o Peugeot, que se encontravam estacionados à direita do veículo Smart, atento o sentido da marcha;
6) A viatura da Autora encontrava-se com a tinta e primário da carroçaria a nível exterior consumidos pelas chamas, sendo inexistentes do lado esquerdo do veículo (lado do condutor);
7) A tinta primária do lado direito mostrava-se igualmente deteriorada;
8) O habitáculo dos passageiros e do compartimento do motor estavam destruídos, existindo ainda algum material inflamável que não tinha sido totalmente consumido;
9) Os danos do veículo da Autora foram estimados em 28.000,00€ (perda total);
10) A essa data a responsabilidade civil obrigatória pelos danos decorrentes da circulação do veículo automóvel de marca Smart, modelo ____, com a matrícula __-BB-__ estava transferida para a VD, o que resulta da apólice n.º ____;
11) A Autora, em finais de novembro de 2021 e a 27 de dezembro do mesmo ano, solicitou à Ré o pagamento da indemnização pelos danos causados no seu veículo;
12) A Ré não pagou qualquer valor à Autora.
13) O incêndio derivou de intervenção humana.»
3.1.2 – (...) e não provado que:
«a) Foi destruída uma cadeira para transporte de bebés em veículo automóvel, que se encontrava no banco traseiro da Autora, no valor de 450,00€.»
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3.2 – Fundamentação de direito:
3.2.1 – Da impugnação da decisão sobre a matéria de facto:
A apelante impugna a decisão sobre o enunciado descrito em 13. da matéria de facto provada.
É o seguinte o teor de tal enunciado:
«O incêndio derivou de intervenção humana.»
O tribunal recorrido motivou assim a decisão sobre este enunciado:
«Já a factualidade vertida no facto provado n.º 13 foi assim considerada com base na conjugação do relatório da polícia judiciária, da certidão dos autos do inquérito de fls. 54 verso a 56 e da prova testemunhal de MJ, JM e AF.
Com efeito, a inspetora MJ, sendo especialista na área de incêndios da polícia judiciária, detém um conhecimento acima do comum no que respeita a esta área e foi absolutamente perentória na sua conclusão de que o incêndio teve origem humana, uma vez que este progrediu da zona exterior, deixando marcas na carroçaria de dano superior ao interior, o que significa que não pode ter tido origem no próprio carro por si só.
Esta inspetora foi também quem elaborou o relatório da polícia judiciária e, pese embora tenha afirmado que “efetuada uma busca fina na área de imediação do pneu não se logrou a identificação de algum objeto ou material que pudesse ter estado na origem do incêndio”, a verdade é que também afirmou que qualquer material ou substância inflamável ali colocada teria sido consumida pelas chamas durante a ocorrência do incêndio (fls. 21). Da conclusão deste relatório também consta que “o incêndio em investigação teve origem numa ação humana dolosa, com a sua área de início na zona do pneu esquerdo dianteiro.”
Por outro lado, o agente JM afirmou não ter encontrado no local nenhum foco de ignição ou substância aceleradora, no sentido “material”, mas que lhe surgiu a suspeita de que foi fogo posto, com o auxílio do que foi dito por uma testemunha presente no local e, por esse motivo, foi chamada a polícia judiciária. Também neste sentido foi o auto de notícia por si elaborado (fls. 33 a 35).
Já o inspetor-chefe AF testemunhou no sentido de não ter tido qualquer dúvida de que o incêndio tinha tido mão humana, afirmando que afasta a possibilidade de o incêndio ter despoletado no veículo sem causa externa, porquanto na roda do pneu não existe nada que, por si só, pudesse dar origem a um incêndio.
Ademais, pese embora o inquérito do caso em questão tenha sido arquivado (fls. 54 verso a 56), a justificação que é dada para tal no despacho de arquivamento é a de que não foi apurada a identidade do(s) autor(es) do crime e não que não existem indícios de que o crime foi cometido.
Ainda, uma ressalva para o depoimento de PF, que se encontrava presente na altura do incêndio e afirmou ter visto uma pessoa a andar a pé com um capacete de mota colocado, muito perto das viaturas, tendo considerado esse facto suspeito. Ora, apesar de tal não ser determinante para a convicção do Tribunal, não pode deixar de assumir alguma importância quando conjugado com o resto da prova.
Desta forma, conjugando toda a prova indicada supra – a maior parte proveniente de profissionais com experiência no ramo de incêndios – com as regras da experiência comum, de que um incêndio não surge sozinho numa roda de um pneu de um carro que se encontrava parado num parque de estacionamento, nada mais resta ao Tribunal se não concluir que o incêndio teve origem humana.
Neste sentido, também não foi suficiente o depoimento de MR, ex-companheiro da Autora, que afirmou ser industrial de táxis e que uma fuga de óleo num carro pode gerar sobreaquecimento e problemas elétricos que podem vir a provocar um incêndio. Ora, este depoimento em confronto com os depoimentos das testemunhas com experiência profissional, especialmente da inspetora MJ, tem de assumir-se menos relevante, porquanto a testemunha não tem conhecimentos técnicos na área, nem tão-pouco se revela imparcial relativamente à situação que envolve a sua ex-companheira.»
Considera a apelante que «atento o teor da fundamentação do próprio relatório da Polícia Judiciária junto como documento nº 2 na Petição Inicial, concretamente a fls. 28, fls. 30, e fls. 31, onde se refere expressamente que “efetuada uma busca fina na área de imediação do pneu não se logrou a identificação de algum objeto ou material que pudesse ter estado na origem do incêndio” e ainda “não foi possível identificar vestígios do meio / fonte da ignição”, concluindo-se assim no sobredito relatório que “não foi possível identificar o autor(es) do incêndio nem a(s) sua(s) motivação(ões)”, resulta que não há qualquer mínimo indício que pudesse levar a concluir que o incêndio teria sido provocado por ação humana.
De facto, de acordo com a normalidade do acontecer, podia tal incêndio ter origem no próprio veículo, a partir da roda / pneu dianteiro esquerdo, em consequência de fricção dos travões ou escorrência de líquido inflamável – nomeadamente óleos – conforme decorre do teor do depoimento da testemunha MR, que foi profissional de táxis durante vários anos, ouvido sob a referência 202305111038 46 – 20407403 – 2871111 com início às 10:38:47 e fim às 10:48:06, considerados os trechos do seu depoimento constantes do minuto 06:47 a o minuto 08:48.
Por outro lado, quando inquirida a testemunha Inspetora MJ, ouvida sob a mesma referência entre as 10:09:20 e 10:24:25, considerados os trechos do seu depoimento constante do minuto 04:45 ao minuto 06:48, assim como do teor do depoimento da testemunha JM, ouvida igualmente sob a mesma referência entre as 10:24:26 e as 10:33:33, considerados os trechos do seu depoimento entre o minuto 05:29 e 04:10, não resulta qualquer evidência de que o sobredito incêndio tivesse origem em ato humano doloso.
Por conseguinte, não resulta fundamentada, - porque não alicerçada em factos concretos passíveis de sustentar uma explicação justificada e coerente, suportada num raciocínio objetivo claramente explicativo e sindicável, - a conclusão do relatório da P.J. e o depoimento da sobredita inspetora porque desgarrados de quaisquer factos concretos que a sustentem, antes se baseando em mera suposições ou conjeturas.
Por consequência, considerados tais documentos e depoimentos deveria o Tribunal a quo ter sido considerado como não provado o facto levado ao ponto 13 do elenco da matéria considerada provada, antes considerando que o incêndio teve início no próprio veículo sem intervenção humana na sua génese.»
Nos termos da 1ª parte do nº 5 do art. 607º do CPC, «o juiz aprecia livre as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto; (…)».
Dispõe, por sua vez, o nº 4 do mesmo artigo que «na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência.»
Na decisão proferida relativamente ao enunciado descrito sob o ponto 13. dos factos provados, o tribunal a quo cumpriu, exemplarmente, diga-se, o estipulado no transcrito preceito legal, indicando quais os meios de prova produzidos nos autos que considerou, procedendo, em seguida, à sua análise conjugada e critica, para, então, finalmente, concluir, dando como provado aquele enunciado.
A motivação da decisão quanto àquele enunciado permite, às partes, a este tribunal de recurso e a quem quer que seja que leia a sentença, uma facílima apreensão das razões pelas quais a senhora juíza a quo no sentido em que decidiu o ponto de facto em questão.
É nítido o percurso lógico seguido pela julgadora da 1.ª instância, apoiado nos elementos de prova previamente indicados e devidamente explicados no texto da sentença, mostrando às partes, ao tribunal ad quem e, sobretudo, aos cidadãos, o raciocínio lógico em que apoiou a decisão sobre aquele ponto de facto.
Esclareceu as razões de credibilidade e da força decisiva que reconheceu aos concretos meios de prova que indicou e analisou conjugada e criticamente, para decidir como decidiu aquele ponto de facto.
Acresce que fez uso, com inteiro a propósito, das regras da ciência, da lógica, da experiência, daquilo que é normal, sob pena de as coisas não fazerem qualquer sentido.
É caso para dizer, que à luz da motivação que apresentou, a senhora juíza passou a convencida a convincente.
Ouvida a gravação dos depoimentos das testemunhas indicadas pela senhora juíza a quo na motivação da decisão sobre aquele ponto de facto, analisados os mesmos conjugada e criticamente, entre eles, e entre eles e os demais elementos probatórios mencionados, à luz das referidas regras da experiência comum, da lógica, da normalidade das coisas, a outra conclusão não é possível chegar que não seja exatamente aquela a que chegou a senhora juíza a quo, e pelos mesmos fundamentos por ela esgrimidos, sob pena de, na realidade, nada fazer sentido.
Aliás, acrescentar algo, neste contexto, outra coisa não seria do que dizer a mesma coisa por outras palavras.
Termos em que se mantém inalterada a decisão sobre o enunciado descrito sob o ponto 13. dos factos provados, improcedendo, por conseguinte, a impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
3.2.2 – Do enquadramento jurídico:
Dispõe o n.º 1 do art. 503.º do CC que «aquele que tiver a direção efetiva de qualquer veículo de circulação terrestre e o utilizar no seu próprio interesse, ainda que por intermédio de comissário, responde pelos danos provenientes dos riscos próprios do veículo, mesmo que este não se encontre em circulação.»
Conforme esclarece Rui Ataíde, «razões de certeza e segurança jurídica explicam que as hipóteses legais de responsabilidade pelo risco obedeçam ao princípio da tipicidade.»[ii].
É o que resulta do n.º 2 do art. 483.º do CC, segundo o qual «só existe obrigação de indemnizar independentemente de culpa nos casos especificados na lei.»
Vigora, aqui, pois, um princípio de numerus clausus, o que significa que haverá «regras que, para determinados âmbitos, preveem responsabilidade objetiva com requisitos que vão variando (...) e com algumas diferenças nos efeitos, o que conduz à criação de um sistema de previsões normativas conformadas de forma estrita (...).»[iii].
É o caso do citado n.º 1 do art. 503.º do CC[iv], preceito que configura uma situação de «responsabilidade objetiva do “utilizador” ou “detentor” do veículo (pelo acréscimo de perigo que este representa e como contrapartida dos benefícios auferidos por quem dele tira partido – ubi commodum, ibi incommondum)»[v].
Trata-se, aqui, de um domínio de eleição, «uma das áreas mais características», desde há muito e até ao presente, para esta forma de responsabilidade, objetiva ou pelo risco[vi].
No dizer de Raul Guichard «o preceito em análise refere-se, segundo a sua letra, apenas aos “danos provenientes dos riscos próprios do veículo, mesmo que este não se encontre em circulação”. Mostra-se, portanto, imprescindível que os prejuízos traduzam de algum modo a especificidade dos riscos induzidos por aquele, o “perigo típico” que ele envolve (“uma conexão causal ainda que indireta”, entendida a expressão habilmente, a chamada “conexão de risco”). Não se trata, assim, da concretização de riscos totalmente estranhos ao veículo e ao seu funcionamento (os quais caem fora da responsabilidade objetiva, sem prejuízo de poderem ser indemnizados no âmbito da responsabilidade por factos ilícitos).»[vii].
 Estão abrangidos nesse normativo os prejuízos causados por veículos que não se encontrem em circulação, nomeadamente se encontrem parados ou imobilizados, mas, claro, apenas os danos promanados dos riscos próprios do veículo.
Segundo o citado Autor, não cai, «talvez», no âmbito da responsabilidade por acidente de viação, «o incêndio ateado ao carro pelo ladrão que depois se propaga a outras viaturas; ou iniciada por uma fonte de ignição alheia ao veículo.»[viii].
Rui Ataíde escreve que a «formulação “riscos próprios do veículo” tem sido objecto de interpretação ampla pela jurisprudência, em ordem a assegurar o adequado ressarcimento dos lesados. Estão abrangidos não apenas os riscos inerentes aos mecanismos e peças integrantes da viatura (falhas de travões, pneus que rebentam, direcção que se parte, “capot” que se abre com a viatura em andamento, janelas que se quebram com as vibrações provocadas pela passagem de pesados), como ainda se consideram englobados os factores relativos à pessoa do condutor (como sejam desmaios, acidentes cardíacos , cegueira repentina, etc.), às condições atmosféricas e o estado das vias.
Estão, assim, abrangidas todas as circunstâncias de força maior que se repercutam de forma directa no funcionamento do veículo ou de forma indirecta, por intermédio da pessoa do condutor ou das condições das vias de circulação (derrapagens em piso escorregadio, buracos na via, gelo acumulado nas faixas de rodagem, etc.), bem como os próprios danos causados pelo veículo ainda que imobilizado (v. g., incêndio provocado por curto-circuito).»[ix].
Ribeiro de faria escreve que à luz do art. 503.º, n.º 1, do CC, «é acidente de viação todo aquele em que se encontra envolvido um veículo, ponto é que os danos se possam imputar aos riscos que ele, como veículo, é apto a provocar ou produzir. E volta-se a dizer: encontre-se o veículo ou não em circulação.
(...) não havendo dúvida quanto aos acidentes causados pelo veículo durante a circulação deste, afigura-se deverem compreender-se também os acidentes causados pelo veículo enquanto subsistam esses perigos, embora ela não esteja em circulação: os perigos especiais causados pelo veículo são a sua velocidade, a sua paragem rápida, a sua força maiores, a existência de motores suscetíveis de explosão, de dispositivos que encerram perigos particulares (v. g., pneus que podem rebentar, direção que pode partir), etc.. São esses perigos que justificam a responsabilidade objetiva e, por conseguinte, para esta existir, é necessário que o dano seja efeito de tais perigos, quer o veículo esteja em circulação, quer esteja parado.
(...) de acordo com a redação atual do preceito legal ao caso aplicável cabem nos riscos específicos do veículo já aqueles que ele causa em andamento, já aqueles que, enquanto veículo, é suscetível de produzir, ainda que estacionado (nas vias públicas ou mesmo na garagem). (...).
Mas repare-se agora que a lei se refere a danos causados pelos “riscos próprios” do veículo. Isso leva à distinção entre riscos próprios do veículo e riscos que o não são. No primeiro caso, temos todos aqueles que se prendem com o funcionamento do motor ou demais aspetos mecânicos que são inerentes à estrutura do veículo (é uma explosão, é a falta de direção ou a avaria nos travões) ou aqueles que, embora exteriores ao veículo, são causados pela conjugação do funcionamento do veículo e do ambiente que o circunda ou em que ele se movimenta – ponto é que assumam a natureza de perigos que normalmente acompanham essa ligação natural: (...).
Pelo contrário, são riscos que exorbitam do veículo o facto de alguém tropeçar numa viatura que estava estacionada numa garagem, ou entalar os dedos numa porta de um automóvel, ou se agredido por alguém que se serve de uma peça de um automóvel. Na mesma linha de coisas pode-se dizer que se, por exemplo, o proprietário de um veículo o deixa estacionado (legalmente) na rua, porque lhe faltou a gasolina, e uma bicicleta choca com ele, também não há uma dano que seja efeito dos perigos especiais do automóvel, já que, no seu lugar, podia muito bem estar outra coisa (v. g., um montão de pedras, para arranjo do pavimento) e a consequência seria a mesma.»[x].
Dario Martins de Almeida escreve que «é difícil definir com precisão o que sejam os riscos próprios do veículo. Estamos aqui perante aquilo que, de algum modo, é possível arrumar na categoria de conceito normativo, de fronteiras pouco definidas, funcionando portanto como conceito indeterminado, a preencher, a na sua revelação concreta, por processos casuísticos.
No sentido corrente, o risco tende a confundir-se com o perigo. O próprio caso fortuito, relativo à viatura, caracteriza uma dimensão do risco. Daí que  o perigo, como situação potencial no caminho do dano, se desdobre em fenómenos cujas forças funestas acabam por escapar à acção do homem.
O carácter perigoso do veículo reside mais no seu uso (o risco-actividade) do que do seu dinamismo próprio (...).
No risco, compreende-se tudo o que se relacione com a máquina enquanto engrenagem de complicado comportamento, com os seus vícios de construção, com os excessos ou desequilíbrios da carga do veículo, com o maior ou menor peso ou sobrelotação, com a sua maior ou menor capacidade de andamento, com o maior ou menor desgaste das suas peças, ou seja, com a sua conservação, com a escassês de iluminação, com as vibrações inerentes ao andamento de cetos camiões gigantes, susceptíveis de abalar os edifícios ou quebrar os vidros das janelas. É o pneu que pode rebentar, o motor que pode explodir, a manga do eixo ou a barra da direcção que podem partir, a falta súbita de travões ou a sal desafinação, a pedra ou gravilha ocasionalmente projectadas pela roda do veículo (...).
Dentro dos pressupostos da responsabilidade civil, o dano indemnizável será aquele que estiver em conexão causal com o risco. Para traduzir esta ideia, a lei refere-se aos “danos provenientes dos riscos próprios do veículo. O dano liga-se por um nexo causa ao facto material em que se configura o risco, não sendo todavia necessário um contacto material entre o veículo e o sinistrado ou entre duas viaturas (...). E mesmo parados, os veículos podem constituir uma fonte de perigos e, consequentemente, de danos (explosão do depósito de gasolina, a paragem brusca de viatura em curva sem visibilidade).
O dano terá de ser sempre condicionado por uma relação de causalidade, mesmo indirecta, com o facto em que se materializa o risco.»[xi].
Conforme esclarece Antunes Varela, «fora do círculo dos danos abrangidos pela responsabilidade objectiva ficam: os que não têm conexão com os riscos específicos do veículo (...).»[xii].
Maria Inês Soares de Almeida escreve que «relativamente aos danos indemnizáveis num sinistro rodoviário, a parte final do n.º 1, do art. 503.º é clara: o detentor do veículo responde pelos riscos próprios do veículo, mesmo que este não se encontre em circulação. São duas as notas essenciais que aqui destacamos: em primeiro lugar, para que o dano seja objeto de reparação, é imprescindível que exista um nexo de causalidade adequada entre o facto e o dano, sendo este um dos pressupostos essenciais da obrigação de indemnização – somente os danos que tiverem como causa (jurídica) o acidente provocado pelo veículo é que serão indemnizados pelo seu detentor; em segundo lugar, nem todo o dano proveniente do nexo de causalidade facto-dano gera o desencadear desta responsabilidade civil – apenas os danos provenientes dos riscos próprios do veículo é que serão ressarcíveis. Em bom rigor, por riscos próprios do veículo compreendem-se quer os riscos inerentes à própria máquina (pense-se na deficiência do sistema de travagem), quer os riscos atinentes ao próprio condutor (como o mero cerrar de olhos, em virtude de um espirro), quer os riscos respeitantes ao meio de circulação do veículo (é o caso, v. gr., da formação de gelo na estrada).»[xiii].
Na sua fundamentação jurídica a sentença recorrida chama à colação, como se impunha, o art. 503.º, n.º 1, do CC.
No entanto, não é expressa, assertiva, concludente, como deveria ser, quanto à aplicabilidade, ou não, de tal preceito ao caso concreto.
Deduz-se, no entanto, daquela mesma fundamentação, que a senhora juíza a quo considera aquele preceito aplicável à situação sub judice, pois logo a seguir chama a terreiro o art. 505.º do CC[xiv], para afirmar o seguinte:
«Todavia, de acordo com o artigo 505.º do mesmo código, esta responsabilidade pelo risco é excluída quando o acidente for imputável ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resultar de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo. Assim o-é, uma vez que tais factos interrompem o nexo de causalidade entre o dano e o risco do veículo.
In casu, resultou provado que no dia 13 de setembro de 2021 deflagrou um incêndio que teve origem no veículo ligeiro de passageiros de marca Smart, que estava estacionado num parque para o efeito e cuja responsabilidade civil obrigatória estava transferida para a Ré, incêndio esse que se propagou para o veículo da Autora, tendo causado danos no valor de 28.000,00€, correspondentes à perda total do veículo.
No entanto, resultou também provado que este incêndio derivou de intervenção humana.
Ora, pese embora o risco de um veículo automóvel se incendiar (mesmo estacionado) e causar danos a terceiros, inscreva-se no círculo daqueles que lhe são próprios e que resultam da sua natureza, a verdade é que o facto deste incêndio ter sido causado por terceiro (ainda que não identificado), exclui a responsabilidade do proprietário do veículo segurado pela Ré, nos termos do artigo 505.º do Código Civil, uma vez que interrompe o nexo causal entre o dano e o risco próprio do veículo.
Desta forma e nos termos das normas invocadas, dúvidas não restam ao Tribunal de que a Ré não pode ser responsabilizada pelo pagamento da indemnização peticionada pela Autora, uma vez que a responsabilidade pelos danos causados não pode ser imputada ao seu segurado e, como tal, para si transferida por meio do contrato de seguro celebrado.»
O tribunal recorrido resolveu assim, o litígio que no caso concreto opõe apelante e apelada, em resultado da aplicação do disposto no art. 505.º do CC.
Porém, o art. 505.º do CC não tem, a nosso ver, aplicação ao caso concreto.
Tal apenas poderia suceder na sequência da prévia fixação da responsabilidade objetiva ou pelo risco, prevista no art. 503.º, n.º 1 do CC.
Acontece que, face à matéria de facto provada, a situação sub judice não se enquadra sequer na previsão do art. 503.º, n.º 1.
Está provado que:

a) A Autora é proprietária do veículo automóvel ligeiro de passageiros de marca Mercedes Benz, modelo ____ com a matrícula __-AA-__;
b) No dia __ de ____ de ___ deflagrou um incêndio na zona de estacionamento automóvel que se encontra junto ao n.º _, da Rua ____, em Lisboa;
c) O incêndio teve origem na zona da roda dianteira esquerda do veículo ligeiro de passageiros marca Smart, com a matrícula __-BB-__, propriedade de B;
d) (...) tendo depois atingido os restantes veículos identificados em 3 dos factos provados;
e) O incêndio derivou de intervenção humana.
Perante tal factualidade, e norteados agora pelo antecedente excurso doutrinário, não se nos afigura ter resultado provado qualquer nexo de causalidade entre os danos sofridos pelo AA e os riscos ou perigos próprios, específicos, do BB.
Por outras palavras, não se crê ter ficado demonstrado que os prejuízos sofridos pelo AA traduzam, de algum modo, a especificidade dos riscos induzidos pelo BB, o “perigo típico” que ele envolve (“uma conexão causal ainda que indireta”, entendida a expressão habilmente, a chamada “conexão de risco”).
Em suma, cremos estar perante um caso que não cabe no âmbito da responsabilidade por acidente de viação, como tal considerando todo aquele em que esteja envolvido um veículo, encontre-se ele em circulação, parado ou estacionado, desde que os danos se possam imputar aos riscos que ele, como veículo, é apto a provocar ou produzir.
No caso sub judice, o risco aqui em causa afigura-se-nos estranho ao BB e ao seu funcionamento, caindo fora da responsabilidade objetiva ou pelo risco, para cair, eventualmente, no âmbito da responsabilidade delitual ou aquiliana, por facto ilício, sobre a(s) pessoa(s) na sequência de cuja intervenção derivou o incêndio no BB.
Um incêndio que deflagra numa zona de estacionamento automóvel de uma artéria de Lisboa, com origem na zona da roda dianteira esquerda de um veículo ali estacionado, que depois atinge outros veículos estacionados perto daqueloutro, incêndio esse que derivou, o mesmo é dizer, que foi provocado por intervenção humana, não é um risco próprio, um perigo específico, do primeiro veículo incendiado, justificativo da responsabilidade objetiva ou pelo risco.
É que nada há que indicie que o incêndio que teve origem no BB se deveu a qualquer problema com ele relacionado, a qualquer causa suscetível de assumir a natureza de perigo típico ou específico inerente ao próprio veículo, à máquina que o mesmo constitui enquanto engrenagem; antes está provado, que o incêndio, com origem no contexto atrás descrito, derivou, foi causado, foi provocado, por intervenção humana.
Não se vê, pois, e para concluir, a existência de conexão causal, mesmo indireta, entre os danos sofridos pelo AA e o risco próprio, específico, do BB.
Assim, ainda que com fundamentação não coincidente, há que julgar a apelação improcedente e confirmar a sentença recorrida.
***
IV – DECISÃO:
Pelo exposto, acordam os juízes que integram a 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, em julgar a apelação improcedente, confirmando, em consequência, ainda que com fundamentação não coincidente, a sentença recorrida.
As custas da apelação, na vertente de custas de parte, são a cargo da apelante (arts. 527.º, n.ºs 1 e 2, 607.º, n.º 6 e 663.º, n.º 2).

Lisboa, 6 de fevereiro de 2026
José Capacete
Carlos Oliveira
Paulo Ramos de Faria
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[i] Conforme se decidiu no Ac. do S.T.J. de 16.12.2020, Proc. n.º 2817/18.0T8PNF.P1.S1 (Tomé Gomes), in www.dgsi.pt, «o ónus de formulação de conclusões recursórias tem em vista uma clara delimitação do objeto do recurso mediante enunciação concisa das questões suscitadas e dos seus fundamentos, expurgadas da respetiva argumentação discursiva que deve constar do corpo das alegações, em ordem a melhor pautar o exercício do contraditório, por banda da parte recorrida, e a permitir ao tribunal de recurso uma adequada e enxuta enunciação das questões a resolver.»
Em caso de impugnação da decisão sobre a matéria de facto, compete ao recorrente:
a) em sede de motivação do recurso:
- especificar os concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.);
- indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda;
- tomar posição expressa sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação;
b) em sede de conclusões:
- concretizar que pretende impugnar a decisão sobre a matéria de facto;
- especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados.
Assim, versando o recurso sobre a impugnação da decisão relativa à matéria de facto, nas conclusões apenas importa que o apelante proceda à indicação dos pontos de facto incorretamente julgados e que se pretende ver modificados.
Em caso de impugnação da decisão sobre a matéria de facto, as conclusões não têm, obviamente, que reproduzir todos os elementos do corpo das alegações, nem delas deve constar a especificação dos meios de prova, a indicação das passagens das gravações e nem mesmo as respostas pretendidas.
Nas conclusões, por evidentes razões de objetividade e de certeza, apenas devem ser indicados os concretos pontos de facto sobre que incide a impugnação.
No que às conclusões do presente recurso diz respeito, fez-se uma triagem daquilo que verdadeiramente interessa para a decisão do recurso, expurgando-as dos pontos em que as mesmas não cumprem o fim a que se destinam.
[ii] Direito da Responsabilidade Civil, Gestlegal, 2023, pp. 446-447.
[iii] Cfr. Jorge Ribeiro de Faria, Direito das Obrigações, Vol. II (Atualizada e ampliada por Miguel Pestana de Vasconcelos e Rute Teixeira Pedro), Almedina, 2023, p. 8, nota 2.
[iv] Cfr. Rui de Ataíde, Direito da Responsabilidade Civil cit., pp. 446 e 450.
[v] Raul Guichard, Comentário ao Código Civil – Direito das Obrigações – Das Obrigações em Geral, Universidade Católica Editora, 2018, p. 401.                
[vi] Raul Guichard, Comentário cit., p. 401.
[vii] Comentário cit., p. 403.
[viii] Raul Guichard, Comentário cit., p. 404.
[ix] Direito da Responsabilidade Civil cit., pp. 465-466.
[x] Direito das Obrigações cit., pp. 57-61.
[xi] Manual de Acidentes de Viação, 3.ª Edição, Almedina, 1987, pp. 318-323.
[xii] Das Obrigações em Geral, Vol. I, 10.ª Edição, Almedina, 2003, p. 669.
[xiii] Culpa versus Risco: Reflexões Concernentes à Dualidade de Fundamentos na Responsabilidade Civil por Acidentes de Viação – O caso Particular da Concorrência da Culpa do Lesado com o Risco do Veículo, Dissertação de Mestrado em Ciências Jurídico-Civilísticas, com Menção em Direito Civil, Universidade de Coimbra, Coimbra, 2016, p. 58, acessível na internet em https://estudogeral.uc.pt/bitstream/10316/42727/1/Marta%20Almeida.pdf.
[xiv] «Sem prejuízo do disposto no artigo 570.º, a responsabilidade fixada pelo n.º 1 do artigo 503.º só é excluída quando o acidente for imputável ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo.»Tal como se afirma no Ac. do S.T.J. de 19.02.2015, Proc. n.º 299/05.6T8MGD.P2.S1 (Tomé Gomes), in www.dgsi.pt, «enquanto que a especificação dos concretos pontos de facto deve constar das conclusões recursórias, já não se afigura que a especificação dos meios de prova nem, muito menos, a indicação das passagens das gravações devam constar da síntese conclusiva, bastando que figurem no corpo das alegações, posto que estas não têm por função delimitar o objecto do recurso nessa parte, constituindo antes elementos de apoio à argumentação probatória».